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quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Anulada prova obtida por policial que atendeu o telefone de suspeito e se passou por ele para negociar drogas



Em virtude da falta de autorização judicial ou do consentimento do dono da linha telefônica, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou ilícita prova obtida por um policial que atendeu o celular de um investigado e, passando-se por ele, negociou uma venda de drogas com o interlocutor – situação que levou à prisão em flagrante. De forma unânime, o colegiado concedeu habeas corpus ao investigado e anulou toda a ação penal. 


"O vício ocorrido na fase investigativa atinge o desenvolvimento da ação penal, pois não há prova produzida por fonte independente ou cuja descoberta seria inevitável. Até o testemunho dos policiais em juízo está contaminado, não havendo prova autônoma para dar base à condenação", afirmou o relator do habeas corpus, ministro Sebastião Reis Júnior.

De acordo com os autos, policiais militares realizavam patrulhamento em Porto Alegre quando fizeram a abordagem de um veículo e encontraram droga embaixo do banco do motorista. Durante a abordagem, após o telefone de um dos investigados tocar várias vezes, o agente checou algumas mensagens e atendeu a ligação de um suposto consumidor de drogas. Passando-se pelo dono do celular, o policial combinou com o interlocutor as condições da entrega.

Flagrante

Após a negociação, os policiais foram até o local combinado e encontraram o potencial comprador, que confessou estar adquirindo drogas dos investigados. Por isso, os agentes realizaram o flagrante e prenderam os suspeitos.

Encerrada a instrução criminal, o réu foi condenado a cinco anos e oito meses de reclusão em regime inicial fechado, pelo crime de tráfico de drogas.

A condenação foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Em relação às provas produzidas no processo, o tribunal entendeu que o fato de os policiais terem atendido a ligação no telefone celular de um dos investigados não configura obtenção de prova por meio ilícito, pois, quando o telefone tocou, o delito de tráfico de drogas já estava configurado, de forma que os fatos posteriores só ratificaram a existência do crime. Além disso, o TJRS considerou válidos os depoimentos dos policiais na ação penal. 

Conduta ilegítima

Segundo o ministro Sebastião Reis Júnior, até as mensagens aparecerem na tela de um dos suspeitos e o policial atender a primeira ligação, o contexto da abordagem não revelava a traficância, pois a quantidade de drogas encontrada no carro era pequena (2,8g de cocaína e 1,26g de maconha) e não foi localizado mais nada que indicasse o tráfico.

Para o ministro, não é possível considerar legítima a conduta do policial de atender o telefonema sem autorização e se passar pelo réu para fazer a negociação de drogas e provocar o flagrante. De igual forma, ressaltou, não se pode afirmar que o vício ocorrido na fase de investigação não atingiu o desenvolvimento da ação penal.

"Que base teriam a denúncia ou a condenação se não fossem os testemunhos dos policiais contaminados pelas provas que obtiveram ilegalmente? Não se trata de prova produzida por fonte independente ou cuja descoberta seria inevitável", concluiu o ministro ao anular a ação penal.

Fonte: STJ


terça-feira, 1 de outubro de 2019

Benefício da saída temporária é compatível com prisão domiciliar por falta de vagas em semiaberto



O benefício da saída temporária, previsto no artigo 122 da Lei de Execução Penal (LEP), é compatível com o regime de prisão domiciliar determinado nas hipóteses de falta de estabelecimento adequado para o cumprimento de pena no regime semiaberto.

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou o entendimento ao conceder habeas corpus a um homem que cumpre pena em prisão domiciliar em virtude da falta de vagas no semiaberto.

Inicialmente, o pedido de 35 saídas temporárias por ano foi deferido pelo juízo da execução penal, sob o fundamento de que o benefício é compatível com o monitoramento eletrônico determinado para a prisão domiciliar.

Ao analisar o caso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande de Sul (TJRS) concluiu pela incompatibilidade do benefício, uma vez que ele estava em prisão domiciliar, e não no regime semiaberto propriamente dito.

