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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

"A criminalidade não é mais individual, é organizada, transnacional e globalizada"





Por Marcos de Vasconcellos


O Código Penal precisa mudar para permitir a punição penal de pessoas jurídicas, diz o juiz federal Roberto Veloso, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Para ele, o CP, editado em 1941, é de uma época em que o crime não se organizava, e por isso há o grande foco nos "criminosos individuais", que roubam, furtam ou matam. Mas o problema do Brasil de hoje é o crime organizado, acredita.

Para enfrentar essa realidade, Veloso defende, além de mudanças na lei, sua aplicação efetiva. "Na parte geral do Código Penal, que mecanismos temos para investigar uma empresa? E, constatando que a empresa está servindo para a prática de crimes, como puni-la criminalmente? No Brasil, é impossível", reclama o juiz, em entrevista à revista Consultor Jurídico.

Ele acredita que o sistema brasileiro, que diz ser garantista, é "perfeito", mas criou distorções. Ao dar ao réu todas as possibilidades de defesa antes da condenação, analisa, os pobres vão presos rapidamente e os ricos recorrem até a prescrição.

"Quem se beneficia desse entendimento é um número reduzidíssimo, e nesse total estão justamente os poderosos, quem tem dinheiro para bancar os grandes escritórios de advocacia", argumenta.

Leia a entrevista:

ConJur – O senhor acha que tem um novo Direito Penal em vigor no Brasil atualmente?
Roberto Veloso – Não. Mas nós precisamos de um novo Direito Penal. O nosso é de 1941, naquela época nós tínhamos outra realidade sociológica. Tínhamos uma população eminentemente rural. E esse Direito Penal tradicional tem um alicerce, que é punir as questões individuais, que visa punir o homicida, o latrocida, quem rouba, quem pratica lesão corporal.

ConJur – Crimes "de rua".
Roberto Veloso – É. Os crimes de rua, mas uma criminalidade que eu diria individual, não organizada. Em 1984 nós tivemos uma reforma do Código, mas quem estuda Direito Penal diz que a reforma de 84 foi apenas para se ajustar a uma nova teoria, chamada Teoria Finalista. Precisamos de um novo Direito Penal porque a criminalidade atual não é mais individual. É organizada, transnacional e globalizada. Na parte geral do Código Penal, que mecanismos temos para investigar uma empresa? E, constatando que a empresa está servindo para a prática de crimes, como puni-la criminalmente? No Brasil, é impossível. A Constituição só permite punir penalmente a empresa nos crimes ambientais. Uma grande construtora pode estar sendo usada para a prática de crimes, mas ela não sofrerá nada criminalmente.

ConJur – Mas a permissão à punição penal da pessoa jurídica não puniria também seus empregados ou sócios que não participaram da questão criminal?
Roberto Veloso – Pois é, mas já existem legislações mais avançadas que permitem a punição criminal da pessoa jurídica. Por exemplo, a da França. No Brasil, só pode punir a pessoa física. Nosso Direito Penal precisa evoluir nesse sentido. Só que para isso é preciso um novo Direito Penal, porque o nosso considera que o crime é ação humana típica ilícita e culpável. Ora, se ele parte do pressuposto que o crime é uma ação humana, como punir a pessoa jurídica? Essa não é uma opinião original minha, mas do Claus Roxin, que é um dos maiores expoentes vivos do Direito Penal.

ConJur – Essa punição dos sócios, por exemplo, não serviria como uma punição à empresa?
Roberto Veloso – Não, a empresa continua. Ela tem uma personalidade jurídica diferente, só é punida indiretamente.

ConJur – Por que a empresa deveria ser punida? Por que não punir os sócios?
Roberto Veloso – Como é que eu tenho uma empresa que serve para lavagem de dinheiro, puno o sócio, mas ela continua livre para agir? É uma discussão importante no Direito Penal. Precisamos de instrumentos. Às vezes até se questiona a “lava jato”, porque a operação estaria inovando. Na verdade, não são inovações da “lava jato”, são da própria legislação brasileira. A delação premiada mesmo é algo muito recente na vida jurídica do Brasil. Foram mudanças promovidas pelo Legislativo, e não pelo Judiciário.

ConJur – Então não há ativismo entre os juízes brasileiros?
Roberto Veloso – No penal, não. Há um dispositivo na Constituição que diz que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia combinação legal. Então estamos amarrados constitucionalmente no Direito Penal Criminal sancionador à lei. Não podemos fazer uma inovação jurisprudencial para criar crimes ou aumentar penas, temos que ficar restritos à lei. Muitos processos poderiam ser resolvidos com negociação, com acordo. Ou seja, o Ministério Público poder fazer um acordo com o acusado e o acordo ser homologado pelo juiz, e, a partir daquele momento, o processo não existir mais. É uma experiência extremamente exitosa nos Estados Unidos.

ConJur – Por que isso seria bom para o Estado? Só para encerrar o número de processos?
Roberto Veloso – Para encerrar o número de processos, e também para que a população tenha um sentimento maior de resolutibilidade do processo penal. A população tem uma descrença muito grande na Justiça, porque a Justiça é ineficiente, não dá vazão. As pessoas cometem crimes e depois não são punidas.

ConJur – O senhor é a favor do cumprimento de pena sem trânsito em julgado?
Roberto Veloso – Sou a favor. A Constituição fala que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Só que esse dispositivo precisa ser interpretado. A interpretação do ministro Teori foi correta. Os fatos estão transitados em julgado depois da decisão de segundo grau, porque se nós fomos ver a Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça, ela diz: “Não cabe recurso especial para reexame de provas”. Por quê? Porque as provas já estão transitadas em julgado, e se as provas já estão transitadas em julgado não há mais presunção de inocência. Quem tem condições para contratar bons escritórios de advocacia vai cumprir a pena daqui a dez anos. Além dos recursos do Código de Processo Penal, que já são muitos, ainda temos os recursos previstos nos regimentos internos dos tribunais. Então, onde é que nós vamos chegar? Então, uma norma constitucional, que a princípio era para ser garantista, passa a permitir abusos. E esse abuso gera na população um sentimento de impunidade, um sentimento de que vale a pena delinquir.

ConJur – Mas a necessidade não seria de se mudar a Constituição, e não reinterepretar uma regra clara?
Roberto Veloso – Sim, mas o Supremo Tribunal Federal permitiu o casamento homossexual a partir de uma interpretação.

ConJur – Não seria papel do Legislativo fazer isso?
Roberto Veloso – Se o Legislativo não age, o Judiciário ocupa o lugar, é assim. Mas isso não é um privilégio brasileiro. Veja que o aborto nos Estados Unidos: é permitido por uma decisão da Suprema Corte, e não por uma lei ou por uma reforma constitucional. Não é um privilégio brasileiro esse tipo de interpretação. Há necessidade dessa interpretação, porque tudo o que leva a uma conclusão absurda precisa ser coibido.

ConJur – O Brasil ostenta uma das maiores populações carcerárias do mundo, e não é segredo para ninguém que o país prende muito mal. Se temos essa realidade, por que reinterpretar um texto para facilitar prisões?
Roberto Veloso – Vou dar um exemplo do prender mal: até 2006, nós tínhamos no Brasil a Lei do Tráfico de Entorpecentes, que é de 1976. Ela previa o seguinte: pena mínima para tráfico de três anos, pena máxima 15 anos. Mas a posse para consumo era de um a três anos. Veio a Lei 11.343, em 2006, e a pena para o tráfico ficou de cinco a quinze. Agravou a pena do tráfico, e para a posse, para o consumo, disse que não cabia mais prisão, agora eram penas restritivas de direito. O que aconteceu? As cadeias estão cheias de usuários que não deveriam estar lá. Pessoas que são pegas com pouca quantidade de droga, que poderiam ser aparentemente para consumo próprio, mas que a polícia enquadra no tráfico, porque o policial diz: “Se eu enquadrar na posse para consumo, vou ter que soltar. Prefiro pegar o sujeito que está com a posse para consumo e botar como traficante”.

ConJur – Isso também vem da sensação de impunidade?
Roberto Veloso – Isso. Por isso se diz que “prende mal”. Sou professor e sempre gosto de fazer uma pesquisa informal com os meus alunos. Pergunto quem já foi assaltado e a maioria levanta o braço. Aí faço a segunda pergunta: “Qual pessoa aqui assaltou vocês que está presa?”, e ninguém levanta o braço. Se tenho em uma sala de aula 50 alunos, 30 dizem que foram assaltados e nenhuma daquelas pessoas que os assaltaram está presa. Ao mesmo tempo nós temos uma das maiores populações carcerárias do mundo.

ConJur – Mas a sensação de impunidade não significa impunidade.
Roberto Veloso – Realmente existe a impunidade. A criminalidade é alta. Se fizer uma pesquisa, das pessoas que estão presas nas penitenciárias, 90% ou mais não passaram do segundo grau, muitas não passaram do primeiro grau. Quando se fala no cumprimento da pena após o julgamento em segundo grau de jurisdição, talvez não atinja 1% das pessoas que estão presas. Quem se beneficia desse entendimento é um número reduzidíssimo, e nesse total estão justamente os poderosos, quem tem dinheiro para bancar os grandes escritórios de advocacia.

ConJur – Qual a conclusão que o senhor tira disso?
Roberto Veloso – Quem está preso lá na comarca é o criminoso individual. Não o organizado. Esse se beneficia da norma. O criminoso individual não tem direito nem ao segundo grau. Deveria ter, mas isso não é a falha do sistema recursal, é a falha de não existir uma Defensoria Pública. Se nada funciona, como é que teremos uma boa defensoria pública? O sistema perfeito é o brasileiro, que permite a pessoa utilizar de todos os recursos para iniciar o cumprimento da pena, excelente. O que é que esse sistema perfeito, ideal, está fazendo? Qual é o resultado prático dessa adoção? Uma distorção, a de que a Justiça só é para o pobre. E isso é uma distorção que não como superar, então não há Justiça.

ConJur – Juízes e procuradores da República costumam reclamar da prescrição.
Roberto Veloso – O sistema brasileiro de prescrição tem duas penas, a pena em abstrato e a pena em concreto. A prescrição corre em abstrato. Vou dar o exemplo do crime de peculato. A população vê o peculato como uma corrupção, a pena mínima são dois anos e a máxima, 12. São dez anos de diferença. Até a decisão de primeiro grau, a prescrição corre com a pena máxima em abstrato (12 anos). Quando o juiz vai aplicar a pena, para conseguir subir do mínimo, é preciso que haja agravantes. Mas, como a pena mínima é muito pequena para peculato, bom, existindo muitas circunstâncias agravantes o juiz vai condenar a quatro anos, isto é só um caso. Muitas das vezes a pena vai fixada no mínimo, dois anos.

ConJur – E aí a prescrição passa a correr com a pena em concreto.
Roberto Veloso – Aí é que está o pulo do gato. Se eu passo a ter uma pena em concreto a partir da sentença de primeiro grau e sou advogado, o que é que eu vou fazer? Postergar esse início do cumprimento da pena com recursos a fim de que o prazo que conte a partir de agora e que a pena aplicada para o meu cliente prescreva. Se formos olhar as decisões condenatórias do Supremo Tribunal Federal, quantas o Supremo não condenou pessoas de foro privilegiado e teve que decretar a prescrição imediatamente, na mesma hora? Então, o cerne da construção perfeita a que me referi antes está todo furado, permitindo esse tipo de procedimento que não vou dizer que seja ilegal.

ConJur – São mecanismos legais.
Roberto Veloso – Exato. Mas são procedimentos de moral duvidosa. Se eu disser isso para um advogado, ele vai dizer para mim: “Não, doutor, mas o senhor está querendo cercear o direito de recorrer do meu cliente?" Só que o direito de recorrer está gerando essa distorção. Se o inquérito passa dez anos na polícia, o crime já prescreveu, já não adianta mais. Aí vem aquela história de o juiz dar uma pena elevada para não prescrever. Aí é errado.

