quarta-feira, 31 de outubro de 2012

DIREITOS COLETIVOS LATO SENSU: A DEFINIÇÃO CONCEITUAL DOS DIREITOS DIFUSOS, DOS DIREITOS COLETIVOS STRICTO SENSU E DOS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

DIREITOS COLETIVOS LATO SENSU: A DEFINIÇÃO CONCEITUAL DOS DIREITOS DIFUSOS, DOS DIREITOS COLETIVOS STRICTO SENSU E DOS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS.
Sumário: Introdução: atualidade e importância do tema; 1 - Direitos difusos, coletivos (stricto sensu) e individuais homogêneos: o advento do Código de Defesa do Consumidor brasileiro e sua conceituação; 2 - Direitos ou “interesses”; 3 - Critérios para caracterização dos direitos coletivos lato sensu; Conclusões.
Hermes Zaneti Junior
Mestre e doutorando em Processo Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da graduação e pós-graduação na UFRGS, ULBRA e na FESMP/RS. Coordenador Executivo do curso de Especialização Processo e Constituição da UFRGS. Advogado.
Introdução
A escolha do tema mostra-se oportuna, pois o momento atual do direito revela a necessidade de efetiva proteção de posições jurídicas que fogem a antiga fórmula individual credor/devedor.
O Anteprojeto de Código Processual Civil Coletivo Modelo para Ibero América , que nos cabe comentar, é a prova desta preocupação e esperança de progresso nas legislações nacionais.
Destacamos do Código Modelo o seu artigo 1° para o nosso comentário, o que porém não nos limitará a análise, vez que também em outros momentos este rico projeto traz tópicos de relevância para o nosso objetivo: lançar luzes e questionamentos sobre o conceito de direitos e/ou interesses coletivos.
Em verdade procuraremos abordar o tema explicitando o que se entende hoje no Brasil por direitos coletivos lato sensu, subdividindo este em direitos difusos, direitos coletivos stricto sensu e direitos individuais homogêneos.
Esta, aliás, é a subdivisão feita pelo artigo em comento, que traz nos seus incisos: I - interesses ou direitos difusos; II - interesses ou direitos coletivos; III - interesses ou direitos individuais homogêneos.
Obrigatório advertir que a Lei 8.078/90, o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (CDC), em seu artigo 81, parágrafo único, regulamenta a matéria exatamente da mesma maneira que o Código Modelo.
Metodologia de abordagem. O trabalho será desenvolvido na perspectiva da legislação brasileira (CDC) em comparação com o Código Modelo (CM). No primeiro tópico abordaremos os conceitos, no segundo faremos uma breve crítica à equívoca denominação “interesses”, que no nosso entender pode prestar desserviço à tutela coletiva; por último, trataremos da caracterização destes direitos na prática, ou seja, como identificar se no caso concreto se tutela um direito difuso, coletivo stricto sensu ou individual homogêneo. Ao final traremos as conclusões principais para facilitar ao leitor o acesso ao nosso entendimento.

1. Direitos Difusos, Coletivos (Strictu Sensu) e Individuais Homogêneos: O Advento do Código do Consumidor Brasileiro e sua Conceituação

Quando a doutrina passou a enfrentar o problema das ações coletivas, viu-se inicialmente com sérias dificuldades para definir conceitos para os novos direitos que lhe estariam na base, o que levou alguns juristas a afirmar que estes se tratavam de “personagens misteriosos” 3. Apesar de certa homogeneidade obtida com relação aos direitos difusos e coletivos, vistos sob o aspecto subjetivo como direitos transindividuais e, no aspecto objetivo como indivisíveis, sua conceituação sempre foi objeto de dúvida. Porém, com o advento do CDC, esta problemática restou resolvida no direito brasileiro. O Código estabeleceu, no art. 81, § único, as categorias em que se exerce a defesa dos direitos coletivos lato sensu. São elas: os direitos difusos, os direitos coletivos (stricto sensu) e os direitos individuais homogêneos. A mesma solução foi adotada pelo Código Modelo (CM).
Assim, tem-se por direitos difusos (art. 81, § único, I, do CDC e art. 1°, I, do CM) aqueles transindividuais (metaindividuais, supraindividuais, pertencentes a vários indivíduos), de natureza indivisível (só podem ser considerados como um todo), e cujos titulares sejam pessoas indeterminadas (ou seja, indeterminabilidade dos sujeitos, não há individuação) ligadas por circunstâncias de fato, não existe um vínculo comum de natureza jurídica, v.g., a publicidade enganosa ou abusiva, veiculada através de imprensa falada, escrita ou televisionada, a afetar uma multidão incalculável de pessoas, sem que entre elas exista uma relação jurídica-base.
Já os direitos coletivos stricto sensu (art. 81, § único, II do CDC, e art. 1°, II do CM) foram classificados como direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas (indeterminadas, mas determináveis, frise-se, enquanto grupo, categoria ou classe) ligadas entre si, ou com a parte contrária, por uma relação jurídica base. Nesse particular cabe salientar que essa relação jurídica base pode se dar entre os membros do grupo “affectio societatis” ou pela sua ligação com a “parte contrária”. No primeiro caso temos os advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (ou qualquer associação de profissionais); no segundo, os contribuintes de determinado imposto.
Cabe ressalvar que a relação-base necessita ser anterior à lesão (caráter de anterioridade). No caso da publicidade enganosa, a “ligação” com a parte contrária também ocorre, só que em razão da lesão e não de vínculo precedente, o que a configura como direito difuso e não coletivo stricto sensu (propriamente dito).
O elemento diferenciador entre o direito difuso e o direito coletivo é, portanto, a determinabilidade e a decorrente coesão como grupo, categoria ou classe anterior à lesão, fenômeno que se verifica nos direitos coletivos stricto sensu e não ocorre nos direitos difusos.
Portanto, para fins de tutela jurisdicional, o que importa é a possibilidade de identificar um grupo, categoria ou classe, vez que a tutela revela-se indivisível, e a ação coletiva não está disponível aos indivíduos que serão beneficiados.
O legislador foi além da definição de direitos difusos e coletivos stricto sensu e criou uma nova categoria de direitos coletivos (coletivamente tratados) a qual denominou direitos individuais homogêneos (art. 81, § ún., III, do CDC, e art. 1°, III,do CM). A gênese dessa proteção/garantia coletiva tem origem nas class actions for damages norte-americanas.
A importância desta categoria é cristalina. Sem sua criação pelo direito positivo nacional não existiria possibilidade de tutela “coletiva” de direitos com natural dimensão coletiva, decorrentes da massificação/padronização das relações jurídicas e das lesões daí decorrentes. Assim, “Tal categoria de direitos representa uma ficção criada pelo direito positivo brasileiro com a finalidade única e exclusiva de possibilitar a proteção coletiva (molecular) de direitos individuais com dimensão coletiva (em massa). Sem essa expressa previsão legal, a possibilidade de defesa coletiva de direitos individuais estaria vedada”.
O CDC conceitua os direitos individuais homogêneos como aqueles decorrentes de origem comum, ou seja, os direitos nascidos em conseqüência da própria lesão ou ameaça de lesão, em que a relação jurídica entre as partes é post factum (fato lesivo).
Para evitar equívocos na interpretação transcreve-se a precisa lição de Watanabe: “Origem comum’ não significa, necessariamente, uma unidade factual e temporal. As vítimas de uma publicidade enganosa veiculada por vários órgãos de imprensa e em repetidos dias ou de um produto nocivo à saúde adquirido por vários consumidores em um largo espaço de tempo e em várias regiões têm, como causa de seus danos, fatos com homogeneidade tal que os tornam a ‘origem comum’ de todos eles.”, ou seja, o que têm em comum é a procedência, e a gênese na conduta comissiva ou omissiva da parte contrária.
O fato de ser possível determinar individualmente os lesados, não altera a possibilidade e pertinência da ação coletiva. Permanece o traço distintivo: o tratamento molecular das ações coletivas em relação à fragmentação da tutela (tratamento atomizado), nas ações individuais. É evidente a vantagem do tratamento uno da pretensão em conjunto para obtenção de um provimento genérico. Como bem anotou Antonio Gidi as ações coletivas garantem três objetivos: proporcionar economia processual, acesso à justiça e a aplicação voluntária e autoritativa do direito material.
Não por outra razão se determinou em ambos os códigos em comento (no CDC, art. 103, III, e no CM, art. 26, III) que a sentença terá eficácia erga omnes. Os titulares dos direitos individuais serão “abstrata e genericamente beneficiados”.
