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segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O livro de Ronald H. Coase, enfim, no vernáculo! Devore-o!





Por Gabriel Nogueira Dias


Se um “clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (Calvino, Ítalo), A Firma, o Mercado e o Direito, de Ronald H. Coase, pertence integralmente a tal seleto grupo de escritos.

Para dizer pouco, não tivesse o próprio autor anglo-saxão sido agraciado com o Nobel Prize em 1991, 9 dentre os 15 últimos economistas laureados em Estocolmo têm suas raízes justamente no campo de pesquisa mais impactado por seus trabalhos — a Microeconomia; no caso de Jean Tirole (2014), Bengt Holmström e Oliver Hart (2016), a coincidência da área científica é ainda mais marcante: a Teoria dos Contratos. Ou seja, Coase disse e ainda resta pronto a dizer e inspirar, muito, academia e sociedade.

A empreita de trazê-lo ao vernáculo merece efusivos aplausos. Contra a corrente da caudalosa e sem precedentes crise que, infelizmente, inunda, rectius: afoga o mercado editorial pátrio, a Coleção Paulo Bonavides — editada pela Forense Universitária (Grupo Editorial Nacional) e dirigida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli e pelo professor Otavio Luiz Rodrigues Junior — caminha fiel e tinhosa no cumprimento de sua missão quase civilizatória, isto é, contribuir ao crescimento cultural da nação.

Com efeito, além do tradicional cuidado editorial e de tradução — a qual, permita-se a menção, contou com a revisão dos professores Alexandre Veronese, Lucia Helena Salgado e Antônio José Maristrello Porto, além de uma revisão total por Francisco Niclós Negrão e uma revisão final do próprio organizador, professor Otavio Luiz Rodrigues Jr. — o compêndio traz belo estudo introdutório do ministro do Superior Tribunal de Justiça Antonio Carlos Ferreira e da mestra em Direito Patrícia Cândido Alves Ferreira. Bem calibrando informações sobre origem, objetivos e contornos da obra de Coase, o essai préliminaire afigura-se como um motivo em si para adquirir e ler o compêndio em sua inteireza.

Nesse contexto, não seria preciso, talvez, mais muito para assanhar os leitores a (re)visitar a A Firma, o Mercado e o Direito de Ronald H. Coase. Aos indecisos e ainda pouco curiosos, três provocações talvez lhes sirvam de incremental estímulo.

É corrente dizer que Ronald H. Coase revolucionou o pensamento econômico do século XX ao introduzir o tema dos “custos de transação” e “direitos da propriedade” como ferramentas fundamentais à análise da estrutura institucional e do funcionamento da economia; que seu trabalho é um divisor de águas no exame de instituições, contratos, distribuição de direitos de propriedade, alocação ótima de recursos, externalidades e a real efetividade da regulação e intervenção do Estado na economia.

Tudo verdade. Porém, pouco, talvez, para espelhar a obra. Valor e virtude dos complete works de Coase parece-nos ligado a algo muito mais profundo e essencial a todo pensamento que se apresenta com status de significância perene ao mundo, qual seja, à ideia de Justiça.

Isto mesmo. Bem apreendido, o Law and Economics de Coase coloca em nossas mãos ferramentas para melhor interrogar e enfrentar o clássico tema da divisão ótima de recursos (escassos) na nossa sociedade. De Adam Smith a — para sacar um nome da moda — Thomas Piketty, passando por Thomas Malthus, David Ricardo e Karl Marx, por exemplo, todos os mais notórios economistas de nossa sociedade trouxeram e trazem consigo, no fundo, uma inquietação com o tema da acumulação de riqueza e as formas ótimas — ou justas, diríamos, filosoficamente — à divisão dos recursos (escassos) em nossa sociedade.

Revisitadas as origens de Ronald H. Coase, um garoto de origem proletária, marcado pela depressão dos anos 30 e com inicial inclinação ao socialismo Fabiano, não nos surpreende que este igualmente seja um fio condutor, se não propriamente oculto, implícito aos seus trabalhos. Ao infirmar exemplos e raciocínios a partir da existência de situações hipotéticas com zero custos de transação, Coase em verdade deseja colocar luzes à sua existência e, sobretudo, ao seu deletério impacto à ótima/justa divisão dos recursos. Estudos e críticas a sistemas regulatórios e contratuais que negligenciam e/ou estimulam a existência de severos custos de transação às partes envolvidas nada mais são do que crítico plaidoyer a uma sociedade mais justa.

Diretamente ligado ao tema, resta a incessante obsessão do autor para calcar a Ciência Econômica com pés e mãos no mundo real, apartando-se das abstrações inúteis. Per analogiam, Coase alinha-se, em comportamento e ideal metodológico, à inquieta personalidade do genial Rudolph von Jhering, que, a partir da segunda metade do século XIX, na esteira de seu irônico Scherz und Ernst in der Jurisprudenz (1884) abandona drasticamente sua marcante Jurisprudência dos Conceitos (Begriffsjurisprudenz) para abraçar, com toda força, a defesa incessante de uma Ciência Jurídica calcada na vida real; um ferrenho defensor das análises empíricas. Assim comporta-se Ronald H. Coase, que em seus pensamentos e exemplos sobre fenômenos e opções econômicas (v. também O farol na Economia, 1974), rechaça abordagens e premissas abstratas, que, em suas palavras, não levam em conta o mundo como ele é.

Em terceiro plano, a leitura de A Firma, o Mercado e o Direito nos coloca diante de uma imperativa reflexão sobre seu lugar e importância para a aplicação do direito pelos Tribunais. Coase, e grande parte dos defensores do Law and Economics, caminham pela picada de que o foco da prestação jurisdicional deveria ser a redução dos custos de transação. Bons juízes deveriam tentar, em suas decisões, distribuir os direitos entre as partes de forma similar ao que ocorreria se estas tivessem chegado a um acordo. Tais decisões, racionais (ou “ótimas” ou, melhor, “justas”), dariam causa a precedentes que orientariam os agentes econômicos em uma direção que os permitiria, no futuro, chegar a um acordo sem qualquer recurso aos tribunais.

Se, à atividade de lege ferenda, o projeto é interessante e próspero, quando da aplicação de lege lata tudo parece se complicar um cadinho a mais. A obsessão para a transformação da norma (dever-ser; Sollen) a partir do inconformismo com o fato (ser; Sein) bem habita o campo da política e sociologia, mas dificilmente parece se coadunar com os objetivos e funções da atividade jurisdicional. Ao juiz singular e/ou aos tribunais, por maior que seja a tentação (por pressão ou ativismo), é defeso abandonar a lei para abraçar, sem mais, o fato. A utilização de ferramentas e perspectivas eminentemente empíricas para melhor calibrar novas normas e estruturas regulatórias parece de virtude inquestionável; o trabalho legislativo deve se aproximar, sim, da Economia, bem como da Sociologia e da Análise Estatística. A “coisificação” ou, pior, a “fulanização” da norma à luz do fato pelos Tribunais, por sua vez, empobrece o Direito e incita a insegurança jurídica, o que por tabela nem de longe fortalece as instituições judicantes. Em síntese: “Coase, sim!; Coisa, não!”

Contudo, se nada disso for motivo suficiente para instigar a leitura do monumental clássico A Firma, o Mercado e o Direito, de Ronald H. Coase, fiemo-nos d’alma aberta na lição de Sócrates, tão citada por muitos como Cioran: “Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’”.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).



Gabriel Nogueira Dias é sócio do Magalhães e Dias Advocacia, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, Alemanha. Membro do Conselho da Fundação Hans Kelsen (República da Áustria).

Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2016, 8h05

domingo, 23 de outubro de 2016

"Com a judicialização da saúde, Estado age como um Robin Hood ao contrário"





Por Claudia Moraes


Ao determinar que o Estado forneça remédios que não são distribuídos pelo SUS, muitas vezes caros ou experimentais, o Judiciário está guiando, indiretamente, a política de saúde pública, fazendo com que a verba destinada para a área privilegie alguns no lugar da coletividade. A opinião é do procurador-geral do estado de São Paulo, Elival da Silva Ramos, que tem enfrentado esse problema diariamente.

O procurador tem o cálculo na ponta da língua: São Paulo gasta, hoje, mais de R$ 1 bilhão com o cumprimento de ordens judiciais na área de saúde. E analisando onde esse dinheiro foi investido, ele afirma que a judicialização é mais comum em regiões mais ricas, enquanto nas mais pobres, faltam hospitais e saneamento básico. Ou seja, o Estado é obrigado a agir como "um Robin Hood exatamente ao contrário".

Ramos lidera a Procuradoria-Geral de São Paulo desde 2011, quando foi nomeado pelo governador Geraldo Alckmin. Ele já havia ocupado o cargo de 2001 a 2006, nomeado pelo mesmo governador. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ele afirmou que os precatórios continuam um problema para o governo, pois com a crise econômica, não poderão ser pagos sequer no longo prazo dado pelo Supremo Tribunal Federal (até 2020).

Atualmente, a PGE-SP atua em mais de 1,6 milhão de casos. A grande maioria das ações trata de execuções fiscais. E a partir do ano que vem, esses processos terão um novo aporte tecnológico para o cruzamento de dados de contribuintes.

Além da modernização e de parcerias com outros órgãos, Elival da Silva Ramos, que atua como procurador do estado desde 1980, acha que está na hora de novas contratações na procuradoria, que, atualmente, tem 130 vagas em aberto.

Leia a entrevista:

ConJur – Em março, foi feito um acordo da PGE-SP com o Ministério Público para a repressão de crimes tributários. Como se deu esse acordo? Qual tem sido o resultado?
Elival da Silva Ramos – Este não é um processo comum. Nós costumamos cobrar os devedores através de execuções fiscais, raramente com processo criminal. Nesses casos, houve indícios de prática de algum crime fiscal, sonegação ou fraude. Claro que são indícios, então nós já enviamos 96 expedientes para o Ministério Público. O MP realizou toda a parte deles de investigação. Eventualmente, em conjunto com a Polícia Civil, e já tem vários que estão em fase de denúncia. Nesta fase, a legislação prevê a possibilidade de o devedor efetuar o pagamento.