ConJur – Uma discussão moral sobre o que é legal.
Roberto Veloso – Exatamente, e aí está errado. Tem que julgar de acordo com o que está nos autos, mas para o juiz isso é frustrante. Ele tem um trabalho imenso de ter ouvido testemunhas, interrogado o réu, expedido carta precatória, o processo está com três, quatro volumes e está prescrito. É esse tipo de distorção que precisa ser regularizada, daí a necessidade desse cumprimento da pena após o julgamento de segundo grau. Não quer dizer que a pessoa não vá ter condições de recorrer. Não haverá injustiças, porque ainda há o Habeas Corpus, as medidas cautelares, recurso extraordinário etc.

ConJur – Aumentar a pena, tipificar novos crimes ou transformá-los em hediondos ajuda a diminuir a criminalidade?
Roberto Veloso – Sempre dou o exemplo do álcool ao volante. O que faz a pessoa beber e não dirigir? É a pena que está fixada na lei ou é a fiscalização? A fiscalização. Se andarmos pelo Brasil, onde não há fiscalização, a lei é inócua. O Conselho Nacional de Justiça fez uma pesquisa e descobriu que apenas 8% dos homicídios do Brasil são levados a julgamento. É quase nada. Nós temos 500 mil presos, e somente 8% dos homicídios são julgados. Dados do Ministério da Saúde mostram que 40 mil pessoas são assassinadas no Brasil por ano, aproximadamente. Em três anos, são 120 mil pessoas assassinadas no Brasil. A Guerra do Iraque durou dez anos e 100 mil pessoas morreram. É aquela história da impunidade, ela está presente porque é reconhecida pelo próprio CNJ e envolve o crime individual mais grave, que é aquele que tira a vida das pessoas.

ConJur – A imprensa influencia o juiz?
Roberto Veloso – Não deveria. Pode ser que existam exceções, mas em regra não deveria influenciar, porque o juiz é contramajoritário, não deve se guiar pela opinião pública. A opinião pública muitas vezes age errado. Até se diz que a opinião pública condenou Jesus e absolveu Barrabás.

ConJur – O Judiciário tem preenchido vazios do Legislativo?
Roberto Veloso – Sim, ele tem sido chamado pela população. E a esse chamamento o Judiciário tem dado respostas. Por exemplo, à fidelidade partidária, foi uma resposta judicial a um apelo da sociedade. A sociedade apelou para isso e o Judiciário atendeu. Existem determinados reclames da sociedade que o Judiciário também tem atendido, mas em regra o Judiciário não deve. É quase um dogma para um juiz, que ele não se influencie pela opinião pública se ela está dissociada do processo.

ConJur – O senhor é a favor das dez medidas que estão propostas pela MP?
Roberto Veloso – Nós debatemos isso lá na Câmara. Existem as dez medidas como foram propostas pelo Ministério Público, como uma petição de princípios. Ela tem um apoio da Ajufe. Agora, um projeto de lei precisa de adequações. Nem tudo que está num projeto de lei a Ajufe defende.

ConJur – As provas obtidas de forma ilícita, desde que de boa fé, são uma possibilidade para o nosso Judiciário?
Roberto Veloso – Não entraria nessa questão material. Mas existem questões processuais que devem ser mais bem resolvidas. Por exemplo, as investigações promovidas pelo Ministério Público. Pelo projeto de lei, o MP instaura o procedimento investigatório e ele mesmo arquiva. Nós, juízes, entendemos que essa investigação deve ser arquivada no Judiciário, porque nenhum poder pode ser absoluto. O juiz é controlado pelo MP, que pode recorrer de todas as minhas decisões, se quiser. Se o MP passa a ser um poder sem controle, passa a ser um poder absoluto.

ConJur – O que o senhor acha do teste de integridade?
Roberto Veloso – O Brasil não está preparado para isso, objetivamente. Não temos pessoal para isso. Se já se investiga pouco no Brasil, como eu vou despender pessoal para ficar fazendo teste de integridade? Tenho minhas dúvidas se esse teste de integridade não serviria apenas para perseguições dentro das repartições públicas, e não algo efetivamente para se descobrir alguma coisa. A minha experiência é que a nossa estrutura não está preparada para isso. Existem outros mecanismos mais importantes.

ConJur – O momento é ruim para discutirmos uma lei de abuso de autoridade?
Roberto Veloso – O momento precisa ser mais bem discutido. Existem determinados dispositivos que podem levar a esse tipo de interpretação. Há um dispositivo que diz: “O juiz não pode levar para dentro do processo um diálogo travado entre o investigado e quem tem prerrogativa de foro”. Vou dar um exemplo bem dramático: um traficante de drogas conversa com um deputado federal. A polícia está com uma interceptação telefônica sobre o traficante de drogas, mas o traficante ligou para o deputado. Se aprovado o projeto, essa conversa não pode ir para dentro do processo. Isso não é possível. Tenho que levar para dentro do processo se entendo que a partir daquele momento o deputado está envolvido no caso. Pela atual legislação eu envio para o Supremo, mas não que eu não possa deixar dentro do processo.

ConJur – A prerrogativa de foro é um problema?
Roberto Veloso – Sim. Temos 22 mil pessoas com foro privilegiado no Brasil. Se pegarmos os países desenvolvidos do Ocidente, o foro privilegiado é usado restritivamente. Poderia haver foro privilegiado para os 11 ministros do Supremo, para o presidente da Câmara, para o presidente do Senado, para o presidente da República, para o vice-presidente da República. Passou dos limites, e esse foro privilegiado tem gerado uma situação muito incômoda para o Supremo, porque lá tramitam 302 inquéritos e cento e poucas ações penais em curso. O Supremo, quando foi julgar o mensalão gastou no julgamento 60 sessões. O tribunal parou durante um ano e meio. Quem deveria fazer a guarda da Constituição, e os seus ministros são vocacionados para isso, passa a discutir caso penal.

ConJur – A “lava jato” tem influenciado os juízes?
Roberto Veloso – Os juízes são bem cônscios das suas funções, pelo menos na Justiça Federal. Sei que todos os juízes federais têm a mesma disposição que Sérgio Moro tem. Evidente existem outros tantos fatores que influenciam, e é claro que eu não posso negar que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem dado apoio à operação “lava jato”, tanto é que deixou Moro exclusivo para essa operação. São medidas importantes, que influenciaram positivamente o sucesso da operação.

ConJur – O senhor não vê exageros na condução das investigações e dos processos? Há muitas reclamações sobre as prisões para delatar.
Roberto Veloso – Não existiu nenhuma prisão para delatar. Todas as prisões foram decretadas porque havia requisitos para se decretar e pelo menos um dos fundamentos. Tanto que se nós olharmos o conjunto das decisões de Sérgio Moro, 96% delas foram confirmadas pelas cortes superiores. É um dado que faz cair por terra esse tipo de argumento, porque se fossem decisões sem fundamentação, se fossem prisões apenas para delatar, como se acusa, essas decisões não teriam sido confirmadas.



Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 27 de novembro de 2016, 8h00

terça-feira, 1 de novembro de 2016

"Ninguém será bem sucedido na magistratura se pensar em remuneração"





30 de outubro de 2016, 9h35

Por Felipe Luchete e Thiago Crepaldi
Os irmãos Gilberto, Guilherme e Diniz Fernando Ferreira da Cruz, juízes em São Paulo, falam sobre a carreira.

A família Ferreira da Cruz é uma daquelas na qual o Direito parece estar no DNA. Com bases na cidade de Santos, litoral sul do estado de São Paulo, a família foi detentora de um recorde no Judiciário paulista: nas últimas cinco décadas, foi a única a possuir três irmãos na magistratura.

A marca só veio a ser igualada no último concurso realizado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (número 186), quando o novo juiz Luciano Siqueira de Pretto tomou posse, em 3 de outubro de 2016, para exercer a mesma função de seus irmãos, Pedro e Renato.

Na base de dados da Secretaria da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, é possível encontrar dezenas de casos de dois irmãos juízes, até de desembargadores, porém, pelo menos desde 1965, a família Ferreira da Cruz foi a única com três irmãos em plena atividade na magistratura.

A revista eletrônica Consultor Jurídico encontrou-se com os juízes Diniz Fernando, Gilberto e Guilherme Ferreira da Cruz para uma conversa sobre a carreira, o perfil dos candidatos à magistratura e os desafios que enfrentam.

Eles alertam: a carreira precisa de mais dedicação e vocação do que é possível enxergar através dos editais de concursos. “Juiz não trabalha por hora. Não é chegar ao fórum às 13 horas e ir embora às 18h. Não existe isso. Não tem sábado, não tem domingo, não tem noite, não tem feriado. Se precisar ficar trabalhando, tem que trabalhar”, diz Diniz Fernando.

Leia um breve perfil de cada um e, a seguir, a entrevista:

Diniz Fernando Ferreira da Cruz:
Mais velho dos três irmãos, Diniz Fernando nasceu em 1960 em Santa Cruz do Rio Pardo (SP). Quando tinha cinco anos, sua família decidiu se mudar para Santos, litoral de São Paulo, onde a família mora até hoje. Estudou na Faculdade Católica de Direito de Santos, formando-se em 1983. Foi da turma do desembargador federal Fábio Prieto, que já presidiu o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS). Ingressou na magistratura estadual em 1988. Ao longo da carreira, passou por várias cidades. Foi juiz em Ourinhos, Santa Cruz do Rio Pardo, Piraju, Cerqueira César, Avaré, entre outras. Em Barretos, na terceira entrância, ficou 12 anos. Permaneceu em São José do Rio Preto por nove anos, até que, em 2014, pediu remoção e chegou a juiz de Direito substituto em segundo grau no tribunal, atuando na seção criminal desde então.

Gilberto Ferreira da Cruz:
Nascido em 1964, Gilberto Ferreira da Cruz tem 52 anos de idade e também teve toda a formação educacional e cultural em Santos, onde cursou a faculdade de Direito na Universidade Católica de Santos, que depois tornou-se a UniSantos. Colou grau em janeiro de 1987 e, logo em seguida, em setembro, foi aprovado no concurso para promotor de Justiça na cidade de São Paulo, mesmo concurso de Fernando Capez, Gianpaolo Smanio e Motauri Ciocchetti de Souza. Ficou no Ministério Público por dois anos, depois prestou novo concurso e, em 1989, tomou posse como juiz substituto em Santos, depois, titular de Guararapes e Andradina. Retornou a Santos como juiz titular da vara do júri e execuções criminais da comarca por muitos anos, e veio para a capital para a 1ª Vara Cível Central. Pediu remoção, por afinidade com a matéria criminal, para a 2ª Vara do Júri da capital, o segundo tribunal do júri da capital, em Santana, lá ficando por seis anos, até que, no ano passado pediu remoção para substituto de segundo grau, hoje atuando também na Seção Criminal.

Guilherme Ferreira da Cruz:
Caçula dos irmãos, é do ano de 1971. Fez a faculdade também na Católica de Direito de Santos, colando grau em janeiro de 1994. Durante a faculdade, por concurso, foi escrevente do tribunal de Justiça. Com 20 anos, foi escrevente chefe do tribunal de Justiça, o mais novo do estado. Em 1995, ingressou na magistratura. Foi juiz substituto de São José do Rio Preto, titular de Itaporanga, segunda entrância em Presidente Venceslau e terceira entrância em Santos, onde ficou durante oito anos, para, depois, assumir, em 2006, a 2ª Vara de Execuções Criminais de Presidente Prudente. De lá, seguiu para São Paulo, onde assumiu a 37ª Vara Cível Central. Em 2011, foi convocado para atuar em segunda instância, e trabalhou em algumas câmaras da seção de Direito Privado I, e na seção de Direito Privado II, por quatro anos. Nesse período, se removeu para a 45ª Vara Cível Central, a mais nova do Fórum João Mendes, onde hoje está operando o chamado Cartório do Futuro (UPJI).



ConJur – O que levou os senhores para o Direito e, depois, para a magistratura?
Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Meu pai era entusiasta pela carreira da magistratura, sempre nos incentivou desde criança. Nas épocas oportunas, cada um fez vestibular e faculdade, direcionou os estudos para o concurso e abriu mão de muita coisa, até que realmente cada um de nós foi aprovado.