Para o tribunal estadual, não havia nenhum impedimento ao contato do preso com a sua família, e a gravidez de sua companheira – um dos motivos alegados no pedido – não seria justificativa legal para a concessão das saídas temporárias.

A decisão unânime da Sexta Turma restabeleceu a decisão do juiz da execução penal que deferiu o pedido de saídas temporárias.

De acordo com o relator no STJ, o ministro Nefi Cordeiro, foi correta a decisão do juízo da execução, já que o preso preencheu os requisitos objetivos e subjetivos do artigo 122 da LEP.
Ressocial​​ização

A concessão do benefício da saída temporária, segundo o relator, é a medida que se impõe no caso.

"Observado que o benefício da saída temporária tem como objetivo a ressocialização do preso e é concedido ao apenado em regime mais gravoso – semiaberto –, não se justifica negar a benesse ao reeducando que somente se encontra em regime menos gravoso – aberto, na modalidade de prisão domiciliar –, por desídia do próprio Estado, que não dispõe de vagas em estabelecimento prisional compatível com o regime para o qual formalmente progrediu", explicou o ministro.

Nefi Cordeiro destacou que o artigo 122 da LEP é claro ao prever que o preso em regime semiaberto que preencher os requisitos objetivos e subjetivos da lei tem direito ao benefício das saídas temporárias, independentemente de o regime de cumprimento de pena ter sido alterado para um menos gravoso – como ocorreu no caso analisado.

Fonte: STJ

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Suspensos recursos sobre dano moral em casos de violência doméstica contra mulher

Fonte: STJ

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o sobrestamento dos processos pendentes de julgamento em segundo grau, bem como daqueles com recurso especial em fase de admissão, em que seja discutida a indenização de dano moral a ser paga nos casos de sentença condenatória por violência praticada contra a mulher em âmbito doméstico.

A suspensão se limita aos recursos já interpostos contra sentenças condenatórias, desde que tragam entre suas teses a alegação de que o pedido de reparação por dano moral deveria constar da denúncia ou de que tal questão precisaria ter sido debatida durante a instrução criminal.

A decisão da Terceira Seção não impõe a suspensão geral dos feitos em território nacional (prevista no artigo 1.037, II, do Código de Processo Civil), sobretudo dos que tramitam na primeira instância, dada a natureza eminentemente cível do tema em debate.

Os processos ficarão sobrestados até que a Terceira Seção julgue a controvérsia sob o rito dos recursos repetitivos, conforme proposta do ministro Rogerio Schietti Cruz, relator de dois recursos sobre o assunto que correm em segredo de Justiça.

O tema controvertido, cadastrado sob o número 983, está assim resumido: “Reparação de natureza cível por ocasião da prolação da sentença condenatória nos casos de violência cometida contra mulher praticados no âmbito doméstico e familiar (dano moral).” Para acompanhar a tramitação, acesse a página de repetitivos do STJ.

Diferentes pressupostos

“É imperiosa a fixação de tese jurídica representativa da interpretação desta corte superior sobre o tema, inclusive acerca de seus requisitos mínimos, considerado o número de recursos especiais que aportam no STJ diariamente”, argumentou o ministro ao propor a afetação dos recursos ao rito dos repetitivos.

Schietti destacou que a legislação não fixa um procedimento específico quanto à reparação de natureza cível nos casos de sentença condenatória em casos de violência cometida contra mulher no âmbito doméstico e familiar. Tal cenário, na visão do ministro, demanda o estabelecimento de um precedente qualificado, tendo em vista a existência de decisões com pressupostos diferentes para a reparação civil.

Ele citou precedentes da Sexta Turma quanto à desnecessidade de provas para demonstrar o dano moral indenizável, mas também decisões da Quinta Turma que apontam a necessidade de indicar o valor a ser indenizado e prova suficiente a sustentá-lo, que seria indispensável para possibilitar ao réu o direito de defesa.