O Ministério Público suscitou uma dúvida: se esses casos comportariam um parcelamento. Aparentemente, não comportam, porque são casos todos de substituição tributária. Há, nesse momento, um estudo, para saber se haveria alguma possibilidade de parcelamento ou não. Se não houver, ou o devedor paga ou vai ser denunciado.

ConJur – Então a parceria continua?
Elival da Silva Ramos – Continua. o que foi ótimo, porque aproximou o setor de repressão a crimes tributários do MP da Procuradoria. Institucionalmente, não havia um trabalho em conjunto, agora foi formalizado. A ideia é que isso vá sendo alimentado de tempos em tempos. Nós quisemos esperar esse primeiro lote estar bem consolidado para poder avançar, mas certamente acho que até o final do ano deve vir um outro lote.

ConJur – E também teve uma cooperação técnica com o Tribunal de Contas do Estado?
Elival da Silva Ramos – Nesse caso não são propriamente procedimentos de atuação, mas informações que eles nos passam sobre devedores. O tribunal de contas tem as contas de todos os municípios do estado. Então, às vezes, empresas que trabalham com o estado também têm recolhimento de impostos municipais e, com as informações delas, podemos melhorar nosso trabalho de busca pelos bens e localização de devedores, por exemplo.

ConJur – Conseguem cruzar dados também?
Elival da Silva Ramos – Essa é a grande ferramenta de combate à fraude, de maneira geral. Hoje, há empresas privadas que fazem esse trabalho, com grande eficiência, que costumam ser contratadas por bancos. Entramos em contato com essas empresas, com computadores de grande porte, e colocamos nosso orçamento para contratar esse tipo de serviço a partir do próximo ano. Hoje, a Procuradoria cruza dados sem a mesma eficiência que resultará desse sistema que está sendo contratado. Vamos contratar para o ano que vem o sistema mais moderno que existe no Brasil, talvez um dos mais modernos do mundo.

ConJur – Essa empresa nova, terceirizada, começa em 2017?
Elival da Silva Ramos – Exato. Hoje, com a crise fiscal, o Estado está cortando gastos ao máximo. O governador tem dado reiteradas declarações nesse sentido, mas essa foi uma exceção. Foi autorizado justamente pela importância para a recuperação de ativos.

ConJur– Muitos setores públicos estão reclamando do corte do orçamento. Qual foi o impacto que teve na Procuradoria?
Elival da Silva Ramos – Atrasos acontecem e isso prejudica o serviço. Há servi~ços que deixamos de contratar. Tivemos uma queda de arrecadação considerável. Quando temos um orçamento projetado e há uma queda de 10%, temos de cortar despesa de 10%. Então, existe o chamado contingenciamento. Esse contingenciamento foi de 25% este ano, e foi transformado em eliminação da despesa orçamentária. Às vezes, você contingência e depois libera. A Procuradoria, aliás, foi uma das poucas que teve alguma liberação de contingenciado, justamente para lidar com algumas dificuldades que a gente tinha, coisas importantes. Mas todos sofremos de alguma maneira, com menos carros alugados e contratos de forma geral.

ConJur– Depois das questões fiscais e tributárias, quais os assuntos que mais entram nas ações da PGE-SP?
Elival da Silva Ramos – Até setembro, temos em andamento no estado 1.125.000 execuções fiscais, aproximadamente. É um dado relevante, quer dizer, mostra que o estado de fato é um dos principais litigantes em juízo, mas principalmente pelas execuções. Processos que não sejam execuções fiscais somam mais ou menos 500 mil, que é um volume também considerável. Fora execuções fiscais, os assuntos principais que são políticas públicas e ações envolvendo sistema carcerário. Em relação ao sistema carcerário há inúmeras ações sobre superlotação de presídios. Às vezes, questões envolvendo direito à educação. Hoje, no estado de São Paulo, todas as crianças têm acesso à rede, mas pode haver discussões sobre faixa etária, por exemplo.

Sem dúvida, das políticas públicas, a área com maior volume de ações é a saúde, porque são pedidos de medicamentos e procedimentos que não são autorizados pelo SUS. Em geral, as ações são pedidos de medicamentos ou procedimentos não previstos na lista e nos procedimentos autorizados pelo SUS. Quando surge uma coisa nova, como uma insulina importada, ou um procedimento novo, alguns sem registro na Anvisa, vem a discussão. Alguns são experimentais, outros não são autorizados pelo SUS porque têm um equivalente mais econômico. O Supremo ainda vai definir isso.

Depois das execuções fiscais e das ações área de saúde, vêm os processos sobre responsabilidade do estado pelas terceirizadas, depois, ações de servidores em geral, normalmente envolvendo gratificações de policiais militares ou de professores.

ConJur– O estado tem condições de pagar esses medicamentos que são liberados pela Justiça? Uma hora as contas podem não fechar e o estado quebrar?
Elival da Silva Ramos – O Estado é inquebrável, por uma simples razão: toda a vez que ele paga uma conta, vem cobrar da gente, ou seja, do cidadão comum, aumenta a carga tributária. Por que o Brasil tem uma carga tributária alta? Esse é um dos temas que eu mais gosto de discutir do ponto de vista constitucional. É uma visão também de relação entre Executivo e Judiciário, que envolve separação de Poderes, o papel do Judiciário, a questão de orçamento e vários outros temas, em caráter multidisciplinar do Direito. Toda decisão tem um custo. Inclusive as administrativas. É preciso, primeiro, ter consciência desse custo. Em segundo lugar, envolvem escolhas. Quando o Judiciário manda fornecer insulina importada significa que, do orçamento da saúde, uma parte vai ser destinada para isso. Provavelmente, outras ações que não sejam ações compulsórias deixarão de ser feitas.

No Brasil, não temos a vacina da dengue e temos fornecimento de medicamentos altamente sofisticados em juízo, o que é contraditório. Fornecemos, por esse mecanismo judicial medicamentos que a Suécia, a Dinamarca, não fornecem. Mas não temos prevenção de doenças tropicais, coisas que somente a África subequatoriana tem. O Judiciário brasileiro parece não ter uma clara consciência disso, porque está fazendo uma escolha, pela qual os segmentos mais pobres da população não vão ter vacina. É a doença da miséria, do subdesenvolvimento, que já podia ter sido eliminada. Mas investimos para cumprir decisão judicial. O CNJ tem ajudado bastante, tem feito vários fóruns nacionais sobre o assunto.

ConJur – Mas não vai ter dinheiro para tudo...
Elival da Silva Ramos – No Supremo, os ministros estão demonstrando ter essa consciência que a maior parte dos juízes não tem. A legislação do SUS foi sendo aperfeiçoada e é das mais modernas do mundo. Ela prevê o seguinte: primeiro, toda doença, qualquer uma que você cite, que seja ordinária, seja extraordinária, tem uma resposta do sistema. Essa resposta leva em conta a efetividade do medicamento no procedimento e custo, como qualquer sistema público de saúde do mundo. Não vão fornecer tudo, mas alguma resposta, que seja compatível com nosso padrão de orçamento. Quando falavam da fosfoetanolamina, era pior, porque esse não tem nenhuma comprovação científica. Foram milhares de ações aqui em São Paulo, que atolaram o Judiciário.

ConJur – Como o Judiciário tem influenciado as políticas públicas?
Elival da Silva Ramos – Em política pública, o erro é um desastre, porque aquilo se multiplica. Por isso o controle judicial de políticas públicas é um grande tema. Nós temos nos envolvido, não só por defender o estado nas ações, mas institucionalmente para trabalhar o tema. Evitar que leis mal feitas sejam editadas, e de tentar transmitir ao Judiciário uma visão relevando elementos factuais, como, por exemplo, que aqui em São Paulo se gasta hoje mais de R$ 1 bilhão com o cumprimento de ordens judiciais na área de saúde. Quantos hospitais a mais não poderíamos ter? Quantas vacinas?

Quando pergunto qual é a região mais pobre do estado, todo mundo diz que é o Vale do Ribeira, todos os índices mostram. Esta é uma das regiões com o menor índice de judicialização na saúde. Qual é a região mais rica do interior do estado? É Ribeirão Preto, que é a de maior índice. Então, isso mostra que o Judiciário colabora para uma desigualdade no Brasil, porque ele passa a atender segmentos em melhores condições econômicas da população, que têm acesso à Justiça. E o pobre, que é aquele que também não tem acesso à Justiça em geral, porque ali não tem uma Defensoria Pública funcionando, os advogados não têm o mesmo nível técnico dos que atuam em outros lugares... E esse pobre fica sem aquele tratamento, vai ter menos esgoto tratado, vai ter menos vacina, não vai ter um hospital melhor. O Estado deixando de investir nessas áreas significa não atender o mais pobre. Está cumprindo ordem judicial para atender o mais rico. Então, é um Robin Hood exatamente ao contrário, que é promovido por essa judicialização.

ConJur – Como que a Procuradoria se organiza para aplicar as decisões do Supremo? No caso de repercussão geral, ou mesmo de recursos repetitivos?
Elival da Silva Ramos – Primeiro avaliamos se cada repercussão geral tem impacto no estado. Se tiver, nós entramos como amicus curiae. Hoje, os estados têm um mecanismo de atuação conjunta que é o Colégio Nacional de Procuradores-Gerais. Uma coisa é eu dizer, por exemplo, que eu gasto aqui R$ 1 bilhão para medicamento, mas se eu somar o Brasil inteiro, todas as secretarias de saúde que me derem os dados, eu levo um número muito mais expressivo. Então, há uma atuação conjunta dos estados que é muito eficiente. Eles distribuem memoriais, procuram os ministros, servem de apoio técnico, mas isso não tira a possibilidade de o procurador geral ir lá e fazer o trabalho. Mas é uma forma de coordenar a atuação entre os estados.