Guilherme Ferreira da Cruz – O lado da família do meu pai, Diniz Ferreira da Cruz, é todo voltado para o Direito. Ele e dois irmãos são formados no Largo São Francisco (Universidade de São Paulo). Isso fez com que, desde criança, nós convivêssemos com muitos juízes e desembargadores que frequentavam nossa casa, em razão de amizade longínqua com nosso pai. Um primo dele inclusive foi desembargador no Tribunal de Justiça de São Paulo, Dirceu Ferreira da Cruz.

Gilberto Ferreira da Cruz – Vejam, nosso pai não exerceu uma ingerência direta, não é isso.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Era um incentivo.

Gilberto Ferreira da Cruz – Nosso pai era um homem que não pertencia ao tempo dele. Sempre tinha uma visão adiante. Foi poeta, literato, presidente da Academia Santista de Letras e publicou mais de uma dúzia de livros – tanto na área do Direito como poesias e crônicas. Ele contribuiu com seu exemplo de intelectualidade, pelo berço da ética e, junto com esses valores, pelas amizades sempre profícuas. Portanto, nós crescemos num ambiente em que não se falava de dinheiro nem de buscar atalhos para os caminhos da vida.

No momento em que as oportunidades de vestibular foram se aproximando, escolhemos o Direito pela vocação natural, talvez pela admiração espontânea, nunca imposta, e por conta da nossa facilidade com os livros.Quando nosso pai faleceu, a biblioteca dele foi suficiente para fazer outras quatro: uma para cada irmão e ainda permanece uma na casa da minha mãe.

ConJur – E como escolher qual carreira seguir?
Gilberto Ferreira da Cruz – Eu antes prestei concurso para o Ministério Público. Entre as carreiras jurídicas, existem aquelas que encantam os jovens num primeiro momento pelo glamour dos cargos. Depois é a vocação que define. As duas que chamam mais atenção durante a faculdade é a de juiz e a de promotor, mas depois aparece a turma interessada em ser delegado, defensor público etc.

ConJur – Hoje o concurso para a Defensoria Pública é muito concorrido.
Gilberto Ferreira da Cruz – Muito concorrido, uma carreira espetacular, que lida com as liberdades públicas, não é? Talvez, justamente o que estamos vivendo hoje dentro de um Estado Democrático de Direito, de transparência, de apuração de responsabilidade, de garantia dos direitos efetivos na Constituição desperte essa vocação para a Defensoria Pública. Isso é tudo um momento histórico. Na nossa época, as carreiras mais faladas eram as de juiz, de promotor, de procurador do estado, de delegado e a de advogado liberal. Não existia ainda a Defensoria Pública.

ConJur – Muitos bacharéis se tornaram juízes logo que concluíram a faculdade, com vinte e poucos anos. Os senhores avaliam que existe alguma idade certa, uma experiência de vida necessária para poder seguir essa carreira?
Guilherme Ferreira da Cruz – No passado, havia um limite de 25 anos que caiu ao longo do tempo, foi reduzido para 23. Depois essa idade mínima desapareceu durante um curto período, a tornar possível o ingresso na carreira com 22 anos. Com a reforma do Judiciário advinda da Emenda Constitucional 45/2004, criou-se um pré-requisito: além de se formar, mais três anos de experiência profissional (atividade jurídica). Talvez essa mudança tenha ocorrido porque o momento histórico reconheceu que não era mais adequado o ingresso na magistratura imediatamente após a conclusão do curso de Direito.

Gilberto Ferreira da Cruz –Não podemos desprestigiar os jovens, porque cabelos brancos não trazem cultura a ninguém. A cultura e o caráter são forjados pela família e desde a pré-escola. Existem muitos jovens com 23, 24 anos, que têm grande valor, grande maturidade, e o concurso existe justamente para peneirar, garimpar esses expoentes dentre uma multidão que se inscreve. Graças a Deus o Brasil é um país jovem, porque os jovens mudam, e a vida é movimento. Eu ainda sou favorável ao velho sistema.

Guilherme Ferreira da Cruz – Eu também.

Gilberto Ferreira da Cruz – Idade mínima de 23 anos, com dois anos de experiência jurídica, mesmo antes de formado. Por exemplo, quem era escrevente de cartório durante a faculdade, depois de concluído o curso e de atingir 23 anos, já tinha os requisitos preenchidos: formado, idade mínima e a experiência. Não se esquecendo que durante o concurso o tribunal faz uma aprofundada avaliação psicológica e psiquiátrica do candidato.

ConJur – E muitos ficam nessa avaliação...
Gilberto Ferreira da Cruz – Muitos ficam. Então, a questão de idade é relativa. A gente tem que pensar em capacidade e em equilíbrio.

Guilherme Ferreira da Cruz – A experiência de vida nem sempre está ligada à idade. Essa visão é um erro, do meu ponto de vista. Concordo com o meu irmão Gilberto que o melhor seria o sistema anterior, porque o atual poda muitos jovens que já estão maturados para a carreira, mas – agora – não podem fazer a prova. Eu vivenciei e sofri muito com isso. Por ter entrado muito novo, com 24 anos, constantemente era “colocado em situações” para ver como me saía.

Gilberto Ferreira da Cruz – Tornei-me promotor de Justiça com o doutor Gianpaolo Smanio, hoje procurador geral de Justiça de São Paulo, quando nós tínhamos entre 22 e 23 anos de idade. O resultado está aí: ele foi eleito para comandar o Ministério Público por ter demonstrado durante todos esses anos equilíbrio e ser sempre um exemplo, um professor, um grande amigo, um grande homem, pai de família.

Guilherme Ferreira da Cruz – Mas, se hoje é de outra forma, então que os jovens aproveitem esse necessário período de três anos para melhor se prepararem, porque a prova é árdua, a concorrência é forte e a cada ano o número de inscritos aumenta. Então, quem quer ir para esse ramo tem de estar preparado para os ônus, não é só almejar os bônus – se é que existem.

E os ônus aqui são significativos. Nós estamos falando de uma opção e de perseverança para ficar sentado numa cadeira estudando de 10 a 16 horas por dia. Quem se predispõe a fazer qualquer tipo de concurso tem que primeiro colocar o pé no chão e saber: 1) nada vai cair no seu colo; 2) o tempo vai passar de qualquer jeito, você é que escolhe onde e como vai estar depois que o tempo passar; e 3) se você tiver força de vontade, disciplina e acreditar em si, ainda que com pouco tempo disponível para o estudo, você vai alcançar o seu objetivo.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – É porque o concurso, além de ser muito difícil, depende exclusivamente do candidato. É um concurso muito sério, voltado ao intelectual de cada um e o candidato que se dedicar, que estudar, independentemente de ser ou não de família de juristas, de conviver no meio jurídico, se for bem na prova, vai ser aprovado.

Guilherme Ferreira da Cruz – Depende exclusivamente do indivíduo.Em alguns concursos o número de vagas disponibilizado não é preenchido. Não interessa se há 15 mil, 20 mil candidatos para 50 vagas, por exemplo. Ao final, se apenas 45 são aprovados significa que cinco vagas não serão ocupadas por falta de competência dos candidatos.

ConJur – Às vezes, as pessoas focam em um concurso pela remuneração. No caso da magistratura, os senhores consideram que é preciso ter vocação?
Gilberto Ferreira da Cruz – Pela experiência, a magistratura e o Ministério Público estão entre as carreiras jurídicas que dependem de pura vocação para que possam ser exercidas com independência, com coragem, com espírito de mudar um pouco o mundo, porque são as carreiras que estão diretamente interligadas ao exercício do poder de decisão. O Ministério Público tem o poder da ação penal, da investigação no inquérito civil, na ação civil pública. É o advogado da sociedade naquelas questões que estão diretamente interligadas com o exercício do poder da soberania do Estado; ele tem poder de ação inclusive contra os próprios agentes do Estado. É uma carreira que exige muito foco, muito equilíbrio para o seu exercício. A magistratura é poder do Estado e julga, exerce jurisdição. Essas duas carreiras devem ser motivadas por pura vocação, não é emprego.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Nós não trabalhamos por hora.

Gilberto Ferreira da Cruz – Não somos uma categoria, mas um braço do Poder estatal. Ninguém será bem-sucedido na magistratura e no Ministério Público se pensa apenas em emprego e em remuneração. Tenho muitos colegas que optaram na época certa pela iniciativa privada e hoje são executivos da área jurídica, de multinacionais, que ganham três vezes o que recebe um magistrado. Então, no aspecto financeiro, a magistratura sempre está bem abaixo do patamar de um diretor jurídico de qualquer multinacional. Na magistratura nós temos que pensar no compromisso social com aqueles que dependem de nós, que esperam a nossa atuação eficaz, que é a sociedade. Derrubar processos, solucionar lides, apresentar as estatísticas, a qualidade do serviço, boas sentenças, boas decisões, é só responsabilidade.

Guilherme Ferreira da Cruz – Esse é um ponto importantíssimo, porque quem está preocupado só em ter um emprego, supondo que existe isso ou aquilo agregado à condição de juiz, de promotor, como vencimentos/salário, não deve fazer o concurso. Meu conselho é que não faça. Se fizer e for aprovado, vai ser um infeliz frustrado. Primeiro, porque não vai conseguir o que ele estava querendo, as altas remunerações. Se conseguir, terá optado pelo caminho mais fácil, ilícito. E, segundo, tem muito serviço!

ConJur – Tem gente que pode ver uma boa oportunidade de não ter chefe nem horário...
Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Juiz não trabalha por hora, repito. Não é chegar ao fórum às 13 horas e ir embora às 18h. Não existe isso. Não tem sábado, não tem domingo, não tem noite, não tem feriado. Se precisar ficar trabalhando, tem que trabalhar. A Corregedoria Geral de Justiça exige muito do juiz, tanto na esfera administrativa como na jurisdicional. Independentemente da existência desse órgão, o volume de serviço existente em todas as varas, pelo menos aqui no estado de São Paulo, é humanamente invencível. Então, não se pode em nenhum momento só pensar em chegar ao fórum às 13h e ir embora às 18h para colocar um tênis no pé, sair fazendo academia e pronto, acabou o dia. Não, não deve existir isso. É possível até fazer isso, mas não como regra. No entanto, se essa for a regra, acredito que a pessoa vai sofrer uma consequência séria em pouco tempo, porque não vai dar conta do serviço e vai ser cobrado.

Guilherme Ferreira da Cruz – E sem pensar no mal que estará causando à população, porque por trás dos números astronômicos do Tribunal de Justiça de São Paulo existem milhares de pessoas envolvidas nos processos que aguardam solução. O juiz sem vocação trata o ser humano como estatística, como papel – ou como bytes, agora com o processo eletrônico. Por isso que a vocação é fundamental, porque o juiz tem que estar preocupado em dar a cada um o que é seu. Aqueles que vão até o Judiciário esperam que o juiz seja imparcial, justo e que goste do que ele está fazendo, porque só assim nós vamos investigar a fundo o problema para distribuir a justiça em cada um dos casos.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Nesse excesso de trabalho, nessa preocupação com cada caso, com cada vida que está ali no processo, o juiz perde a sua própria vida familiar, vida social, em dedicação ao trabalho.

ConJur – E é difícil conseguir criar uma família com essa história itinerante?
Gilberto Ferreira da Cruz – Isso faz parte do pacote. Quem quer ser militar, sabe que tem que ir para a guerra, sabe que pode morar em fronteira. Quer ser juiz, qual é o pacote? Início da carreira no interior, longe dos amigos, longe da sua família, longe dos seus laços... Lá você é sozinho, é autoridade, não sabe quem é amigo. Não sabe, quando é convidado para um jantar, se o menu é você ou se você é a sobremesa. O juiz está sempre só nas suas decisões e tem que tomar muita cautela com quem se relaciona. Por isso quem não tem vocação não aguenta.

ConJur – E o trabalho do juiz também é de gestor, não é?
Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Dependendo do lugar, ele é diretor do fórum, lida com administração de verba, contratos, viaturas, compra de material, correições extrajudiciais, visita o cartório, as delegacias, presídio, pelo menos uma vez por ano.