Recursos repetitivos

A decisão de afetação seguiu as regras previstas no artigo 1.036 do novo Código de Processo Civil (CPC) e do artigo 256-I do Regimento Interno do STJ (RISTJ).

O CPC/2015 regula nos artigos 1.036 a 1.041 o julgamento por amostragem, mediante a seleção de recursos especiais que tenham controvérsias idênticas. Conforme previsto nos artigos 121-A do RISTJ e 927 do CPC, a definição da tese pelo STJ vai servir de orientação às instâncias ordinárias da Justiça, inclusive aos juizados especiais, para a solução de casos fundados na mesma controvérsia.

A tese estabelecida em repetitivo também terá importante reflexo na admissibilidade de recursos para o STJ e em outras situações processuais, como a tutela da evidência (artigo 311, II, do CPC) e a improcedência liminar do pedido (artigo 332 do CPC).

Leia o acórdão de afetação do tema.

Leia a decisão sobre a suspensão dos recursos.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Exploração infantil: submissão de menor à prostituição não exige coação para ser crime


Para que seja considerado crime submeter criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual, não é necessário demonstrar que tenha sido usada a força ou qualquer outra forma de coação. Com esse entendimento, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou a proprietária de um bar em Goiás que oferecia quartos para encontros de clientes e garotas de programa, entre elas uma menor de 14 anos.

De acordo com o ministro Rogerio Schietti Cruz, cujo voto foi seguido pela maioria dos membros da turma, a palavra “submeter” constante no artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não deve ser interpretada apenas como ação coercitiva, seja física ou psicológica.

A controvérsia se deu porque não ficou provado no processo que a menina tivesse sido forçada a se prostituir, o que levou o Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) a absolver a ré da acusação baseada no ECA. Ela também foi acusada de manter casa de prostituição (artigo 229 do Código Penal), mas nesse caso o TJGO considerou que houve prescrição, ou seja, o estado perdeu o direito de acioná-la na Justiça para puni-la.

Ao julgar o recurso do Ministério Público de Goiás, a turma afastou o impedimento decorrente da Súmula 7 do STJ, pois os ministros entenderam que havia necessidade de reexaminar as provas relativas aos fatos que levou o colegiado a tomar a decisão.

Vulnerável

O ministro Schietti, que ficou como relator para o acórdão, votou pela não aplicação da súmula ao caso, já que o TJGO reconheceu que a proprietária lucrava com o aluguel dos quartos e com o consumo dos clientes da prostituição. Segundo ele, o fato de a comerciante propiciar condições para a prostituição de uma pessoa vulnerável, como a adolescente, “configura, sim, a submissão da menor à exploração sexual”.

Ele criticou a ênfase dada ao fato de que a garota teria procurado “espontaneamente” o bar para fazer programas sexuais, pois isso “não pode implicar ausência de responsabilidade penal da proprietária”.

“Não se pode transferir à adolescente, vítima da exploração sexual de seu corpo, a responsabilidade ou a autonomia para decidir sobre tal comportamento, isentando justamente quem, diante de clara situação de comércio sexual por parte de jovem ainda em idade precoce, lucrou com a mercancia libidinosa”, concluiu o ministro.

Com base em vários precedentes do STJ, Schietti afirmou ainda que atos sexuais praticados por menores, mesmo quando aparentemente praticados por vontade própria, não podem receber a mesma valoração que se atribuiria aos de um adulto, mas “devem ser tratados dentro da vulnerabilidade e da imaturidade que são, presumidamente, peculiares a uma fase do desenvolvimento humano ainda incompleta”.

