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segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Suspensos recursos sobre dano moral em casos de violência doméstica contra mulher

Fonte: STJ

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o sobrestamento dos processos pendentes de julgamento em segundo grau, bem como daqueles com recurso especial em fase de admissão, em que seja discutida a indenização de dano moral a ser paga nos casos de sentença condenatória por violência praticada contra a mulher em âmbito doméstico.

A suspensão se limita aos recursos já interpostos contra sentenças condenatórias, desde que tragam entre suas teses a alegação de que o pedido de reparação por dano moral deveria constar da denúncia ou de que tal questão precisaria ter sido debatida durante a instrução criminal.

A decisão da Terceira Seção não impõe a suspensão geral dos feitos em território nacional (prevista no artigo 1.037, II, do Código de Processo Civil), sobretudo dos que tramitam na primeira instância, dada a natureza eminentemente cível do tema em debate.

Os processos ficarão sobrestados até que a Terceira Seção julgue a controvérsia sob o rito dos recursos repetitivos, conforme proposta do ministro Rogerio Schietti Cruz, relator de dois recursos sobre o assunto que correm em segredo de Justiça.

O tema controvertido, cadastrado sob o número 983, está assim resumido: “Reparação de natureza cível por ocasião da prolação da sentença condenatória nos casos de violência cometida contra mulher praticados no âmbito doméstico e familiar (dano moral).” Para acompanhar a tramitação, acesse a página de repetitivos do STJ.

Diferentes pressupostos

“É imperiosa a fixação de tese jurídica representativa da interpretação desta corte superior sobre o tema, inclusive acerca de seus requisitos mínimos, considerado o número de recursos especiais que aportam no STJ diariamente”, argumentou o ministro ao propor a afetação dos recursos ao rito dos repetitivos.

Schietti destacou que a legislação não fixa um procedimento específico quanto à reparação de natureza cível nos casos de sentença condenatória em casos de violência cometida contra mulher no âmbito doméstico e familiar. Tal cenário, na visão do ministro, demanda o estabelecimento de um precedente qualificado, tendo em vista a existência de decisões com pressupostos diferentes para a reparação civil.

Ele citou precedentes da Sexta Turma quanto à desnecessidade de provas para demonstrar o dano moral indenizável, mas também decisões da Quinta Turma que apontam a necessidade de indicar o valor a ser indenizado e prova suficiente a sustentá-lo, que seria indispensável para possibilitar ao réu o direito de defesa.

Recursos repetitivos

A decisão de afetação seguiu as regras previstas no artigo 1.036 do novo Código de Processo Civil (CPC) e do artigo 256-I do Regimento Interno do STJ (RISTJ).

O CPC/2015 regula nos artigos 1.036 a 1.041 o julgamento por amostragem, mediante a seleção de recursos especiais que tenham controvérsias idênticas. Conforme previsto nos artigos 121-A do RISTJ e 927 do CPC, a definição da tese pelo STJ vai servir de orientação às instâncias ordinárias da Justiça, inclusive aos juizados especiais, para a solução de casos fundados na mesma controvérsia.

A tese estabelecida em repetitivo também terá importante reflexo na admissibilidade de recursos para o STJ e em outras situações processuais, como a tutela da evidência (artigo 311, II, do CPC) e a improcedência liminar do pedido (artigo 332 do CPC).

Leia o acórdão de afetação do tema.

Leia a decisão sobre a suspensão dos recursos.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

TJ-RS autoriza penhora de FGTS de homem que deve pensão alimentícia a filha



Por Jomar Martins


O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço foi criado para assegurar o futuro do trabalhador em caso de dispensa, mas pode sofrer penhora, excepcionalmente, se o seu titular for credor de alimentos e não dispor de outros meios para honrar sua obrigação legal. O entendimento levou a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a deferir o pedido de penhora do FGTS para quitar a dívida de pensão alimentícia de um pai inadimplente com a Justiça desde 2011.

No primeiro grau, o juiz da 1ª Vara Judicial da Comarca de Taquari, Rodrigo de Azevedo Bortoli, indeferiu o pedido de penhora dos valores existentes na conta de FGTS do pai, por se tratar de medida excepcional. Ele disse que a parte autora não demonstrou ter esgotado os meios de localização de bens passíveis de penhora. Nesse sentido, citou precedente no Agravo 70040172314. Segundo o acórdão, "embora possível a penhora sobre saldo de FGTS em se tratando de dívida de natureza alimentar, no caso é descabida penhora, tendo em vista existir outro meio para satisfação do crédito".

A procuradora de Justiça Veleda Maria Dobke opinou pelo provimento do Agravo de Instrumento, por entender que o devedor não dispõe de outros bens passíveis de constrição nem há previsão de quando e como poderá quitar o saldo credor. Logo, justifica, excepcionalmente, a penhora sobre eventual valor existente nas contas do FGTS. Afinal, o crédito alimentar é preferencial, por significar a subsistência da filha, embora tenha completado a maioridade.

O relator do Agravo, desembargador Ivan Leomar Bruxel, seguiu na mesma linha do parecer do Ministério Público. ‘‘Tem razão a agravante, quando alega que deve ser deferida a penhora sobre o FGTS, pois se trata de dívida alimentar, e que não há lógica em resguardar o futuro do devedor enquanto o presente da agravante [filha] está sendo ameaçado’’, escreveu no acórdão, lavrado na sessão de 13 de outubro.

Filho protegido
A Justiça brasileira também já entendeu que, para proteger o direito básico do filho de receber alimentos, é possível incluir o nome do devedor de pensão alimentícia em cadastros de restrição de crédito, como Serasa e SPC. A decisão foi tomada neste ano pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao aceitar um recurso movido pela Defensoria Pública de São Paulo.

O entendimento do colegiado é que a inclusão é uma forma de coerção lícita e eficiente para incentivar a necessária quitação da dívida alimentar. Segundo o relator do recurso especial, ministro Villas Bôas Cueva, há precedentes também no próprio STJ (4ª Turma) e que tal possibilidade de inclusão está expressa no novo Código de Processo Civil (artigos 528 e 782).

Clique aqui para ler o acórdão da 8ª Câmara Cível do TJ-RS.



Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

Revista Consultor Jurídico, 10 de novembro de 2016, 10h10

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Assimetria da sucessão em relação à união estável e casamento (parte 2)




Por Venceslau Tavares Costa Filho


Na primeira parte da coluna, começamos a analisar as premissas sobre as quais se funda a decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (no julgamento do Recurso Extraordinário 876.694-MG, sob o rito da repercussão geral) acerca da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil vigente, que estabelece regime sucessório diverso para a união estável em relação ao casamento.

Nesta segunda parte, analisaremos as diversas situações nas quais se verifica um tratamento diferenciado da união estável em relação ao casamento na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A assimetria de tratamento entre união estável e casamento não se limita ao regime da sucessão a causa de morte, instituído em razão do art. 1.790 do Código Civil brasileiro.

O texto original da Constituição Federal de 1988 reconheceu a união estável como entidade familiar no § 3º do art. 226: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

Note-se que o poder constituinte originário fez uso da expressão “é reconhecida a união estável”, o que parece indicar a pretensão de recepcionar e emprestar efeitos jurídicos a uma situação fática preexistente ao texto constitucional. Até o advento da legislação infraconstitucional que reconheceu efeitos jurídicos específicos a união estável (Leis 8.971/1994 e 9.278/1996), esse instituto permaneceu em verdadeiro limbo jurídico.

O tratamento jurídico dispensado aos bens adquiridos durante a constância da união estável, por exemplo, em período anterior ao da vigência da Lei 9.278/1996, praticamente não discrepava da solução trazida pelo enunciado n. 380 da Súmula de jurisprudência dominante do STF; qual seja o de levar em consideração a proporção das contribuições dos conviventes na constituição do patrimônio.

O STJ, nesta linha, manifestou-se por afastar o direito à meação dos bens durante a vigência da Lei n. 8.971/1994, devendo-se levar em consideração a “participação dos companheiros na formação do patrimônio, devendo a partilha ser estabelecida com observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade” (EDcl no REsp 674.483/MG, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 02/02/2012, DJe 27/02/2012).[1]

O advento da Lei 9.278/1996 introduz sensível modificação neste quadrante, ao presumir o esforço comum na aquisição dos bens durante a vigência da união estável. A Lei 9.278/1996 não suprimiu, portanto, a comprovação do esforço comum como pressuposto para a partilha dos bens adquiridos durante a união estável; apenas introduzindo presunção neste sentido.

Somente com o Código Civil de 2002 é que houve uma parcial e controvertida equiparação entre a união estável e o casamento civil no tocante ao regime de bens, nos termos do art. 1.725: "Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens".

Observe-se, pois, que a aplicação das regras relativas ao regime da comunhão parcial na união estável somente ocorrerá "no que couber", e não em sua integralidade. Na prática, isto gera uma disparidade em relação à proteção jurídica deferida ao patrimônio dos conviventes da união estável em comparação com a tutela jurídica própria do patrimônio no casamento.

Exemplo disSo é o atual entendimento do STJ no sentido de considerar válida a prestação de fiança sem a anuência do companheiro. Nesse sentido, a corte considera inaplicável o enunciado 332 de sua Súmula de Jurisprudência dominante para a fiança prestada pelo convivente em união estável sem a outorga do seu companheiro, de modo que é “possível que os bens indivisíveis sejam levados à hasta pública por inteiro”, reservando-se ao companheiro do executado a metade do preço obtido (AgInt no AREsp 841.104/DF, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 16/06/2016, DJe 27/06/2016).