Guilherme Ferreira da Cruz – Manutenção do prédio...

Gilberto Ferreira da Cruz – O juiz não pode se colocar isolado em sua sala, atrás da sua mesa, somente sobre os seus processos. Precisa se preocupar com a sua pauta, o seu cartório, o comportamento dos seus funcionários...

ConJur – Como o juiz aprende isso? Na prática?
Gilberto Ferreira da Cruz – Existe um regramento interno do tribunal chamado “Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça”, com todas as obrigações administrativas dos juízes. Quando você passa no concurso, você ganha um de presente e boa sorte! Afinal de contas, estamos falando de magistrados que passaram no concurso, que têm todo o potencial para resolver qualquer questão, inclusive as suas obrigações funcionais, de saber todas elas e cumpri-las com muita eficiência.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Aí só vai aprender na prática.

Guilherme Ferreira da Cruz – Hoje em dia, nós temos a Escola Paulista da Magistratura. Depois que o candidato é aprovado no concurso, fica um período em São Paulo participando de cursos de iniciação funcional e também trabalhando nas varas ao lado de colegas mais experientes.

ConJur – Sobre a rotina de trabalho, os senhores consideram que há hoje muita diferença entre o primeiro e o segundo graus?
Guilherme Ferreira da Cruz – Apesar dos esforços empreendidos, o Judiciário precisa ser melhor equipado, com recursos materiais e humanos. Não adianta só cobrar, não teremos uma Justiça de primeiro mundo com um instrumental desatualizado, isto não existe. É preciso que se incremente o primeiro grau, sim, e o segundo, também. O juiz tem que ter condições de trabalho, porque se ele não tiver, não terá como vencer a demanda. Nosso Tribunal de Justiça de São Paulo é talvez o maior do mundo, então tem que ser tratado como tal.

ConJur – O processo eletrônico tem ajudado a tornar esse trabalho mais célere?
Guilherme Ferreira da Cruz – O processo eletrônico anda mais rápido, mas não é a solução para todos os problemas. É preciso que realmente todas as ferramentas estejam disponíveis e todo mundo saiba operar e retirar do programa aquilo que ele tem de melhor; e, o principal, é preciso que o programa funcione.

Gilberto Ferreira da Cruz – Seja o processo eletrônico, seja o físico, ou o que for, a questão é a seguinte: nós não estamos aqui falando em fábrica de produção. O magistrado deve ser visto como o cérebro que vai orquestrar toda essa máquina em busca de decisões justas. Então, não adianta nada apenas ter processo digital.

ConJur – Diante de toda essa rotina de atividades, dá para ser justo e célere ao mesmo tempo?
Guilherme Ferreira da Cruz – O segredo é a vocação, porque todas essas dificuldades você enfrenta com gosto.

ConJur – O juiz em início de carreira sabe onde vai terminar?

Gilberto Ferreira da Cruz – No início da carreira, o juiz assume uma comarca pequena e faz o que nós chamamos “clínica geral”.

Guilherme Ferreira da Cruz – Na época do Diniz, fazia até trabalhista.

Gilberto Ferreira da Cruz – É com o avanço da carreira que o juiz escolhe o caminho. O magistrado interessado em chegar rapidamente ao último degrau da carreira não escolhe as vagas que surgem. Outros querem seguir determinada matéria ou ir para uma cidade/região específica, então ficam esperando vaga.

Guilherme Ferreira da Cruz – É preciso lembrar que o juiz tem uma garantia constitucional que se chama inamovibilidade. Isso significa que o juiz só sai do lugar onde está se quiser. Se ele desejar sair, seja numa movimentação horizontal da carreira – que é a remoção – ou vertical – promoção – ele vai examinar as opções.

ConJur – Todo juiz atua na Execução Criminal?
Guilherme Ferreira da Cruz – Não necessariamente, mas é muito comum no início da carreira, inclusive com visitas às unidades prisionais.

Gilberto Ferreira da Cruz – Lá naquela cadeia pública da cidade dele, ele vai ter que decidir sobre a vida dos presos.

Gilberto Ferreira da Cruz – O Guilherme foi titular da Vara de Execuções Criminais de Presidente Prudente.

Guilherme Ferreira da Cruz – Em 2006, com aquela onda de atentados de dentro para fora dos presídios, o Tribunal de Justiça instalou algumas varas de execuções criminais no estado com o objetivo de dar mais agilidade a esses processos. Assumi em julho de 2006 a região de Presidente Prudente.

ConJur – Não é uma tarefa que gera medo?
Guilherme Ferreira da Cruz – Medo depende de cada um. Agora, se o concursando tem medo de ser juiz, que não preste o concurso. Eu insisto, juiz não é uma figura apenas para receber o seu holerite.

ConJur – E como os senhores vêm o chamado ativismo judicial?
Gilberto Ferreira da Cruz – Bem, eu sempre fui isento, imparcial, cumpri as normas da minha função. Não posso responder por terceiros.

Guilherme Ferreira da Cruz – O juiz não pode ser um omisso. Os problemas que as partes trazem ao Judiciário exigem uma solução e não é porque o juiz decidiu A ou B que ele pode ser qualificado ou desqualificado como ativista. Ele simplesmente está decidindo aquele problema que foi levado à sua jurisdição, mais nada.

Gilberto Ferreira da Cruz – Acredito que todos os juízes, até aqueles que são chamados de ativistas na esfera criminal, proferem as suas decisões e sentenças com base na interpretação do sistema legal em vigor. Hoje se ataca muito o juiz Sergio Moro. Com bravura e independência, ele está aplicando a Legislação Penal dentro da sua ótica. Se houver algum erro de Direito nesse exercício jurisdicional, as instâncias superiores estão aí para corrigir, por via de recurso. Quem é ativista? Quem desagrada grupos? E a que grupos eu devo agradar então?



Felipe Luchete é repórter da revista Consultor Jurídico.

Thiago Crepaldi é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 30 de outubro de 2016, 9h35

domingo, 23 de outubro de 2016

"Com a judicialização da saúde, Estado age como um Robin Hood ao contrário"





Por Claudia Moraes


Ao determinar que o Estado forneça remédios que não são distribuídos pelo SUS, muitas vezes caros ou experimentais, o Judiciário está guiando, indiretamente, a política de saúde pública, fazendo com que a verba destinada para a área privilegie alguns no lugar da coletividade. A opinião é do procurador-geral do estado de São Paulo, Elival da Silva Ramos, que tem enfrentado esse problema diariamente.

O procurador tem o cálculo na ponta da língua: São Paulo gasta, hoje, mais de R$ 1 bilhão com o cumprimento de ordens judiciais na área de saúde. E analisando onde esse dinheiro foi investido, ele afirma que a judicialização é mais comum em regiões mais ricas, enquanto nas mais pobres, faltam hospitais e saneamento básico. Ou seja, o Estado é obrigado a agir como "um Robin Hood exatamente ao contrário".

Ramos lidera a Procuradoria-Geral de São Paulo desde 2011, quando foi nomeado pelo governador Geraldo Alckmin. Ele já havia ocupado o cargo de 2001 a 2006, nomeado pelo mesmo governador. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ele afirmou que os precatórios continuam um problema para o governo, pois com a crise econômica, não poderão ser pagos sequer no longo prazo dado pelo Supremo Tribunal Federal (até 2020).

Atualmente, a PGE-SP atua em mais de 1,6 milhão de casos. A grande maioria das ações trata de execuções fiscais. E a partir do ano que vem, esses processos terão um novo aporte tecnológico para o cruzamento de dados de contribuintes.

Além da modernização e de parcerias com outros órgãos, Elival da Silva Ramos, que atua como procurador do estado desde 1980, acha que está na hora de novas contratações na procuradoria, que, atualmente, tem 130 vagas em aberto.

Leia a entrevista:

ConJur – Em março, foi feito um acordo da PGE-SP com o Ministério Público para a repressão de crimes tributários. Como se deu esse acordo? Qual tem sido o resultado?
Elival da Silva Ramos – Este não é um processo comum. Nós costumamos cobrar os devedores através de execuções fiscais, raramente com processo criminal. Nesses casos, houve indícios de prática de algum crime fiscal, sonegação ou fraude. Claro que são indícios, então nós já enviamos 96 expedientes para o Ministério Público. O MP realizou toda a parte deles de investigação. Eventualmente, em conjunto com a Polícia Civil, e já tem vários que estão em fase de denúncia. Nesta fase, a legislação prevê a possibilidade de o devedor efetuar o pagamento.

O Ministério Público suscitou uma dúvida: se esses casos comportariam um parcelamento. Aparentemente, não comportam, porque são casos todos de substituição tributária. Há, nesse momento, um estudo, para saber se haveria alguma possibilidade de parcelamento ou não. Se não houver, ou o devedor paga ou vai ser denunciado.

ConJur – Então a parceria continua?
Elival da Silva Ramos – Continua. o que foi ótimo, porque aproximou o setor de repressão a crimes tributários do MP da Procuradoria. Institucionalmente, não havia um trabalho em conjunto, agora foi formalizado. A ideia é que isso vá sendo alimentado de tempos em tempos. Nós quisemos esperar esse primeiro lote estar bem consolidado para poder avançar, mas certamente acho que até o final do ano deve vir um outro lote.

ConJur – E também teve uma cooperação técnica com o Tribunal de Contas do Estado?
Elival da Silva Ramos – Nesse caso não são propriamente procedimentos de atuação, mas informações que eles nos passam sobre devedores. O tribunal de contas tem as contas de todos os municípios do estado. Então, às vezes, empresas que trabalham com o estado também têm recolhimento de impostos municipais e, com as informações delas, podemos melhorar nosso trabalho de busca pelos bens e localização de devedores, por exemplo.

ConJur – Conseguem cruzar dados também?
Elival da Silva Ramos – Essa é a grande ferramenta de combate à fraude, de maneira geral. Hoje, há empresas privadas que fazem esse trabalho, com grande eficiência, que costumam ser contratadas por bancos. Entramos em contato com essas empresas, com computadores de grande porte, e colocamos nosso orçamento para contratar esse tipo de serviço a partir do próximo ano. Hoje, a Procuradoria cruza dados sem a mesma eficiência que resultará desse sistema que está sendo contratado. Vamos contratar para o ano que vem o sistema mais moderno que existe no Brasil, talvez um dos mais modernos do mundo.

ConJur – Essa empresa nova, terceirizada, começa em 2017?
Elival da Silva Ramos – Exato. Hoje, com a crise fiscal, o Estado está cortando gastos ao máximo. O governador tem dado reiteradas declarações nesse sentido, mas essa foi uma exceção. Foi autorizado justamente pela importância para a recuperação de ativos.

ConJur– Muitos setores públicos estão reclamando do corte do orçamento. Qual foi o impacto que teve na Procuradoria?
Elival da Silva Ramos – Atrasos acontecem e isso prejudica o serviço. Há servi~ços que deixamos de contratar. Tivemos uma queda de arrecadação considerável. Quando temos um orçamento projetado e há uma queda de 10%, temos de cortar despesa de 10%. Então, existe o chamado contingenciamento. Esse contingenciamento foi de 25% este ano, e foi transformado em eliminação da despesa orçamentária. Às vezes, você contingência e depois libera. A Procuradoria, aliás, foi uma das poucas que teve alguma liberação de contingenciado, justamente para lidar com algumas dificuldades que a gente tinha, coisas importantes. Mas todos sofremos de alguma maneira, com menos carros alugados e contratos de forma geral.

ConJur– Depois das questões fiscais e tributárias, quais os assuntos que mais entram nas ações da PGE-SP?
Elival da Silva Ramos – Até setembro, temos em andamento no estado 1.125.000 execuções fiscais, aproximadamente. É um dado relevante, quer dizer, mostra que o estado de fato é um dos principais litigantes em juízo, mas principalmente pelas execuções. Processos que não sejam execuções fiscais somam mais ou menos 500 mil, que é um volume também considerável. Fora execuções fiscais, os assuntos principais que são políticas públicas e ações envolvendo sistema carcerário. Em relação ao sistema carcerário há inúmeras ações sobre superlotação de presídios. Às vezes, questões envolvendo direito à educação. Hoje, no estado de São Paulo, todas as crianças têm acesso à rede, mas pode haver discussões sobre faixa etária, por exemplo.