Nessa perspectiva, o pedido nas ações coletivas será sempre uma “tese jurídica geral” que beneficie, sem distinção, aos substituídos. As peculiaridades dos direitos individuais, se existirem, deverão ser atendidas em liquidação de sentença a ser procedida individualmente.
Como corolário desse entendimento — e ainda da lição de que os direitos coletivos lato sensu têm dupla função material e processual e foram positivados em razão da necessidade de sua tutela jurisdicional — para fins de tutela os direitos individuais homogêneos são indivisíveis e indisponíveis até o momento de sua liquidação e execução.
Como exemplo da abstração e generalidade dos direitos individuais homogêneos pode-se referir a ação coletiva de responsabilidade civil pelos danos individualmente causados. Nessa ação somente ocorrerá a determinação dos indivíduos lesados quando ingressarem como assistentes (art. 94, do CDC, e art. 19, do CM) ou no momento em que exercitarem o seu direito individual de indenização, em decorrência da habilitação para a liquidação da sentença (art. 97, do CDC, e art. 22, do CM). A condenação também poderá ser executada (abrangendo as indenizações já fixadas em sentença de liquidação) pelos legitimados processuais sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções individualmente movidas (art. 98, do CDC, e art. 23, do CM).
A idéia de unicidade no tratamento dos direitos individuais homogêneos é clara no CDC e no CM. A lei brasileira (art. 100) e o CM (art. 25) determinam expressamente que no caso de passado um ano sem a habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os entes legitimados propor a liquidação e execução da indenização devida. Nesse caso, reverte-se o produto para um fundo governamental (no Brasil criado pela Lei 7.347/85 - Lei da Ação Civil Pública - no art. 13, denominado Fundo de Direitos Difusos; e no CM inserto no art. 6°)16. Ao legislador interessa a compensação integral do prejuízo; concede-se assim primazia ao interesse público na regulação da conduta ilícita.
Como particularidade inovadora, o Código Modelo exige em seu art. 1°, § 1°, para a tutela dos direitos individuais homogêneos, a necessidade de se reconhecer “também a necessária aferição da predominância de questões comuns sobre as individuais e da utilidade da tutela coletiva no caso concreto.” Este detalhamento corresponde à adequação da ação coletiva à tutela de direitos individuais homogêneos. No dizer de Ada Pellegrini Grinover (também autora do Anteprojeto), revela-se imprescindível a demonstração da prevalência das questões comuns (sobre as individuais) e da superioridade da tutela coletiva “em termos de justiça e eficácia da sentença”.17
Por último, cabe mencionar o entendimento de parte da doutrina de que os direitos individuais homogêneos não seriam direitos coletivos, mas sim direitos coletivamente tratados (sic.).18
Esta visão mostra-se excessivamente restritiva e afastaria tal categoria do rol expressamente criado pelo CDC, referendado agora pelo Código Modelo, relegando-a a personagem de segunda categoria na proteção coletiva. Em sentido contrário, contudo, posicionou-se o pleno do Supremo Tribunal Federal brasileiro, em julgamento unânime, no RE 163231-SP, pela admissão destes direitos como subespécie de direitos coletivos. Transcrevemos trecho da ementa: “4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III,da Lei 8.078, de 11.09.1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos”19. Esta leitura jurisprudencial pelo principal tribunal brasileiro, somada ao que antes foi exposto, parece afastar a inadequada “capitis diminutio” daqueles direitos coletivos.
As categorias de direito antes mencionadas (difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos) foram conceituadas com vistas a possibilitar a efetividade da prestação jurisdicional; são, portanto, conceitos interativos de direito material e processual, voltados para a instrumentalidade, para a adequação da teoria geral do direito à realidade hodierna e, dessa forma, para a sua proteção pelo Poder Judiciário20. Assim, sua conceituação tem caráter explicitamente ampliativo da tutela dos direitos.

2. Direitos ou “Interesses”

Na legislação brasileira revela-se comum a denominação conjunta “direitos e interesses” referindo-se a direitos difusos e direitos coletivos (art. 129, inc. III da CF/88, 23 CDC, LACP, 21 etc.). O Código Modelo seguiu a mesma orientação (art. 1°).
Contudo, em nosso entender, o termo “interesses” é expressão equívoca22, seja porque não existe diferença prática entre direitos e interesses, seja porque os direitos difusos e coletivos foram constitucionalmente garantidos (v.g., Título II, Capítulo I, da CF/88). Ao que parece, deu-se mera transposição da doutrina italiana, um italianismo decorrente da expressão “interessi legitimi” e que granjeou espaço na doutrina nacional e, infelizmente, gerou tal fenômeno não desejado.
Cabe, por dever de precisão, afastar a erronia. Vale lembrar, não se trata de defesa de interesses e, sim, de direitos, muitas vezes, previstos no próprio texto constitucional.
Exemplo de conseqüência não pretendida pelo legislador está na limitação imposta por parte da doutrina ao “mandado de segurança coletivo”.24 Os primeiros textos sobre o mandado de segurança coletivo traziam uma advertência séria a respeito da impossibilidade de serem tutelados pelo writ “meros interesses”. Nesse sentido manifestavam-se, por exemplo, as vozes autorizadas de José Cretella Junior25 e Celso Neves, como demonstra a crítica abaixo.
Afirmando que “interesses” não são tuteláveis por mandado de segurança coloca Celso Neves a noção clássica de direito subjetivo como poder da vontade vinculado a um interesse pessoal ou individual ao qual o Estado, mediante o ordenamento jurídico, confere coercibilidade como forma de atuação. Afirma, ainda, que “interesses simples” ou até mesmo “interesses juridicamente protegidos” não podem ser tutelados pelo mandado de segurança ou qualquer outra ação porque justamente estão desprovidos da coercibilidade, não têm os seus titulares o “poder de vontade para a prevalência de seu interesse” que configuraria direito subjetivo.26
Podemos opor as seguintes considerações críticas: 1) não se trata de tutela de interesses e sim de direitos subjetivos coletivos; 2) Os titulares desses direitos subjetivos são aqueles indicados no art. 81, § único do CDC e no art. 1°do CM,27 sendo sua legitimação ad causam, nas ações coletivas brasileiras, atribuída às entidades expressamente elencadas na legislação.
Baseado na perspectiva de direito processual “moderno” conclui Celso Neves: “A autonomia do direito de ação não se compadece com tal extremo, porque ineliminável o binômio direito-processo, mormente num momento em que a instrumentalidade essencial da relação processual volta a ser proclamada, com redobrado vigor, pelos doutrinadores contemporâneos.”28 Aqui, também, devem ser feitas certas considerações. A instrumentalidade consiste, justamente, em fornecer um instrumento hábil e eficaz para a defesa dos direitos. O processo é instrumento (meio) de realização do direito. A autonomia do direito de ação, nesse sentido, é primordial para que sob a égide de “preconceitos” de direito material, ou interpretações “fixas” não se evite a apreciação pelo Poder Judiciário da lesão ou ameaça ao direito afirmado pelo autor. Assim, ocorre um abrandamento do “ineliminável” binômio substância-processo, sempre orientado pelo fim: o processo existe para a ordem jurídica justa.
No sentido do até agora exposto, contra a concepção estreita e excludente de “interesses”, e voltados para a correção da erronia legislativa esforçaram-se os juristas brasileiros. Calmon de Passos, por exemplo, chama atenção para o “conteúdo de direitos, inclusive em sua dimensão subjetiva” com que se revestem os “interesses” coletivos, como também, para a inaplicabilidade do conceito de “interesses legítimos” na atual realidade democrática. Assim, “Trazer-se para o direito brasileiro categorias já sem funcionalidade como a dos interesses legítimos, para colocá-los ao lado dos direitos subjetivos, ou pretender excluir os interesses transindividuais da categoria dos direitos subjetivos é insistir numa visão do direito, do Estado, da organização política e da sociedade já ultrapassada.”29
Carlos Alberto Alvaro de Oliveira assevera que o legislador teria agido com melhor técnica no art. 6º, ao mencionar apenas “direitos básicos do consumidor” ao invés de “interesses e direitos” como fez no Tít. III.30 A lição revela-se ainda mais vantajosa por esclarecer, adiante, que a distinção entre o direito subjetivo e o interesse, na doutrina nacional, assenta, justamente, na coercibilidade posta à disposição da “vontade autônoma” do indivíduo frente a um interesse seu tutelado pela norma. Comentando a distinção entre interesse legítimo e direito subjetivo, na doutrina estrangeira, o mesmo autor salienta o seu caráter quantitativo e acidental segundo a “maior ou menor proeminência do interesse individual objeto da tutela normativa”, o que em outro ordenamento pode determinar a “atribuição da cognição a órgãos distintos”, mas não lhes altera a categoria de direitos submetidos a jurisdição e a sua imperatividade.31 Por óbvio, o que se salienta na lição acima, é que mesmo nos sistemas que distinguem os direitos subjetivos e os interesses legítimos, esses não ficam desprotegidos ou submersos em subcategorias intangíveis e, portanto, não tuteláveis.