ConJur – E como está a questão dos precatórios?
Elival da Silva Ramos – O Supremo julgou pela inconstitucionalidade, por um voto, da emenda 62. Mas percebeu que o resultado do julgamento talvez fosse pior do que o que havia antes. O sinal maior disso é que eles deram um prazo enorme para cumprir, que não é comum. Eles julgaram em 2013, depois foram fazer a modulação em 2015 e deram cinco anos. Mas quando o Supremo dá um prazo desses, não imaginava que a partir de 2014 viesse a crise econômica, de não crescimento. A crise gerou a impossibilidade de cumprir até para 2020 e eles sabem disso. Aproveitaram os embargos que estavam pendentes para reabrir a discussão do prazo. Então, embora esteja, por enquanto, valendo cinco anos, é pouco provável que vá ficar os cinco anos.
Para cumprir como parte do Judiciário vê hoje o problema das políticas públicas, vamos constatar que o Brasil é um país inconstitucional, porque não tem PIB para fazer valer 100% da Constituição. Então, os nossos precatórios são parte desse dilema.

ConJur– Os procuradores que têm hoje são suficientes ou pode ser que abra concurso público?
Elival da Silva Ramos – Tem que abrir concurso, mas é porque nós temos vagas no quadro hoje. Dos 1.030, nós temos mais de 130 vagas. Então nós temos cerca de 900 efetivamente em exercício. Eu tenho um pedido de autorização para concurso pendente que está aguardando melhorar a situação financeira, mas o estado precisa, em curto prazo, de mais procuradores.

Claudia Moraes é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2016, 8h50

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Catedrático de Lisboa, Pedro Romano Martinez discute ativismo judiciário






Por Otavio Luiz Rodrigues Junior


No próximo dia 7 de outubro, sexta-feira, às 10h, no auditório do primeiro andar da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, Pedro Romano Martinez proferirá conferência sobre o ativismo judiciário como limite à autonomia privada. Romano Martinez é catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, tendo sido eleito para o cargo de diretor dessa instituição para o biênio 2015-2017, no final de 2015.

O conferencista possui uma sólida formação em Direito Privado, dividindo suas atenções intelectuais para o Direito Civil, especialmente o Direito dos Contratos e o Direito dos Seguros, além do Direito do Trabalho. Essa formação multifacetada segue uma tradição muito típica na Europa, onde os professores transitam, ao longo de suas carreiras, por diferentes áreas até por características da carreira docente.

Romano Martinez é autor de obras conhecidas no Brasil, como Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, com reimpressão em 2015, pela Editora Almedina, que é muito referida na jurisprudência e na doutrina nacional. É também dele o livro Lei do Contrato de Seguro Anotada, escrito em coautoria com Arnaldo Filipe da Costa Oliveira, Leonor Cunha Torres, Maria Eduarda Ribeiro, José Pereira Morgado e José Vasques. Nessa obra, que está em terceira edição, de 2016, o catedrático de Lisboa apresenta um exame detalhado da Lei 72/2008, de 16 de abril, da qual ele e os coautores são os principais elaboradores, porque integrantes da comissão governamental designada para redação do anteprojeto de lei. Desde então, até por efeito dessa notável experiência, Pedro Romano Martinez tem sido frequentemente convidado a participar de eventos de Direito dos Seguros no Brasil.

O livro Direito do Trabalho, que se encontra em sétima edição, também editado pela Almedina, foi escrito por Pedro Romano Martinez, que se tem ocupado das profundas transformações que essa matéria sofreu em Portugal nos últimos anos, graças às alterações legislativas. O autor, que transita com muita competência sobre os temas laborais, tem sido um forte crítico desses câmbios normativos, que, para ele, se destinam a oferecer respostas às crises econômicas, mas que não têm conseguido dar respostas efetivas aos problemas dessa natureza, muito menos àqueles enfrentados pelas empresas do país. Em síntese, tantas modificações só têm ampliado as dificuldades de compreensão do Direito do Trabalho e levado o Tribunal Constitucional português a declarar inconstitucionalidade de algumas dessas nova regras jurídicas.

Seus vínculos com o Direito do Trabalho, à semelhança do que se dá no âmbito do Direito dos Seguros, fazem com que Pedro Romano Martinez tenha presença marcante em eventos ligados a esse ramo jurídico. No dia 6 de outubro de 2016, véspera de sua conferência na Faculdade de Direito da USP, ele participará do VI Congresso Internacional de Direito do Trabalho, cujo tema geral é “Autonomia da vontade nas relações do trabalho”. Esse congresso tem, dentre seus coordenadores, os professores Nelson Mannrich, professor titular de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e presidente de honra da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (ABDT), e Alexandre de Souza Agra Belmonte, ministro do Tribunal Superior do Trabalho e diretor de eventos da ABDT. Nesse evento, o professor português será painelista sobre o tema “Alterações unilaterais ao contrato de trabalho decorrentes de sua execução: principais aspectos do Código do Trabalho, de Portugal”.

Em dezembro de 2015, Pedro Romano Martinez elegeu-se para o importante cargo de diretor da Faculdade de Direito da centenária Universidade de Lisboa. Em suas novas funções, o catedrático iniciou uma série de ações para aproximar a academia e a sociedade, além de aumentar o nível de internacionalização da graduação e da pós-graduação em Direito de Lisboa.

As ligações do conferencista com o Brasil são antigas e refletem-se na participação em eventos, publicações de artigos e obras coletivas e ministração de cursos no Brasil. Além disso, ele tem acompanhado como orientador diversos alunos brasileiros nos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito na Universidade de Lisboa. O professor e advogado Paulo Roque Khouri, orientando de Pedro Romano Martinez, também participará do evento.

O evento do dia 7 de outubro é uma promoção do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, dirigido pela professora titular Silmara Chinellato, e da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, o consórcio de institutos e grupos de pesquisa que hoje congrega diversas universidades nacionais e estrangeiras. O evento marcará também o anúncio do ingresso da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia na Rede de Pesquisa, sob a liderança da professora adjunta de Direito Civil da UFBA, Roxana Cardoso Brasileiro Borges, ao lado dos professores Joseane Suzart, Maurício Requião, Técio Espíndola, Emanuel Lins Freire Vasconcellos e Antonio Lago Júnior.

A conferência de Pedro Romano Martinez terá por objeto o tema as complexas relações entre o ativismo judicial e a liberdade contratual. Romano Martinez, em escritos e conferências, tem manifestado imensa preocupação com o respeito aos contornos jurídicos da liberdade contratual e quais os efeitos de sua ruptura em relação a todos os agentes do processo econômico. O interesse sobre o tema, portanto, é transversal e compreende tanto estudantes de graduação e pós-graduação quanto profissionais do Direito, em suas diversas vertentes.

Este evento, que se insere nas Conferências de Direito Civil Contemporâneo, tendo sido a primeira realizada com o professor de Cambridge, Matt Dyson, é coordenado pelos professores Ignacio Poveda e Eduardo Tomasevicius Filho, além deste colunista.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).



Otavio Luiz Rodrigues Junior é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 3 de outubro de 2016, 18h26

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Ativismo prejudicial "Magistrado que adentra arena do combate político perde legitimidade"




Por Sérgio Rodas e Otavio Luiz Rodrigues Junior


A crescente “judicialização da política”, no Brasil e na Europa, tem mostrado que as instituições estão funcionando bem e de forma imparcial. Mas, para continuar nesse rumo, os magistrados não podem virar ativistas e invadir a arena do debate político, o que tiraria a legitimidade de suas decisões. Essa é a opinião do civilista português Paulo Mota Pinto, que foi por nove anos juiz conselheiro do Tribunal Constitucional, corte equivalente ao Supremo Tribunal Federal brasileiro.

“É necessário que os juízes não resvalem para uma certa discricionariedade ou assumam posições dúbias, muito menos tangenciem para a arena do combate político, o que seria negativo e acarretaria perda de legitimidade. Os magistrados devem ter sempre a consciência do risco de sua deslegitimação”, afirma.

Dessa forma, juízes não podem participar de atividades partidárias nem fazer comentários políticos à imprensa ou em redes sociais, avalia Mota Pinto, que é professor da Universidade de Coimbra. Afinal, eles podem ter que vir julgar casos relacionados aos assuntos que comentaram.

Tal declaração vem de um integrante do Partido Social Democrático, que foi deputado de 2009 a 2015, e filho do ex-primeiro-ministro de Portugal Carlos Alberto da Mota Pinto. Mesmo com essas “tentações”, o civilista ressalta que sempre separou a atividade jurídica da política. Esta ele encara como uma missão transitória, ao passo que aquela seria sua verdadeira profissão.

No entanto, seu profundo conhecimento de Direito Privado pouco o ajudou no exercício da atividade parlamentar. Por outro lado, o conhecimento de como as leis são feitas foi muito útil nesse período, conta Mota Pinto.

Um dos pontos controversos abordados pelo jurista é a diferenciação do preço de seguros em razão das características dos contratantes. De acordo com Mota Pinto, o sexo do segurado não pode influenciar esse valor, mas a idade, sim.

Com relação ao ensino jurídico, o ex-integrante do Tribunal Constitucional defende a manutenção das aulas expositivas, porém, com a complementação de disciplinas práticas. Ele ainda é favorável à manutenção do Direito Romano nas grades universitárias, desde que a matéria seja “estudada e ensinada em uma perspectiva atualista, tendo em conta a sua explicação do direito atualmente vigente”.

Em entrevista à ConJur — da qual também participou Otavio Luiz Rodrigues Junior, professor doutor de Direito Civil da USP. ex-bolsista do Instituto Max-Planck de Hamburgo e coordenador da Rede de Direito Civil Contemporâneo —, Pinto comparou o Tribunal Constitucional ao STF, discutiu a autonomia dos ramos do Direito Privado e opinou sobre a viabilidade de um código civil europeu.

Paulo Mota Pinto esteve no Brasil a convite do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, da Rede de Direito Civil Contemporâneo e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade 7 de Setembro. Proferiu conferências em Fortaleza e São Paulo sobre o tema da eficácia dos direitos fundamentais em relação aos particulares.