Sem dúvida, das políticas públicas, a área com maior volume de ações é a saúde, porque são pedidos de medicamentos e procedimentos que não são autorizados pelo SUS. Em geral, as ações são pedidos de medicamentos ou procedimentos não previstos na lista e nos procedimentos autorizados pelo SUS. Quando surge uma coisa nova, como uma insulina importada, ou um procedimento novo, alguns sem registro na Anvisa, vem a discussão. Alguns são experimentais, outros não são autorizados pelo SUS porque têm um equivalente mais econômico. O Supremo ainda vai definir isso.

Depois das execuções fiscais e das ações área de saúde, vêm os processos sobre responsabilidade do estado pelas terceirizadas, depois, ações de servidores em geral, normalmente envolvendo gratificações de policiais militares ou de professores.

ConJur– O estado tem condições de pagar esses medicamentos que são liberados pela Justiça? Uma hora as contas podem não fechar e o estado quebrar?
Elival da Silva Ramos – O Estado é inquebrável, por uma simples razão: toda a vez que ele paga uma conta, vem cobrar da gente, ou seja, do cidadão comum, aumenta a carga tributária. Por que o Brasil tem uma carga tributária alta? Esse é um dos temas que eu mais gosto de discutir do ponto de vista constitucional. É uma visão também de relação entre Executivo e Judiciário, que envolve separação de Poderes, o papel do Judiciário, a questão de orçamento e vários outros temas, em caráter multidisciplinar do Direito. Toda decisão tem um custo. Inclusive as administrativas. É preciso, primeiro, ter consciência desse custo. Em segundo lugar, envolvem escolhas. Quando o Judiciário manda fornecer insulina importada significa que, do orçamento da saúde, uma parte vai ser destinada para isso. Provavelmente, outras ações que não sejam ações compulsórias deixarão de ser feitas.

No Brasil, não temos a vacina da dengue e temos fornecimento de medicamentos altamente sofisticados em juízo, o que é contraditório. Fornecemos, por esse mecanismo judicial medicamentos que a Suécia, a Dinamarca, não fornecem. Mas não temos prevenção de doenças tropicais, coisas que somente a África subequatoriana tem. O Judiciário brasileiro parece não ter uma clara consciência disso, porque está fazendo uma escolha, pela qual os segmentos mais pobres da população não vão ter vacina. É a doença da miséria, do subdesenvolvimento, que já podia ter sido eliminada. Mas investimos para cumprir decisão judicial. O CNJ tem ajudado bastante, tem feito vários fóruns nacionais sobre o assunto.

ConJur – Mas não vai ter dinheiro para tudo...
Elival da Silva Ramos – No Supremo, os ministros estão demonstrando ter essa consciência que a maior parte dos juízes não tem. A legislação do SUS foi sendo aperfeiçoada e é das mais modernas do mundo. Ela prevê o seguinte: primeiro, toda doença, qualquer uma que você cite, que seja ordinária, seja extraordinária, tem uma resposta do sistema. Essa resposta leva em conta a efetividade do medicamento no procedimento e custo, como qualquer sistema público de saúde do mundo. Não vão fornecer tudo, mas alguma resposta, que seja compatível com nosso padrão de orçamento. Quando falavam da fosfoetanolamina, era pior, porque esse não tem nenhuma comprovação científica. Foram milhares de ações aqui em São Paulo, que atolaram o Judiciário.

ConJur – Como o Judiciário tem influenciado as políticas públicas?
Elival da Silva Ramos – Em política pública, o erro é um desastre, porque aquilo se multiplica. Por isso o controle judicial de políticas públicas é um grande tema. Nós temos nos envolvido, não só por defender o estado nas ações, mas institucionalmente para trabalhar o tema. Evitar que leis mal feitas sejam editadas, e de tentar transmitir ao Judiciário uma visão relevando elementos factuais, como, por exemplo, que aqui em São Paulo se gasta hoje mais de R$ 1 bilhão com o cumprimento de ordens judiciais na área de saúde. Quantos hospitais a mais não poderíamos ter? Quantas vacinas?

Quando pergunto qual é a região mais pobre do estado, todo mundo diz que é o Vale do Ribeira, todos os índices mostram. Esta é uma das regiões com o menor índice de judicialização na saúde. Qual é a região mais rica do interior do estado? É Ribeirão Preto, que é a de maior índice. Então, isso mostra que o Judiciário colabora para uma desigualdade no Brasil, porque ele passa a atender segmentos em melhores condições econômicas da população, que têm acesso à Justiça. E o pobre, que é aquele que também não tem acesso à Justiça em geral, porque ali não tem uma Defensoria Pública funcionando, os advogados não têm o mesmo nível técnico dos que atuam em outros lugares... E esse pobre fica sem aquele tratamento, vai ter menos esgoto tratado, vai ter menos vacina, não vai ter um hospital melhor. O Estado deixando de investir nessas áreas significa não atender o mais pobre. Está cumprindo ordem judicial para atender o mais rico. Então, é um Robin Hood exatamente ao contrário, que é promovido por essa judicialização.

ConJur – Como que a Procuradoria se organiza para aplicar as decisões do Supremo? No caso de repercussão geral, ou mesmo de recursos repetitivos?
Elival da Silva Ramos – Primeiro avaliamos se cada repercussão geral tem impacto no estado. Se tiver, nós entramos como amicus curiae. Hoje, os estados têm um mecanismo de atuação conjunta que é o Colégio Nacional de Procuradores-Gerais. Uma coisa é eu dizer, por exemplo, que eu gasto aqui R$ 1 bilhão para medicamento, mas se eu somar o Brasil inteiro, todas as secretarias de saúde que me derem os dados, eu levo um número muito mais expressivo. Então, há uma atuação conjunta dos estados que é muito eficiente. Eles distribuem memoriais, procuram os ministros, servem de apoio técnico, mas isso não tira a possibilidade de o procurador geral ir lá e fazer o trabalho. Mas é uma forma de coordenar a atuação entre os estados.

ConJur – E como está a questão dos precatórios?
Elival da Silva Ramos – O Supremo julgou pela inconstitucionalidade, por um voto, da emenda 62. Mas percebeu que o resultado do julgamento talvez fosse pior do que o que havia antes. O sinal maior disso é que eles deram um prazo enorme para cumprir, que não é comum. Eles julgaram em 2013, depois foram fazer a modulação em 2015 e deram cinco anos. Mas quando o Supremo dá um prazo desses, não imaginava que a partir de 2014 viesse a crise econômica, de não crescimento. A crise gerou a impossibilidade de cumprir até para 2020 e eles sabem disso. Aproveitaram os embargos que estavam pendentes para reabrir a discussão do prazo. Então, embora esteja, por enquanto, valendo cinco anos, é pouco provável que vá ficar os cinco anos.
Para cumprir como parte do Judiciário vê hoje o problema das políticas públicas, vamos constatar que o Brasil é um país inconstitucional, porque não tem PIB para fazer valer 100% da Constituição. Então, os nossos precatórios são parte desse dilema.

ConJur– Os procuradores que têm hoje são suficientes ou pode ser que abra concurso público?
Elival da Silva Ramos – Tem que abrir concurso, mas é porque nós temos vagas no quadro hoje. Dos 1.030, nós temos mais de 130 vagas. Então nós temos cerca de 900 efetivamente em exercício. Eu tenho um pedido de autorização para concurso pendente que está aguardando melhorar a situação financeira, mas o estado precisa, em curto prazo, de mais procuradores.

Claudia Moraes é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2016, 8h50

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Lei Anticorrupção "Acordo de leniência é entre Administração e empresa e ninguém mais, nem o MP"








O ministro Gilson Dipp, aposentado do Superior Tribunal de Justiça, anda oferecendo cafezinhos de graça em suas palestras. Para ganhar um, diz ele, basta apontar, na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), “uma linha” que trate da participação do Tribunal de Contas da União e do Ministério Público nos acordos de leniência. No caso do TCU, o café sai ainda mais caro, já que a lei sequer cita o órgão.

Na opinião do ministro, o acordo de leniência só pode ser celebrado pelo ente lesado e pela empresa que causou o dano. Ninguém mais. “A participação do Ministério Público e do TCU dá mais garantias, mas, ao mesmo tempo, complica. As exigências passam a ser tão grandes, que acaba prejudicando qualquer acordo”, diz, em entrevista à ConJur.

Dipp está lançando um livro, junto com o desembargador Manoel Lauro Volkmer de Castilho, aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sobre o assunto. Intitulada Comentários sobre a Lei Anticorrupção, a obra é justamente o que promete: textos sobre cada linha da lei, da ementa à data da entrada em vigor, passando pela exposição de motivos da Presidência da República, autora do projeto, e pela tramitação legislativa. E depois de pronto o livro, o ministro conclui: “A lei veio furada”.

A intenção da norma, lembra Dipp, era atender a exigências da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre combate a lavagem de dinheiro e a corrupção empresarial internacional. Tanto que o projeto foi enviado ao Congresso ainda pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que deixou a o cargo em 2009 e dizia que provaria que a OCDE não era “um clube de ricos”.

O projeto dormiu na Câmara até 2013, quando a classe política foi pega de surpresa pelas manifestações de junho daquele ano, quando milhões de pessoas foram às ruas, em São Paulo, protestar contra o preço da passagem de ônibus e aproveitaram para reclamar das autoridades públicas do país. Aí a tramitação foi acelerada, e o texto foi aprovado em dois meses, para entrar em vigor em 180 dias.

Esse cronograma coincidiu com a deflagração da operação “lava jato”, que naquela época começava a descobrir contratos superfaturados entre empreiteiras e a Petrobras. Portanto, a lei que criou o acordo de leniência nasceu sob a égide de uma investigação policial, e o resultado, afirma Dipp, foi uma lei penal travestida de lei administrativa.

Desde o início, os textos da exposição de motivos e das relatorias no Congresso falavam em combate ao suborno, à corrupção, à lavagem de dinheiro etc. “Com toda essa linguagem explícita, desde a mensagem presidencial até as relatorias na Câmara e no Senado, se alguém encontrar uma linha da lei que fale em corrupção e suborno, eu pago um cafezinho “, desafia Dipp.

O ministro aposentou-se do STJ em 2014, no mesmo dia que o ministro Ari Pargendler, seu colega de faculdade. Foi corregedor nacional de Justiça e colaborou com a OCDE para a implantação de medidas de combate à lavagem de dinheiro. Entre elas, a especialização de varas na Justiça Federal e a criação da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla). Hoje, é sócio do escritório Carneiros e Dipp, do advogado Rafael Araripe Carneiro.

Leia a entrevista:

ConJur — O livro se chama Comentários à Lei Anticorrupção. Qual o principal comentário à lei?
Gilson Dipp — O interessante aqui é que é um livro que não tem uma citação, nem de jurisprudência, nem de doutrina. Ele não tem nenhuma ideia ou concepção que não seja dos autores. E a lei é comentada artigo por artigo, já trazendo todos os problemas que decorreriam dela.

ConJur — Quais são esses problemas?
Gilson Dipp — A lei foi feita porque a OCDE pediu ao Brasil a responsabilização das empresas por atos de corrupção, mas a doutrina penal brasileira não aceita a responsabilização jurídica penal das pessoas jurídicas, salvo em Direito Ambiental. É aquela velha história de que pessoa jurídica não é um ente e não pode delinquir, quem faz a delinquência são seus sócios etc. Portanto, essa lei tem toda a concepção de uma lei penal, mas teve que virar civil e administrativa. Todo o histórico parlamentar dela mostra isso. E aqui se fez uma responsabilização administrativa.

ConJur — Isso se refletiu na lei como um todo, então?
Gilson Dipp — Claro. Todos os tipos de ilícitos administrativos elencados na lei têm um tipo penal correspondente com uma redação um pouco diferente. As penas aplicadas muitas vezes correspondem às penas aplicadas ao Direito Penal: suspensão de atividades, bloqueio de bens, proibição de contratar com bancos públicos.