Mas qual o escorço histórico necessário para se afastar a erronia apontada? O ordenamento jurídico brasileiro, respeita o princípio da unidade de jurisdição e da inafastabilidade da apreciação, pelo Judiciário, da lesão ou ameaça de lesão a direito (rectius: afirmação). Os direitos subjetivos, no Brasil, se subdividem em direitos subjetivos privados e direitos públicos subjetivos.32 Contudo, o mesmo não ocorre com o sistema italiano que prevê uma separação de órgãos jurisdicionais (dualidade de jurisdição). Assim, a doutrina italiana construiu dois conceitos distintos, um referente aos direitos subjetivos e outro, aos chamados interesses legítimos. Os primeiros são julgados pela justiça civil (relações entre particulares); os outros, perante órgãos da justiça administrativa (relações entre particulares e administração pública ou de interesse social relevante).
A nota essencial na distinção, para este estudo, é que enquanto o direito subjetivo se vincula diretamente ao indivíduo, protegendo seu interesse individual, os interesses legítimos se dirigem ao interesse geral e favorecem o indivíduo apenas como componente, como “membro do Estado.”33 Porém, diferenças à parte, tanto os direitos subjetivos como os interesses legítimos (na doutrina italiana) se tornam concretos como direitos à tutela jurisdicional;34 percebe-se que se trata, assim, de uma distinção histórica e peculiar ao sistema italiano, que não tem qualquer aplicação ao direito brasileiro, em que os conceitos de interesse legítimo e direito subjetivo se reduzem à categoria por nós conhecida como direitos subjetivos (que aqui podem ser públicos ou privados).
Tanto o direito subjetivo quanto o interesse legítimo são, portanto, direitos. A distinção da doutrina italiana pode fazer sentido na Itália, mas não se justifica no ordenamento brasileiro, que prevê a unidade da jurisdição. Ocorre que o legislador brasileiro foi fortemente influenciado pelo direito italiano, porque a doutrina brasileira é fortemente influenciada pela doutrina italiana, onde as categorias de direitos coletivos e direitos difusos encontram-se em território cinzento, a meio caminho entre o público e o privado, sendo constantemente referidas como “interessi diffusi” e “interessi collettivi” até mesmo pela sua aproximação, por vezes, do que se entende por “interessi legitimi”. Como visto, tal não pode prosperar em nosso sistema que não admite a categoria de interesses legítimos, e onde a categoria de “interesses” não tem a menor operacionalidade prática.
Como já havia advertido Dinamarco, verifica-se uma “sutil distinção entre os direitos subjetivos e interesses legítimos” que, em conjunto com a discricionariedade do poder administrativo, decorre da idéia fascista de liberdade política da administração (Poder Executivo), e que foi “usada como escudo” para evitar a censura jurisdicional35 em regimes totalitários (v.g., o de Mussolini).
Na esteira do exposto supra, Antonio Gidi considera mais correto e adequado o termo “direitos” e não “interesses” para o ordenamento jurídico brasileiro. Sua visão expõe a resistência à ampliação do conceito de direito subjetivo. Assim, esta lhe parece mais um “ranço individualista” decorrente de um “preconceito ainda que inconsciente em admitir a operacionalidade técnica do conceito de direito superindividual” e da dificuldade de enquadrar um direito com características de “indivisibilidade” quanto ao objeto e “impreciso” quanto à titularidade no direito subjetivo, entendido como “fenômeno de subjetivação” do direito positivo. Portanto, o legislador chamou “...‘interesse’ essa situação de vantagem.” E conclui: “...não utilizamos (e mesmo rejeitamos) a dúplice terminologia adotada pelo CDC. Este trabalho se referirá, indiscriminadamente, a ‘direito difuso’, ‘direito coletivo’ e ‘direito individual homogêneo”.36 Subjetivação, para o processo tradicional, significa individualização, daí a dificuldade.
Uma última nota. Parte da doutrina insiste na necessidade de aceitar a denominação “interesses” porque esta configuraria uma maior amplitude de tutela também para situações não reconhecidas como direitos subjetivos (tendo em vista a própria “novidade” dos direitos coletivos lato sensu).37(sic.).
Esta preocupação é válida e coerente com os valores a serem tutelados (principalmente se pensarmos no direito ao meio ambiente e nos direitos do consumidor), contudo a melhor solução passa, não por admitir a categoria dos “interesses” tuteláveis pelo processo, mas sim pela ampliação do conceito de direito subjetivo, para abarcar as diversas “posições jurídicas judicializáveis” que decorrem do direito subjetivo prima facie (portanto, não expressas) e que merecem igualmente guarida pelo Judiciário.38
A superação do problema pela doutrina brasileira fica óbvia nas palavras de Watanabe: “Os termos ‘interesses’ e ‘direitos’ foram utilizados como sinônimos, certo é que, a partir do momento em que passam a ser amparados pelo direito, os ‘interesses’ assumem o mesmo status de ‘direitos’, desaparecendo qualquer razão prática, e mesmo teórica, para a busca de uma diferenciação ontológica entre eles.”39

3. Critérios para Caracterização de Direitos de Natureza Coletiva

A natural proximidade entre os direitos de natureza coletiva pode levar a situações (não raras) em que uma mesma lesão, v.g., publicidade enganosa ou abusiva, mereça tutela por ação visando direito (afirmado) difuso, coletivo ou individual homogêneo.
Nesse sentido já decidiu o Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo: “Em caso de propaganda enganosa, o dano não é somente daqueles que, induzidos a erro, adquiriram o produto, mas também difuso, porque abrange todos os que tiveram acesso à publicidade.”, presentes estariam elementos para propositura de uma ação civil pública em defesa de direitos difusos e de uma ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos.40
Qual seria, então, o critério para distinção e classificação do direito na demanda? Antonio Gidi entendeu, de modo pioneiro, que o caminho mais adequado seria identificar “o direito subjetivo específico que foi violado” (rectius: afirmado). Para ele, a associação comum entre a lesão decorrente de publicidade e o direito difuso da comunidade não é necessária. De um mesmo fato lesivo podem nascer “pretensões difusas, coletivas, individuais homogêneas e, mesmo, individuais puras, ainda que nem todas sejam baseadas no mesmo ramo do direito material.”
Supondo a hipótese de uma publicidade enganosa, onde o anunciante pratica falsidade ideológica ao induzir o consumidor a confundir o seu produto com outro de uma marca famosa, afirma que “diversas pretensões podem surgir e diversas ações (civis e criminais; individuais e coletivas) podem ser propostas em função desse ato ilícito.” Para exemplificar aduz a ação criminal estatuída no art. 66 do CDC, as ações coletivas para defesa de direitos difusos da comunidade requerendo a retirada dos produtos, a contra-propaganda ou a indenização devida pelo dano já causado (a reverter para o fundo de recomposição criado pela LACP). Havendo lesão a direitos individuais de consumidores que já adquiriram o produto influenciados pela publicidade ilícita, seria igualmente cabível ação para recompor esses prejuízos movida molecularmente, por um dos legitimados do art. 82 do CDC, visando a condenação genérica, art. 95 do CDC. E, ainda, não se pode esquecer da ação individual da empresa concorrente lesada.41
Concluindo, Antonio Gidi, reafirma que o “critério científico” na identificação do direito coletivo lato sensu “não é a matéria, o tema, o assunto abstratamente considerados, mas o direito subjetivo específico que foi violado” (rectius: que se afirma violado); e continua: “Nesse ponto dissentimos ligeiramente da tese de Nelson Nery Júnior quando conclui ser o tipo de tutela jurisdicional que se pretende obter em juízo o critério a ser adotado.”42 Atribui, assim, extrema relevância ao direito material, na sua fundamentação, “Primeiro, porque o direito subjetivo material tem a sua existência dogmática e é possível, e por tudo recomendável, analisá-lo e classificá-lo independentemente do direito processual. Segundo, porque casos haverá em que o tipo de tutela jurisdicional pretendida não caracteriza o direito material em tutela. Na hipótese acima construída, por exemplo, a retirada da publicidade do ar e a imposição de contrapropaganda podem ser obtidas tanto através de uma ação coletiva em defesa de direitos difusos como através de uma ação individual proposta pela empresa concorrente, muito embora propostas uma e outra com fundamentos jurídicos de direito material diversos.”43
Para Nery Junior, de outra banda, revela-se freqüente o “erro de metodologia” da doutrina e jurisprudência na classificação do tipo de direito coletivo: “Vê-se, por exemplo, a afirmação de que o direito ao meio ambiente é difuso, o do consumidor seria coletivo e que o de indenização por prejuízos particulares sofridos seria individual.”. Adiante complementa, “A afirmação não está correta nem errada. Apenas há engano na utilização do método para a definição qualificadora do direito ou interesse posto em jogo.” Nery Junior, entende ser preponderante “o tipo de pretensão material e de tutela jurisdicional que se pretende”.44 Assim, para o autor, “Da ocorrência de um mesmo fato, podem originar-se pretensões difusas, coletivas e individuais.”45
O jurista traz o exemplo de um acidente ocorrido no Brasil com um navio turístico, o Bateau Mouche IV. Este acidente possibilitaria várias ações distintas: “ação de indenização individual por uma das vítimas do evento pelos prejuízos que sofreu (direito individual), ação de obrigação de fazer movida por associação das empresas de turismo que têm interesse na manutenção da boa imagem desse setor da economia (direito coletivo), bem como ação ajuizada pelo Ministério Público, em favor da vida e segurança das pessoas, para que seja interditada a embarcação a fim de se evitarem novos acidentes (direito difuso).” Concluindo, “Em suma, o tipo de pretensão é que classifica um direito ou interesse como difuso, coletivo ou individual.”46
Ora, o CDC e o CM conceituam os direitos coletivos lato sensu dentro da perspectiva processual, com o objetivo de possibilitar a sua instrumentalização e efetiva realização.