Leia os principais trechos da entrevista (a versão integral será publicada no volume 8 da Revista de Direito Civil Contemporâneo):

ConJur – A figura dos "catedráticos mandarins" é uma marca da vida política portuguesa. Vários professores universitários, particularmente das faculdades de Direito, também militam em partidos políticos. Sua atuação no Partido Social Democrático é uma parte relevante de sua biografia. O senhor poderia comentar sua experiência na política?
Paulo Mota Pinto – Separo os dois aspectos de minha atividade. Minha atividade jurídica, quer como professor, quer como jurisconsulto, é profissional, enquanto sempre encarei minha passagem pela política como um serviço público e transitório, não como uma carreira. Em certa fase, fui convidado para assumir responsabilidades no partido de que sou militante e para ser parlamentar, e achei que não devia recusar tendo em conta a fase difícil que Portugal ia atravessando.

ConJur – Como sua condição de professor de Direito Civil influenciou sua atividade parlamentar?
Paulo Mota Pinto – Eu fui deputado presidente de duas comissões de 2009 a 2015. Estive dois anos presidindo a Comissão do Orçamento e de Finanças em uma fase em que Portugal estava em dificuldades econômicas e teve de pedir ajuda externa. Minha experiência jurídica, mais do que civilista, foi útil. O conhecimento da forma de funcionamento do Parlamento, do processo legislativo, foi bastante útil, mais do que a experiência como civilista. Na segunda metade de minha experiência na Assembleia da República, de 2011 a 2015, eu presidi uma comissão de assuntos europeus que acompanhava a atividade europeia do Parlamento português. A experiência jurídica foi menos relevante nessa função. Enfim, eu não gostaria de voltar a ser deputado, mas é uma experiência enriquecedora para quem gosta da carreira pública. Quanto ao Direito Civil, de modo específico, eu optei por não ter uma atividade parlamentar vinculada à área de minha atividade profissional, até para evitar conflitos de interesses.

ConJur – O senhor foi o mais jovem juiz do Tribunal Constitucional da República Portuguesa, nomeado aos 32 anos, em 1998. Quais foram os aspectos mais marcantes de seu mandato, que se encerrou em 2007?
Paulo Mota Pinto – Participei de tantos acórdãos (fui relator de mais de 550) que tenho dificuldade em destacar um só aspecto. Certamente, há alguns acórdãos que me deram particular gosto, por achar que dei uma contribuição relevante – é, por exemplo, o caso das decisões de que fui relator e que declararam inconstitucional, por violação do direito à identidade pessoal, o prazo que existia no Direito Português (de apenas dois anos a contar da maioridade) para se mover ação de investigação de paternidade. Hoje este regime mudou, sobretudo por causa dessas decisões.

ConJur – Quais são as diferenças mais marcantes entre o Tribunal Constitucional português e o Supremo Tribunal Federal brasileiro?
Paulo Mota Pinto – O Tribunal Constitucional Português é um órgão com papel importante na realidade jurídica e também política portuguesa, mas tornou-se, talvez no plano político, mais central depois do programa de assistência financeira de 2011. Assim o entendo porque ele declarou inconstitucionais várias medidas contidas no orçamento de Estado, que se colocaram no centro da autoridade política. Há uma diferença importante: o Tribunal Constitucional português apenas controla a construção de normas, não tem recurso de amparo ou ações diretas de inconstitucionalidade, nem possui a figura das “queixas constitucionais”, muito menos decide conflitos de competência. O Tribunal Constitucional apenas julga normas em fiscalização abstrata no caso concreto ou em um recurso que venha do caso concreto. Essa é uma diferença importante.

Em segundo lugar eu diria que o Supremo Tribunal Federal brasileiro é um órgão que está mais no centro da atualidade porque, em comparação com o Tribunal Constitucional português, chegam até ele muito mais casos de grande relevância política, sob a forma de recursos e de ações diretas de inconstitucionalidade. Outra diferença importante está em que as deliberações do Supremo Tribunal Federal são filmadas e transmitidas em sessões públicas. Em Portugal, são públicos apenas o processo e o anúncio da decisão. Mas a deliberação, a discussão entre os juízes não é pública, não tem filmagem por câmera televisiva da sala de sessões. Isso tem vantagens e desvantagens.

ConJur – Em muitos países, de diferentes tradições jurídicas, assiste-se ao crescente protagonismo na vida pública do Poder Judiciário, especialmente das cortes constitucionais. Uma das consequências mais sensíveis desse processo é a chamada judicialização da política. Qual é a sua visão sobre esse processo no cenário europeu?
Paulo Mota Pinto – Dependendo dos países e dos casos, isso tem realmente acontecido. Em Portugal, nós temos inquéritos e precedentes até criminais bastante notórios em relação a personagens políticas. “Judicialização da política” talvez não seja a melhor expressão para tratar do que tem acontecido. Dito de outro modo, os tribunais têm realmente um papel a desempenhar e o têm desempenhado. Eu sou um observador, e o que eu vejo é que os órgãos jurisdicionais estão funcionando e atuam sem pré-juízos políticos. Isso é bastante positivo. É uma grande vantagem para o Brasil mostrar que as instituições estão a funcionar, mesmo com os problemas que nós conhecemos. Na Europa, penso que isso também aconteceu. Um pouco na Itália, um pouco na Espanha. Não é um retrocesso, mas é importante que os tribunais saibam sempre fundamentar juridicamente suas decisões, com a maior transparência.

É necessário que os juízes não resvalem para uma certa discricionariedade ou assumam posições dúbias, muito menos tangenciem para a arena do combate político, o que seria negativo e acarretaria perda de legitimidade. Os magistrados devem ter sempre a consciência do risco de sua deslegitimação. Enquanto se mantiverem na linha atual, que me parece uma linha de estrita fundamentação jurídica e de aplicação da lei igualmente para todos, eu penso que há um desenvolvimento positivo que corresponde a processos semelhantes ou paralelos, parecidos que aconteceram na Europa.

ConJur – Um juiz pode ser ativista?
Paulo Mota Pinto – Um juiz não deve ser ativista. Não deve participar de iniciativas partidárias públicas ou com fins ativistas. Não sei se podem ou se é lícito no Brasil, mas em Portugal os juízes não podem participar de iniciativas partidárias. Saber o que é uma iniciativa política, uma ação ativista, uma manifestação, ou o que é uma iniciativa partidária pode ser difícil. Definitivamente, os juízes não podem ter atuação partidária, a que título for. E mesmo que os juízes pudessem, não deveriam ser ativistas, especialmente quando se tratar de ativismo em áreas nas quais as pessoas podem vir a ser chamadas a julgar.

ConJur – E isso inclui fazer comentários políticos em redes sociais?
Paulo Mota Pinto – Sim. Houve casos desses em Portugal, em redes sociais inclusive fechadas, com centenas de juízes. Por mais fechadas que sejam, essas coisas acabam vazando, e isso não é bom para a Justiça em geral. Portanto, minha tendência é para achar que eles não devem fazer isso. Não quer dizer que eu não posso praticar a minha liberdade de expressão, mas eu penso que, deontologicamente, o juiz não deve fazer isso, sobretudo se forem comentários em áreas nas quais eles podem vir a ser chamados para julgar. Quer dizer, os juízes administrativos, os juízes de família, que não têm nem nunca virão a ter uma intervenção naquela matéria pública, talvez até possam, mas se não for assim, não devem fazer esses comentários.

ConJur – A reforma do Código Civil alemão, nas áreas de Direito das Obrigações e da prescrição, são questões que têm incomodado grande parte dos civilistas da Alemanha. Teme-se que haja uma perda da centralidade do Direito Privado nacional em face de diretivas europeias, muitas delas consideradas mal escritas ou traduzidas de modo polêmico. Qual sua visão desse fenômeno que está a alterar o cenário jurídico europeu? O senhor acredita em um código civil europeu?
Paulo Mota Pinto – Não penso que o Direito Europeu possa provocar a curto ou médio prazo uma perda da centralidade dos direitos privados nacionais dos estados-membros da União Europeia. O Direito é também um produto cultural, e não sou favorável a uma uniformização jurídica na Europa. Nessa medida, os receios a que alude são exagerados. As reações a tentativas de criação de regimes uniformes, ou a propostas da Comissão Europeia como a de um regulamento sobre um direito comum da compra e venda mostram isso mesmo. É claro, porém, que o Direito Europeu obriga a um confronto dos direitos nacionais com as liberdades fundamentais e os princípios da União, que é, e tem de ser, feito a nível europeu - e não só pelos tribunais e juristas de cada estado-membro -, bem como a um confronto com as soluções jurídicas noutros estados-membros. Para culturas jurídicas mais habituadas a uma certa autarquia, que rejeitam influências externas, isso pode ser difícil. Não é, felizmente, o caso português, onde sempre se deu muita relevância à comparação com outras ordens jurídicas.

Quanto a um código civil europeu, há projetos que procuram encontrar um núcleo comum do Direito Privado europeu ou tentam estabelecer um quadro comum de referência com um conjunto de regras, o famoso projeto Draft Common Frame of Reference do Direito Privado europeu. Houve, até recentemente, menos que um código civil, mas um projeto do regulamento europeu da compra e venda. No entanto, mesmo esse projeto não foi aprovado. Há algumas reticências sérias nos estados-membros quanto à hipótese de se substituir, ainda que parcialmente, os códigos civis nacionais. Isso também corresponde um pouco à ideia de que o Direito e o Direito Privado também são um produto cultural e a União Europeia não se deve fazer assimilando ou prejudicando a autonomia cultural, a exemplo das línguas, das tradições e das instituições. Se isso ocorrer, só poderá se dar na medida em que for necessário para a livre circulação, para o mercado único, em nome da harmonização jurídica, mas sem substituição das especificidades nacionais. Respondo, portanto, à última parte da pergunta: penso que não é para hoje nem para amanhã, talvez para depois de amanhã ou um dia futuro, termos um Código Civil europeu. A vocação de nosso tempo não é ainda do Código Civil europeu. Nosso tempo é o da harmonização de regras jurídicas na União Europeia, sobretudo na área econômica e do mercado.