ConJur — A grande novidade da lei foi a história do compliance, ou “programa de integridade”, que é como o governo decidiu traduzir. Existe novidade nisso? Já existia a preocupação com compliance muito antes dessa lei.
Gilson Dipp — Claro! Todas as grandes empresas, em especial aquelas que investem na Bolsa de Nova York, têm programas de compliance. Mesmo grandes empresas sem exigência já tinham programas de integridade, tudo copiado do sistema americano, do sistema inglês, todas empresas multinacionais, isso não é novidade. O programa de compliance existe no Brasil desde a Lei de Lavagem de Dinheiro, de 1998.

ConJur — Já do mesmo jeito que está na Lei Anticorrupção?
Gilson Dipp — Ela fala principalmente a bancos. Diz que os bancos, para evitar que dinheiro sujo entre no sistema financeiro devem conhecer seus clientes. Foi seguida a orientação do Gafi [Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo], que funciona junto à OCDE, fica no mesmo prédio e tudo. E as recomendações do Gafi ao Banco Central foram: antes de abrir uma conta, conheça o seu cliente, conheça a origem do dinheiro do seu cliente, conheça as transações comerciais do seu cliente com outras empresas. E eu brinco em palestras: “Conheça a ex-mulher do seu cliente, porque ninguém melhor para informar que a ex-mulher, que delata sem precisar de premiação”.

ConJur — E aquela medida provisória, que acabou caducando?
Gilson Dipp — Fui ouvido duas ou três vezes lá na comissão especial Câmara sobre essa MP, porque ela visava mudar não o processo administrativo, mas o acordo de leniência – leia-se, em função da “lava jato”. A intenção era aplicar multas menores, para possibilitar acordos menos drásticos, para que não ficasse impossibilitada de contratar com o poder público, de ter financiamentos. Ou seja, o regulamento visou atenuar a rigidez da lei por uma questão factual de momento, que foi a “lava jato”.

ConJur — Ainda há a confusão sobre quem pode se envolver nos acordos...
Gilson Dipp — Antes, quando se falava em acordo de leniência, a CGU tinha exclusividade. Mas quando é que começou a dar problema? Eu sempre critiquei isso. Como o acordo de leniência, que é o processo administrativo de responsabilização a cargo da entidade lesada, deu ibope, tanto o TCU quanto o Ministério Público quiseram participar. Mas não tem uma linha na lei sobre TCU, muito menos sobre Ministério Público. Cada um tem a sua atribuição. Como há uma tibiez, houve uma total submissão do nosso Legislativo às exigências do MP. Um Executivo fraco, um Legislativo incipiente, e ambos sob suspeita, aceitaram qualquer coisa que o Ministério Público impunha.

ConJur — Prevaleceu a vontade de um ator interessado, então.
Gilson Dipp — Não estou dizendo que isso seja ruim. O que lamento é essa submissão dos poderes, que de resto ficaram enfraquecidos. Com a judicialização da política e com a politização do Judiciário e o ativismo judicial, quem manda é o Judiciário. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal.

ConJur — O Supremo deveria ter recuado?
Gilson Dipp — Não é que ele queira mandar em tudo, é que pediram, e ele não teve a consciência de que não deveria avançar para além da sua atribuição. Por exemplo, as questões do impeachment. Isso é interna corporis do Legislativo! Ou o Legislativo usa de sua competência ou se demite dela. Tudo isso eu disse quando fui à Câmara falar na comissão especial que analisava a medida provisória.

ConJur — Era a MP que falava do TCU, não era?
Gilson Dipp — O TCU não está na lei, está numa instrução normativa dizendo que o acordo de leniência trata de desvio de patrimônio público, de recursos públicos. Ora, nem todo ato ilícito decorre de verba pública. A missão do TCU é verificar as contas públicas. Qualquer prejuízo que um ente público tivesse, a qualquer momento o TCU poderia atuar, por força Constituição. Querer participar desde o início das negociações do acordo de leniência é uma pauta.

ConJur — E o Ministério Público?
Gilson Dipp — Mesma coisa. Entraram dizendo que só eles conhecem o valor dos danos causados porque são os donos da ação penal. Mas são coisas diferentes, as competências são diversificadas! Agora o Ministério Público está fazendo acordo de leniência, com esse nome, homologado pelo juiz penal, com silêncio absoluto da administração. Isso pode ser tudo, delação premiada, pode ser até um termo de ajustamento de conduta, mas chamar de acordo de leniência e prejudicar os acordos que estão andando na CGU? E a própria CGU manda ouvir o Ministério Público porque tem dificuldades...

ConJur — Mas a medida provisória caducou e o TCU continua nos acordos de leniência.
Gilson Dipp — O TCU tem uma instrução normativa de 2004 dizendo que se fazia necessária sua participação etc. E a CGU sucumbiu a isso. O acordo de leniência quem conduz é o ente lesado. Quem verifica as possibilidades, as vantagens e desvantagens que o acordo tiver é a administração pública e a empresa. Ponto.

ConJur — Então não é para ter ninguém de fora?
Gilson Dipp — Ninguém! O Ministério Público já tem suas ferramentas. O TCU já tem sua tomada de contas, e em qualquer setor ele pode entrar como verificador do dano ao erário. Além de tudo isso, a lei nunca excluiu o Ministério Público ou a própria Receita de, ao se sentir lesada por um acordo, por um processo que chega a seu fim, promover as respectivas ações que lhe são próprias.

ConJur — Hoje a participação do Ministério Público e do TCU nos acordos de leniência é ilegal?
Gilson Dipp — Se alguém me mostrar um dispositivo da lei que se refira a esses órgãos, eu pago um cafezinho. Portanto, esta é uma lei que está sendo aplicada, mas que já veio com dificuldades de origem. Para o Brasil cumprir tratados com a OCDE, ela foi colocada rapidamente em discussão face às manifestações de junho de 2013, aprovada agosto daquele ano para entrar em vigor em janeiro de 2014, em plena “lava jato”, onde basicamente as investigações foram feitas a empresas.

ConJur — Bom, então por que uma empresa faria um acordo de leniência?
Gilson Dipp — Eu disse quando ainda estava no STJ que se eu fosse advogado nunca faria um acordo de leniência. A participação do Ministério Público e do TCU dá mais garantias, mas ao mesmo tempo complica tanto, as exigências passam a ser tão grandes, que acaba prejudicando qualquer acordo. Isso teria que ser modificado na própria Lei Anticorrupção.

ConJur — Para dizer o quê?
Gilson Dipp — Para estabelecer a participação do Ministério Público e do TCU. Mudar toda a configuração da lei, que hoje é o foco na prática de ato ilícito contra a administração pública, e ela que deve levar o processo administrativo, aplicar as penalidades, fazer acordo etc. Essa lei veio furada já da sua elaboração legislativa.

ConJur — Em que sentido?
Gilson Dipp — Desde a mensagem presidencial do Lula, passando pela relatoria do Zarattini na Câmara e pelo Ricardo Ferraço, relator no Senado, a justificativa da lei era: "O Brasil tem de cumprir com acordos internacionais”, “o Brasil tem que combater a corrupção”, “o Brasil tem que combater o suborno”, "o Brasil tem que ser transparente". E aí eu falo em palestras: Com toda essa linguagem explícita, desde a mensagem presidencial até as relatorias na Câmara e no Senado, se alguém encontrar uma linha da lei que fale em corrupção e suborno, eu pago um cafezinho na esquina.

ConJur — E por que não fala em corrupção e suborno?
Gilson Dipp — Porque é uma lei penal que não teve coragem! Corrupção e suborno são tipos penais!


Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.Revista Consultor Jurídico, 2 de outubro de 2016, 9h38

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Ativismo prejudicial "Magistrado que adentra arena do combate político perde legitimidade"




Por Sérgio Rodas e Otavio Luiz Rodrigues Junior


A crescente “judicialização da política”, no Brasil e na Europa, tem mostrado que as instituições estão funcionando bem e de forma imparcial. Mas, para continuar nesse rumo, os magistrados não podem virar ativistas e invadir a arena do debate político, o que tiraria a legitimidade de suas decisões. Essa é a opinião do civilista português Paulo Mota Pinto, que foi por nove anos juiz conselheiro do Tribunal Constitucional, corte equivalente ao Supremo Tribunal Federal brasileiro.

“É necessário que os juízes não resvalem para uma certa discricionariedade ou assumam posições dúbias, muito menos tangenciem para a arena do combate político, o que seria negativo e acarretaria perda de legitimidade. Os magistrados devem ter sempre a consciência do risco de sua deslegitimação”, afirma.

Dessa forma, juízes não podem participar de atividades partidárias nem fazer comentários políticos à imprensa ou em redes sociais, avalia Mota Pinto, que é professor da Universidade de Coimbra. Afinal, eles podem ter que vir julgar casos relacionados aos assuntos que comentaram.

Tal declaração vem de um integrante do Partido Social Democrático, que foi deputado de 2009 a 2015, e filho do ex-primeiro-ministro de Portugal Carlos Alberto da Mota Pinto. Mesmo com essas “tentações”, o civilista ressalta que sempre separou a atividade jurídica da política. Esta ele encara como uma missão transitória, ao passo que aquela seria sua verdadeira profissão.

No entanto, seu profundo conhecimento de Direito Privado pouco o ajudou no exercício da atividade parlamentar. Por outro lado, o conhecimento de como as leis são feitas foi muito útil nesse período, conta Mota Pinto.

Um dos pontos controversos abordados pelo jurista é a diferenciação do preço de seguros em razão das características dos contratantes. De acordo com Mota Pinto, o sexo do segurado não pode influenciar esse valor, mas a idade, sim.

Com relação ao ensino jurídico, o ex-integrante do Tribunal Constitucional defende a manutenção das aulas expositivas, porém, com a complementação de disciplinas práticas. Ele ainda é favorável à manutenção do Direito Romano nas grades universitárias, desde que a matéria seja “estudada e ensinada em uma perspectiva atualista, tendo em conta a sua explicação do direito atualmente vigente”.

Em entrevista à ConJur — da qual também participou Otavio Luiz Rodrigues Junior, professor doutor de Direito Civil da USP. ex-bolsista do Instituto Max-Planck de Hamburgo e coordenador da Rede de Direito Civil Contemporâneo —, Pinto comparou o Tribunal Constitucional ao STF, discutiu a autonomia dos ramos do Direito Privado e opinou sobre a viabilidade de um código civil europeu.

Paulo Mota Pinto esteve no Brasil a convite do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, da Rede de Direito Civil Contemporâneo e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade 7 de Setembro. Proferiu conferências em Fortaleza e São Paulo sobre o tema da eficácia dos direitos fundamentais em relação aos particulares.

Leia os principais trechos da entrevista (a versão integral será publicada no volume 8 da Revista de Direito Civil Contemporâneo):

ConJur – A figura dos "catedráticos mandarins" é uma marca da vida política portuguesa. Vários professores universitários, particularmente das faculdades de Direito, também militam em partidos políticos. Sua atuação no Partido Social Democrático é uma parte relevante de sua biografia. O senhor poderia comentar sua experiência na política?
Paulo Mota Pinto – Separo os dois aspectos de minha atividade. Minha atividade jurídica, quer como professor, quer como jurisconsulto, é profissional, enquanto sempre encarei minha passagem pela política como um serviço público e transitório, não como uma carreira. Em certa fase, fui convidado para assumir responsabilidades no partido de que sou militante e para ser parlamentar, e achei que não devia recusar tendo em conta a fase difícil que Portugal ia atravessando.

ConJur – Como sua condição de professor de Direito Civil influenciou sua atividade parlamentar?
Paulo Mota Pinto – Eu fui deputado presidente de duas comissões de 2009 a 2015. Estive dois anos presidindo a Comissão do Orçamento e de Finanças em uma fase em que Portugal estava em dificuldades econômicas e teve de pedir ajuda externa. Minha experiência jurídica, mais do que civilista, foi útil. O conhecimento da forma de funcionamento do Parlamento, do processo legislativo, foi bastante útil, mais do que a experiência como civilista. Na segunda metade de minha experiência na Assembleia da República, de 2011 a 2015, eu presidi uma comissão de assuntos europeus que acompanhava a atividade europeia do Parlamento português. A experiência jurídica foi menos relevante nessa função. Enfim, eu não gostaria de voltar a ser deputado, mas é uma experiência enriquecedora para quem gosta da carreira pública. Quanto ao Direito Civil, de modo específico, eu optei por não ter uma atividade parlamentar vinculada à área de minha atividade profissional, até para evitar conflitos de interesses.