Aparentemente, a exigência da outorga conjugal teria como pressuposto o “ato jurídico cartorário e solene do casamento que se presume a publicidade do estado civil dos contratantes, de modo que, em sendo eles conviventes em união estável, hão de ser dispensadas as vênias conjugais para a concessão de fiança” (REsp 1299866/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/02/2014, DJe 21/03/2014).

Lógica semelhante também parece justificar a dispensa da outorga conjugal para a alienação de imóveis pertencentes aos conviventes em união estável. A imposição da outorga conjugal para a alienação de imóveis deve levar em consideração a proteção dos interesses de terceiros de boa-fé e a segurança do tráfico jurídico, de modo a exigir a publicidade da relação conjugal:

“No casamento, ante a sua peculiar conformação registral, até mesmo porque dele decorre a automática alteração de estado de pessoa e, assim, dos documentos de identificação dos indivíduos, é ínsita essa ampla e irrestrita publicidade. Projetando-se tal publicidade à união estável, a anulação da alienação do imóvel dependerá da averbação do contrato de convivência ou do ato decisório que declara a união no Registro Imobiliário em que inscritos os imóveis adquiridos na constância da união. (...). Contrariamente, não havendo o referido registro da relação na matrícula dos imóveis comuns, ou não se demonstrando a má-fé do adquirente, deve-se presumir a sua boa-fé, não sendo possível a invalidação do negócio que, à aparência, foi higidamente celebrado” (REsp 1.424.275-MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2014, DJe 16/12/2014).

Além das diferenças no tocante as questões patrimoniais, some-se a isto uma curiosa especificidade quanto ao tratamento jurídico dispensado a união estável na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: a obrigatoriedade de prévia separação de fato por dois anos para a regular constituição de união estável.

A exclusividade quanto às relações afetivas e sexuais demandada para a caracterização da união estável exige que os companheiros não sejam impedidos de casar, ou que não sejam comprometidos com outras pessoas. Nesse sentido, manifestou-se o STJ: “Companheira é a mulher que vive, em união estável, com homem desimpedido para o casamento ou, pelo menos, separado judicialmente, ou de fato, há mais de dois anos, apresentando-se à sociedade como se com ele casada fosse” (REsp 532.549/RS, Rel. Ministro Castro Filho, Terceira Turma, julgado em 02/06/2005, DJ 20/06/2005, p. 269).

Sabe-se que a Emenda Constitucional 66/2010 eliminou a exigência de qualquer tipo de lapso temporal quanto à separação de fato para a concessão do divórcio.

Contudo, verifica-se ainda no âmbito do STJ manifestações pela comprovação de tempo mínimo de separação de fato para a regular constituição de união estável, mesmo após a Emenda Constitucional 66/2010: “A união estável pode ser constituída pelo convívio com pessoa separada de fato há mais de dois anos, porque não existiria impedimento para o casamento” (REsp 973.553/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 18/08/2011, DJe 08/09/2011).

Como se pode verificar, a eventual declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil por si só não proporcionaria a plena equiparação entre o casamento civil e a união estável, porquanto o tratamento diferenciado alcance outros aspectos. Na semana que vem, na terceira e última parte deste trabalho, findaremos a nossa análise sobre as assimetrias entre a união estável e o casamento.



[1] No mesmo sentido, cf: “A presunção legal de esforço comum foi introduzida pela Lei 9.278/1996, de forma que a partilha dos bens adquiridos anteriormente à entrada em vigor do aludido diploma legal somente ocorre se houver esforço comprovado, direto ou indireto, de cada convivente, conforme a legislação vigente à época da aquisição”. (AgInt no AREsp 604.725/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 01/09/2016, DJe 08/09/2016)


Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

Revista Consultor Jurídico, 17 de outubro de 2016, 8h00

Assimetria da sucessão em relação à união estável e casamento (parte 1)



Por Venceslau Tavares Costa Filho


No dia 31 de agosto de 2016, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar o Recurso Extraordinário 876.694-MG, selecionado em virtude do expediente da Repercussão Geral, e que versa sobre a constitucionalidade da diversidade de regimes sucessórios para o casamento e para a união estável. O ministro Dias Toffoli, prudentemente, pediu vistas dos autos para aprofundar a reflexão sobre a relevante temática, após os votos do ministro-relator, Luis Roberto Barroso, e outros seis ministros integrantes daquela Corte Superior.

Aparentemente, já houve uma tomada de posição do Supremo Tribunal Federal, reputando inconstitucional a regra do artigo 1.790 do Código Civil. Apesar da conclusão pela isonomia jurídica entre as famílias formadas pelo casamento civil e a união estável parecer acertada, parece-me que as premissas sobre as quais ela se apoia são equivocadas. Equivoca-se, a meu ver, quando consagra para o casamento e a união estável uma espécie de regime jurídico que chamarei de “separados, mas iguais”. Ou seja, a união estável e o casamento continuarão a ser reputados como institutos jurídicos diversos, apesar de se atribuir idênticos efeitos quanto a sucessão a causa de morte.

Esta diferenciação, contudo, além de destoar da tradição jurídica luso-brasileira em matéria de Direito de Família, termina por estabelecer uma série de distinções potencialmente discriminatórias entre o casamento e a união estável. O Direito Civil brasileiro é legatário do Direito Romano vulgarizado, do Direito Canônico e do Direito Ibérico. Pode-se dizer que, na antiguidade ocidental, a família era geralmente constituída em razão de certos ritos religiosos ou pela simples convivência.

No Direito Romano, por exemplo, a mulher poderia passar a integrar a família do seu marido caso se submetesse a manus (o poder marital) em virtude da conventio in manum, por uma das seguintes modalidades de constituição familiar: “a) pela confarreatio, que consistia em uma cerimônia religiosa, reservada ao patriciado, com excessivas formalidades, com a oferta a Júpiter de um pão de farinha (panis farreum), que os nubentes comiam, juntos, realizada perante dez testemunhas e perante o sacerdote de Júpiter (flamen Dialis); b) pela coemptio, casamento privativo dos plebeus que implicava à venda simbólica da mulher ao marido, assemelhando-se, pela forma, à mancipatio; e c) pelo usus, que era o casamento pela convivência ininterrupta do homem e da mulher, por um ano, em estado possessório, que, automaticamente, fazia nascer o poder marital, a não ser que, em cada período de um ano, a mulher passasse três noites fora do lar conjugal (trinoctii usurpatio)”.[1]

Isto denota que os romanos admitiam a constituição do vínculo do casamento pela convivência; sem a exigência de maiores formalidades. Ademais, consolidou-se certa tendência entre os estudiosos de Direito Romano (a partir das lições de Bonfante), no sentido defender que o casamento no Direito Romano (desde o período primitivo até Justiniano) exigia apenas dois requisitos: quais sejam a convivência e a intenção marital (affectio maritalis), de modo que o casamento romano reduzir-se-ia a uma “simples relação jurídica de mero fato, que perdura enquanto persistem as condições de fato – convivência e affectio maritalis — de sua existência”.[2]

Assim, era suficiente que um homem e uma mulher, por determinado tempo, convivessem como se fossem casados, independentemente de uma cerimônia civil ou religiosa, para se reputassem submetidos ao regime do casamento. As Ordenações Filipinas (Livro IV, Título XLVI), antiga legislação portuguesa que permaneceu vigendo no Brasil mesmo após a ruptura política em relação a antiga Metrópole, também reconheciam o casamento de fato como espécie de matrimônio apto a gerar efeitos jurídicos: “Outrossim serão meeiros, provando que estiveram em casa teúda e manteúda; ou em casa de seu pai, ou em outra, em pública voz e fama de marido e mulher por tanto tempo, que, segundo Direito, baste para presumir Matrimonio entre elles, posto se se não provem as palavras de presente”.[3]

Os estados norte-americanos do Alabama e do Colorado permanecem reconhecendo o casamento de fato entre as espécies de casamento oficialmente reconhecidas: o Common Law Marriage.[4] Entretanto, após a consumação do Golpe Republicano em 1889, verificou-se a secularização do casamento no Brasil com o advento da Lei do Casamento Civil de 1890.[5] De modo que o direito civil brasileiro deixou de reconhecer o casamento pela convivência duradoura dos cônjuges (casamento de fato) e o casamento religioso, “que, hoje, por si só, sem o posterior registro civil, é considerado concubinato”.[6]

A redução das formas de casamento reconhecidas pelo estado no Brasil ao casamento civil parece refletir aquelas reduções próprias do positivismo, tão ao gosto daqueles que usurparam o poder no Brasil em 1889. A Constituição Brasileira de 1891, nesta toada, reconheceu o casamento civil como única forma de casamento válido. Em obediência ao mandamento constitucional, o Código Civil de 1916 reconheceu que a família legítima poderia ser formada apenas pela via do casamento civil. As Constituições Brasileiras de 1934 (artigo 144), de 1937 (artigo 124), de 1946 (artigo 163) e de 1967 (artigo 167, posteriormente renumerado para artigo 175 em virtude da Emenda Constitucional 1/1969) terminaram por cristalizar a regra segundo a qual a família legítima constitui-se apenas pelo casamento civil.

Em detrimento de uma tradição jurídica de quase 400 anos, o legislador republicano modificou arbitrariamente o tratamento dispensado ao casamento; malferindo a chamada noção estática do direito.[7] É interessante notar, por outro lado, o retrato desenhado quanto a união estável em certa parcela da civilística. A crítica feita por certos civilistas costuma ser no sentido de considerar que o Código Civil de 1916 tutelava apenas as famílias formadas a partir do casamento civil, enquanto relegava as famílias constituídas pela união estável à clandestinidade.