ConJur – Trazendo-se essa questão para a realidade sul-americana, o senhor acredita que é possível ou conveniente avançar em um processo de harmonização ou de unificação normativa no Direito Privado para o Mercosul?
Paulo Mota Pinto – Talvez, para harmonizar regras que têm a ver com a liberdade de circulação de bens e mercadorias, de serviços, de pessoas, através de diretivas ou regulamentos comuns e regras que visam evitar medidas que tenham efeito equivalente às restrições das importações. No domínio econômico, acredito que possam existir regras capazes de dificultar essa livre circulação. Desse modo, é conveniente identificá-las e harmonizá-las. No entanto, desaconselho o caminho em direção a um código comum, cujas dificuldades já mencionei na pergunta anterior. É claro que a União Europeia é constituída por um maior número de países e que estes são menos homogêneos que os integrantes do Mercosul. Há mais diferenças culturais, institucionais ou de tradição entre um país do Sul, como Itália ou Portugal, e um país do Norte, como Suécia ou Holanda, do que entre o Brasil e o Chile ou a Argentina. Apesar disso, apesar de haver maior proximidade cultural na América do Sul, eu penso que não há condição para avançar para um código comum. Eu consideraria ser muito mais interessante seguir rumo a uma harmonização, como a União Europeia tem feito.

ConJur – No Brasil, inicia-se um movimento de crítica aos excessos no recurso aos princípios, às cláusulas gerais e a pautas axiológicas. Conhecendo a realidade brasileira, e inspirado pela experiência portuguesa, como o senhor considera que seria a forma adequada de examinar essa questão no Brasil?
Paulo Mota Pinto – Em um sistema de direito legislado, as cláusulas gerais são indispensáveis. Elas constituem muitas vezes os espaços de flexibilidade e as "válvulas de escape" que permitem ao julgador adequar a solução ao caso concreto e fazer valer por via delas as valorações mais relevantes (incluindo os valores e princípios constitucionais, mas não só). No entanto, é preciso ter sempre presente que uma cláusula geral ("ordem pública", "boa fé", "função social", entre outras) não pode ser entendida como uma autorização para o juízo discricionário ou para o livre-arbítrio do juiz. Pelo contrário: este deve procurar sempre, na sua concretização no caso, pontos de apoio e referências objetivas, tais como casos precedentes, o entendimento do sentido da cláusula pela comunidade jurídica e na doutrina, a situação dos interesses em presença e o seu melhor equilíbrio, as consequências sociais e econômicas gerais daquele tipo de solução. Só assim estará minimamente assegurado o cumprimento do dever do julgador de obediência à lei, que como se sabe, é, num regime democrático, desde logo uma exigência da democracia, e também uma condição de segurança e de certeza jurídicas.

Neste sentido, mais do que o combate às cláusulas gerais ou a sua eliminação, deve defender-se a segurança e objetividade na sua concretização, o que suscita também um problema de metodologia jurídica. Finalmente, há confusão entre a defesa da noção de dignidade da pessoa humana e o uso desta como um cheque em branco para o julgador avançar segundo o que é o seu próprio entendimento subjetivo da dignidade da pessoa humana. Essa confusão é indesejável e não se pode esperar que seja este o papel desse importante valor para a ordem jurídica.

ConJur – O senhor acredita que é útil a separação de matérias de Direito Privado em códigos distintos, como o Código Civil, o Comercial e o de Proteção ao Consumidor? No Brasil, tramita no Congresso Nacional um projeto de novo Código Comercial, o que iria de encontro à opção do codificador civil de 2002.
Paulo Mota Pinto – A minha tendência é para entender que os três ramos de Direito Privado (Direito Civil, Direito Comercial, e Direito do Consumidor) devem ter, cada um deles, a sua lei, o seu código. No Direito brasileiro, no entanto, havendo um Código de Defesa do Consumidor, eu não vejo o porquê de se ter um Código Comercial, depois de se ter integrado este no Código Civil. Como dito na pergunta, fez-se no Brasil um caminho próprio: unificaram-se no Código Civil as matérias civis e comerciais. Talvez não valha a pena fazer outro caminho e elaborar um outro código para cortar uma parte do Código Civil e instituir um Código Comercial autônomo.

ConJur – Discute-se no Brasil a criação de um Estatuto da Família e das Sucessões, retirando essas matérias do Código Civil. Qual sua opinião a respeito?
Paulo Mota Pinto – Sobre a localização formal do regime da família e das sucessões, não tenho uma opinião definitiva. Tendo fortemente, porém, a privilegiar sua localização no Código Civil, que não impede certamente que se consagrem as soluções mais adequadas aos tempos atuais. Julgo até que, ao contrário do que se possa pensar, essa localização confere mais, e não menos, dignidade a essas áreas, centrais para a disciplina da vida do homem comum em sociedade - isto é, para a matéria do Direito Civil.

ConJur – A divisão entre Direito Público e Direito Privado ainda é útil no Direito contemporâneo?
Paulo Mota Pinto – Creio que sim. Discordo das posições que defendem a "diluição" da distinção, e que resultam de uma incompreensão do seu sentido mais profundo. Este corresponde a dois domínios da vida - o do contato com o Poder Público e o exercício deste, por um lado, e o da vida em relação na sociedade civil e na economia privada, por outro - que continuam a existir. E ainda bem! Rejeito tanto a privatização do exercício do ius imperium como a "colonização" das escolhas e dos atos dos privados por uma racionalidade pública imperativa (com eliminação da liberdade emocional, a imposição a todos de padrões de proporcionalidade - isto é, com eliminação da liberdade dos privados).

ConJur – O que o senhor pensa da autonomia epistemológica do Direito Civil e do risco da "colonização" desse ramo jurídico pelo Direito Constitucional?
Paulo Mota Pinto – Não se deve confundir o que resulta das exigências do princípio da constitucionalidade (conformidade de todos os atos do Estado, executivos, legislativos ou judiciais, às regras e princípios constitucionais) com a negação de autonomia ao Direito Civil, e ao Direito Privado em geral. Esta última posição seria profundamente errada e nociva, e, até de inviável concretização. Defendo também que continuam a existir princípios jurídicos fundamentais que são específicos do Direito Privado (por exemplo, a autonomia privada, o reconhecimento e proteção da propriedade privada, entre outros), e que, neste sentido, ele mantém sua autonomia valorativa, desde que não desconforme com os princípios e regras constitucionais. O que muitas vezes alguns jusprivatistas afirmam é que a técnica dos direitos fundamentais não pode ser usada para substituir e ignorar as especificidades do Direito Privado, quer em suas construções, quer em suas soluções, em suas regras e até em seus valores. Nesse sentido, o Direito Privado tem autonomia, possui um espaço próprio de elaboração em relação ao Direito Constitucional, em relação aos direitos fundamentais, sempre com respeito à Constituição.

ConJur – Qual é sua opinião sobre o conceito de Direito Privado Constitucional?
Paulo Mota Pinto – A Constituição não é fonte imediata de Direito Privado, embora este deva sempre respeitar as regras e princípios constitucionais. A principal fonte de Direito Privado é o Código Civil e as leis de Direito Privado. Embora, como disse, essas normas devam obedecer ao disposto na Constituição, é necessário fazer uma distinção essencial. A afirmação de que há um Direito Privado Constitucional significa, das duas uma: que o Direito Civil está vinculado à Constituição e pelos direitos fundamentais, ou que haveria uma substituição do Direito Privado, do Direito Civil, pelo recurso direto aos princípios e às regras constitucionais, aos direitos fundamentais. Eu penso que, no primeiro caso, tem-se uma redundância. E, no segundo caso, isso seria indesejável, um erro, algo até mesmo inviável.

ConJur – Como o Código Civil português de 1966 e o Código Civil brasileiro de 2002 se relacionam na experiência jurídica comparada e na nova ordem constitucional nos dois países?
Paulo Mota Pinto – O Código Civil brasileiro de 2002 é um código jovem, que procurou incorporar alguns dos resultados da evolução da segunda metade do século XX. São exemplos disso uma grande quantidade de cláusulas gerais, isto é de conceitos indeterminados que têm conteúdo valorativo, tais como boa fé, ordem pública, função social. Essa é uma evolução que já se encontrava no Código Civil português de 1966. Isso é um aspecto positivo, que significa confiar ao julgador o papel de concretizar essas válvulas de escape, essas portas de entrada de valorações constitucionais e até de valorações correspondentes aos direitos fundamentais. Nesse sentido, os códigos de 2002 e 1966 têm algo em comum. Além disso, ambos os códigos têm uma sistematização que é bastante parecida, embora o código português não possua o livro de Direito da Empresa, como possui o brasileiro. O código de 1966 não fez incluir, portanto, o Direito Comercial. O código português também influenciou de certa forma alguns aspectos do código brasileiro e de outros códigos, como o italiano. Então, o Código Civil de 2002 é o produto da doutrina brasileira da sua metade do século XX e que, enfim, é comparável com outras experiências jurídico-normativas do período.

Na relação com a nova ordem constitucional está mais um ponto em comum: ambos os códigos são anteriores às constituições democráticas, que surgiram com grandes catálogos de direitos fundamentais, e, por essa razão, tiveram, de sofrer adaptações à nova realidade constitucional do Brasil e de Portugal. Quer dizer, o código de 2002 não é mais o que foi o projeto dos anos 1970. O código português de 1966 teve de sofrer uma grande adaptação para se ajustar à ordem constitucional de 1976. Mas eu penso que a promulgação do novo Código Civil brasileiro e a reforma no Código Civil português, de nenhuma forma diminuíram a autonomia do espaço civilístico, do espaço do Direito Privado em relação à Constituição, em relação aos direitos fundamentais. O Direito Civil deve obedecer aos direitos fundamentais, mas não pode ser substituído por eles.

