Há um filme que pode nos ajudar a entender a relação do novo com o velho e, sempre, o papel da linguagem, do objetivismo e do subjetivismo. Literatura e cinema parecem explicar melhor os fenômenos, principalmente no entremeio de uma crise. Aliás, crise quer dizer exatamente “quando o novo não nasce e o velho não morre”. Bingo.
Estou finalizando um livro que será uma espécie de guia para entender a Crítica Hermenêutica do Direito, que criei faz alguns anos. Três juristas me entrevistaram. O juiz e professor Bianor Arruda Bezerra Neto, o mestre e doutorando em Direito Daniel Ortiz Matos e o advogado Diego Ribeiro, editor do blog Tribuna do Jurista. Das perguntas e respostas, sairá o livro. E um deles me perguntou sobre a resistência de parcela da comunidade jurídica às inovações do CPC-2015. Lembro, na entrevista, da palestra que fiz no Congresso de Direito Processual Civil ocorrido em Belo Horizonte no primeiro semestre deste ano. Encerrei a palestra com a alegoria de um filme, que agora conto para os meus caríssimos leitores aqui da ConJur.
Trata-se da película Os Deuses Devem Estar Loucos, em que o piloto de um pequeno avião, sobrevoando uma aldeia de uma tribo “não civilizada”, descarta uma garrafa vazia de Coca-Cola. Os nativos olham para esse objeto estranho e não sabem o que fazer com ele. O primeiro problema é que há somente um objeto. E a tribo era enorme. Segundo problema: do que se trata? Afinal, não havia um a priori compartilhado — uso aqui o conceito que cunhei na Crítica Hermenêutica do Direito — acerca do sentido de “garrafa”. O estranhamento fez com que houvesse chutes de sentido.
Mas a linguagem surge na falta, pois não? E alguns silvícolas (claro, silvícola na nossa linguagem ocidental) usam a garrafa para ralar tubérculos, outros assopram e pensam que é um instrumento musical e outro dá o sentido de arma, porque o objeto estranho é atirado e fere um terceiro na cabeça.
Depois dessas tentativas, os nativos decidem se livrar desse objeto-estranho-não linguisticizado, portanto, não compreendido. E elegem um deles — Zi — para levar o objeto e atirá-lo para fora do mundo, porque, para eles, o mundo tinha limites, era quadrado, e o tal objeto deveria ser descartado para o abismo do nada. E lá se foi o nativo, correndo para o fim do mundo. Que nunca chegou. Ele vê camadas de nuvens que cobrem/obnubilam a visão do horizonte. E lá atira o objeto-não-nominado. Que desaparece em uma espécie de “real-impossível-de-dizer”.
Moral da história que construo: o novo sempre perturba. O NCPC causa estranhamento. Há dezenas de livros apresentando interpretações das mais variadas. Uns dizem que o código é perigoso para a magistratura, havendo juízes já de malas prontas para outros países (Estados Unidos e Rodésia, ao que me foi dito). Outros preparam o drible da vaca hermenêutico, despistando uma aplicação mais efetiva. O artigo 489 não é feito para o Brasil, brada-se em congressos e simpósios. Onde se viu exigir fundamentação esmiuçada?
Há os que propõem enunciados desviantes, como se os limites semânticos da nova lei nada valessem. Do mesmo modo como fizeram os nativos do filme, vão do ralador ao apito. Enfim, como se trata de uma lei, parece que os que se colocam contra o NCPC e, em especial, contrários ao dever de fundamentação, gostariam de eleger um jurista para correr até o limite do mundo e descartar o estranho objeto. Sim, esse objeto estranho, o NCPC. Quem seria o escolhido? Sua tarefa: atirar o NCPC na névoa solipsista que cobre a visão do horizonte.
Contaram-me também que um nativo-professor teve uma epifania e criou a seguinte tese: a de que o dever de coerência e integridade (artigo 926) é apenas uma norma programática, sem normatividade estrita. Genial, não? Vamos todos para Estocolmo receber o Nobel. Ou seja: o NCPC é uma lei que não deve ser obedecida. Por quê? Porque sim. E porque não “é boa”. Ah, bom. O legislador teria “se equivocado”. Já outros dizem que a retirada do livre convencimento (artigo 371) nada significa. Outra epifania epistêmica, pois não?
A propósito, leio que já estão no mercado mais de 60 enunciados com caráter oficial. Os enunciados 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, à primeira vista[1], buscam minimizar, nada mais, nada menos, do que a garantia do contraditório e da não surpresa prevista no artigo 10, colocado no NCPC com muito esforço de gente como Dierle Nunes, Fredie Didier, Alexandre Freire, Luis F. Volpe, Leonardo Cunha e Lucio Delfino, entre outros (e por mim). As teses, lidas em seu conjunto (há que se somar ainda outros enunciados), sequestram a faticidade. Na verdade, reduzem a garantia de influência das partes na decisão às questões de fato. Lembro de Castanheira Neves, sobre a impossibilidade de cindir questão de fato e questão de direito. Por favor, não se trata de preciosismo acadêmico. A divisão judicial entre fatos e direitos não é inócua. Trata-se de um dividir para conquistar: nos fatos os enunciadores ainda nos concedem um controle objetivo, em face das evidências. Mas se deixássemos sua interpretação[2] apenas para os juízes, sem garantir também aí a influência das partes (pelos “direitos de manifestação” e de “ver seus argumentos considerados”, vedando-se também as “decisões-surpresa”), a magistratura vai se assenhorar dos sentidos a lhes atribuir. Essa divisão é tão desprovida de fundamento que é escancaradamente invocada segundo conveniências. Nesse sentido, ora as partes batem na Súmula 7 do STJ (não se reapreciam fatos), ora, num enunciado desses (só se reapreciam fatos). Destaque para o enunciado 2: Primeiro, que negócio é esse de “regra emanada do princípio aplicado”? Seria o juiz construindo (um)a regra? Talvez seja um truque para poder ponderar? Alguém pode explicar essa nova teoria? Quando a inventaram? Afinal, o que emana de quê? Aliás, a palavra “emanar” já traz um forte substrato ontoteológico, certo? Ao que se vê do enunciado, o juiz dispõe livremente da história do direito! Talvez seja o caso de as partes se anteciparem pedindo um exame de DNA da regra. Afinal, é necessária uma prova do substrato fático, já que não se tem garantia de influência sobre o enquadramento jurídico... Então, vamos faticizar tudo.