Do ponto de vista do processo, a postura mais correta, a nosso juízo, é a que permite a fusão entre o direito subjetivo (afirmado) e a tutela requerida como forma de identificar, na “ação”, de qual direito se trata e, assim, prover adequadamente a jurisdição. Não por outro motivo reafirmamos a característica híbrida ou interativa de direito material e direito processual intrínseca aos direitos coletivos, um direito “a meio caminho”. Nesse particular, revela-se de preponderante importância a correta individuação, pelo advogado, do pedido imediato (tipo de tutela) e da causa de pedir, incluindo os fatos e o direito coletivo aplicável na ação. Portanto, propõe-se a fusão entre o pensamento de Antonio Gidi e Nery Junior, que em verdade se completam e complementam reciprocamente.
Por exemplo, em determinada ação onde se afirma a lesão cometida por veiculação de publicidade enganosa o autor da ação deverá descrever os fatos que justificam a demanda e embasam sua pretensão afirmando que a publicidade foi ao ar nos dias x e y, através da mídia televisiva, atingindo um universo de pessoas circunscritos em determinada região. Deverá afirmar, ainda, que existe uma extensão possível de várias pessoas atingidas pela publicidade que adquiriram o produto em erro e que foram lesados em seus direitos individuais, e que estes direitos, pela característica de origem comum, se configuram como individuais homogêneos. Requererá, assim e ao final, “a condenação genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados” (art. 95, do CDC, e art. 20 do CM).
No exemplo acima temos, 1) fatos (causa de pedir mediata ou remota), que originam lesão de direitos individuais; 2) um direito afirmado (causa de pedir imediata ou próxima), que pode ser configurado (em tese) como direito individual homogêneo por ter origem comum e se estender a vários titulares de direitos individuais hipotéticamente lesados; e, 3) um pedido imediato de condenação genérica, de acordo com o direito afirmado. Assim, trata-se claramente de uma ação para tutela dos direitos individuais homogêneos.
Conclusões
A importância da conceituação dos direitos coletivos lato sensu relaciona-se de forma direta com a efetividade que se pretende dar à sua proteção. Esclarecido o conceito, facilita-se o trabalho dos operadores do direito e diminui aquela equívoca fenda existente entre o direito material e o direito processual, tudo com vistas a que o Direito se realizecom Justiça.
Como o art. 21 da Lei da Ação Civil Pública (com a redação dada pelo art. 117 do CDC) e o art. 90 do CDC estabelecem, estas idéias poderão ser aplicadas no ordenamento brasileiro em todas as ações coletivas. Portanto, não há que se falar, dogmaticamente, em distinção: todas as ações coletivas estão sujeitas ao mesmo conceito de direito coletivos lato sensu. Roga-se que esta saudável dogmática se aplique no Brasil e nos países que adotarem o CM como modelo de seu ordenamento interno em ações coletivas.
Repetindo as idéias já expostas ao longo do texto, mas dando-lhes congruência e síntese, seguem as principais conclusões:
1 - O Código Modelo segue a mesma conceituação utilizada pelo Código de Defesa do Consumidor Brasileiro.
2 - São direitos coletivos lato sensu os direitos difusos, os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos.
3 - Os direitos difusos caracterizam-se pela transindividualidade, indivisibilidade, indisponibilidade, indeterminabilidade dos titulares e ligação por circunstâncias de fato anteriores à lesão.
4 - Os direitos coletivos stricto sensu se distinguem dos direitos difusos pela determinabilidade de seus titulares, que são os grupos, categorias ou classes de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica-base (que preexiste ao fato ilícito).
5 - Os direitos individuais homogêneos são vagamente definidos pelo projeto de Código Modelo, seguindo a diretriz já traçada pela legislação brasileira. O que define estes direitos é a origem comum ligada à circunstância danosa ou potencialmente danosa aos direitos individuais que apresentam características de homogeneidade.
6 - São características dos direitos individuais homogêneos a sua coletivização, a sua indisponibilidade, a sua indivisibilidade, a titularidade é aferida através da afirmação de lesão a direitos individuais abstrata e genericamente considerados, conseqüentemente não há individuação dos titulares no processo.
7 - Sendo direitos novos, a categoria dos direitos subjetivos coletivos lato sensu implica em atribuir ao seu tratamento as seguintes características comuns: transindividualidade, indivisibilidade, indisponibilidade, titularidade e legitimidade em lei. Isso porque se tratam de direitos criados para garantir a sua efetividade através do processo, sua justicialidade.
8 - Os direitos coletivos lato sensu são direitos, não devendo ser adotada a denominação “interesses”. A erronia decorre de uma transposição de conceitos e categorias estranhas aos ordenamentos/sistemas jurídicos latino-americanos e causam desnecessária confusão.
9 - É mais efetivo e acertado dogmaticamente adotar os desdobramentos do direito subjetivo coletivo prima facie (v.g., direito ambiental e direito do consumidor) em posições jurídicas judicializáveis, do que pretender a tutela de “interesses” ainda não positivados nos ordenamentos jurídicos nacionais.
10 - Do mesmo fato podem surgir pretensões para tutela de direitos difusos, direitos coletivos stricto sensu e direitos individuais homogêneos. São incorretas as afirmações de que o direito ao meio-ambiente seria difuso e os direitos dos consumidores seriam coletivos stricto sensu.
11 - A caracterização do direito tutelado se dará pela fusão entre o direito subjetivo coletivo afirmado e a tutela processual requerida (tipo de pretensão material e de tutela jurisdicional que se pretende).
12 - Cabe aos operadores do direito, nesse particular, identificar bem a causa de pedir e o pedido na ação coletiva. Vale advertir o papel importante que a titularidade afirmada assume como elemento característico do direito coletivo lato sensu indicado. Assim, se os beneficiários forem pessoas indeterminadas (quer pela impossibilidade de determinação, quer ainda pela ausência de interesse nesta determinação) teremos um direito difuso; se for individualizado um grupo, categoria ou classe de pessoas com vínculos entre si ou com a parte contrária que se lhes seja atribuível como relação jurídica-base e tutelados nesta relação base como um todo, teremos um direito coletivo stricto sensu, por fim, a afirmação de titularidade abstrata e genérica de direitos individuais com características específicas que lhes atribuam prevalência de questões comuns e superioridade no tratamento coletivo demonstrará a existência de um direito individual homogêneo afirmado.
Portanto, de lege ferenda, sugerimos a supressão no anteprojeto de Código Modelo do termo “interesses” e pela indicação, no caput do art. 1o. do CM, de que os direitos que serão qualificados nos incisos são direitos coletivos lato sensu, portanto com características comuns. Seria de todo conveniente, ainda, a inclusão de uma justificativa, a título de “exposição de motivos”, onde questões referentes ao critério para caracterização dos direitos coletivos lato sensu e sua evidente criação para fins de tutela judicial (principalmente de situações antes desconhecidas pelo Judiciário) seja aclarada, permitindo o correto entendimento do “sistema de proteção” coletivo que se propõe.
Esperamos de alguma forma, mesmo que modestamente, ter contribuído, com nossas dúvidas e questionamentos, ao belo trabalho que representa este Anteprojeto de Código Modelo.