ConJur – O senhor foi o mais jovem juiz do Tribunal Constitucional da República Portuguesa, nomeado aos 32 anos, em 1998. Quais foram os aspectos mais marcantes de seu mandato, que se encerrou em 2007?
Paulo Mota Pinto – Participei de tantos acórdãos (fui relator de mais de 550) que tenho dificuldade em destacar um só aspecto. Certamente, há alguns acórdãos que me deram particular gosto, por achar que dei uma contribuição relevante – é, por exemplo, o caso das decisões de que fui relator e que declararam inconstitucional, por violação do direito à identidade pessoal, o prazo que existia no Direito Português (de apenas dois anos a contar da maioridade) para se mover ação de investigação de paternidade. Hoje este regime mudou, sobretudo por causa dessas decisões.

ConJur – Quais são as diferenças mais marcantes entre o Tribunal Constitucional português e o Supremo Tribunal Federal brasileiro?
Paulo Mota Pinto – O Tribunal Constitucional Português é um órgão com papel importante na realidade jurídica e também política portuguesa, mas tornou-se, talvez no plano político, mais central depois do programa de assistência financeira de 2011. Assim o entendo porque ele declarou inconstitucionais várias medidas contidas no orçamento de Estado, que se colocaram no centro da autoridade política. Há uma diferença importante: o Tribunal Constitucional português apenas controla a construção de normas, não tem recurso de amparo ou ações diretas de inconstitucionalidade, nem possui a figura das “queixas constitucionais”, muito menos decide conflitos de competência. O Tribunal Constitucional apenas julga normas em fiscalização abstrata no caso concreto ou em um recurso que venha do caso concreto. Essa é uma diferença importante.

Em segundo lugar eu diria que o Supremo Tribunal Federal brasileiro é um órgão que está mais no centro da atualidade porque, em comparação com o Tribunal Constitucional português, chegam até ele muito mais casos de grande relevância política, sob a forma de recursos e de ações diretas de inconstitucionalidade. Outra diferença importante está em que as deliberações do Supremo Tribunal Federal são filmadas e transmitidas em sessões públicas. Em Portugal, são públicos apenas o processo e o anúncio da decisão. Mas a deliberação, a discussão entre os juízes não é pública, não tem filmagem por câmera televisiva da sala de sessões. Isso tem vantagens e desvantagens.

ConJur – Em muitos países, de diferentes tradições jurídicas, assiste-se ao crescente protagonismo na vida pública do Poder Judiciário, especialmente das cortes constitucionais. Uma das consequências mais sensíveis desse processo é a chamada judicialização da política. Qual é a sua visão sobre esse processo no cenário europeu?
Paulo Mota Pinto – Dependendo dos países e dos casos, isso tem realmente acontecido. Em Portugal, nós temos inquéritos e precedentes até criminais bastante notórios em relação a personagens políticas. “Judicialização da política” talvez não seja a melhor expressão para tratar do que tem acontecido. Dito de outro modo, os tribunais têm realmente um papel a desempenhar e o têm desempenhado. Eu sou um observador, e o que eu vejo é que os órgãos jurisdicionais estão funcionando e atuam sem pré-juízos políticos. Isso é bastante positivo. É uma grande vantagem para o Brasil mostrar que as instituições estão a funcionar, mesmo com os problemas que nós conhecemos. Na Europa, penso que isso também aconteceu. Um pouco na Itália, um pouco na Espanha. Não é um retrocesso, mas é importante que os tribunais saibam sempre fundamentar juridicamente suas decisões, com a maior transparência.

É necessário que os juízes não resvalem para uma certa discricionariedade ou assumam posições dúbias, muito menos tangenciem para a arena do combate político, o que seria negativo e acarretaria perda de legitimidade. Os magistrados devem ter sempre a consciência do risco de sua deslegitimação. Enquanto se mantiverem na linha atual, que me parece uma linha de estrita fundamentação jurídica e de aplicação da lei igualmente para todos, eu penso que há um desenvolvimento positivo que corresponde a processos semelhantes ou paralelos, parecidos que aconteceram na Europa.

ConJur – Um juiz pode ser ativista?
Paulo Mota Pinto – Um juiz não deve ser ativista. Não deve participar de iniciativas partidárias públicas ou com fins ativistas. Não sei se podem ou se é lícito no Brasil, mas em Portugal os juízes não podem participar de iniciativas partidárias. Saber o que é uma iniciativa política, uma ação ativista, uma manifestação, ou o que é uma iniciativa partidária pode ser difícil. Definitivamente, os juízes não podem ter atuação partidária, a que título for. E mesmo que os juízes pudessem, não deveriam ser ativistas, especialmente quando se tratar de ativismo em áreas nas quais as pessoas podem vir a ser chamadas a julgar.

ConJur – E isso inclui fazer comentários políticos em redes sociais?
Paulo Mota Pinto – Sim. Houve casos desses em Portugal, em redes sociais inclusive fechadas, com centenas de juízes. Por mais fechadas que sejam, essas coisas acabam vazando, e isso não é bom para a Justiça em geral. Portanto, minha tendência é para achar que eles não devem fazer isso. Não quer dizer que eu não posso praticar a minha liberdade de expressão, mas eu penso que, deontologicamente, o juiz não deve fazer isso, sobretudo se forem comentários em áreas nas quais eles podem vir a ser chamados para julgar. Quer dizer, os juízes administrativos, os juízes de família, que não têm nem nunca virão a ter uma intervenção naquela matéria pública, talvez até possam, mas se não for assim, não devem fazer esses comentários.

ConJur – A reforma do Código Civil alemão, nas áreas de Direito das Obrigações e da prescrição, são questões que têm incomodado grande parte dos civilistas da Alemanha. Teme-se que haja uma perda da centralidade do Direito Privado nacional em face de diretivas europeias, muitas delas consideradas mal escritas ou traduzidas de modo polêmico. Qual sua visão desse fenômeno que está a alterar o cenário jurídico europeu? O senhor acredita em um código civil europeu?
Paulo Mota Pinto – Não penso que o Direito Europeu possa provocar a curto ou médio prazo uma perda da centralidade dos direitos privados nacionais dos estados-membros da União Europeia. O Direito é também um produto cultural, e não sou favorável a uma uniformização jurídica na Europa. Nessa medida, os receios a que alude são exagerados. As reações a tentativas de criação de regimes uniformes, ou a propostas da Comissão Europeia como a de um regulamento sobre um direito comum da compra e venda mostram isso mesmo. É claro, porém, que o Direito Europeu obriga a um confronto dos direitos nacionais com as liberdades fundamentais e os princípios da União, que é, e tem de ser, feito a nível europeu - e não só pelos tribunais e juristas de cada estado-membro -, bem como a um confronto com as soluções jurídicas noutros estados-membros. Para culturas jurídicas mais habituadas a uma certa autarquia, que rejeitam influências externas, isso pode ser difícil. Não é, felizmente, o caso português, onde sempre se deu muita relevância à comparação com outras ordens jurídicas.

Quanto a um código civil europeu, há projetos que procuram encontrar um núcleo comum do Direito Privado europeu ou tentam estabelecer um quadro comum de referência com um conjunto de regras, o famoso projeto Draft Common Frame of Reference do Direito Privado europeu. Houve, até recentemente, menos que um código civil, mas um projeto do regulamento europeu da compra e venda. No entanto, mesmo esse projeto não foi aprovado. Há algumas reticências sérias nos estados-membros quanto à hipótese de se substituir, ainda que parcialmente, os códigos civis nacionais. Isso também corresponde um pouco à ideia de que o Direito e o Direito Privado também são um produto cultural e a União Europeia não se deve fazer assimilando ou prejudicando a autonomia cultural, a exemplo das línguas, das tradições e das instituições. Se isso ocorrer, só poderá se dar na medida em que for necessário para a livre circulação, para o mercado único, em nome da harmonização jurídica, mas sem substituição das especificidades nacionais. Respondo, portanto, à última parte da pergunta: penso que não é para hoje nem para amanhã, talvez para depois de amanhã ou um dia futuro, termos um Código Civil europeu. A vocação de nosso tempo não é ainda do Código Civil europeu. Nosso tempo é o da harmonização de regras jurídicas na União Europeia, sobretudo na área econômica e do mercado.

ConJur – Trazendo-se essa questão para a realidade sul-americana, o senhor acredita que é possível ou conveniente avançar em um processo de harmonização ou de unificação normativa no Direito Privado para o Mercosul?
Paulo Mota Pinto – Talvez, para harmonizar regras que têm a ver com a liberdade de circulação de bens e mercadorias, de serviços, de pessoas, através de diretivas ou regulamentos comuns e regras que visam evitar medidas que tenham efeito equivalente às restrições das importações. No domínio econômico, acredito que possam existir regras capazes de dificultar essa livre circulação. Desse modo, é conveniente identificá-las e harmonizá-las. No entanto, desaconselho o caminho em direção a um código comum, cujas dificuldades já mencionei na pergunta anterior. É claro que a União Europeia é constituída por um maior número de países e que estes são menos homogêneos que os integrantes do Mercosul. Há mais diferenças culturais, institucionais ou de tradição entre um país do Sul, como Itália ou Portugal, e um país do Norte, como Suécia ou Holanda, do que entre o Brasil e o Chile ou a Argentina. Apesar disso, apesar de haver maior proximidade cultural na América do Sul, eu penso que não há condição para avançar para um código comum. Eu consideraria ser muito mais interessante seguir rumo a uma harmonização, como a União Europeia tem feito.

ConJur – No Brasil, inicia-se um movimento de crítica aos excessos no recurso aos princípios, às cláusulas gerais e a pautas axiológicas. Conhecendo a realidade brasileira, e inspirado pela experiência portuguesa, como o senhor considera que seria a forma adequada de examinar essa questão no Brasil?
Paulo Mota Pinto – Em um sistema de direito legislado, as cláusulas gerais são indispensáveis. Elas constituem muitas vezes os espaços de flexibilidade e as "válvulas de escape" que permitem ao julgador adequar a solução ao caso concreto e fazer valer por via delas as valorações mais relevantes (incluindo os valores e princípios constitucionais, mas não só). No entanto, é preciso ter sempre presente que uma cláusula geral ("ordem pública", "boa fé", "função social", entre outras) não pode ser entendida como uma autorização para o juízo discricionário ou para o livre-arbítrio do juiz. Pelo contrário: este deve procurar sempre, na sua concretização no caso, pontos de apoio e referências objetivas, tais como casos precedentes, o entendimento do sentido da cláusula pela comunidade jurídica e na doutrina, a situação dos interesses em presença e o seu melhor equilíbrio, as consequências sociais e econômicas gerais daquele tipo de solução. Só assim estará minimamente assegurado o cumprimento do dever do julgador de obediência à lei, que como se sabe, é, num regime democrático, desde logo uma exigência da democracia, e também uma condição de segurança e de certeza jurídicas.

Neste sentido, mais do que o combate às cláusulas gerais ou a sua eliminação, deve defender-se a segurança e objetividade na sua concretização, o que suscita também um problema de metodologia jurídica. Finalmente, há confusão entre a defesa da noção de dignidade da pessoa humana e o uso desta como um cheque em branco para o julgador avançar segundo o que é o seu próprio entendimento subjetivo da dignidade da pessoa humana. Essa confusão é indesejável e não se pode esperar que seja este o papel desse importante valor para a ordem jurídica.