Por três votos a dois, a Sexta Turma restabeleceu a sentença que havia condenado a ré com base no ECA.
Fonte: STJ

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Defeitos do projeto do Código Penal comprometem sua viabilidade







Tramita há dois anos o Projeto de Lei do Senado (PLS) 236/12, de autoria do senador José Sarney, voltado a instituir um novo Código Penal (CP)[1]. A má qualidade da reforma não impede que ela, à sua passada trôpega, prossiga, especialmente ante o espírito reformista que ronda a atual conjuntura — vide a recente reforma do Código de Processo Civil e o discurso de posse da Presidente da República[2]. Em dezembro do ano passado, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado apresentou o seu relatório final. O texto revisado seguiu para votação naquela casa legislativa no dia 17 de dezembro de 2014, tudo ao apagar das luzes da sessão legislativa e sem alarde. Pela colaboração de contingências, ocorreu pedido de vista, o que nos oferece a chance de questionar a viabilidade dessa reforma.

A afirmação de que o projeto não tem salvação e não merece qualquer esforço de aperfeiçoamento não é nova[3]. No entanto, passados dois anos de trabalho, aquela afirmação talvez contrarie o senso comum: simplesmente engavetar o projeto não seria desperdício do tempo e esforço já despendidos? O próprio senso comum, contudo, acomoda a intuição de que, em certas hipóteses, a tentativa de restaurar ou aproveitar algo visceralmente defeituoso é menos proveitosa do que recomeçar do zero — pense-se na perda total de veículos acidentados. Assim, a pergunta a ser respondida é: quais defeitos ostenta o PLS 236/2012 que, de tão graves, comprometem-lhe inteiramente a viabilidade?

I. Os defeitos da última versão do PLS 236/12
É possível discorrer indefinidamente sobre os defeitos desse projeto. O mais visível é o desleixo com que foi elaborado — defeito perceptível em cada linha do PLS 236/12, apesar das duas revisões que sofreu. O produto final que deve seguir para a votação apresenta graves defeitos de revisão técnica (1.); é composto por uma Parte Geral altamente defeituosa (2.); é fruto de uma transposição acrítica das leis extravagantes (3.) e, por fim, não obedece a qualquer técnica legislativa uniforme (4.).

1. Revisão técnica deficitária
O que se vê no texto final são incoerências internas gravíssimas (o crime de incêndio em matas e florestas, por exemplo, é previsto duas vezes, e com penas diferentes: artigos 196, parágrafo 1º, inciso V, e 415), mas sobretudo cominação de penas desproporcionais, tanto para mais como para menos: a peita do artigo 304 é mais severamente punida do que a falsa perícia do artigo 303, embora o perito preste um compromisso pelo qual contrai um dever especial que não onera quem o suborna; a submissão de doente mental à prostituição (artigo 195) sofre apenas metade da pena do próprio abuso sexual desse mesmo doente mental (artigo 192); a esterilização forçada (artigo 128), prevista erradamente como crime contra a vida, sofre pena menor do que as lesões corporais qualificadas pela perda permanente de função orgânica (artigo 129, parágrafo 3º, inciso I), como se a função reprodutiva fosse menos importante que as demais. A previsão do novo crime de transgenerização forçada, que é comum e não hediondo (artigo 41), inclui a punição de toda pessoa que toma conhecimento do fato e não o denuncia (artigo 191, parágrafo 4º) — punição verdadeiramente extraordinária, que a Constituição havia reservado para os crimes hediondos (artigo 5º, inciso XLIII, de interpretação discutível) e que sequer estes próprios, no projeto, recebem. O favorecimento pessoal no terrorismo (artigo 246) sofre uma antecipação de punibilidade (“dar guarida a pessoa […] que esteja por praticar crime de terrorismo”) que não se previu nem para o próprio terrorismo (artigo 245). Ocorreu, ademais, o nivelamento de condutas fundamentalmente diversas: o crime de omissão de socorro (artigo 137), que é passível de cometimento por qualquer pessoa, recebeu a pena de dois a quatro anos — a mesma do abandono de incapaz (artigo 136), que é delito exclusivo de quem possui um dever prévio de cuidado e é obviamente mais grave; a pena mínima da calúnia (artigo 141) e da difamação (artigo 142) é a mesma, embora na primeira o fato imputado, mais do que desonroso, seja criminoso; a pena mínima das lesões corporais seguidas de morte é idêntica à das lesões graves de 3º grau (artigo 129, parágrafos 4º e 3º, respectivamente), conquanto nestas últimas a vítima sobreviva.