Direitos transindividuais no processo coletivo

 

Por Daniel Lopes Medrado
INTRODUÇÃO
Hodiernamente, pode-se dizer estar superada a concepção liberal clássica que sempre primou o individualismo. No atual momento histórico, deixam-se pra atrás os conceitos estritamente individualistas para passar a entender o Direito, também, através de uma perspectiva transindividual.
A super evidenciação do indivíduo não mais reflete a atual realidade social dos novos tempos. Os conflitos modernos extrapolam o indivíduo, atingindo toda uma coletividade. A transindividualidade dos litígios passou a demandar novas formas de superar os "novos conflitos" apresentados ao poder jurisdicional. O velho embate entre Caio versus Tício não é mais capaz de retratar os conflitos atuais, os modernos conflitos de massas.
Percebe-se que os anacrônicos modelos processuais de tutela dos direitos se mostram ineficazes para a proteção dos "novos direitos". Com a modernização das relações sociais, decorrendo inúmeras novas complexidades, tornou-se cogente uma reestruturação do modelo processual até então vigente, que, historicamente, sempre primou pela proteção das relações eminentemente individualistas.
Nesta linha de intelecção, bem esclarece Pedro Lenza [1], vejamos:
"Pode-se dizer que os instrumentos processuais suficientes e adequados para a solução dos litígios individuais, marcantes na sociedade liberal, perdem a sua funcionalidade perante os novos e demasiadamente complicados conflitos coletivos.
Em uma sociedade de massa, industrialmente desenvolvida, é natural que, além dos conflitos individuais, existam e aflorem conflitos de massa, nunca antes imaginados, uma vez que a 'descomplexidade' social não produzia ambiente propício para a sua eclosão, nem tampouco dos conflitos difusos, transindividuais".
Neste contexto, iniciado com a Revolução Industrial, fazendo emergir os movimentos de massa, fez-se mister a preocupação em encontrar modernos mecanismos para assegurar a jurisdicionalização dos direitos coletivos em sentido amplo, resultando num enquadramento singular no ordenamento jurídico. Com efeito, estes "novos direitos" passaram a ser sistematizados pela ciência jurídica em: direitos difusos, direitos coletivos em sentido estrito e direitos individuais homogêneos.
Percorrendo a história legislativa dos direitos coletivos lato sensu, no cenário nacional, impende destacar o surgimento da Lei de Ação Popular (lei n. 4.717/65), considerada a primeira lei a tratar do tema de forma ampla.
Entretanto, percebe-se que apenas após a década de setenta as ações coletivas passaram a atrair interesses na doutrina brasileira, influenciada pelas discussões realizadas na Europa sobre o tema. "José Carlos Barbosa Moreira foi o pioneiro, com o artigo publicado em 1977. Waldemar Mariz de Oliveira e Ada Pelegrine seguiram esse caminho ainda naquela época, passando a divulgar essas idéias" [2].
Seguindo a evolução processual de tutela dos interesses coletivos surge a Lei da Política Nacional do Meio-Ambiente (lei n. 6.938/81), que trouxe a legitimidade do Ministério Público para a defesa do meio-ambiente.
No entanto, efetivamente, o maior avanço do processo coletivo veio com a Lei de Ação Civil Pública (LACP), lei n. 7.347/85, que ampliou consideravelmente a legitimidade para a proteção dos interesses coletivos.
A LACP apenas veio a dispor sobre aspectos processuais da tutela coletiva. "A LACP apenas regulou os aspectos processuais da tutela desses direitos, ficando para a lei material a disciplina dos aspectos de direito material dos bens protegidos pela LACP" [3].
Com a Constituição Federal de 1988 veio status constitucional aos direitos de massa, construindo atmosfera favorável à ampliação da tutela desses direitos; como é o caso das leis infraconstitucionais que lhe sucederam, quais sejam: lei n°. 7.853/89, lei n°. 7.913/89, lei n°. 8.069/90, dentre outras.
Importante, ainda, destacar a lei n. 8.078/90 que instituiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC), trazendo consideráveis alterações na LACP. A sua importância foi vultosa, passando a considerar a LACP e o CDC como o arcabouço legal básico do processo coletivo.
Assim, observa-se que a jurisdicionalização dos direitos metaindividuais custou longos anos até chegar ao atual estágio. Hoje, indubitavelmente, a ACP representa um avanço significativo na garantia ao efetivo acesso à justiça. Não há que se negar o importante papel que representa e ainda pode representar no presente quadro de insatisfação pelo serviço jurídico prestado no Brasil.
1. DA IMPRESCINDIBILIDADE DA TUTELA COLETIVA.
Na feliz lição do professor Fredie Diddier Jr. as ações coletivas possuem dois pontos justificantes para sua tutela, são eles: as motivações sociológicas e as motivações políticas. [4]
Seguindo o proficiente magistério de Diddier [5], as motivações políticas se mostram patentes na redução dos custos; na prestação jurisdicional; na uniformização dos julgamentos evitando decisões contraditórias e no conseqüente aumento de credibilidade dos órgãos jurisdicionais; assim como, na benéfica conseqüência para as relações sociais com a garantia de previsibilidade e segurança jurídica na consecução dos fins constitucionais de uma justiça mais célere e efetiva.
Vale observar que, o que se está em jogo, em verdade, é a procura da instrumentalidade processual como meio a ser seguido pelo operador do direito, presente num novo momento do direito processual, onde se destaca a preocupação com "os resultados do processo para os consumidores da justiça e menos com a pesquisa dos conceitos dos diversos institutos" [6], como bem assenta Dinamarco, trazendo à baila a máxima chiovendiana: " na medida do que for praticamente possível o processo deve proporcionar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter" [7].
O processo é a forma de realização do direito substancial, e, portanto, deve ansiar pela celeridade e pela efetividade da Justiça; estes são os verdadeiros escopos do processo, que não pode mais ser concebido como um mecanismo rígido e desatento às vicissitudes do direito material em proteção.
Ademais, aduz Diddier [8] que outro fator que fundamenta a tutela coletiva são as motivações sociológicas; nelas identificamos as crescentes conflituosidades das relações em massa, decorrentes das novas complexidades sociais no período pós-industrial. Na perspectiva de Diddier, o panorama trazido pelo fim da II Guerra Mundial levou o Direito a um novo patamar pós-positivista e principiológico, transpondo os limites da sua velha formulação, tutelando, efetivamente, os "consumidores" do direito as demandas individuais que não faz mais frente à nova realidade complexa da sociedade.
Destarte, a ação civil pública, como instrumento de tutela coletiva, revela-se um vetor para a prestação jurisdicional eficiente, de modo que pode ser sentida não apenas pelas partes em conflito, mas, ainda (rectius, sobretudo), por toda a coletividade de jurisdicionados.
Nesse sentido, bem esclarece Dinamarco:
"Curiosamente, ao mesmo tempo em que se amplia o número de jurisdicionado, o tratamento coletivo dos litígios individuais tem também o grande mérito de contribuir para o desafogamento do Poder Judiciário, trazendo um benefício indireto a toda a sociedade, na medida em que um único processo resolve problemas tradicionalmente diluídos em milhares deles. Conseqüentemente, contribui para a diminuição da morosidade geral da prestação jurisdicional. Como todo instrumento, o processo será tanto mais eficaz quanto mais rapidamente alcançar seu objetivo, mediante a menor utilização de esforços e de dinheiro"[9].
Contudo, não há que dizer que este modelo de tutela coletiva acaba por ocorrer de modo abusivo por parte de advogados, membros dos MPs, assim como por magistrados. Na realidade, o que se tem certo é que nenhuma forma de tutela está a salvo dos "litigantes perniciosos", ou de julgadores despreparados. Os pontos positivos da tutela coletiva, como se estar expondo, transpõem qualquer negatividade que ela nos possa trazer, até mesmo porque não há nada de incomum nela.
Com efeito, o novo, o diferente, sempre se torna incômodo para os que não estão preparados para as transformações no cotidiano da sociedade. O Direito deve acompanhar as mutações sociais, e, a partir delas, estabelecer novos mecanismos para orientar uma saudável convivência social.
2. DIREITOS TUTELÁVEIS PELA AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
Insta frisar, neste primeiro momento, que no decorrer deste trabalho optaremos por utilizar a denominação "direitos coletivos" (lato sensu) em detrimento à arraigada nomenclatura "interesses coletivos" (lato sensu). Na legislação brasileira predomina a utilização conjunta das duas nomenclaturas, o que entendemos também não ser correta, porquanto nos leva a falsa idéia que não existem diferença entre os termos [10].