ConJur – O senhor acredita que é útil a separação de matérias de Direito Privado em códigos distintos, como o Código Civil, o Comercial e o de Proteção ao Consumidor? No Brasil, tramita no Congresso Nacional um projeto de novo Código Comercial, o que iria de encontro à opção do codificador civil de 2002.
Paulo Mota Pinto – A minha tendência é para entender que os três ramos de Direito Privado (Direito Civil, Direito Comercial, e Direito do Consumidor) devem ter, cada um deles, a sua lei, o seu código. No Direito brasileiro, no entanto, havendo um Código de Defesa do Consumidor, eu não vejo o porquê de se ter um Código Comercial, depois de se ter integrado este no Código Civil. Como dito na pergunta, fez-se no Brasil um caminho próprio: unificaram-se no Código Civil as matérias civis e comerciais. Talvez não valha a pena fazer outro caminho e elaborar um outro código para cortar uma parte do Código Civil e instituir um Código Comercial autônomo.

ConJur – Discute-se no Brasil a criação de um Estatuto da Família e das Sucessões, retirando essas matérias do Código Civil. Qual sua opinião a respeito?
Paulo Mota Pinto – Sobre a localização formal do regime da família e das sucessões, não tenho uma opinião definitiva. Tendo fortemente, porém, a privilegiar sua localização no Código Civil, que não impede certamente que se consagrem as soluções mais adequadas aos tempos atuais. Julgo até que, ao contrário do que se possa pensar, essa localização confere mais, e não menos, dignidade a essas áreas, centrais para a disciplina da vida do homem comum em sociedade - isto é, para a matéria do Direito Civil.

ConJur – A divisão entre Direito Público e Direito Privado ainda é útil no Direito contemporâneo?
Paulo Mota Pinto – Creio que sim. Discordo das posições que defendem a "diluição" da distinção, e que resultam de uma incompreensão do seu sentido mais profundo. Este corresponde a dois domínios da vida - o do contato com o Poder Público e o exercício deste, por um lado, e o da vida em relação na sociedade civil e na economia privada, por outro - que continuam a existir. E ainda bem! Rejeito tanto a privatização do exercício do ius imperium como a "colonização" das escolhas e dos atos dos privados por uma racionalidade pública imperativa (com eliminação da liberdade emocional, a imposição a todos de padrões de proporcionalidade - isto é, com eliminação da liberdade dos privados).

ConJur – O que o senhor pensa da autonomia epistemológica do Direito Civil e do risco da "colonização" desse ramo jurídico pelo Direito Constitucional?
Paulo Mota Pinto – Não se deve confundir o que resulta das exigências do princípio da constitucionalidade (conformidade de todos os atos do Estado, executivos, legislativos ou judiciais, às regras e princípios constitucionais) com a negação de autonomia ao Direito Civil, e ao Direito Privado em geral. Esta última posição seria profundamente errada e nociva, e, até de inviável concretização. Defendo também que continuam a existir princípios jurídicos fundamentais que são específicos do Direito Privado (por exemplo, a autonomia privada, o reconhecimento e proteção da propriedade privada, entre outros), e que, neste sentido, ele mantém sua autonomia valorativa, desde que não desconforme com os princípios e regras constitucionais. O que muitas vezes alguns jusprivatistas afirmam é que a técnica dos direitos fundamentais não pode ser usada para substituir e ignorar as especificidades do Direito Privado, quer em suas construções, quer em suas soluções, em suas regras e até em seus valores. Nesse sentido, o Direito Privado tem autonomia, possui um espaço próprio de elaboração em relação ao Direito Constitucional, em relação aos direitos fundamentais, sempre com respeito à Constituição.

ConJur – Qual é sua opinião sobre o conceito de Direito Privado Constitucional?
Paulo Mota Pinto – A Constituição não é fonte imediata de Direito Privado, embora este deva sempre respeitar as regras e princípios constitucionais. A principal fonte de Direito Privado é o Código Civil e as leis de Direito Privado. Embora, como disse, essas normas devam obedecer ao disposto na Constituição, é necessário fazer uma distinção essencial. A afirmação de que há um Direito Privado Constitucional significa, das duas uma: que o Direito Civil está vinculado à Constituição e pelos direitos fundamentais, ou que haveria uma substituição do Direito Privado, do Direito Civil, pelo recurso direto aos princípios e às regras constitucionais, aos direitos fundamentais. Eu penso que, no primeiro caso, tem-se uma redundância. E, no segundo caso, isso seria indesejável, um erro, algo até mesmo inviável.

ConJur – Como o Código Civil português de 1966 e o Código Civil brasileiro de 2002 se relacionam na experiência jurídica comparada e na nova ordem constitucional nos dois países?
Paulo Mota Pinto – O Código Civil brasileiro de 2002 é um código jovem, que procurou incorporar alguns dos resultados da evolução da segunda metade do século XX. São exemplos disso uma grande quantidade de cláusulas gerais, isto é de conceitos indeterminados que têm conteúdo valorativo, tais como boa fé, ordem pública, função social. Essa é uma evolução que já se encontrava no Código Civil português de 1966. Isso é um aspecto positivo, que significa confiar ao julgador o papel de concretizar essas válvulas de escape, essas portas de entrada de valorações constitucionais e até de valorações correspondentes aos direitos fundamentais. Nesse sentido, os códigos de 2002 e 1966 têm algo em comum. Além disso, ambos os códigos têm uma sistematização que é bastante parecida, embora o código português não possua o livro de Direito da Empresa, como possui o brasileiro. O código de 1966 não fez incluir, portanto, o Direito Comercial. O código português também influenciou de certa forma alguns aspectos do código brasileiro e de outros códigos, como o italiano. Então, o Código Civil de 2002 é o produto da doutrina brasileira da sua metade do século XX e que, enfim, é comparável com outras experiências jurídico-normativas do período.

Na relação com a nova ordem constitucional está mais um ponto em comum: ambos os códigos são anteriores às constituições democráticas, que surgiram com grandes catálogos de direitos fundamentais, e, por essa razão, tiveram, de sofrer adaptações à nova realidade constitucional do Brasil e de Portugal. Quer dizer, o código de 2002 não é mais o que foi o projeto dos anos 1970. O código português de 1966 teve de sofrer uma grande adaptação para se ajustar à ordem constitucional de 1976. Mas eu penso que a promulgação do novo Código Civil brasileiro e a reforma no Código Civil português, de nenhuma forma diminuíram a autonomia do espaço civilístico, do espaço do Direito Privado em relação à Constituição, em relação aos direitos fundamentais. O Direito Civil deve obedecer aos direitos fundamentais, mas não pode ser substituído por eles.

ConJur – Em sua conferência na Faculdade de Direito da USP, o senhor ofereceu uma série de exemplos sobre questões atuais em torno do exercício ou da restrição a direitos fundamentais na esfera da autonomia privada e da autodeterminação das pessoas. Um deles é bastante relevante: um locador pode se recusar a celebrar um contrato de locação por causa da crença ou da religião praticada pelo locatário? Da mesma forma, poderia um empregador deixar de contratar um empregado por este professar determinada fé?
Paulo Mota Pinto – A regra é que não. Admito, porém, algumas exceções ligadas à esfera privada dos contratantes. Nos exemplos da pergunta: seria admissível a recusa quando o locador quiser alugar um quarto em sua própria casa. Admissível também seria o empregador rejeitar um empregado para uma função específica, como a de baby sitter, na qual a atividade é restrita para se trabalhar aos fins de semana. Nessa hipótese, o empregador poderia rejeitar uma pessoa de religião que a impeça de trabalhar aos sábados ou aos domingos. No segundo exemplo, há uma razão substancial: seria impossível que o candidato à vaga (trabalhador de fim de semana) pudesse executar suas funções. No primeiro exemplo, contudo, tem-se uma limitação ditada pelos limites da esfera privada da pessoa. Mas, salvo nesses casos específicos, não se poderia rejeitar locatários ou empregados. Essa proibição alcançaria incluir tais restrições nos classificados ou anúncios de empregos ou de locação. Muito menos seria lícita a invocação de tais questões para se negar à celebração de contratos de locação ou de trabalho.

ConJur – O senhor utiliza a expressão “elementos suspeitos” para fazer essas distinções. Poderia explicá-la?
Paulo Mota Pinto – Os “elementos suspeitos” são compreensivos de origem étnica, língua, aparência, raça, orientação sexual, religião, independentemente de sua utilização em sua expressão pública ou como fundamento para a recusa em contratar. Os elementos suspeitos, quando tomados de per si, não bastam ao exercício de restrições a contratar com outras pessoas em razão desses elementos. Só são aceitáveis quando houver uma razão substancial. Neste caso, eu já dei por exemplo a contratação de uma pessoa para trabalhar aos fins de semana, quando sua religião o impede de exercer tal ofício no sábado ou no domingo. Ou o exemplo da contratação de um ator para determinado papel que tem de ser desempenhado por uma pessoa com certa aparência étnica. O critério está, portanto, em saber se há ou não um motivo substancial para a recusa e que este seja aplicado proporcionalmente. A proporcionalidade entraria, por exemplo, no mesmo caso da pessoa que não pode trabalhar no sábado ou no domingo: se o emprego é para mais dias na semana, a circunstância de um deles recair no sábado ou no domingo não torna proporcional a recusa à contratação. Poder-se-ia acomodar a religião com o trabalho nos demais dias.

Deve-se ressaltar que essa regra vale tanto para empregadores e locadores quanto para empregados e locatários. Ela protege aqueles tanto quanto estes últimos contra o uso de “elementos suspeitos” para se recusar à contratação. Embora sejam muito mais raros os casos em que locadores e empregadores terminem por ser prejudicados quando a recusa parte de locatários ou empregados. A razão substancial facilita a análise da proporcionalidade. Não há, na maior parte dos casos, a razão substancial quando o problema se resolver apenas na esfera privada. Retomo o exemplo anterior: uma pessoa quer alugar um cômodo de sua própria casa. Se o locador é de determinada religião e isso for relevante para suas convicções, ele tem o direito de não querer permitir em sua própria casa uma pessoa de outra religião, que possa ter outra prática religiosa. Essa é uma questão de esfera privada, que se não confunde com o exemplo do empregado e do empregador.

ConJur – Haveria distinção se a locação ocorresse em uma hospedaria ou em um hotel?
Paulo Mota Pinto – Sim. Há um caso conhecido na Inglaterra. Trata-se da recusa de hospedagem de um casal do mesmo sexo por hoteleiros cristãos, de fortes crenças religiosas. Os donos da hospedaria negavam-se a alugar quartos ou a celebrar contratos de hospedagem com pessoas que não fossem casadas. A questão foi judicializada e entendeu-se que a recusa era ilícita, porque baseada na discriminação em função da orientação sexual. Não havia uma decisão fundada na esfera privada, por que era um estabelecimento aberto ao público. Esfera privada aí deve ser entendida estritamente.

ConJur – A discriminação das contratações pode abranger o gênero dos contratantes? O exemplo clássico é o que atribui valores maiores ou menores aos prêmios nos contratos de seguro de automóveis se o condutor for homem ou mulher.
Paulo Mota Pinto – Há uma diretiva europeia que proíbe a diferenciação de prêmios de seguro em função do gênero. Os estados membros da União Europeia têm de assegurar que os critérios que são aplicados aos contratos de seguro conduzem ao que se costuma designar como prêmios unissex, prêmios uniformes para os dois gêneros. Tal isonomia deve prevalecer mesmo que estatisticamente exista um risco maior em um dos gêneros que no outro.

Entende-se que é preciso fomentar a igualdade de gênero e uma das vias é realmente proibir a diferenciação de prêmios e de prestações de seguro com base no critério de sexo. Note-se que essa regra não vale para idade. Mas há certas propensões a doenças que podem ser utilizadas na celebração do contrato de seguro. Há discussão sobre se é lícita a utilização de tais critérios nos contratos de seguro. Quanto à idade, ela continua a ser admitida como critério de discriminação, porque a idade é um fator importante e o histórico de acidentes, o histórico anterior médico, tudo isso pode ser considerado. Tal se dá porque são fatores diretamente ligados ao perfil de risco da pessoa.

* Texto atualizado às 12h10 do dia 25/9/2016 para acréscimo de informações.



Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 25 de setembro de 2016, 10h52

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

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