Trata-se, geralmente, de um discurso construído a partir do desprestígio do direito legislado nos códigos “em favor de uma retórica da potencialização da eficácia do texto constitucional”.[8] Contudo, a clausura infligida a união estável decorreu de regras contidas em textos constitucionais brasileiros, como já demonstramos acima. Nem sempre a regulação constitucional de certo instituto jurídico representa um avanço civilizatório, portanto. Na próxima coluna, trataremos das assimetrias jurídicas entre o casamento civil e a união estável.

Post scriptum: O mês de outubro marca a passagem do aniversário de 120 anos da Fundação do Colégio Damas da Instrução Cristã em Recife, uma das mais tradicionais casas de educação do Brasil. Educação não é sinônimo de ensino, qual seja a mera transmissão de conhecimento. A educação passa pelo uso de palavras “mágicas” tais como “bom dia”, “desculpe” e “obrigado”; e o compartilhamento de certos valores. Por haver recebido tais ensinamentos, não tive dúvidas quanto a escolha do educandário dos meus filhos.

Há cerca de uma década, a reconhecida excelência acadêmica das Irmãs da Congregação das Damas da Instrução Cristã levou a criação da Faculdade Damas, que conta com um Curso de Direito recomendado pelo Conselho Federal da OAB e um mestrado acadêmico com corpo docente de nível internacional, a exemplo de Cláudio Brandão, João Maurício Adeodato, Margarida Cantarelli, Graziela Bacchi Hora, Kai Ambos, António Pedro Barbas Homem etc. Assim, deixo registrado o meu preito de gratidão por todas as lições que aprendi (e as que ainda hei de aprender) naquela Casa; e parabenizo pela passagem do aniversário de 120 anos de fundação do Colégio Damas da Instrução Cristã e pelos 10 anos de fundação da Faculdade Damas!

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).



[1] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável. Antiga forma de casamento de fato. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 94-95.
[2] ALVES, José Carlos Moreira. A natureza jurídica do casamento romano no direito clássico. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 07.
[3] Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p834.htm Acesso em: 30 de setembro de 2016.
[4] Ao contrário do que imagina o senso comum, o chamado “Common Law Marriage” não é reconhecido na Inglaterra. Cf: http://www.economist.com/news/international/21688381-many-cohabiting-couples-misunderstand-their-legal-status-common-law-marriage-myth Acesso em: 30 de setembro de 2016.
[5] Para os que desejarem obter mais dados sobre o contexto da Lei do Casamento Civil de 1890, pedimos vênia para indicar a leitura de artigo de nossa lavra sobre o projetista da mencionada lei: COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Antônio Coelho Rodrigues: um súdito fiel? Ruptura e continuidade na transição da monarquia para a república no Brasil. Revista de Informação Legislativa, a. 51, n. 203 (jul./set. 2014). Coelho Rodrigues também foi objeto de uma série de colunas nossas: http://www.conjur.com.br/2016-fev-22/direito-civil-atual-critica-coelho-rodrigues-importante-ainda-hoje-dia
[6] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável. Antiga forma de casamento de fato. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 95-96.
[7] RIPERT, Georges. Les forces créatrices du droit. Paris: L.G.D.J., 1955, p. 01.
[8] CASTRO JR, Torquato. Constitucionalização do direito privado e mitologias da legislação: código civil versus constituição? In: SILVA, Artur Stamford da (org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife: EDUFPE, 2011, p. 64-65.

Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2016, 10h39

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Tratamento jurídico e social à pessoa traída no passado e no presente



Por Vladimir Passos de Freitas


A traição no amor sempre fez parte das relações humanas. O nono dos Dez Mandamentos dispõe: não cobiçar a mulher do próximo. Por sua vez, Jesus Cristo (Evangelho de João, 8:1-11) revelou a necessidade de misericórdia com os que erram, dizendo: “Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra”.

Entre 1572 e 1617, o teólogo alemão Georg Braun escreveu em seis tomos a obra Civitates orbis terrarum, onde descreveu os costumes e características das mais importantes cidades de seu tempo. No quinto volume,[1] falando sobre a cidade de Sevilha, inseriu uma pintura (vide abaixo) com um castigo público a uma mulher adúltera e ao seu marido, que nela é chamado de “Cornudo Paciente”, pois, ao que tudo indica, concordava com as aventuras da sua mulher.

O homem trazia na cabeça uns galhos que imitavam chifres e, atrás dele, uma mulher com o rosto escondido e um provável servidor da Justiça que executava a sentença do Tribunal do Santo Ofício. Açoitavam-no com umas varas compridas, sob a supervisão de um homem a cavalo, certamente um alto servidor do Tribunal. Na frente, dois jovens caçoavam com os dedos em V, que tinha naquele tempo o mesmo significado de hoje.A traição conjugal sempre foi repudiada, mas, revelando o machismo milenar da humanidade, nas mais diferentes culturas, a reprovação era apenas contra a conduta da mulher.

Nosso Código Penal, de 1940, trazia no artigo 240 a previsão de adultério, punido com 15 dias a 6 meses de prisão simples. Como promotor de Justiça de 1970 a 1980, nunca vi uma ação penal por tal crime. Este artigo foi revogado em 2005.

Na verdade, quando havia alguma iniciativa policial o objetivo mesmo era o de colher provas para a ação de natureza civil, que no passado se chamava desquite. Com a prova do adultério, o marido traído venceria a ação civil e seriam a seu favor todas as consequências da sentença, por exemplo, não pagar alimentos.

Certa feita, no ano de 1968, como estagiário de delegado de Polícia na cidade de São Vicente, tive ocasião de acompanhar uma diligência policial relacionada com o então crime de adultério. O marido traído compareceu à Delegacia com seu advogado. Era um sábado à tarde, momento propício para o ato furtivo. Acompanhados do delegado e da vítima, fomos em caravana ao apartamento onde estaria se dando a prática sexual proibida. Após a autoridade policial dar três batidas na porta e dizer em voz alta “abra em nome da lei”, depois de uns 15 minutos saiu o conquistador, seguido pela envergonhada esposa, esta com uma toalha na cabeça. Foram autuados em flagrante e depois postos em liberdade.

Havia ainda uma circunstância paralela no pensamento da época. Não raramente maridos assassinavam mulheres adúlteras, às vezes por mera suspeita, e levados a julgamento perante o Tribunal de Júri, onde só havia homens, eram absolvidos por legítima defesa da honra.

No âmbito penal, foi lenta a evolução para firmar-se jurisprudência no sentido de que a honra não se transfere, ou seja, que o marido não podia considerar-se ofendido pela quebra de compromisso de fidelidade da mulher. Esta, sim, é que teria sua honra ferida, que deveria sentir vergonha e não ele. A partir desta mudança de foco surgiram as primeiras condenações em casos de homicídio. Cita-se, a título de exemplo, acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo:

Júri - Decisão contrária à evidência dos autos - Impossibilidade do seu reconhecimento - Decisão dos Jurados fundamentada em prova existente nos autos - Legítima defesa da honra - Marido que mata a mulher - Inexistência da legitima defesa da honra - Asfixia - Reconhecimento de meio cruel - Rejeição de homicídio privilegiado - Pena corretamente dosada, tendo em conta o afirmado pelos Jurados - Regime inicial fechado - Apelo improvido.[2]

O tempo passou e, com ele, a aplicação do Direito. Na sociedade atual, pelo menos no mundo ocidental, a traição passou a ser vista com menos rigor. O tema acabou se desenvolvendo no âmbito civil. Corretamente, pois o Direito Penal não deve ocupar-se de assunto que diz respeito exclusivo dos cônjuges. Vejamos a jurisprudência.

A primeira observação é a de que não é mais necessário, como ao tempo dos romanos, que ocorra o que o advogado Paulo Sérgio Leite Fernandes membra em artigo anterior à descriminalização: “solus cum sola, nudus cum nuda, in eodem lecto” cuja tradução, em interpretação livre é: “Ambos nus, isolados, no mesmo leito”. [3] Não, agora para que haja a traição não precisam estar nus. Ela pode ser reconhecida mesmo que ambos estejam vestidos e à distância.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal julgou procedente ação de indenização de mulher contra o marido, por manter relacionamento com outra mulher via internet, condenando-o a pagar R$ 20 mil de indenização, mesmo não tendo relações carnais.[4] O demandado deixou gravadas no disco rígido de seu computador mensagens eróticas trocadas e a demandante, conhecendo a sua senha, teve acesso à prova material da conduta.

Não há mais distinção de tratamento pelo fato do traidor ser o homem ou a mulher. A jurisprudência vem condenando maridos sem distinção. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em decisão colegiada de 1988, portanto em época em que as mulheres tinham seus direitos menos respeitados, decidiu que

Separação judicial. Adultério do marido evidenciado nos autos. Nenhuma prova demonstrou vida desregrada da mulher: a prova do processo ha de ser analisada e valorada tendo-se em conta a época em que vivemos: critérios, valores, atitudes e comportamentos segundo as pessoas, no caso de classe media, que constituem os personagens vivos, de carne e osso, com que o juiz convive. Improveram a primeira e proveram a segunda apelação. [5]

Contudo, para que haja indenização por danos morais, há julgados que entendem necessária prova objetiva da lesão à honra. Vale dizer, não basta a traição, é preciso que ela tenha exposto a vítima ao ridículo, à humilhação. Veja-se, a título de exemplo, decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - INFIDELIDADE CONJUGAL - AUSÊNCIA DE PROVA DE OFENSA À HONRA SUBJETIVA - RESPONSABILIDADE CIVIL NÃO CONFIGURADA. A alegação de infidelidade conjugal, por si só, sem a prova de ofensa à honra objetiva da vítima, não enseja a condenação em indenização por danos morais, por ausência dos elementos configuradores da responsabilidade civil.[6]

E há, ainda, casos em que o marido participa da traição da mulher, seja porque se excita com o fato, seja porque dele obtém alguma vantagem econômica, social ou profissional. Isto não é algo típico dos tempos atuais, sempre existiu ainda que em menor quantidade. A diferença é que agora tornou-se público, inclusive objeto de sites na internet. Nestes casos, obviamente, não há direito a qualquer tipo de reclamação por infidelidade.