Deveras, o limitado objeto deste trabalho não possibilita tecermos maiores comentários a respeito da diferenciação entre direito e interesse, no entanto torna-se imperioso trazer à baila as palavras de Kazuo Watanabe superando as discussões no tocante:
"Os termos "interesses" e "direitos" foram utilizados como sinônimos, certo é que, a partir do momento em que se passam a ser amparados pelo direito, os "interesses" assumem o mesmo status de "direito", desaparecendo qualquer razão prática, e mesmo teórica. Para a busca de uma diferenciação ontológica entre eles". [11]
O direito positivo teve o cuidado de destacar as espécies de direitos metaindividuais tuteláveis pelo ordenamento jurídico brasileiro, e o fez no intuito de deixar assentadas suas premissas básicas para que não restasse discordância a respeito.
Sem dúvida, é certo que as conceituações legais transpõem a real função do legislador, contudo, neste respeito, nos parece que a intenção foi louvável.
No entanto, em que pese o esforço legislativo para dissipar as incongruentes conceituações das acepções do direito coletivo lato sensu, o resultado almejado, definitivamente, está longe de ser alcançado. As indefinições perduram, e buscaremos tentar identificá-las e superá-las doravante.
2.1 Definição Legal
A Lei nº 8.078 de 11 de março de 1991 instituiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC), representando um dos esforços legislativos de maior relevo no nosso sistema processual coletivo. O CDC, ao tratar das relações consumeristas em seu art. 81, buscou dispor sobre os conceitos das espécies de direito coletivo em sentido amplo, e assim o fez:
"Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum."
[12]
Desta maneira, o legislador consumerista buscou assentar a natureza dos direitos supra-indivuduais presentes no ordenamento jurídico pátrio, conceituando, com alto grau de abstração, o alcance de cada uma desses direitos.
Abordando sobre o tema, esclarece Antônio Herman V. Benjamin:
"Assim, uma vez que não existe acordo doutrinário sobre a definição dos chamados direitos difusos, coletivo e individuais homogêneos, o legislador do CDC optou por, ele próprio, fixar um conceito, de modo a permitir um razoável grau de previsibilidade quanto a sua utilização. Inspiram-se nas class actions do direito norte-americano e vão determinar um significativo diálogo entre as normas do Código e a Lei da Ação Civil Pública". [13]
Como dito alhures, o CDC, mas precisamente o Título III que dispõe sobre a defesa do consumidor em juízo, surgiu para compor com a LACP um verdadeiro sistema processual coletivo. Seu alcance, como é cediço, perpassa os interesses meramente consumeristas para introduzir no sistema jurídico, dispositivos que visam à superação das falhas e lacunas identificadas na experiência de cinco anos de vigência da LACP.
É valido ressaltar que a conceituação legal, em que pese estabelecerem premissas relevantes para o aperfeiçoamento da tutela coletiva, passou ao largo de esgotar as contradições presentes no enfrentamento da matéria. O que se vê, sobretudo no que toca à jurisprudência dos tribunais, é uma verdadeira desordem na aplicação de tais conceitos ao caso concreto.
Tentaremos, portanto, a seguir, esclarecer o verdadeiro o alcance de cada direito metaindividual na ordem jurídica.
2.2 Direito Difuso
Os direitos difusos, como o próprio nome já demonstra, são caracterizados pela alta capacidade de dispersão. Sua titularidade não admite fruição de forma divisível, por esse motivo, percebe-se que a técnica individualista do Código de Processo Civil não se mostra hábil para garantir sua tutela, sobrelevando a importância da LACP.
Relevante atentarmos para o fato que não foi a LACP que introduziu em nosso ordenamento jurídico os direitos difusos; eles preexistem a ela. O que aconteceu na verdade é que a LACP foi a primeira a denominar esse tipo de direito como difuso, criando uma sistemática processual adequada para sua proteção.
Vale lembrar, outrossim, que não é correta a afirmação que a LACP foi o primeiro diploma legal a dispor sobre um mecanismo para tutela dos direitos difusos, pois impossível desconsiderar a Lei de Ação Popular (lei n. 4.717/65), pioneira nesta seara. Contudo, indubitavelmente, a LACP se revelou imprescindível na proteção dos direitos difusos.
A indivisibilidade do objeto e a indeterminação dos sujeitos são, sem sombra de dúvida, os pontos nodais para a identificação dos direitos difusos. Importa saber, por preciosismo, qual elemento efetivamente determina qual e, de outro modo, qual é o critério por excelência.
Nos parece que não podem existir grandes dúvidas a respeito. O principal elemento caracterizador do direito em comento é a indivisibilidade do objeto. Bem esclarece José Marcelo Vigliar, neste ponto:
"A dispersão dos interessados é uma conseqüência da dispersão do interesse. Nem poderia ser diferente: a natureza do interesse é que deve ditar a forma, o tipo da relação dos interessados com esse mesmo interesse. O quê determina a dispersão dos interessados é justamente a indivisibilidade, característica essencial dos interesses difusos. A indivisibilidade, determina que a fruição e a defesa do interesse se dê apenas e tão somente de forma coletiva, que leva, obrigatoriamente, ao ensinamento apresentado por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, destacado anteriormente (o prejuízo de um interessado, significará o prejuízo de todos; a defesa de um interessado, redundará na defesa de todos)". [14]
Assim, em seu aspecto objetivo, os direitos difusos possuem a característica da indivisibilidade, ou seja, não são suscetíveis de fracionamento, seja por pessoas, seja por grupos determinados; são direitos que pulverizam seus efeitos, atingindo um número indefinível de sujeitos [15].
Explica Lenza:
"Nestes termos, no tocante aos interesses difusos, a indivisibilidade é ampla e absoluta, na medida em que, como não se consegue determinar os seus sujeitos, não se pode falar em partição de algo que pertence a todos indistintamente, ou, em outras palavras, não se pode dividir algo que pertence a pessoas indefinidas". [16]
Da mesma forma, ensina Dinamarco:
"Nos interesses difusos, o objeto (ou bem jurídico) é indivisível, na medida que não é possível proteger um indivíduo sem que essa tutela não atinja automaticamente os demais membros da comunidade que se encontram na mesma situação. Ou atinge todos ou não atinge ninguém. Ela não é, portanto, mera soma de uma pluralidade de pretensões individuais". [17]
A indeterminação dos sujeitos, por sua vez, caracteriza-se pela titularidade difusa desses direitos; isto se ajusta, aliás, com a denominação: "direitos transindividuais". Para os direitos difusos, em contraponto aos direitos individuais, impõe-se que sejam protegidos por uma forma específica, em consonância com as vicissitudes do direito substancial em tutela.
Segundo Mancuso:
"Essa 'indeterminação de sujeitos' deriva, em boa parte, do fato de que não há um vínculo jurídico a agregar os sujeitos afetados por esses interesses: eles se agregam ocasionalmente, em virtude de certas contingências, como o fato de habitarem certa região, de consumirem certo produto, de viverem numa certa comunidade, por comungarem pretensões semelhantes, por serem afetados pelo mesmo evento originário de obra humana ou da natureza". [18]
A indeterminação dos sujeitos é um importante critério de distinção entre direitos difusos e os direitos coletivos stricto sensu. É neste sentido o magistério de Lenza:
"Em relação aos interesses difusos, a agregação dos sujeitos indeterminados, titulares de interesse subjetivos, decorre de uma determinada situação de fato, resultante de certas circunstancias e nunca em decorrência de uma relação jurídica-base, não se percebendo qualquer vínculo jurídico a associá-los". [19]
Com efeito, em existindo um vínculo jurídico anterior que agrupem determinados "interessados" num bem jurídico que foi ulteriormente lesado, estaríamos, então, diante de um direito coletivo stricto sensu e não mais de um direito difuso (como poderá ser melhor extraído à frente).
À guisa de exemplo, constituem-se, portanto, como difusos os direitos ao meio ambiente hígido sadio e preservado para as presentes e futuras gerações (art. 225 da CF); a defesa do erário público (súmula 329 do STJ); de todos não serem lesados por propagandas enganosas e abusivas (art. 170, V, da C.F., c/c art. 37 do CDC) dentre outros.
2.3 Direto Coletivo
No que tange aos direitos coletivos, em sua acepção estrita, sua principal característica assenta-se, também, na indivisibilidade do objeto. Aqui, da mesma forma que os direitos difusos, não há fruição individual do objeto litigioso, pois inconcebível, vez que, em se tratando de um bem jurídico indivisível, (ao menos em seu aspecto interno, dentro duma mesma coletividade),o fim jurídico almejado é um só para todos.