ConJur – Em sua conferência na Faculdade de Direito da USP, o senhor ofereceu uma série de exemplos sobre questões atuais em torno do exercício ou da restrição a direitos fundamentais na esfera da autonomia privada e da autodeterminação das pessoas. Um deles é bastante relevante: um locador pode se recusar a celebrar um contrato de locação por causa da crença ou da religião praticada pelo locatário? Da mesma forma, poderia um empregador deixar de contratar um empregado por este professar determinada fé?
Paulo Mota Pinto – A regra é que não. Admito, porém, algumas exceções ligadas à esfera privada dos contratantes. Nos exemplos da pergunta: seria admissível a recusa quando o locador quiser alugar um quarto em sua própria casa. Admissível também seria o empregador rejeitar um empregado para uma função específica, como a de baby sitter, na qual a atividade é restrita para se trabalhar aos fins de semana. Nessa hipótese, o empregador poderia rejeitar uma pessoa de religião que a impeça de trabalhar aos sábados ou aos domingos. No segundo exemplo, há uma razão substancial: seria impossível que o candidato à vaga (trabalhador de fim de semana) pudesse executar suas funções. No primeiro exemplo, contudo, tem-se uma limitação ditada pelos limites da esfera privada da pessoa. Mas, salvo nesses casos específicos, não se poderia rejeitar locatários ou empregados. Essa proibição alcançaria incluir tais restrições nos classificados ou anúncios de empregos ou de locação. Muito menos seria lícita a invocação de tais questões para se negar à celebração de contratos de locação ou de trabalho.

ConJur – O senhor utiliza a expressão “elementos suspeitos” para fazer essas distinções. Poderia explicá-la?
Paulo Mota Pinto – Os “elementos suspeitos” são compreensivos de origem étnica, língua, aparência, raça, orientação sexual, religião, independentemente de sua utilização em sua expressão pública ou como fundamento para a recusa em contratar. Os elementos suspeitos, quando tomados de per si, não bastam ao exercício de restrições a contratar com outras pessoas em razão desses elementos. Só são aceitáveis quando houver uma razão substancial. Neste caso, eu já dei por exemplo a contratação de uma pessoa para trabalhar aos fins de semana, quando sua religião o impede de exercer tal ofício no sábado ou no domingo. Ou o exemplo da contratação de um ator para determinado papel que tem de ser desempenhado por uma pessoa com certa aparência étnica. O critério está, portanto, em saber se há ou não um motivo substancial para a recusa e que este seja aplicado proporcionalmente. A proporcionalidade entraria, por exemplo, no mesmo caso da pessoa que não pode trabalhar no sábado ou no domingo: se o emprego é para mais dias na semana, a circunstância de um deles recair no sábado ou no domingo não torna proporcional a recusa à contratação. Poder-se-ia acomodar a religião com o trabalho nos demais dias.

Deve-se ressaltar que essa regra vale tanto para empregadores e locadores quanto para empregados e locatários. Ela protege aqueles tanto quanto estes últimos contra o uso de “elementos suspeitos” para se recusar à contratação. Embora sejam muito mais raros os casos em que locadores e empregadores terminem por ser prejudicados quando a recusa parte de locatários ou empregados. A razão substancial facilita a análise da proporcionalidade. Não há, na maior parte dos casos, a razão substancial quando o problema se resolver apenas na esfera privada. Retomo o exemplo anterior: uma pessoa quer alugar um cômodo de sua própria casa. Se o locador é de determinada religião e isso for relevante para suas convicções, ele tem o direito de não querer permitir em sua própria casa uma pessoa de outra religião, que possa ter outra prática religiosa. Essa é uma questão de esfera privada, que se não confunde com o exemplo do empregado e do empregador.

ConJur – Haveria distinção se a locação ocorresse em uma hospedaria ou em um hotel?
Paulo Mota Pinto – Sim. Há um caso conhecido na Inglaterra. Trata-se da recusa de hospedagem de um casal do mesmo sexo por hoteleiros cristãos, de fortes crenças religiosas. Os donos da hospedaria negavam-se a alugar quartos ou a celebrar contratos de hospedagem com pessoas que não fossem casadas. A questão foi judicializada e entendeu-se que a recusa era ilícita, porque baseada na discriminação em função da orientação sexual. Não havia uma decisão fundada na esfera privada, por que era um estabelecimento aberto ao público. Esfera privada aí deve ser entendida estritamente.

ConJur – A discriminação das contratações pode abranger o gênero dos contratantes? O exemplo clássico é o que atribui valores maiores ou menores aos prêmios nos contratos de seguro de automóveis se o condutor for homem ou mulher.
Paulo Mota Pinto – Há uma diretiva europeia que proíbe a diferenciação de prêmios de seguro em função do gênero. Os estados membros da União Europeia têm de assegurar que os critérios que são aplicados aos contratos de seguro conduzem ao que se costuma designar como prêmios unissex, prêmios uniformes para os dois gêneros. Tal isonomia deve prevalecer mesmo que estatisticamente exista um risco maior em um dos gêneros que no outro.

Entende-se que é preciso fomentar a igualdade de gênero e uma das vias é realmente proibir a diferenciação de prêmios e de prestações de seguro com base no critério de sexo. Note-se que essa regra não vale para idade. Mas há certas propensões a doenças que podem ser utilizadas na celebração do contrato de seguro. Há discussão sobre se é lícita a utilização de tais critérios nos contratos de seguro. Quanto à idade, ela continua a ser admitida como critério de discriminação, porque a idade é um fator importante e o histórico de acidentes, o histórico anterior médico, tudo isso pode ser considerado. Tal se dá porque são fatores diretamente ligados ao perfil de risco da pessoa.

* Texto atualizado às 12h10 do dia 25/9/2016 para acréscimo de informações.



Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 25 de setembro de 2016, 10h52

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Responsabilizar Lewandowski por fatiamento é inconstitucional, diz Senado



Por Pedro Canário


O presidente do Supremo Tribunal Federal tem papel restrito quando comanda o Senado no processo de impeachment do presidente da República. A ele cabe apenas o controle da legalidade de aspectos regimentais e procedimentais. Por isso, não pode ser responsabilizado pelo mérito das decisões tomadas pelos senadores durante o julgamento. Segundo parecer da Advocacia do Senado, ministro Ricardo Lewandowski não pode ser responsabilizado pelo mérito das decisões tomadas pelos senadores durante o julgamento do impeachment.
Carlos Humberto/SCO/STF

Essa é a tese apresentada pela Advocacia do Senado para defender que a pena de inabilitação para o exercício de cargo público não seja aplicada a Dilma Rousseff embora ela tenha sido afastada da Presidência da República por impeachment. O argumento está em petição enviada ao Supremo nessa segunda-feira (12/9) para instruir mandados de segurança que questionam o “fatiamento” da decisão pelo afastamento de Dilma do cargo.

Os mandados foram impetrados pelos partidos PSD, PSDB, DEM, PPS, PMDB e Solidariedade, além dos senadores Álvaro Dias (PV-PR) e José Medeiros (PSD-MT). Eles reclamam do fato de o Senado ter aplicado a pena de afastamento do cargo a Dilma, mas não suas consequências, chamando o processo de “fatiamento”.

A argumentação é a de que o artigo 52, parágrafo único, da Constituição Federal diz que o presidente que sofrer impeachment será condenado “à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”. Para quem entrou com Mandado de Segurança, o afastamento do cargo e a inabilitação fazem parte de uma coisa só, e não poderiam ter sido discutidos separadamente. E responsabilizam Lewandowski por ter admitido a questão de ordem que propôs o fatiamento.

Mas a Advocacia do Senado discorda. Afirma, inclusive, que o ministro nem poderia ter feito o que pedem os autores dos mandados de segurança. “Não há espaço para dúvidas: a Constituição é claríssima ao assentar que cabe aos senadores e, somente a eles, a árdua missão de julgar se o Presidente da República acusado cometeu ou não crimes de responsabilidade, votando pela sua remoção do cargo e/ou pela sua inabilitação”, diz a petição.

Segundo o texto, como só os senadores podem julgar o presidente por crime de responsabilidade, dizer que o presidente do STF, ao presidir o julgamento, é responsável pelas decisões tomadas pelos parlamentares seria dizer que uma autoridade sem voto participou do julgamento. E isso, dizem os advogados do Senado, afrontaria a separação de poderes.

“A Constituição não lhe enviou ao Senado Federal para exercer o encargo de censor da interpretação constitucional dos senadores, nem muito menos para substituir-se à manifestação de vontade dos juízes naturais da causa”, diz a petição. O documento é assinado pelo advogado-geral do Senado, Alberto Cascais, pelo advogado-geral-adjunto, Rômulo Gobbi do Amaral, e pelos assessores jurídicos Tairone Messias e Fernando Cesar Cunha.

E de acordo com eles, a função do presidente do Supremo no processo de impeachment não é o de controle prévio de constitucionalidade. Esse tipo de controle só existe de maneira posterior, e deve ser feito pelo Plenário do STF.

“Os poderes do Presidente do STF, no comando do julgamento de impeachment, não se confundem com aqueles atinentes à sua atividade de juiz constitucional da Suprema Corte”, afirma o parecer. Por isso, o ministro Lewandowski não poderia tolher a liberdade dos senadores, “legítimos representantes da nação, escolhidos pelo voto popular, aos quais se deu o pesado fardo de julgar o presidente da República”.

“Na seara da jurisdição constitucional, o Presidente do STF, enquanto um integrante da Corte incumbida da guarda da Constituição, não só pode, como tem o dever de cotejar o mérito da legislação questionada com o respectivo parâmetro constitucional, isso quando haja sido provocado em um processo judicial ajuizado por um dos legitimados. Já na função de Presidente do Senado, para fins do impeachment, o Presidente do STF tem atividade nitidamente distinta da de um juiz constitucional. No impedimento, o Presidente é um mero árbitro da decisão parlamentar, cabendo-lhe impedir precipitações e arroubos políticos.”

Clique aqui para ler o parecer.
MS 34.378



Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 13 de setembro de 2016, 18h33

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Especialista da FGV defende choque de eficiência na mediação de conflitos





Para o professor Joaquim Falcão, coordenador de um dos grupos da I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, a discussão sobre a solução de conflitos fora do Judiciário, além de uma boa ideia, é uma necessidade. O evento tem o apoio do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Joaquim Falcão é professor do curso de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e autor de diversas pesquisas sobre o funcionamento do Judiciário no País. Durante a jornada, que ocorre nos dias 22 e 23 de agosto em Brasília, ele coordenará o grupo que discute outras formas de mediação de conflitos.