Em suma, a sociedade se transforma e o Direito deve acompanhar as mudanças. A traição não deixa de ser vista com reprovação. Todavia, sem os rigores da Idade Média. Felizmente.



[1] José Júlio García Arranz. El castigo del cornudo paciente: um detalle iconográfico en La Vista de Sevilla de Joris Hoefnagel (1593). Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3755287.pdf. Acesso em 08 out. 2016.
[2] TJ-SP - ACR: 974554370000000 SP, Relator: Almeida Sampaio, Data de Julgamento: 13/10/2008, 2ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 25/11/2008. Acesso 7/9/2016.
[3] FERNANDES, Paulo Sérgio Leite.Revogação da punição de adultério na lei será um avanço. In: revista eletrônica Consultor Jurídico, 21/9/2004.
[4]http://www.jurisway.org.br/v2/noticia.asp?idnoticia=25169, acesso em 6/9/2016.
[5] TJRS, Apelação Cível Nº 587048166, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson Oscar de Souza, Julgado em 30/06/1988.
[6] TJ-MG - AC: 10699060652137001 MG, Relator: Brandão Teixeira, Data de Julgamento: 10/07/2013, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 19/07/2013.



Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

Revista Consultor Jurídico, 9 de outubro de 2016, 8h02

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Terceira Turma autoriza quebra de sigilo bancário em ação de divórcio





A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu pedido feito por uma mulher para que fosse autorizada a quebra do sigilo bancário de pessoa jurídica que tem como um dos sócios o seu ex-marido.

O recurso teve origem em ação de divórcio com pedido de alimentos. Como o casamento foi celebrado sob o regime da comunhão universal de bens, no qual todo o patrimônio é comum ao casal, a ex-esposa alegou que, embora não fosse sócia da empresa, haveria copropriedade das cotas sociais.

O tribunal estadual negou o pedido sob o fundamento de que, como a mulher não ostenta a condição de sócia da empresa, seria “desaconselhável a violação do sigilo bancário de pessoa jurídica”. Além disso, o acórdão destacou que a apuração dos lucros e rendimentos poderia ser obtida por outros meios.

Pedido pertinente

No STJ, a decisão foi reformada. A relatora, ministra Nancy Andrighi, reconheceu a existência de limitações que impedem o ex-cônjuge de exercer o pleno direito de propriedade em relação a patrimônio constituído por cotas de sociedade limitada, mas destacou a pertinência do pedido.

“Não é desarrazoado o pedido de acesso aos extratos das contas correntes da sociedade empresarial, porquanto ele se caracteriza como comedida e limitada salvaguarda da recorrente quanto ao efetivo patrimônio representado pelas cotas sociais do ex-casal”, disse a ministra.

Nancy Andrighi afirmou que o fato de a ex-esposa obter um retrato das transações econômicas da sociedade empresária em nada prejudicaria o patrimônio dos sócios nem os projetos da organização, mas seria medida necessária ao resguardo do patrimônio partilhado.

“É inarredável o fato de que essa circunstância, não raras vezes, também dá azo à manipulação patrimonial por parte do ex-cônjuge, sócio da sociedade empresarial, que, se valendo dessa situação ímpar, pode fazer minguar o patrimônio pessoal – imediatamente partilhável com a ex-cônjuge –, em favor da empresa, onde ele, a priori, fica indisponibilizado para o casal, mas que, sabe-se, pode ser indiretamente usufruído pelo sócio”, explicou a ministra.

Precedente

Nancy Andrighi também destacou o entendimento da turma, firmado em precedente, que entendeu possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica em caso no qual um ex-cônjuge empresário utilizou a pessoa jurídica por ele controlada para subtrair da mulher direitos decorrentes do casamento.

“Se é possível, em determinadas circunstâncias – e esta turma já confirmou essa possibilidade –, a desconsideração invertida da personalidade jurídica e toda a devassa nas contas, livros e contratos da sociedade que dela decorrem, qual a razão para que não se defira o pedido singular de quebra de sigilo bancário da pessoa jurídica, por óbvio, medida muito menos gravosa para a sociedade empresarial? ”, questionou a ministra.

A turma, por unanimidade, acompanhou a relatora e deferiu o pedido de quebra de sigilo bancário. O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

Destaques de hoje
Terceira Turma autoriza quebra de sigilo bancário em ação de divórcio
Divulgação de imagens de estupro coletivo no Rio passa para a Justiça Federal
Ação sobre qualidade de serviço de internet móvel retorna ao TJRJ para complementação de julgamento
Ministros reduzem valor da causa de meio bilhão atribuído a ação coletiva

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico, decide STF






Em sessão nesta quarta-feira (21), o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a existência de paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico. Por maioria de votos, os ministros negaram provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 898060, com repercussão geral reconhecida, em que um pai biológico recorria contra acórdão que estabeleceu sua paternidade, com efeitos patrimoniais, independentemente do vínculo com o pai socioafetivo.

Relator

O relator do RE 898060, ministro Luiz Fux, considerou que o princípio da paternidade responsável impõe que, tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto aqueles originados da ascendência biológica, devem ser acolhidos pela legislação. Segundo ele, não há impedimento do reconhecimento simultâneo de ambas as formas de paternidade – socioafetiva ou biológica –, desde que este seja o interesse do filho. Para o ministro, o reconhecimento pelo ordenamento jurídico de modelos familiares diversos da concepção tradicional, não autoriza decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos.

“Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário”, salientou o ministro em seu voto (leia a íntegra).

O relator destacou que, no Código Civil de 1916, o conceito de família era centrado no instituto do casamento com a "distinção odiosa” entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos, com a filiação sendo baseada na rígida presunção de paternidade do marido. Segundo ele, o paradigma não era o afeto entre familiares ou a origem biológica, mas apenas a centralidade do casamento. Porém, com a evolução no campo das relações de familiares, e a aceitação de novas formas de união, o eixo central da disciplina da filiação se deslocou do Código Civil para a Constituição Federal.

“A partir da Carta de 1988, exige-se uma inversão de finalidades no campo civilístico: o regramento legal passa a ter de se adequar às peculiaridades e demandas dos variados relacionamentos interpessoais, em vez de impor uma moldura estática baseada no casamento entre homem e mulher”, argumenta o relator.

No caso concreto, o relator negou provimento ao recurso e propôs a fixação da seguinte tese de repercussão geral: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, salvo nos casos de aferição judicial do abandono afetivo voluntário e inescusável dos filhos em relação aos pais”.

Partes

Da tribuna, a representante do pai biológico sustentou que a preponderância da paternidade socioafetiva sobre a biológica não representa fuga de responsabilidade, mas sim impede que a conveniência de um indivíduo, seja o filho ou o pai, opte pelo reconhecimento ou não da paternidade apenas em razão de possíveis efeitos materiais que seriam gerados. Defendeu que fosse mantido apenas vínculo biológico sem reconhecimento da paternidade, portanto, sem efeitos patrimoniais, pois a própria filha afirmou que não pretendia desfazer os vínculos com o pai socioafetivo.

Atuando na ação na qualidade de amicus curiae (amigo da corte), o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) sustentou que a igualdade de filiação – a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos – deixou de existir com a Constituição de 1988. O instituto defende que as paternidades, socioafetiva e biológica, sejam reconhecidas como jurídicas em condições de igualdade material, sem hierarquia, em princípio, nos casos em que ambas apresentem vínculos socioafetivos relevantes. Considera, ainda, que o reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva, consolidada na convivência familiar duradoura, não pode ser impugnada com fundamento exclusivo na origem biológica.

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, se manifestou no sentido de que não é possível fixar em abstrato a prevalência entre a paternidade biológica e a socioafetiva, pois os princípios do melhor interesse da criança e da autodeterminação do sujeito reclamam a referência a dados concretos acerca de qual vínculo deve prevalecer. No entendimento do procurador-geral, é possível ao filho obter, a qualquer tempo, o reconhecimento da paternidade biológica, com todos os consectários legais. Considera, ainda, que é possível o reconhecimento jurídico da existência de mais de um vínculo parental em relação a um mesmo sujeito, pois a Constituição não admite restrições injustificadas à proteção dos diversos modelos familiares. Segundo ele, a análise deve ser realizada em cada caso concreto para verificar se estão presentes elementos para a coexistência dos vínculos ou para a prevalência de um deles.

Votos

O ministro Luiz Fux (relator), ao negar provimento ao recurso extraordinário, foi seguido pela maioria dos ministros: Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia. De acordo com a ministra Rosa Weber, há possibilidade de existência de paternidade socioafetiva e paternidade biológica, com a produção de efeitos jurídicos por ambas. Na mesma linha, o ministro Ricardo Lewandowski reconheceu ser possível a dupla paternidade, isto é, paternidade biológica e afetiva concomitantemente, não sendo necessária a exclusividade de uma delas. 