Vale esclarecer pelas palavras de Lenza:
"Já em relação aos interesses coletivos, a indivisibilidade dos bens é percebida no âmbito interno, dentre os membros do grupo, categoria ou classe de pessoas. Assim, o bem ou interesse coletivo não pode ser partilhado internamente entre as pessoas ligadas por uma relação jurídica-base ou por um vínculo jurídico; todavia, externamente, o grupo, categoria ou classe de pessoas, ou seja, o ente coletivo, poderá partir o bem, exteriorizando o interesse da coletividade." [20]
Contudo, o que se percebe nos direitos coletivos é sua potencialidade de determinação dos sujeitos, através de um liame jurídico predisposto que unem os sujeitos titulares do direito coletivo stricto sensu; este decorre ou da relação jurídica travada entre os sujeitos, ou pelos vínculos jurídicos uníssonos estabelecidos com a parte contrária (consoante disposto no art. 81, parágrafo único, inciso II, in fine, do Codex Consumerista).
Insta destacar que a relação jurídica base precisa ser formada em momento anterior ao acontecimento da lesão ao direito. Assim, nos direitos difusos, também se evidencia uma ligação entre os lesionados; entretanto, esta ligação decorre em razão da própria lesão (circunstancia fática), não se podendo falar em vínculo jurídico pré-existente, tal como nos direitos coletivos propriamente ditos.
Portanto, imperioso esclarecer que a agregação dos sujeitos não é conseqüência de mera ocasionalidade; o liame jurídico é permanente e antecede a ocorrência da lesão. Entretanto, não se pode dizer que o vínculo necessariamente se caracteriza pela organização de um grupo determinado de pessoas. Sem dúvidas, a organização se faz presente quando o vínculo ocorre entre os próprios sujeitos do grupo, todavia, isso não acontece quando o vínculo se estabelece em função da relação jurídica travada com a parte contrária. Aqui, estar-se-á diante de uma coletividade estabelecida em razão do agressor do bem jurídico ser o mesmo, possuindo este um vinculo jurídico com os ofendidos.
De fato, a delimitação dos sujeitos é o fator distintivo dos direitos metaindividuais em tela,
"seja através da relação jurídica-base que as une entre si (membros de uma associação de classe ou ainda acionistas de uma mesma sociedade), seja por meio do vínculo jurídico que as liga à parte contrária (contribuintes de um mesmo tributo, contratantes de um segurador com um mesmo tipo de seguro, estudantes de uma mesma escola etc.)". [21]
2.4 Direito Individual Homogêneo.
Trata-se de uma categoria de direitos transindividuais decorrente de uma ficção jurídica, criada pelo legislador consumerista, tendo em vista uma proteção adequada a determinados bens jurídicos que, inobstante poderem ser protegidos pelos preceitos individualistas do Código de Ritos, sua defesa atomizada torna-se bastante difícil.
Ademais, os direitos individuais homogêneos são a concretização máxima dos escopos dos direitos metaindividuais que, como já abordados neste trabalho, além de garantir um adequado acesso à justiça, corrobora com a uniformização das decisões, bem como para a celeridade da prestação jurisdicional.
Assim, os direitos individuais homogêneos são reflexos da atual dinâmica do processo civil que, ultrapassando sua fase autonomista, na qual sempre buscou primar pela construção independente entre o direito substancial e o direito formal, agora revela a preocupação com seus resultados práticos, mantendo um dialogo constante e instrumental com o direito material.
Os direitos individuais homogêneos se caracterizam pela plena divisibilidade de seu objeto e clareza na determinação dos sujeitos. São verdadeiramente direitos individuais tomados circunstancialmente pela forma coletiva [22], que, decorrentes duma conflituosidade em massa, tornou-se imperativo tratá-los como direitos transindividuais.
É cediço que sua origem nos remontam às class actions norte-americanas, em especial à alínea (b)(3) da Regra 23 das Federal Rules of Civil Procedure, vejamos:
"b)Prosseguimento da ação de classe: Uma ação pode prosseguir como ação de classe quando forem satisfeitos os pré-requisitos da subdivisão (a) e ainda:
1. o prosseguimento de ações separadas por ou contra membros individuais da classe poderia criar o risco de:
A) julgamentos inconsistentes ou contraditórios em relação a membros individuais da classe que estabeleceriam padrões de conduta incompatíveis para a parte que se opõe à classe;
B) julgamentos em relação aos membros individuais da classe que seriam dispositivos, do ponto de vista prático, dos interesses de outros membros que não são parte no julgamento ou que impediriam ou prejudicariam, substancialmente, sua capacidade de defender seus interesses; ou
2. a parte que se opõe à classe agiu ou recusou-se a agir em parâmetros aplicáveis à classe em geral, sendo adequada, desta forma, a condenação na obrigação de fazer ou não fazer (injunction) ou a correspondente sentença declaratória com relação à classe como um todo; ou
3. o juiz decide que os aspectos de direito ou de fato comuns aos membros da classe prevalecem sobre quaisquer questões que afetam apenas membros individuais e que a ação de classe é superior a outros métodos disponíveis para o justo e eficaz julgamento da controvérsia. Os assuntos pertinentes aos fundamentos de fato (findings) da sentença incluem: (A) o interesse dos membros da classe em controlar individualmente a demanda ou a exceção em ações separadas; (B) a amplitude e a natureza de qualquer litígio relativo à controvérsia já iniciada, por ou contra membros da classe; (C) a vantagem ou desvantagem de concentrar as causas num determinado tribunal; (D) as dificuldades que provavelmente serão encontradas na gestão de uma ação de classe."
[grifo nosso] [23]
Como é possível depreender, a influência norte-americana na positivação dos direitos individuais homogêneo no Brasil é de saltar aos olhos. Da análise do dispositivo alienígena transcrito acima se percebe que, assim como no Brasil, a tutela coletiva norte-americana é um mecanismo de otimização processual.
Para uma melhor compreensão, trazemos à baila a análise feita por Ada Pelegrine Grinover a respeito:
"O espírito geral da regra está informado pelo principio do acesso à justiça, que no sistema norte-americano se desdobra em duas vertentes: a de facilitar o tratamento processual de causas pulverizadas, que seriam individualmente muito pequenas, e a de obter a maior eficácia possível das decisões judiciárias. E, ainda, mantém-se aderente aos objetivos de resguardar a economia de tempo, esforços e despesas e de assegurar a uniformidade das decisões.O requisito da prevalência dos aspectos comuns sobre os individuais indica que, sem isso, haveria desintegração dos elementos individuais; e o da superioridade leva em conta a necessidade de se evitar o tratamento de ações de classe nos casos em que ela possa acarretar dificuldades insuperáveis, aferindo-se a vantagem, no caso concreto, de não se fragmentarem as decisões". [24]
O tratamento molecular dos direitos individuais decorre, necessariamente, da homogeneidade dos direitos que se apresentam dentro de uma mesma origem. É valido ressaltar que, ao revés dos outros direitos tratados coletivamente, os direitos individuais homogêneos poderiam ser protegidos de forma individual sem perder sua substancia, mas, por conveniência, já que possui dimensão social, política e jurídica de grande relevância, [25] estes direitos devem ser tratados de forma coletiva.
Contudo, importante dizer que a tutela coletiva desses direitos individuais deve condicionar-se (aqui com maior razão) ao interesse de sua utilização para a obtenção de um provimento jurisdicional coletivo.
Esclarece Ada Pelegrine Grinover a respeito:
"Se o provimento jurisdicional resultante da ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos não é tão eficaz quanto aquele que deriva de ações individuais, a ação coletiva não se demonstra útil à tutela dos referidos interesses. E, ademais, não se caracteriza como a via adequada à sua proteção". [26]
Assim, a despeito do direito individual homogêneo ser perfeitamente divisível, seu tratamento será uniforme até a sentença condenatória genérica, quando cada interessado poderá habilitar-se para liquidar e executar sua parcela.
2.5 Interesses difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos: distinções, similitudes e convivência harmônica.
Não obstante os critérios utilizados para diferençar as três espécies de direitos metaindividuais, a confusão entre eles está longe de ser superada, em especial no que tange a jurisprudência dos tribunais. Os direitos coletivos possuem naturezas muito próximas e, muitas vezes, soem ser tutelados de forma conjunta em virtude de uma mesma lesão, o que realça a confusão.
Assim, a partir de um mesmo fato, podem originar o interesse na defesa de um direito difuso, coletivo, individual homogêneo, e, até mesmo, de um direito individual.