Os deslizes técnicos parecem infinitos: afirma-se que a pena de multa será aplicável a todo e qualquer crime (artigo 65), mas vários crimes têm previsão expressa da aplicação cumulativa ou alternativa de multa (por exemplo os artigos 155 e 203, parágrafo 1º; sobre os crimes de tóxicos ver adiante no texto). Ora se diz que as penas alternativas serão aplicadas no número de uma (artigo 51) ou duas (artigo 59, parágrafo 2º), ora que podem ser mais de duas (artigo 58, parágrafo 2º). O projeto admite a retratação da injúria (artigo 147), embora nesta não haja uma afirmação ou imputação de fato determinado, mas o insulto puro e simples, e a ideia de retratação seja impertinente. O texto projetado, não satisfeito em equiparar a energia elétrica a coisa móvel, como faz o CP vigente (o que tem uma explicação histórica[4]), estende a equiparação à água ou gás canalizados, que óbvia e indiscutivelmente são coisas móveis — algo como equiparar-se um bebê ao conceito de pessoa; contém disposições inconciliáveis sobre aborto, que ora parecem incluir em sua definição a morte do feto (artigo 126, parágrafo 1º), ora parecem dispensá-la (artigo 129, parágrafo 2º, inciso VI, e parágrafo 3º, inciso II); chama o “mandato criminal” de “mandado” (artigo 38); prevê norma sobre a fixação de alimentos em favor da vítima (artigo 76) de natureza puramente processual que sequer deveria constar de um projeto de CP, e mesmo nele se encontra fora de lugar (pois concerne aos efeitos da condenação, e não à determinação da pena); o crime de exploração do trabalho infanto-juvenil tem um efeito da condenação oponível ao Poder Público (artigo 494, parágrafo 1º, inciso I: dever do Estado de indenizar a vítima) de impossível efetivação processual — a menos que se introduza no Código de Processo Penal alguma forma de intervenção de terceiros; trata a proibição da revista íntima do visitante como um “direito do preso” (artigo 53, parágrafo 1º). O crime de rixa, rebatizado de confronto generalizado, tem forma qualificada “se o confronto for entre grupos ou facções organizadas” — uma contradição em termos (artigo 135, parágrafo único). Por fim, há passagens simplesmente incompreensíveis, como o crime de “ingressar a entrada indevida (?) de aparelho telefônico em estabelecimento prisional” do artigo 311.

Não são filigranas: cada palavra errada da lei penal pode significar meses ou anos de encarceramento. Tais erros, quando muito, são aceitáveis num primeiro rascunho, mas não após a revisão final. O reformador, contudo, simplesmente ignora a diferença entre projeto, esboço e rascunho.

2. Equívocos graves no coração do Código Penal, a Parte Geral
Na Parte Geral, os defeitos já foram referidos em outros estudos mais detidos, e a versão da CCJ só fez mantê-los.