O ministro Dias Toffoli salientou o direito ao amor, o qual está relacionado com as obrigações legais do pai biológico para com o filho, a exemplo da alimentação, educação e moradia. “Se teve o filho, tem obrigação, ainda que filho tenha sido criado por outra pessoa”, observou. Ao acompanhar o relator, o ministro Gilmar Mendes afirmou que a tese sustentada pelo recorrente [pai biológico] apresenta “cinismo manifesto”. “A ideia de paternidade responsável precisa ser levada em conta, sob pena de estarmos estimulando aquilo que é corrente porque estamos a julgar um recurso com repercussão geral reconhecida”, avaliou.

O ministro Marco Aurélio, que também seguiu a maioria dos votos, destacou que o direito de conhecer o pai biológico é um direito natural. Para ele, a filha tem direito à alteração no registro de nascimento, com as consequências necessárias. Entre outros aspectos, o ministro Celso de Mello considerou o direito fundamental da busca da felicidade e a paternidade responsável, a fim de acolher as razões apresentadas no voto do relator. Ele observou que o objetivo da República é o de promover o bem de todos sem qualquer preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia destacou que “amor não se impõe, mas cuidado sim e esse cuidado me parece ser do quadro de direitos que são assegurados, especialmente no caso de paternidade e maternidade responsável”.

Divergências

O ministro Edson Fachin abriu a divergência e votou pelo parcial provimento do recurso, ao entender que o vínculo socioafetivo “é o que se impõe juridicamente” no caso dos autos, tendo em vista que existe vínculo socioafetivo com um pai e vínculo biológico com o genitor. Portanto, para ele, há diferença entre o ascendente genético (genitor) e o pai, ao ressaltar que a realidade do parentesco não se confunde exclusivamente com a questão biológica. “O vínculo biológico, com efeito, pode ser hábil, por si só, a determinar o parentesco jurídico, desde que na falta de uma dimensão relacional que a ele se sobreponha, e é o caso, no meu modo de ver, que estamos a examinar”, disse, ao destacar a inseminação artificial heteróloga [doador é terceiro que não o marido da mãe] e a adoção como exemplos em que o vínculo biológico não prevalece, “não se sobrepondo nem coexistindo com outros critérios”.

Também divergiu do relator o ministro Teori Zavascki. Para ele, a paternidade biológica não gera necessariamente a relação de paternidade do ponto de vista jurídico e com as consequências decorrentes. “No caso há uma paternidade socioafetiva que persistiu, persiste e deve ser preservada”, afirmou. Ele observou ser difícil estabelecer uma regra geral e que deveriam ser consideradas situações concretas.

A tese de repercussão geral, que servirá de parâmetro para casos semelhantes em trâmite na justiça em todo o país, deve ser fixada pela Corte na sessão plenária desta quinta-feira (22).

Fonte: STF

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Confirmada destituição de poder familiar de pais sobre seus cinco filhos




Acompanhando o voto do relator, ministro Raul Araújo, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do SUL (TJMS) que retirou dos pais a guarda dos seus cinco filhos menores em razão da completa desestruturação familiar.

A ação de destituição de poder familiar havia sido ajuizada pelo Ministério Público (MP) estadual por conta do total descaso e desinteresse demonstrados pelos genitores para com os filhos.

Segundo o MP, os filhos estavam em situação de vulnerabilidade pelo fato de seus pais serem usuários de drogas, não terem emprego e residência fixa e viverem em situação de risco. Sustentou, ainda, que os demais familiares das crianças não demonstraram interesse nem condições para assisti-las.

A família chegou a ser acompanhada por medida de proteção judicial, encaminhada para tratamento psicológico, e os pais inseridos no mercado de trabalho, mas a situação não se reverteu. De acordo com relatos, até cestas básicas fornecidas por um projeto social eram utilizadas pelos pais como moeda de troca em “bocas de fumo”.

Com base em relatórios emitidos pela Secretaria Municipal de Políticas e Ações Sociais e Cidadania e prova testemunhal de familiares, a Justiça de Mato Grosso do Sul concluiu que os filhos do casal estavam submetidos às hipóteses de violação de seus direitos, com exposição a substâncias entorpecentes, privação de alimentação e condições insalubres de sobrevivência.

Medida extrema

A mãe das crianças recorreu ao STJ. Alegou que a destituição do poder familiar é medida extrema e que não foi determinada nenhuma providência para que se submetesse a tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico em virtude da sua condição de usuária de drogas, impossibilitando, assim, a manutenção dos filhos no seio familiar.

Em seu voto, o ministro Raul Araújo ressaltou que, ao contrário do alegado pela defesa, as instâncias ordinárias pontuaram que os genitores foram submetidos a medidas de proteção familiar em âmbito judicial, a tratamento psicológico e a tentativa de inserção no mercado de trabalho. O relator sublinhou, também, que eles foram assistidos por seus familiares e por um projeto social que lhes forneciam cestas básicas.

Segundo o ministro, mesmo com todas essas inciativas, os genitores não demonstraram interesse nem condições suficientes para reverter tal quadro, o que resultou na perda do poder familiar.

“Desse modo, infirmar as conclusões do julgado, como ora postulado, para reconhecer que não foram tomadas todas as medidas necessárias e capazes de garantir a permanência dos infantes em sua família biológica e que não estão presentes os requisitos para a destituição do poder familiar, demandaria o revolvimento do suporte fático-probatório dos autos, o que encontra vedação no enunciado da Súmula 7 deste Superior Tribunal de Justiça”.

A decisão foi unânime.

O número desse processo não é divulgado em razão de segredo de justiça.

Fonte: STJ

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Avô não é obrigado sempre a pagar pensão aos netos em caso de morte do pai



Ministros da Quarta Turma decidiram, por maioria, que avô não assume automaticamente a obrigação de pagar pensão alimentar a neto em caso de falecimento do pai. A decisão cassou acórdão de Tribunal de Justiça que determinava a obrigação, em um caso concreto.

O caso analisado envolvia um rapaz que recebia de seu pai pensão alimentícia de dois salários mínimos, além do pagamento da mensalidade de um curso universitário. A pensão foi pactuada após reconhecimento judicial da paternidade.

Com a morte do pai, o alimentante buscou na Justiça que a obrigação fosse cumprida pelo avô. O argumento utilizado é que o falecido possuía como bens apenas cotas em uma empresa do ramo da construção civil, sociedade familiar controlada pelo avô do alimentante.

No pedido inicial, a justificativa é que, como a herança seria advinda de cotas sociais de empresa em que o avô era o controlador majoritário, a obrigação de pagar a pensão seria transferida de forma automática para ele.

Justificativa

O ministro relator do recurso, Antonio Carlos Ferreira, votou por negar o pedido do avô de se eximir de pagar a pensão. Já o ministro Raul Araújo, relator do voto-vista, que abriu divergência na questão, explicou que a conclusão do tribunal é precipitada, pois o alimentante não justificou devidamente por que o avô seria obrigado a arcar com a responsabilidade.

“Essas alegações, porém, não foram levadas em conta, sendo desconsiderado o caráter complementar da obrigação dos avós. Com efeito, sequer foi abordada a capacidade da mãe de prestar alimentos, assim como o fato de que o alimentante teria, possivelmente, direito ao recebimento de pensão pela morte do pai, ou poderia ter os alimentos supridos pelo espólio”, argumentou o ministro.

O ministro Marco Buzzi, que acompanhou a divergência, lembrou que a obrigação tem caráter personalíssimo e mesmo com as exceções que comporta, o caso em questão não se enquadra em nenhuma delas.

Para os magistrados que votaram a favor do recurso, o pedido do alimentante não justificou a insuficiência financeira dele e dos parentes mais próximos, bem como não fez nenhuma menção à herança do pai falecido, em estágio de inventário.

O caminho ideal, segundo os ministros, é que o alimentante buscasse outras formas de receber a pensão, como um pedido de adiantamento do espólio do pai falecido.

Com a decisão, além de o avô não estar mais obrigado a pagar a pensão, os ministros reafirmaram entendimento da corte no sentido de que a obrigação de prestar alimentos por avós somente ocorre de forma complementar e subsidiária, não sendo possível a transferência automática da obrigação.

*O número deste processo não é divulgado por estar em segredo de justiça.

Fonte: STJ

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Direito das Sucessões e tutela de evidência no novo CPC






Por Rodrigo da Cunha Pereira


A sucessão hereditária é um natural complemento do Direito de Propriedade que se projeta post mortem, ou seja, é também uma das formas de transmissão de propriedade, um consectário lógico do conceito de propriedade privada no sistema capitalista. O conjunto de bens e direitos deixados por uma pessoa que morreu denomina-se herança e engloba todo o patrimônio do de cujus, ativos e passivos. A sucessão hereditária pode ser legítima (em virtude da lei) ou testamentária. Seja como for, a maneira de se transmiti-la é sempre pela via de inventário, judicial ou extrajudicial. As regras sobre sucessões encontram-se no Código Civil, mas as regras sobre a forma de sua transmissão, isto é, como se faz inventário e partilha estão no Código de Processo Civil. O processo de inventário é também um importante ritual de passagem, que além de resolver questões práticas ajuda na elaboração do luto (cf. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família e Sucessões – Ilustrado. Ed. Saraiva, p. 415 e 626).

O CPC-2015 tratou de inventário e partilha nos capítulos VI, VII, VIII e IX, que vão dos artigos 610 a 692. Estabeleceu regras para o cumprimento do testamento e codicilos (artigos 735 a 732), dos bens de ausentes e das coisas vagas (artigos 744 a 746). Ou seja, são quase cem artigos, muito semelhantes ao CPC-1973, que foram muito tímidos em relação aos procedimentos da sucessão hereditária, que precisava de regras mais eficazes para ajudar a encurtar o longo prazo dos processos judiciais dessa natureza.