O professor considerou oportuno o momento para realização do evento e disse que, hoje, não há ideia mais forte em discussão do que a resolução de conflitos na modalidade extrajudicial. Ele destacou que são inúmeras as possibilidades de solução.

“Por exemplo, há uma técnica que começa a ser aceita, que é dos painéis de resolução de disputas (Dispute Board), diferente da mediação ou da arbitragem. A vantagem dessas outras soluções que estão começando a imaginar, criar e inovar é que não são reguladas”, observou.

É preciso, a seu ver, “pensar em soluções com base na autonomia das partes. Arbitragem e mediação são reguladas, temos que deixar espaço para a imaginação das partes e sua autonomia de solucionar conflitos”. Outro exemplo dado foi a criação de núcleos de solução de conflitos nas escolas, com o objetivo de resolver questões como o bullying.

Governo litigante

Sobre o grande número de ações que envolvem a administração pública de todos os níveis (municipal, estadual e federal), Joaquim Falcão disse que há medidas normativas e outras de legislação que podem ser tomadas para reduzir o índice de litigância do setor público. Ele citou, como exemplo, os advogados públicos, que têm dificuldades em resolver conflitos sem a necessidade de uma ação judicial.

“Uma das propostas que a gente recebeu é para os profissionais advogados públicos. Que se fizessem transações extrajudiciais, eles não fossem responsabilizados, a não ser que tivessem dolo ou má-fé na conduta. Os profissionais ficam com receio de fazer isso e serem responsabilizados depois. É preciso ter essa tranquilidade institucional para eles”.

Além do governo, o professor destacou a crescente demanda nas causas de massa, principalmente decorrentes de relações de consumo. Joaquim Falcão apostou na tecnologia para mediar esses conflitos diretamente entre consumidores e empresas, de forma a não estrangular os tribunais com demandas que poderiam ser resolvidas entre as partes.

“O futuro será de solução de conflitos extrajudiciais através da tecnologia. São conflitos de massa, em que os custos devem ser os mínimos possíveis, e a solução encontrada com brevidade. É preciso democratizar a solução extrajudicial dos conflitos”.

Trabalho

No caso da Justiça do Trabalho, o professor da FGV citou uma peculiaridade encontrada após uma pesquisa. Um grupo de pesquisadores investigou onde eram resolvidas as questões relativas a trabalho e descobriu que grande parte das soluções eram firmadas em acordos “de corredor”.

O especialista lembrou que em muitos casos a empresa já sabia que ia perder, por isso firmava um acordo com o trabalhador dentro do fórum, momentos antes da audiência. Para ele, a pesquisa provou que os acordos funcionam e devem ser estimulados sempre que possível, como forma de desafogar o Judiciário.

Processualismo

Segundo o professor, quem usa o Judiciário tende a voltar, e quanto maior o grau de instrução, maior a probabilidade de acionar a Justiça quando algo não é resolvido. Os dados de outra pesquisa apontam para uma crescente demanda do setor. Para ele, é importante verificar as causas do congestionamento na Justiça, que vão além do simples excesso de demanda.

“O fator que aumenta os custos e a burocratização é a formalização do direito. O processualismo é uma patologia do direito processual. No Brasil as camadas menos privilegiadas não têm acesso à Justiça, e outros têm acesso demais. Isso, somado à burocratização e ao formalismo, ao processualismo patológico, aumenta os custos. Por isso, antes de tudo, precisamos de um choque de eficiência”.

Joaquim Falcão ressaltou que é preciso resgatar a capacidade das pessoas de escolherem livremente como querem resolver seus conflitos, tendo o cuidado para que não ocorram situações em que prevaleça a vontade do mais forte.

Fonte: STJ

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Combate à corrupção é imperativo para resgatar a força da Constituição






Por Flávia Piovesan e Victoriana Leonora Corte Gonzaga


*Artigo publicado originalmente na Revista dos Tribunais, volume 967/2016, edição Maio/2016, e disponível na Revista dos Tribunais Online Essencial. Leitores da ConJur têm 80% de desconto na assinatura da ferramenta — clique aqui para mais informações.

Nosso atual quadro constitucional é de reapropriação do sistema democrático, pautado na limitação ao poder, na supremacia do interesse público em face do interesse privado, bem como no compromisso democrático de reforçar o poder do povo e de sua participação ativa como titular do poder político.

Isto porque a Constituição de 1988, peça fundamental do processo de redemocratização do Brasil, abriu caminho para mudanças estruturais na sociedade: marcou o abandono de um regime autoritário e instituiu um Estado Democrático de Direito, consagrando direitos fundamentais e garantias aos indivíduos.

De fato, percebe-se a retomada de um compromisso com o regime democrático a partir da eleição dos fundamentos da República (artigo 1º da Constituição), dentre os quais destacam-se a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político e a soberania popular.

Registra-se que o parágrafo do artigo 1º da Constituição declara que o povo é titular do poder, que o exerce por meio de representantes. Por ser o povo o detentor do poder, estão estipulados limites ao exercício desse poder e o direito do povo reavê-lo quando os interesses dos representantes se sobrepuserem aos interesses coletivos.

Por isso, a intenção da Constituição Cidadã é clara: trata-se de instituir como fundamento do Estado Brasileiro um conjunto de direitos e regras que dizem respeito à participação do povo na vida política do Estado e da sociedade. A Constituição nasce, portanto, como instrumento que limita o próprio poder, o arbítrio e o interesse individual, dentro de uma regulamentação democrática.

Basta atentar aos objetivos fundamentais da República Federativa Brasileira, em seu artigo 3o, dentre eles, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Ademais, a Constituição dispõe sobre a soberania popular (artigo 14), a qual será exercida, principalmente, pelo direito de sufrágio (direito de votar e ser votado), por meio de plebiscito, referendo, iniciativa popular de lei; também por meio da ação popular (artigo 5o, inciso LXXIII), e pelo direito de organizar-se e participar de partido político (artigo 17).

Trata-se, portanto, de uma carta robusta no que tange à garantia de direitos e preocupada em assegurar a participação popular, ou seja, tem como objetivo fundamental fomentar a ativa participação cidadã.

Obstáculo à concretização da principiologia constitucional
A prática da corrupção política, no entanto, abala estas conquistas democráticas constitucionais e afronta o desenvolvimento do Estado de Direito e da sociedade, por colocar interesses privados de indivíduos acima do interesse da coletividade.

De acordo com o relatório Corrupção: custos econômicos e propostas de combate, do Departamento de Competitividade e Tecnologia (DECOMTEC), da Fiesp, o custo médio da corrupção no Brasil é estimado entre 1,38% a 2,3% do PIB, isto é, de R$ 41,5 bilhões a R$ 69,1 bilhões de reais, conforme estimativas de 2008. Além do alto custo econômico da corrupção, há o custo social e o aumento da desigualdade que ela gera.

Ainda, o Brasil apresenta um índice elevado de corrupção percebida, dentre 175 países, ocupa a 69ª colocação no ranking de 2014, elaborado pela ONG Transparência Internacional.

A corrupção é o desvirtuamento da relação do administrador com a Administração Pública, na qual seu interesse privado se torna primordial em relação ao interesse público, em flagrante ofensa ao espírito republicano.

O que se observa com o aumento de investigações e persecuções envolvendo todas as esferas de poderes do Estado Brasileiro é que o fenômeno da corrupção é sistemático e endêmico no Brasil, expondo reiteradamente a Administração Pública a interesses que não os seus (interesse público), mas interesses “externos”.

O combate à corrupção se faz, deste modo, extremamente necessário para concretização dos direitos e garantias assegurados pela Constituição Federal de 1988 e dos objetivos e fundamentos do Estado Democrático. O combate à corrupção é medida que converge com os objetivos de redução de desigualdades e de construção de justiça social, pois a corrupção afeta a confiança dos cidadãos no Estado, na medida em deslegitima as instituições e as enfraquece, além de gerar elevados custos sociais.

Falhas do sistema como ambiente propício à corrupção
A corrupção no Brasil não é uma prática de um só partido, de uma só região ou estado, de um tipo de político ou de certo funcionário público: a corrupção é um fenômeno social, político, econômico, que se desenvolve de inúmeros modos e se manifesta em diferentes formas de favorecimento.

Por ser um fenômeno tão difundido e constante no modo de operar a coisa pública é preciso avaliar em que medida o sistema político-eleitoral a propicia e a facilita. Nesse sentido, entendemos como fatores importantes, mas não exaustivos, que criam um ambiente de facilitação à corrupção no Brasil: (i) o alto custo das campanhas eleitorais; (ii) o modo de nomeação de cargos na Administração Pública; (iii) a homogeneidade e a sub-representação da política brasileira.

(i) O elevado custo das campanhas eleitorais acarreta uma busca desenfreada por recursos e fontes de financiamento. Com base neste modelo, surgem esquemas estruturados de repasse de verbas de empresas privadas para partidos e políticos, que, na sequência, muitas das vezes atrelam este repasse ao favorecimento dessas empresas em licitações, financiamento público, etc.

Visando mudar esta dinâmica, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional[1] a doação de empresas a partidos e campanhas políticas, na medida em que viola o regime democrático e à cidadania (esta inerente às pessoas físicas).

Neste sentido, há que se buscar alternativas de campanhas que exijam menos aporte de recursos financeiros e mais aprimoramento do candidato e qualidade de propostas -- uma vez que as contribuições de pessoas jurídicas encarecem e inflacionam os custos das campanhas. A participação excessiva do poder econômico no processo político-eleitoral desequilibra a competição eleitoral, ofendendo os princípios fundamentais democrático e da igualdade política.

(ii) O modo pelo qual se dá a investidura para os cargos da administração pública, em um modelo de gestão política como a do Estado Brasileiro de governos multipartidários, também cria espaço para que a corrupção crie suas raízes.

A Constituição Federal de 1988 traz, no inciso V do artigo 37, a nomeação como uma exceção à regra que exige a realização de concurso público, ou de provas e títulos, para fins de investidura em cargos públicos.