Vou falar muito disso ainda. Por ora, apenas fico por aqui. Essa paixão pela semântica lembra um retorno ao século XIX, a uma coisa chamadaBegriffjurisprudence (jurisprudência dos conceitos). E se sabe que, por ela, quem ficava de fora era exatamente... o povo. Era um Direito feito por professores. Já, aqui, os enunciados são um Direito feito por juízes.
Vou explicar isso — e o faço com toda a lhaneza — para evitar mal-entendidos: uma lei só adquire sentido na aplicação, isto é, na dura cotidianidade das práticas jurídicas, que envolvem uma comunidade de intérpretes, e não um conjunto de pessoas fazendo uma apreciação a partir de uma espécie de “tutela hermenêutica antecipada”. Os enunciados — e essa crítica também se estende aos processualistas que se reúnem para fazer os seus próprios enunciados — são um conjunto de “provimentos cautelares epistêmicos” que pretendem abarcar de antemão todas as hipóteses de aplicação. Aliás, o que pretendia o positivismo do século XIX? Exatamente isso. Respostas antes das perguntas! Bingo. Sugiro leituras como The inevitability of Practical reason, de Daniel Farber; Plädoyer für eine rechstsgebietsspeziische Methodologie oder: wider Imperialismus in der jurisdischen Methodendiskussion, de Ingeborg Maus; Tiene razón el derecho?, de Andrés Ollero; Diritto e interpretazione, de Zaccaria e Viola. Também no Brasil: Lenio Streck e Georges Abboud — O que é isto – os precedentes e as súmulas vinculantes; Decisão Judicial e conceito de princípio, de Rafael Tomás de Oliveira etc.
Só quero mostrar que não estou sozinho nisso que estou sustentando. Há tantas pessoas que pensam parecido com o que estou aqui dizendo que não caberia nesta coluna listar todos eles. Aliás, para fechar, cito o grande Esser, para quem a norma (o sentido do texto jurídico) não encontra sentido se não estiver conectada a um problema. Müller disse isso de forma mais enfática ainda. Para ele, a norma é sempre individual. Por isso, permito-me acrescentar, não se pode fazer “conceitos sem coisas”. Pensar em uma norma geral, abstrata, é voltar ao século XIX.
Parece chato ficar falando desse assunto. Mas, por favor, vamos falar sério. O código nem entrou em vigor e já começaram os despistes e o trabalho de “novas redações”. Façamos doutrina. Escrevamos sobre o NCPC. Essa é a tarefa de quem quer auxiliar no processo compreensivo. Tenho receio de que os enunciados feitos pela magistratura venham a ter valor maior que o próprio CPC. O que o leitor pensa disso?
De todo modo, o ruim é que já acostumamos com isso. Na Justiça do Trabalho, uma OJ vale mais do que a Constituição. A comunidade jurídica já de há muito está alienada das grandes discussões teóricas que deveriam nortear a crítica do Direito. Na verdade, parcela considerável da comunidade jurídica nem sabe que não sabe. E isso é péssimo.
A coluna de hoje é bem singela. Curtinha. Acústica. Só para mostrar que o jogo ainda nem iniciou e já começou a cera técnica. E dribles hermenêuticos. Obs: de certo modo, falei disso no congresso do IBCCrim, sob outro viés. Contarei isso nas próximas colunas.
Mas não é, de fato, incrível esse filme “os deuses devem estar loucos”?
[1]Sobre o fato de a Enfam ter aprovado mais de 60 enunciados sobre o NCPC, o jurista Marco Paulo D. Di Spirito diz que “isso faz lembrar a denominada ‘contradição performativa’, abordada por Karl-Otto Apel. Ocorre que, na prática (ou seja, performativamente), os participantes do evento acabam por contrariar o piso que lhes serve de suporte, o próprio CPC-2015. Ora, um dos principais alicerces do novo CPC é o de que não se pode pretender, na atualidade, alcançar sentidos e significados, inclusive os normativos, de forma unilateral, com a participação de apenas um dos setores da sociedade”. E complementa o dr. Marco: “Note-se, ainda, o açodamento de tal iniciativa, de pretender sepultar debates com enunciados peremptórios. A fórmula é a seguinte: entre doxa e episteme, fiquemos com um enunciado! Que futuro terá o novo CPC sem uma mudança de cultura?”.
Em coluna próxima analisarei os enunciados, assim que forem publicados no Diário Oficial! Afinal, terão força de lei, certo?
[2]Ainda que fosse mesmo possível essa divisão.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 3 de setembro de 2015, 8h00
Nenhum comentário:
Postar um comentário