Os inventários e as partilhas, com ou sem testamento, com muitos ou poucos bens, continuam sendo um problema para os herdeiros e também para os advogados, pois sempre somos responsabilizados pela sua morosidade. Mesmo consensual e simples, duram em média um ano. Se litigioso, de dez a 20 anos. Uma eternidade! Certamente o CPC-2015, mesmo que quisesse, não traria uma fórmula mágica para esse inadmissível imbróglio processual. No entanto, perdeu uma boa oportunidade de melhorar em vários aspectos. Por exemplo, ao incorporar em seu texto a Lei 11.441/2007, que já autorizava inventários extrajudiciais, poderia ter ampliado o seu leque para permitir que, mesmo com testamento, o inventário poderia ser feito em cartório, se as partes fossem todas capazes e estiverem de acordo. Teria sido um pequeno avanço, mas ajudaria a desafogar o Judiciário. Há esperança de que isso aconteça se o Conselho Nacional de Justiça tiver a coragem de estabelecer atos normativos que viabilizem tal prática, como já requerido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e entidades representativas de cartórios. Simplificaria bastante se o testamento, uma vez aprovado pelo Judiciário, pudesse ser feito em cartório.

Embora o CPC não seja o instrumento mais adequado para fazer alterações e evoluções das disposições de última vontade, poderia ter simplificado o procedimento de aprovação de testamentos. O CPC-2015 tratou em três artigos de testamentos (735,736 e 737), praticamente repetindo o que dizia o CPC-1973. Aliás, o testamento público não deveria precisar de aprovação do Judiciário, já que é lavrado em Cartório de Notas, que tem fé pública. Deveriam ser levados ao Judiciário apenas os testamentos públicos ou particulares, se fosse levantada alguma dúvida ou questionamento sobre eles. Ou seja, deveriam ser considerados válidos até que se prove o contrário. Porém, em termos de testamento, temos ainda muito a avançar. Tudo seria muito mais simples se a tecnologia fosse mais utilizada. Se as principais dúvidas que surgem sobre o testamento giram em torno de seu conteúdo, e se ele realmente traduz a última vontade do testador, deveriam ser ampliadas suas formas para ser possível o videotestamento. Nada melhor, mais autêntico e verdadeiro para traduzir a vontade de alguém do que expressá-la em áudio e vídeo. Afinal, a tecnologia está aí para isso, e o CPC-2015 poderia tê-la melhor absorvido.

Inventário é o procedimento obrigatório para atribuição legal aos sucessores do falecido, que se conclui com a respectiva partilha dos bens hereditários. O CPC-2015 manteve o prazo de dois meses (artigo 611) para sua instauração e finalização em 12 meses. Na prática, dificilmente isso acontece. Qualquer questionamento em um processo de inventário o faz durar muitos e muitos anos. E o prazo para o seu início não tem uma sanção, a não serem os tributos que aumentam significativamente na medida em que o tempo passa, de acordo com as normas de cada estado da federação. Não há mais menção a abertura do inventário de ofício, ou seja, pelo próprio juiz, como era previsto no CPC-1973 (artigo 989); o leque de inventariantes ampliou e pode ser inclusive o herdeiro menor, por seu representante legal (artigo 617).

E agora, o inventariante pode ser removido de ofício, e não apenas a requerimento da parte interessada como era antes (artigo 622). O rito procedimental continua sendo o comum (artigo 611 e seguintes) e a única novidade está no parágrafo 2° do artigo 620, que facilitou um pouco a forma de prestar as primeiras declarações ao estabelecer que elas “podem ser prestadas mediante petição, firmada por procurador com poderes especiais, à qual o termo se reportará”. Manteve-se também o rito sumário, isto é, o arrolamento sumário (artigo 659 e seguintes) para bens de valor até mil salários mínimos (artigo 664), quando todos os herdeiros são capazes e estão de acordo. Deveria incluir-se nessa regra os incapazes, pois esses, muito mais do que herdeiros capazes, precisam de celeridade, e a jurisprudência já vinha autorizando o rito do arrolamento sumário com a presença de incapazes. A cumulação de inventários teve uma pequena modificação ao estabelecer no parágrafo único do artigo 672 a discricionariedade do juiz para ampliar o leque dos casos de cumulação de inventários, além dos expressamente previstos, ou seja, heranças deixadas pelos dois cônjuges ou companheiros (artigo 672, I e II).

Inventário e partilha é um dos procedimentos mais simples e ao mesmo tempo um dos mais engessados. Avaliações, pagamento de impostos, perícias, divergências entre herdeiros, inclusive sobre qual quinhão ficará para quem, faz levar anos e às vezes décadas de litígio. E o CPC-2015 não trouxe solução para isso, e nem poderia, até porque as questões que envolvem os inventários não são apenas da ordem da objetividade. A maior dificuldade está na subjetividade que permeia aquela relação de amor e ódio. No entanto, trouxe uma inovação importante ao estabelecer em seu artigo 647 a possibilidade de o juiz deferir antecipadamente a qualquer herdeiro o exercício dos direitos de usufruir de determinado bem, com a condição de que, ao término do inventário, tal bem integre a cota desse herdeiro. Trata-se, portanto, de uma tutela de evidência (artigo 294), que é uma novidade em matéria de processo de inventário. É uma tutela antecipada, que não está atrelada ao periculum in mora, mas diante de um direito material que se mostra evidente. Essa é a principal inovação processual para inventários e partilhas. Pode ser uma esperança de desatar alguns nós nesses eternos e inexplicáveis processos litigiosos em que, naturalmente, a parte menos favorecida é sempre a mais prejudicada.

É esperança também para a diminuição do tempo do litígio, se os advogados atentarem para a regra geral do CPC-2015 que criou “os negócios jurídicos processuais” (artigo 190 e 191), possibilitando aos sujeitos processuais flexibilizarem o procedimento, com diminuição de prazos, fazendo modificação na forma e no conteúdo do ato processual anterior, estabelecerem regras particulares para aquele processo. Além disso, se as partes tiverem o bom senso e permitirem que o espírito da mediação e conciliação pairem sobre elas, a esperança da solução do litígio ficará ainda maior.



Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.

Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2016, 8h00

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Pedido de vista suspende julgamento sobre partilha de FGTS por casal separado




A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) encerrou os trabalhos desta quarta-feira (24) com 109 processos julgados. Dentre os destaques está um caso em que é analisado se o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) deve ou não ser partilhado na separação de casal.

O caso envolve casal que utilizou recursos de suas contas no FGTS para compra de um apartamento, mas, com a separação, um deles requer que o valor total utilizado seja divido igualmente, apesar de a participação de cada um na aquisição do imóvel ter sido diferente.

Natureza pessoal

Relatora do recurso especial, a ministra Isabel Gallotti considerou que o saldo da conta vinculada de FGTS, enquanto não sacado, tem “natureza personalíssima”, em nome do trabalhador, não sendo cabível divisão dos valores indisponíveis na conta ativa na hipótese de separação.

A ministra considerou, entretanto, que a parcela sacada por ambos os cônjuges durante o casamento, proporcional aos depósitos realizados no período, investida em aplicação financeira ou na compra de quaisquer bens, integra o patrimônio comum do casal, podendo ser dividida em caso de separação.

O caso gerou grande debate entre os 10 ministros que compõem a Segunda Seção, e o julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do ministro Luis Felipe Salomão. Como o processo tramita em segredo de justiça, seu número não pode ser divulgado.

Proteção ao crédito

Em outro julgamento, os ministros analisaram caso envolvendo o acesso negado a uma consumidora ao seu cadastro em entidade de proteção ao crédito. O recurso especial foi para a Segunda Seção como sendo repetitivo por haver múltiplos casos semelhantes.

O relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, salientou que o direito do consumidor de acessar seus dados em empresas de proteção ao crédito já foi reconhecido pelo STJ. No voto, aprovado por unanimidade, o ministro definiu requisitos para que o consumidor ingresse com ação no Judiciário, a partir do acesso às informações.

Protesto

Os ministros da Segunda Seção analisaram ainda um caso sobre a validade de protesto de título por tabelionato localizado em comarca diversa da do domicílio do devedor, nos contratos garantidos por alienação fiduciária.

O ministro Luis Felipe Salomão apresentou voto divergente do entendimento do relator do caso, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, ao considerar que o protesto pode ser feito por edital, esgotado outro meio de localização do devedor.

Fonte: STJ

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Direito ao conhecimento da origem genética difere do direito à filiação





Em diversos trabalhos, desde 1999, procuramos salientar a distinção necessária que se há de fazer entre o direito ao reconhecimento à parentalidade (paternidade, maternidade, filiação e demais relações de parentesco) e direito ao conhecimento da origem genética ou biológica. O primeiro diz respeito ao direito da personalidade, de caráter absoluto e oponível a todas as demais pessoas. O segundo emerge das relações de família.

Os direitos da personalidade integram o núcleo intangível e indisponível da qualificação jurídica da pessoa, que destaca sua singularidade. Compõem a qualificação jurídica da pessoa em si. Por essa razão, o Código Civil (artigo 11) confere-lhes os requisitos de intransmissibilidade e irrenunciabilidade. Deles podem resultar consequências patrimoniais em virtude de sua lesão por outrem, mas não de relação jurídica originária com este. Entre eles, está o direito à identificação pessoal, que não se resume aos aspectos formais e registrais, tais como a nacionalidade, a data e o local de nascimento, a filiação e outras características exigíveis. Nele se inclui, igualmente, a identificação que brota da natureza humana, com as características irredutíveis do corpo, da mente, dos modos de expressão, natos ou adquiridos, além de, no ponto que agora nos interessa, a origem genética de cada pessoa.