Assim, se o atual CP contém uma definição inútil de crime consumado (atual artigo 14, inciso I), no projeto ela vem acompanhada de uma definição muito ruim de tentativa (artigo 21). No concurso de pessoas, o projeto, sem abandonar o texto dos dispositivos vigentes (artigo 29 e seguintes), insere uma avalanche de palavras inúteis que atingem exatamente os mesmos resultados práticos da lei atual (artigos 36 e seguintes). O tratamento da responsabilidade penal das pessoas jurídicas no PLS é confuso: no rol de penas para pessoas naturais (artigos 42 e 58), a expressão “pena de restrição de direitos” engloba tudo que não seja prisão ou multa, inclusive prestação de serviços à comunidade; já na relação das penas próprias das pessoas jurídicas, a expressão “pena de restrição de direitos” tem outro significado, pois é posta ao lado da prestação de serviços à comunidade (artigo 71), a qual, por sua vez, inclui para as pessoas jurídicas penas de conteúdo econômico que nada têm de “prestação de serviços”, como “custeio” e “contribuições” (artigo 73, incisos I e IV). Utilizando mal o CP vigente como gabarito, o projeto segue mencionando a ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça (artigo 97, parágrafo 1º), embora a Parte Especial do PLS 236/12 não preveja um só crime cuja persecução esteja sujeita a tal condição. Há ainda erros que, se é verdade que existem no direito vigente, foram mantidos ou radicalizados no PLS 236/12, como a previsão de espécie de “prisão por dívida” (artigo 44, parágrafos 5º e 47, parágrafo único, que universalizam a discutível regra do artigo 33, parágrafo 4º, do CP vigente) que, além de ilegítima, atinge mais o desvalido, menos o opulento, e a pluralidade de penas de conteúdo econômico (multa, prestação pecuniária, perda de bens e valores) criada pelas reformas do CP de 1984 e 1998, sem razão suficiente que a justifique.

Tais defeitos não se situam em áreas marginais, mas no coração do Direito Penal, algo comparável ao engenheiro incapaz de realizar um cálculo integral.

3. Transposição acrítica das leis extravagantes para o interior do Código
Poder-se-ia mencionar a vantagem de que, ao menos, todas as incriminações constam de um só documento. O que houve, contudo, foi uma transposição acrítica daquelas leis extravagantes, que vagavam errantes pelo mundo das leis especiais e que agora são alçadas ao plano nobre do Código.

Os exemplos pululam: tal foi o caso dos crimes relativos a loteamentos (atual Lei 6.766/79) e contra as relações de consumo (artigo 7º e seguintes da Lei 8.137/90) . O fato de que seria preciso revisar tais incriminações para integrá-las, evitando repetições e superposições, não foi sequer cogitado pelo reformista, o qual, no relatório da CCJ, confessou haver promovido poucas alterações nos dois grupos de crimes supracitados justamente porque se tratava de simples “compilação” (p. 86, relatório da CCJ). No caso das leis antitóxicos (11.343/06), de tortura (9.455/97) e de racismo (7.716/89), a incorporação pura e simples de seus textos ao projeto, sem a necessária revisão técnica (item 1 acima) produziu resultados aberrantes. Como se sabe, o CP vigente prevê os limites mínimos e máximos da pena de multa na Parte Geral; já a lei antitóxicos, conjugando o sistema dos dias-multa com o critério original do CP (antes da reforma de 1984) de prever multas diferentes para cada crime, comina uma multa específica a cada infração nela prevista. O projeto, por sua vez, simplesmente imita cada uma das referidas leis, mantendo para a generalidade dos crimes as regras da fixação da multa da Parte Geral, mas adotando para os crimes de tóxicos penas de multa específicas (artigos 220 e 221). Não houve, igualmente, qualquer reflexão acerca do posicionamento das diversas matérias: o delito de guardar lixo hospitalar (artigo 134), por exemplo, figura entre os crimes contra a pessoa, embora seja claramente um crime de perigo comum, pois não atinge uma vítima determinada.

Desprovido da “habilidade de um mosaísta” de Vicente Piragibe[5], o reformador atual produziu um desastroso pasticho.

4. Má técnica legislativa
Outra consequência natural do propósito uniformizador da reforma é a adoção de uma técnica legislativa minimamente uniforme, que faça do Código mais do que um amontoado de dispositivos. As incriminações do CP, como se sabe, principiam com o verbo típico: matar alguém, subtrair coisa alheia móvel. Na legislação extravagante tal critério nem sempre é adotado: as atuais leis de tortura e de racismo, por exemplo, introduzem incriminações com o estribilho “constitui crime”. O projetista não teve o menor pudor em simplesmente reproduzir aquelas vigentes definições, cujo estilo é manifestamente incompatível com o esforço consolidador.