Os direitos difusos e os coletivos em sentido estrito são essencialmente coletivos, portanto, imperioso que se preste uma atividade jurisdicional adequadamente coletiva, a fim de que se resulte numa solução efetiva à situação conflituosa. Por outro turno, os direitos individuais homogêneos são direitos acidentalmente coletivos, de modo que sua tutela molecularizada ocorre não em virtude da essência do direito, mas sim da intenção do legislador em dirimir determinados conflitos de origem semelhante de forma também semelhante. [27]
Não é difícil perceber que muitas vezes a tarefa de definir que tipo de direito se está buscando torna-se muito delicada; cada um dos três tipos de direitos transindividuais possui características que, ora os confundem, ora os distinguem.
No que toca aos direitos difusos e coletivos stricto sensu, a indivisibilidade do objeto é um fator determinante para ambos. No que se refere à titularidade, enquanto o primeiro é caracterizado pela indeterminabilidade dos sujeitos, ligados por uma situação fática, o segundo é marcado pela determinabilidade dos sujeitos, que são ligados por uma relação jurídica-base travada entre os próprios sujeitos ou em função da parte contrária da relação jurídica.
Já os direitos individuais homogêneos possuem correlação com os direitos difusos pelo fato que ambos se originam a partir de uma situação fática. A diferenciação entre eles se assenta tanto na divisibilidade do objeto, quanto na titularidade dos sujeitos. Assim, enquanto no primeiro percebe-se a plena determinabibildade dos sujeitos e a convicta divisibilidade do objeto, no segundo o objeto litigioso é indivisível e os sujeitos são indetermináveis.
Ainda, é possível diferençar os direitos individuais homogêneos dos direitos coletivos, mais precisamente pela análise de seu objeto, já que ambos se referem a direitos que envolvem um número de pessoas determináveis. Assim, no primeiro o objeto é cabalmente divisível, enquanto que no segundo o objeto é indivisível, em que pese poder ser delimitado o objeto de interesse do grupo, em exclusão aos interesses externos à coletividade.
Assim é a lição de Nelson Nery Jr.:
"[...] da ocorrência de um mesmo fato podem originar-se pretensões difusas, coletivas e individuais. O acidente com o 'Bateau Mouche IV', que teve lugar no Rio de Janeiro há alguns anos, poderia ensejar ação de indenização individual por uma das vítimas do evento pelos prejuízos que sofreu (direito individual), ação de obrigação de fazer movida por associações das empresas de turismo que teriam interesse na manutenção da boa imagem deste setor na economia, a fim de compelir a empresa proprietária de embarcação a dotá-la de mais segurança (direito coletivo), bem como ação ajuizada pelo Ministério Publico, em favor da vida e segurança das pessoas, para que se interditasse a embarcação a fim de se evitarem novos acidentes (direito difuso)". [28]
Contudo, ainda assim, a perfeita distinção dos direitos individuais pode permanecer nebulosa quando da análise do caso concreto. Em verdade, a reconhecida "pedra de toque" para o deslinde da questão está na análise de qual provimento jurisdicional pretende-se alcançar.
Entretanto, algumas críticas se mostram relevantes na utilização deste critério. De acordo com Antônio Gidi, não se pode conceber a adoção deste critério,
"Primeiro, porque o direito subjetivo material tem a sua existência dogmática e é possível, e por tudo recomendável, analisá-lo e classificá-lo independentemente do direito processual. Segundo, porque casos haverá em que o tipo de tutela jurisdicional pretendida não caracteriza o direito material em tutela." [29]
Outrossim, corroborando com este entendimento, afirma José Roberto dos Santos Bedaque em seu trabalho referenciado por Lenza:
"Bedaque, por seu turno, em extraordinário trabalho, pelo qual obteve o grau de doutor na Faculdade de Direito da USP, criticando o processualismo exarcebado, tendo em vista que "(...) a excessiva autonomia do processo frente ao direito material constitui um mal, pois desconsidera o objeto na construção do instrumento", critica parte da doutrina que destaca a tutela jurisdicional pretendida como 'pedra de toque do método classificatório' para a qualificação de um direito difuso, coletivo ou individual homogêneo . Segundo o mestre, não seria correto afirmar ser "(...) a tutela jurisdicional pleiteada o elemento a determinar a natureza do interesse deduzido em juízo. Ao contrario, é o tipo de direito que determina a espécie de tutela". [30]
Neste debate, elucidativo é a analise de Diddier e Zaneti a respeito:
"Ora, o CDC conceitua os direitos coletivos lacto sensu dentro da perspectiva processual, com o objetivo de possibilitar a sua instrumentalização e efetiva realização. Do ponto de vista do processo, a postura mais correta, a nosso juízo, é a que permite a fusão entre o direito subjetivo (afirmado) e a tutela requerida, como forma de identificar, na 'demanda', de qual direito se trata e, assim, prover adequadamente a jurisdição. Não por outro motivo reafirmamos a característica híbrida ou interativa de direito material e direito processual intrínseca aos direitos coletivos, um direito 'a meio caminho'". [31]
Avançando no tema, insta destacar que, quando se postula a proteção de um direito difuso, pode-se dizer que este será "essencialmente inibitório ou preventivo, ou seja, consistirá num fazer ou, mais freqüentemente, num não fazer" [32]. Em não sendo possível este tipo de tutela, se converterá em perdas e danos, devendo os valores indenizatórios serem encaminhados "a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados" [33], como disposto no art 13 da LACP.
No tocante aos litígios que trate de direitos coletivos, a situação se mostra semelhante, de forma que o pedido "consistirá essencialmente nem fazer ou não fazer. A diferença aqui é que a obrigação de fazer será mais freqüente que na defesa do interesse difuso". [34]
Por fim, nos direitos individuais homogêneos o pedido versar-se-á numa obrigação necessariamente pecuniária. Assim, nestes casos, a condenação numa ação civil pública será sempre genérica, devendo cada interessado proceder a liquidação e execução do quantum debeatur, na forma do quanto disposto na LACP.


1. LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pág.28.
2. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 37.
3. NERY JUNIOR, Nelson e NERY Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil e Legislação processual civil extravagante em vigor. 4º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pág. 1309.
4. DIDIER JR, Fredie e ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil: processo coletivo. Bahia: Juspodivm, 2007, pág. 34-35.
5. Ibidem
6. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 41.
7. GIUSEPE CHIOVENDA apud DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 41.
8. DIDIER JR, Fredie e ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil: processo coletivo. Bahia: Juspodivm, 2007, pág. 35.
9. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 44.
10. DIDIER JR, Fredie e ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil: processo coletivo. Bahia: Juspodivm, 2007, pág. 85.
11. WATANABE, Kazue apud DIDIER JR, Fredie e ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil: processo coletivo. Bahia: Juspodivm. 2007, pág. 91.
12. BRASIL,Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990). Vade Mecum - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pág. 869
13. BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; e MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pág. 974.
14. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ações Coletivas. Bahia: Juspodivm, 2007, pág. 31.
15. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesse Difuso: legitimação para agir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pág. 89.
16. LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pág. 76.
17. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva. 2001, pág. 53.
18. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesse Difuso: legitimação para agir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pág. 86
19. LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, págs. 72-73.
20. Ibidem, pág. 76.
21. WATANABE, Kazue apud DIDIER JR, Fredie e ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil: processo coletivo. Bahia: Juspodivm. 2007, pág. 75.
22. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva. 2001, pág. 60.
23. GRINOVER, Ada Pelegrine. Da class action for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. Disponível em: www.tj.ro.gov.br/emeron/sapem/2001/dezembro/2112/ARTIGOS/A03.htm. Acesso em 19 de abril de 2007.
24. Ibidem.
25. Ibidem.
26. Ibidem
27. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva, 2001.
28. NERY JR, Nelson apud LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pág 97.
29. GIDI, Antônio apud DIDIER JR, Fredie e ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil: processo coletivo. Bahia: Juspodivm, 2007.
30. BEDAQUE, José Roberto dos Santos apud LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, págs 97-98.
31. DIDIER JR, Fredie e ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil: processo coletivo. Bahia: Juspodivm, 2007.
32. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva. 2001.
33. BRASIL, Lei nº 7.347. Vade Mecum - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pág. 1.427.
34. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva. 2001.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; e MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006
BRASIL, Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347). Vade Mecum - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
________.Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990). Vade Mecum - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
DIDIER JR, Fredie e ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil: processo coletivo. Bahia: Juspodivm, 2007.
DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva, 2001.
GRINOVER, Ada Pelegrine. Da class action for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. Disponível em: www.tj.ro.gov.br/emeron/sapem/2001/dezembro/2112/ARTIGOS/A03.htm. Acesso em 19 de abril de 2007.
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MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesse Difuso: legitimação para agir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ações Coletivas. Bahia: Juspodivm, 2007.
 
Como citar este artigo: MEDRADO, Daniel Lopes. Direitos transindividuais no processo coletivo. Disponível em http://www.lfg.com.br. 27 de setembro de 2008.

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