Diferentemente, o direito à parentalidade, inclusive o da filiação, não resulta da natureza humana. Sua natureza é cultural. Seu objeto é certificar a integração de uma pessoa em determinado grupo familiar. Cada povo, cada ordenamento jurídico, refletindo seus graus de cultura, tradição e história, vão definindo e alterando o que consideram parentes (pai, mãe, filho e demais parentes). Não é um dado da natureza, mas uma construção cultural. Em nosso direito atual, a filiação resultante da adoção é plena e imutável, mas nem sempre foi assim, pois admitia certos graus, com limitações de direitos parentais e sucessórios. Em nosso Direito, já houve proibição de reconhecimento de filhos biológicos, quando prevaleceu a filiação dita ilegítima (extraconjugal). A partir do Código Civil de 2002, na sequência da eliminação das desigualdades jurídicas pela Constituição de 1988, há quatro espécies de filiação: a de origem biológica e as que resultam da adoção, da inseminação artificial heteróloga (técnica de reprodução assistida) e da posse de estado de filiação.

Portanto, nem sempre a parentalidade e a filiação têm origem biológica. Porém, qualquer pessoa tem direito a conhecer sua origem biológica, ainda que não implique atribuição de parentalidade. Pouco importa sua motivação, seja para satisfazer o anseio humano de saber de quem veio, seja para assegurar o direito à saúde (e a vida), para prevenção de doenças geneticamente transmissíveis.

No tocante à adoção, a Lei 12.010/2009, ao dar nova redação ao artigo 48 do ECA, introduziu na legislação o “direito [do adotado] de conhecer sua origem biológica”, mediante acesso ao processo de adoção, após completar 18 anos, ou quando menor com assistência jurídica e psicológica. A norma assegura o exercício do direito da personalidade do adotado, mas sem qualquer reflexo na relação de parentesco. O conhecimento da origem biológica não importa desfazimento da adoção, que é irreversível.

Se são distintos os direitos (direito da personalidade e direito de família), então não se pode pretender a obtenção do conhecimento da origem genética mediante ação de investigação de paternidade. O que se busca é esclarecer a origem genética, mas não a atribuição de paternidade ou maternidade, ou a negação da parentalidade já constituída. Quando uma pessoa que foi adotada pugna por conhecer sua origem genética e consegue seu intento, disso não resulta o desfazimento da relação parental/filial. Do mesmo modo, se tiver sido concebido a partir de sêmen de homem que não é seu pai. Pode-se afirmar que as situações de genitor biológico e de pai nem sempre estão reunidas.

As questões que frequentemente demandam decisões judiciais são relativas à posse de estado de filiação, cuja relação de parentalidade, emergente de fatos, não ostentam o mesmo grau de cognoscibilidade da adoção ou da inseminação artificial heteróloga. Quando o Judiciário confirma a existência da posse de estado de filiação e sua consequente imutabilidade, emergem insatisfações acerca das pretensões econômicas que normalmente estavam subjacentes, notadamente alimentos e sucessão hereditária.

Pensamos que, para harmonizar o princípio da imutabilidade do estado de filiação, decorrente da posse de estado, com a possível pretensão patrimonial, pode-se encontrar solução dentro do sistema jurídico existente, máxime com recurso à reparação civil. Com efeito, a Constituição (artigo 229) estabelece que os pais têm o dever de criar, educar e assistir os filhos menores. A não assunção da paternidade (ou maternidade) do descendente biológico (salvo no caso de dação de sêmen), cuja filiação foi assumida apenas pela mãe e, depois, pelo pai socioafetivo, implica inadimplemento de dever jurídico, que se resolve com a reparação civil correspondente. Se o genitor biológico for vivo, deve responder pelo equivalente ao valor que teria de arcar com a criação, educação e assistência do filho não reconhecido, de acordo com suas condições econômicas, até a maioridade deste. Se morto for, o mesmo valor pode consistir em crédito contra a herança, pois significa dívida deixada pelo de cujus.



Paulo Lôbo é advogado, doutor em Direito Civil pela USP, professor emérito da UFAL e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Foi conselheiro do CNJ.



Revista Consultor Jurídico, 14 de fevereiro de 2016, 8h00

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Quarta Turma admite inscrição de devedor de alimentos em cadastro de inadimplentes



A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitiu a possibilidade de inscrição do nome do devedor de alimentos definitivos em cadastro de proteção ao crédito. O caso é inédito na corte superior e teve como relator o ministro Luis Felipe Salomão.

A possibilidade de inscrição do devedor de alimentos em cadastros como SPC e Serasa já está prevista no novo Código de Processo Civil (CPC), que entrará em vigor em março de 2016, como medida automática (artigo 782, parágrafo 3º). Para Salomão, trata-se de um mecanismo ágil, célere e eficaz de cobrança de prestações alimentícias.

O recurso no STJ era do menor. Durante o julgamento, o ministro destacou dados segundo os quais mais de 65% dos créditos inscritos em cadastros de inadimplentes são recuperados em até três dias uteis.

Direitos da criança

Para Salomão, a medida deve focar nos direitos da criança, protegidos pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Ele lembrou que já existem diversos instrumentos ao alcance dos magistrados para que se concretize o cumprimento da obrigação alimentar. São formas de coerção previstas na lei para assegurar ao menor a efetividade do seu direito – como o desconto em folha, a penhora de bens e até a prisão civil.

Assim, o ministro entende ser possível ao magistrado, no âmbito da execução de alimentos, adotar a medida do protesto e do registro nos cadastros de inadimplentes do nome do devedor de alimentos. O caráter da urgência de que se reveste o crédito alimentar e sua relevância social são fundamentais para essa conclusão. “É bem provável que o devedor pense muito antes de deixar pagar a verba”, comentou.

Luis Felipe Salomão lamentou que os credores de pensão alimentícia não têm conseguido pelos meios executórios tradicionais satisfazer o débito. De outro lado, os alimentos constituem expressão concreta da dignidade da pessoa humana, pois tratam da subsistência do menor.

O ministro ainda rebateu que não há justificativa para inviabilizar o registro pois o segredo de justiça das ações de alimentos não se sobrepõe ao direito do menor, de receber os alimentos.

O voto do ministro Salomão foi acompanhado por todos os ministros do colegiado.

Fonte: STJ

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Filhos que renunciaram herança em favor da mãe e depois descobriram outros meios-irmãos não conseguem anular ato




Os filhos de uma viúva não conseguiram anular a renúncia a herança, feita para favorecer a mãe, depois da descoberta de que tinham outros irmãos filhos apenas do pai falecido. A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou entendimento da Justiça estadual de que está prescrita a ação para anulação do termo, ajuizada dez anos após a habilitação dos meios-irmãos no inventário.

Seguindo o voto do relator, ministro Raul Araújo, a turma concluiu que o caso trata de anulação de negócio jurídico viciado por erro. O prazo para ajuizamento da ação é de quatro anos a contar do ato de renúncia, de acordo com o Código Civil de 1916.

A morte do pai ocorreu em 1983, ano em que se deu a renúncia dos filhos para beneficiar a viúva, meeira no espólio. A renúncia é ato jurídico unilateral e espontâneo pelo qual o herdeiro abdica de ser contemplado na herança. No caso, não foi indicada a pessoa que seria favorecida pela renúncia, o que beneficia todos os demais herdeiros (até aquele momento, apenas a mãe).

Tentativa de retratação

Porém, quatro anos depois, em 1987, eles foram surpreendidos com o aparecimento dos outros dois herdeiros, filhos do falecido de um relacionamento extraconjugal, que pediram habilitação nos autos do inventário. A habilitação foi julgada procedente.

Alegando que foram induzidos a erro, os filhos pediram que a renúncia fosse tomada como cessão de direitos em favor da mãe. O juiz concordou, mas os meios-irmãos anularam o termo de cessão, porque a conversão só poderia ocorrer em ação própria. Os filhos da viúva, então, em 1997, ajuizaram a ação, mas o direito foi considerado prescrito. O Tribunal de Justiça do Paraná confirmou a sentença.

No recurso analisado pelo STJ, o ministro Raul Araújo destacou que, como a renúncia é fruto de erro, o Código Civil de 1916, no artigo 1.590, permitia a retratação. No entanto, a redação do código estaria equivocada, pois não se trata de retratação, mas de anulação de ato por vício de consentimento. Tratando-se de anulação de negócio jurídico viciado por erro, incide o prazo decadencial do artigo 178, parágrafo 9º, V, "b", do CC/16, que é de quatro anos.

O atual Código Civil não prevê a possibilidade de retratação da renúncia. O artigo 1.812 diz que os atos de aceitação ou renúncia de herança são irrevogáveis.

Fonte: STJ

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Falsas denúncias de abuso sexual devem ser preocupação do operador de Direito




Por Giselle Câmara Groeninga


O tema toca a mais extrema e sombria realidade da alienação parental — as falsas denúncias de abuso sexual. E, como tenho feito neste espaço da ConJur, o objetivo é o de buscar algum esclarecimento, com os aportes da psicanálise, da (in)compreensão dos processos familiares levados ao Judiciário. São intrincadas, no limiar entre objetividade e subjetividade, as questões que envolvem o Direito de Família e seus operadores, sobretudo nestes casos.

As denúncias de abuso sexual têm um efeito bombástico que precisa ser compreendido por parte daqueles que devem interpretá-las e tomar medidas de proteção e de reequilíbrio do sistema familiar. Sejam aquelas falsas ou verdadeiras, a realidade é uma só: a de violência nas relações familiares. E a esta não se pode fazer eco.