5. O diagnóstico
O relatório da CCJ é diagnóstico definitivo sobre o despreparo geral do reformador, que ostenta o seu desleixo como se portasse medalha. Sequer a pergunta elementar, sobre quais seriam os defeitos técnicos do CP atual, foi formulada, com o que qualquer alteração se transforma em diletante exercício estilístico, capaz de exultar apenas alguns ávidos manualistas, venais mais do que sérios. Do ponto de vista técnico, o CP atual é infinitamente superior ao projeto ora apresentado.

Atestar o desleixo do reformador não significa apenas discordar pontualmente das opções escolhidas, mas diagnosticar a incapacidade para sequer apresentar um documento que mereça o nome de projeto de CP. Poder-se-ia generosamente relembrar nosso escriba soberano: “Quem tem outros merecimentos, pode claudicar uma vez ou duas”[6] — mas simplesmente não há merecimentos dignos de nota. Eventuais e pontuais acertos existentes, como a supressão do autoritário crime de desacato, permanecem infinitesimais diante do mar de equívocos.

II. Há salvação para o PLS 236/2012?
A resposta depende do que se entende por salvação. Se o leitor considera que: a) reunir a legislação que o projeto se propõe a substituir; b) cotejá-la com o texto apresentado; c) identificar inúmeras inconsistências e resolvê-las; d) ordenar as infrações segundo suas penas e ajustar estas últimas de modo a garantir que aos crimes mais graves correspondem punições mais severas; e) localizar na literatura escrita a propósito do Código atual ao longo de setenta anos as principais críticas e verificar se elas foram resolvidas no projeto, dando solução adequada às que foram ignoradas; f) retificar a redação dos incontáveis dispositivos mal enunciados; g) posicionar melhor as matérias —, enfim, se o leitor, já de posse do fôlego, considera que tudo isso é salvar o projeto, então talvez este tenha salvação. De nossa parte, cremos que isso é escrever um novo projeto, e que é mais seguro e produtivo fazê-lo a partir do zero. Basta o dado de que todos os erros técnicos mencionados não foram sequer percebidos em dois anos de trabalhos revisionais. Um projeto de lei obscuro e confuso não se embarga; arquiva-se. Não há salvação para o PLS 236/12.

O pianista Artur Schnabel escreveu que as sonatas de Beethoven são melhores do que é possível executá-las[7]. O PLS 236/12, por sua vez, é pior do que é possível descrevê-lo. Estamos diante do pior projeto de Código Penal de nossa história republicana. A vingar, virá ao mundo clamando por reforma: a marca registrada de um fracasso legislativo. 







[3] Ver o livro publicado pela editora Atlas: Leite (org.), Reforma Penal. A crítica científica à Parte Geral do Projeto de Código Penal (PLS 236/12), 2015, no qual tomam parte Adriano Teixeira, Juarez Cirino dos Santos, Juarez Tavares, Luís Greco, Miguel Reale Jr, Paulo Busato, René Dotti e os dois subscritores deste artigo.


[4] Hungria, Comentários ao Código Penal, v. I, t. I, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 21.


[5] A frase é de Nélson Hungria, op. cit., p. 59, nota 12 (iniciada na p. 39), em referencia à Consolidação das Leis Penais de 1932.


[6] Machado de Assis, Crônicas escolhidas, Organização: John Gledson, Companhia das Letras, São Paulo, 2013, p. 286.


[7] Em verdade, não foi isso que ele escreveu literalmente, mas é possível interpretá-lo dessa forma. Veja-se, p. ex., http://www.wgbh.org/articles/A-Month-of-Beethoven-7469 .

Alaor Leite é mestre e doutorando em Direito pela Universidade Ludwig Maximilian, de Munique.

Gustavo Quandt é defensor público federal e mestrando em Direito na UFPR.



Revista Consultor Jurídico, 28 de janeiro de 2015, 6h37

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

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