O foco aqui é o das denúncias falsas de abuso sexual mas, por chocante que o seja, elas sempre guardam um tanto de verdade em relação a desejos e fantasias infantis que, de alguma forma, povoam a mente inconsciente de todos nós. E disto decorre, em parte, a grande dificuldade em sua abordagem.

A psicanálise enfrentou em sua origem o tabu da sexualidade com a candente questão em, justamente, diferenciar o que seria o trauma devido à sedução sexual por familiares, uma questão da realidade objetiva, do que seriam fantasias inconscientes. Estas foram descobertas por Freud por meio do método psicanalítico. Verificou ele que, a despeito dos relatos, não necessariamente teria havido um abuso sexual, uma sedução, e sim que tais fantasias emergiriam como sintomas, levando a confundir a realidade subjetiva com a ocorrência de acontecimentos objetivos.

A questão é atual: teria ocorrido um abuso, que fere a lei fundamental de constituição da família — o tabu do incesto — ou a crença em sua ocorrência seria produto de um sintoma de um transtorno mental, de tentativa de alienação e mesmo de um erro de avaliação? O resultado de tais indagações foi, à época, o descortinar da epistemologia psicanalítica sem, obviamente, desconsiderar a realidade objetiva. E é neste terreno pantanoso, da realidade e da fantasia, da objetividade e da subjetividade que caminha a investigação psicanalítica.

Na situação em pauta é de todo evidente a necessidade em compreender as denúncias com o instrumental epistemológico aportado pela psicanálise. Neste sentido é que trago aqui estas breves considerações.

Os impasses levados ao Judiciário são vistos pela psicanálise como sintomas de relações disfuncionais, i.e., os integrantes da família não estão podendo exercer suas funções, ocupar seus lugares — um desequilíbrio quanto ao exercício do Poder Familiar. Os vínculos familiares são formados por afetos que têm qualidades de agregar, no caso dos sentimentos de amor, e qualidades de desagregar, no caso dos sentimentos de agressividade. Os sentimentos de amor promovem o conhecimento de si e do outro, e a empatia. Já os sentimentos de agressividade e ódio desagregam e promovem o desconhecimento do outro e de si próprio.

Certo é que amor e ódio não existem puros, mas sempre em combinação, dosados em diferentes proporções. Mas, quando muito desbalanceados para o lado da agressividade, não só são afetos que desagregam, e que promovem o desconhecimento, como são afetos que pervertem as relações familiares. Relações que devem pautar-se pelo cuidado sobretudo com os mais vulneráveis, inclusive quanto à expressão da sexualidade adulta.

A lei fundamental de constituição da família, o que define o que é proibido e o que é permitido, é o tabu do incesto. Ela marca a diferença entre gerações e as possibilidades e impossibilidades quanto à expressão dos afetos e manifestações da sexualidade. Uma lei que define o estado — de pai, de mãe, de filho — e que delimita as condições para o livre desenvolvimento da personalidade e para o exercício dos direitos da personalidade — as funções materna, paterna, parental, filial, fraterna. Uma diferença objetiva quanto ao exercício das funções e essencial para a constituição da personalidade.

No entanto, antes de se chegar ao estágio adulto de clareza e objetividade quanto à diferença entre gerações, e entre o que é permitido e o que é proibido, há a infância e sua alta dose de subjetividade. A mente infantil é povoada de legítimas fantasias, ternamente românticas em formar um par com a mãe e/ou com o pai, e surpreendentemente agressivas em ao outro excluir. Fantasias que são reprimidas já muito cedo, no processo de formação da mente, mas que habitam de forma latente o inconsciente de todos nós. Fantasias que podem estar em camadas mais ou menos profundas do psiquismo, mas que são susceptíveis de emergir em crises quando, então, pode se perder a diferença entre o que é fantasia e o que é realidade, entre o que é subjetivo e o que é objetivo, entre o adulto e a criança.

E a questão é ainda mais complexa pois as situações de separação e crise familiar podem ser particularmente férteis à confusão entre a realidade e as fantasias mais próprias à infância. Isso porque, neste contexto, em que os lugares e funções dos adultos devem ser redefinidos, é até certo ponto natural que emerjam nestes fragilidades mais próprias à infância, somadas a sentimentos de exclusão e mágoa. Os lugares de adultos e crianças, até então relativamente claros, podem ser confundidos. Não raro os adultos deslocam afetos para os filhos que, transitoriamente, ocupam amorosamente o lugar do par perdido ou o lugar de rival para aquele que se sente excluído.

Neste contexto, podem ter lugar as mais diversas fantasias. Muitas vezes, se aqueles afetos deslocados para a relação com os filhos estiverem acompanhados de fantasias relativas à sexualidade adulta, o que podia ser apenas ciúmes, ressentimento e exclusão, para citar alguns sentimentos, pode ser confundido com manifestações reais, e não em fantasia, da sexualidade adulta.

Assim, por exemplo, meros cuidados com a higiene são transformados em denúncias de aproximação de cunho sexual, verbalizações das crianças, absolutamente naturais, de desejos em formar um par romântico com um dos genitores podem ser tomadas como relatos de fatos acontecidos, ecoando no que seria a porção inconsciente infantil que habita a mente dos adultos.

Lamentavelmente, não raro tais fantasias fazem eco nas fantasias inconscientes dos profissionais. Nessa situação, pode se perder a questão central em diferenciar a realidade objetiva da subjetividade e da fantasia, e a denúncia pode ser tomada de pronto como verdadeira.

As denúncias de abuso sexual causam comoção, fazem eco àquelas fantasias latentes em todos nós causando horror e, muitas vezes, reações descontroladas e violentas. O primeiro impulso deve ser o de proteção, mas que, no mais das vezes, fere a presunção de inocência com as medidas de afastamento daquele que foi identificado como abusador o que, de alguma forma, legitima a denúncia.

A necessária parcimônia demanda que, instalada a questão, cabe apurar se há confusão entre objetividade e subjetividade, entre realidade e fantasia, por difícil que isto possa ser. Como dito, as denúncias de abuso sexual, sejam falsas ou verdadeiras, denotam vínculos pautados pela violência. E a estes os operadores do direito não podem fazer eco, cabendo-lhes, pelo contrário, com a colaboração dos operadores da saúde, resgatar o conhecimento do contexto e das relações para, então, buscar meios de restabelecer o exercício das funções.

Aqueles que, erroneamente, interpretam a situação, colocando-se rapidamente em defesa da criança e da infância, sem questionar e ter consciência das dificuldades e possibilidades de erros de avaliação, e mesmo da violência e da agressividade neles contida, em muito contribuem para a alienação não só do adulto alvo da falsa denúncia.

Nos casos em questão não há atalhos dados pela mera objetividade. A eleição de tais caminhos pode levar à desagregação, ao desconhecimento e a temíveis curto-circuitos, alienando-se a própria subjetividade — justamente o que nos faz humanos.





Giselle Câmara Groeninga é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

Revista Consultor Jurídico, 18 de outubro de 2015, 8h00

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Casal pode mudar regime de bens e fazer partilha na vigência do casamento


DECISÃO


É possível mudar o regime de bens do casamento, de comunhão parcial para separação total, e promover a partilha do patrimônio adquirido no regime antigo mesmo permanecendo casado.

A decisão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reformou entendimento adotado pela Justiça do Rio Grande do Sul. Os magistrados de primeiro e segundo graus haviam decidido que é possível mudar o regime, mas não fazer a partilha de bens sem que haja a dissolução do casamento. Assim, o novo regime só teria efeitos sobre o patrimônio a partir do trânsito em julgado da decisão que homologou a mudança.

O relator do recurso interposto pelo casal contra a decisão da Justiça gaúcha, ministro Marco Aurélio Bellizze, ressaltou que os cônjuges, atualmente, têm ampla liberdade para escolher o regime de bens e alterá-lo depois, desde que isso não gere prejuízo a terceiros ou para eles próprios. É necessário que o pedido seja formulado pelos dois e que haja motivação relevante e autorização judicial.

Riscos

O casal recorrente argumentou que o marido é empresário e está exposto aos riscos do negócio, enquanto a esposa tem estabilidade financeira graças a seus dois empregos, um deles como professora universitária.

O parecer do Ministério Público Federal considerou legítimo o interesse da mulher em resguardar os bens adquiridos com a remuneração de seu trabalho, evitando que seu patrimônio venha a responder por eventuais dívidas decorrentes da atividade do marido – preservada, de todo modo, a garantia dos credores sobre os bens adquiridos até a alteração do regime.

Proteção a terceiros

Bellizze ressaltou que ainda há controvérsia na doutrina e na jurisprudência sobre o momento em que a alteração do regime passa a ter efeito, ou seja, a partir de sua homologação ou desde a data do casamento. No STJ, tem prevalecido a orientação de que os efeitos da decisão que homologa alteração de regime de bens operam-se a partir do seu trânsito em julgado.

O ministro salientou, porém, que há hoje um novo modelo de regras para o casamento, em que é ampla a autonomia da vontade do casal quanto aos seus bens. A única ressalva apontada na legislação diz respeito a terceiros. O parágrafo 2º do artigo 1.639 do Código Civil de 2002 estabelece, de forma categórica, que os direitos destes não serão prejudicados pela alteração do regime.

“Como a própria lei resguarda os direitos de terceiros, não há por que o julgador criar obstáculos à livre decisão do casal sobre o que melhor atende a seus interesses”, disse o relator.

“A separação dos bens, com a consequente individualização do patrimônio do casal, é medida consentânea com o próprio regime da separação total por eles voluntariamente adotado”, concluiu.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.
Fonte: STJ

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...