Nesse sentido, há uma estrutura[2] na qual o representante é eleito, inserido no contexto da Administração Pública e passa a nomear pessoas de sua confiança para atuarem em funções relevantes e em cargos de comissão. Não pensar nessas nomeações é não dar a atenção necessária a uma função importante do representante, que traz uma série de consequências: o representante eleito aparelha a máquina estatal de diversos modos, ou seja, com pessoas capacitadas ou não para os cargos, sejam pessoas vinculadas ao seu partido ou à sua base aliada, ou mesmo nomeia pessoas sem vínculo algum.

A priori, o ato discricionário de nomeação não significa necessariamente que este esteja eivado de irregularidades e trará malefícios para a Administração Pública, com negociações e barganhas políticas. No entanto, aponta que é uma porta de facilitação e poderá vir a criar vínculos de lealdade, e, portanto, é preciso avaliar o alto número de cargos nomeados e a falta de critérios objetivos de nomeação como possíveis fatores de facilitação da corrupção.

(iii) A homogeneidade da política brasileira e o processo de sub-representação, no sistema político eleitoral, de grupos que são maioria da população e a consequente exclusão dessa maioria da população das decisões políticas trazem impactos inegáveis.

A Constituição de 1988 objetivou romper com a falta de participação popular, cuja atuação havia sido enfraquecida na ditadura militar e, por isso, endossa o valor do pluralismo político (artigo 1o, inciso V); afirma o direito de organização e participação em partidos políticos; introduz a iniciativa popular de lei (artigo 14, inciso III); além de munir os cidadãos e seus substitutos processuais de instrumentos como a ação popular (artigo 5o, inciso LXXIII), ação de impugnação de mandato eleitoral (artigo 14, §§ 10 e 11º) e ação civil pública (artigo 129, inciso III), por exemplo.

No entanto, ao contrário de citados dispositivos, o que se vê na prática é a reduzida participação popular[3], marcada pela sub-representação política de grupos que são maioria da população – como mulheres e negros e pardos. Somado a esta sub-representatividade está a de grupos “minoritários” como população indígena e população jovem.

Ademais, existe um alto número de parlamentares pertencentes a famílias de políticos (os chamados “clãs políticos”), propiciando a perpetuação de famílias no poder, um status quo de muitos anos, o qual é difícil de quebrar.

Nesse sentido, é preciso questionar de que modo esses fatores não propiciam um cenário favorável para a corrupção. Isso porque, se a corrupção é marcada pela ruptura da supremacia do interesse coletivo sobre o privado, há que se questionar de que modo a política homogênea brasileira não propicia a lógica da prevalência do interesse privado.

Em outras palavras, ao fortalecer, ou ao menos manter intactas, as barreiras ao ingresso de grupos sub-representados, o Parlamento permite que se perpetuem no poder indivíduos que representam os interesses de poucos, em detrimento dos interesses de muitos. Dessa forma, alimenta-se a lógica do desvirtuamento do interesse coletivo em favor de interesses privados. Como consequência, mais uma vez são privilegiados interesses privados, cujos representantes se perpetuam como hegemônicos no campo da tomada de decisões.

Os fatores acima enumerados são apenas exemplos de falhas do sistema político-eleitoral brasileiro, que permite profundas distorções ao princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, e se apresenta como ambiente propício à proliferação do fenômeno da corrupção, que, reitera-se, é sistêmica e generalizada.

Combate à corrupção
Primeiramente, há que se reconhecer a corrupção como uma questão política de alta complexidade, prioridade e de extrema importância à própria consolidação democrática. Isso porque, multifacetado, o fenômeno da corrupção encontra meios de se estabelecer e criar raízes profundas.

Há que se enfrentar o desafio de lançar pilares de combate à corrupção, sob a perspectiva internacional, constitucional e infraconstitucional.

O combate à corrupção, deve se pautar[4] no fortalecimento de medidas de prevenção e de repressão; cooperação internacional; recuperação e restituição dos bens e valores; e esforços conjuntos dos Poderes e instituições para implementação de medidas de combate à corrupção. Estas medidas podem ser abordadas em dois pilares principais: prevenção e repressão.

(i) Por atuação preventiva entende-se aquelas que buscam impedir e dissuadir o comportamento tido como corrupto, como a prestação de contas (accountability) e o controle e monitoramento dos atos da Administração Pública.

Observe-se que a cooperação internacional e os esforços para a implementação das normativas nacional e internacional são englobadas na prevenção -- por permitirem maior efetividade às medidas preventivas pautadas na fiscalização e monitoramento quando em cooperação com organismos internacionais e outros Países.

Em âmbito internacional e constitucional, há normativa que prevê – ao menos em tese - mecanismos de participação da sociedade no controle da coisa pública[5]. Conforme a Constituição Federal, a Administração deve ser submetida à fiscalização de toda ordem: contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial.

Ressalte-se que medidas preventivas estão em constante construção e podem surgir a partir de diversas fontes, o que se mostra especialmente relevante para o fortalecimento da democracia. Nesse sentido, algumas iniciativas merecem menção, como a vedação ao nepotismo, principalmente por meio da Resolução 7 de 2005 do Conselho Nacional de Justiça, que baniu as práticas de nepotismo do Poder Judiciário. E a chamada “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar 135 de 2010) que inclui novas hipóteses de inelegibilidade, visando proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.

O que esses exemplos mostram é que existe, ainda que de maneira incipiente, a vontade política de determinados atores da sociedade brasileira no sentido de construir um sistema de prevenção à corrupção.

(ii) A atuação repressiva de combate à corrupção, por sua vez, encontra guarida nas responsabilizações: civil e administrativa, política e penal. As medidas repressivas abrangem, também, a recuperação dos valores, ilicitamente apropriados da Administração.

Nota-se que as medidas de responsabilização, além de contribuir para reduzir a percepção de impunidade e ineficiência estatal, devem ser acompanhadas de reparação, sendo cabível a responsabilização de pessoas físicas, quanto de pessoas jurídicas.

A responsabilização encontra guarida em alguns mecanismos legislativos, em âmbito constitucional e infraconstitucional. E o que se vê é que a legislação vem buscando se aprimorar, com a edição de leis[6] que buscam mecanismos mais eficientes.

Estratégias preventivas e repressivas são, portanto, essenciais ao eficaz enfrentamento da corrupção, como fenômeno complexo e multifacetado. O combate à corrupção surge como imperativo ético-jurídico-político ao resgate da força normativa da Constituição, de sua racionalidade, de sua principiologia e de seus valores estruturantes. Surge como condição, requisito e pressuposto à supremacia do interesse público, à observância do espírito republicano, ao respeito ao direitos e garantias e à própria prevalência da dignidade humana. Enfrentar a corrupção requer o amadurecimento democrático e a necessária mudança da cultura política do Brasil, na luta por maior transparência, ética, accountability, controle público e fortalecimento institucional, no marco de um Estado Democrático de Direito.



[1] STF; ADI 4650/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 17/09/2015.


[2] Aprofundamos referida análise no artigo original.


[3] Os dados referente a participação política e “clãs políticos” estão elencados na versão original do artigo.


[4] Reformas estruturais são necessárias, a literatura especializada aponta reformas institucionais, abrangendo reforma política, do sistema judiciário e reforma administrativa. Ainda, aponta reformas econômicas, as quais se concentram em reforma fiscal e do sistema tributário. No entanto, o objetivo do artigo é propor medidas de prevenção e repressão que podem ser extraídas do nosso ordenamento jurídico vigente.


[5] As medidas foram melhor explicitadas na versão original do artigo, na presente versão apenas foram ventiladas.


[6] Referidas leis foram tratadas na versão original do artigo.

*Artigo publicado originalmente na Revista dos Tribunais, volume 967/2016, edição Maio/2016, e disponível na Revista dos Tribunais Online Essencial. Leitores da ConJur têm 80% de desconto na assinatura da ferramenta — clique aqui para mais informações.



Flávia Piovesan é procuradora do estado de São Paulo e professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000); do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005); do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007; 2008; e 2015); e Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max Planck Institute (Heidelberg - 2009-2014).

Victoriana Leonora Corte Gonzaga é advogada e professora assistente no curso de Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Revista Consultor Jurídico, 22 de junho de 2016, 7h33

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Tipificar o estupro coletivo pode não ser solução mais adequada







Sem dúvida alguma, ao menos desde uma perspectiva da sã sociedade, o estupro se afigura como uma das mais repulsivas situações criminosas. Com perspectivas e razões históricas, religiosas, morais e humanas, sua reprovação une todos os pensamentos. Isso explica, em parte, a ojeriza social havida em relação ao recém alegado caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro, bem como as respostas que o próprio legislativo acabou por dar.

Antes de qualquer divagação sobre o tema, deve-se frisar, em definitivo, que sob nenhuma perspectiva esse crime pode ser admitido. Entretanto, e ainda em sede preliminar, deve-se saber sobre o que está a se falar. Somente a partir daí é que alguma observação poderia ser tida como válida.

Em primeiro lugar, é de se recordar que, desde 2009, a Lei 12.015 modificou o histórico conceito de estupro, visto no artigo 213, do Código Penal. Antes havido como o fato de “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, agora assume outro verniz. Trata-se, agora, pois de crime consistente em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.” Impõem-se penas de reclusão entre 6 a 10 anos. Existem, ainda, as previsões de que se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 e maior de 14 anos, as penas são elevadas para a faixa de 8 a 12 anos. E, também, se da conduta resulta a morte, as penas são entre 12 e 30 anos.

Dessa forma, é importante destacar que houve significativa ampliação da abrangência típica. Não se trata mais, unicamente, de uma conduta de conjunção carnal, mas, também, por acréscimo, do antigo conceito de atentado violento ao pudor, agora absorvido pelo tipo penal de estupro. E com os problemas disso derivados, vale dizer, de se entender que, por exemplo, condutas não invasivas às vítimas sejam, sempre, vistas como se estupro fossem. Essa, embora seja uma rica discussão, é questão que já se mostra tratada nos tribunais, que, a seu modo, limitam a abrangência da situação concreta, sempre em busca de uma proporcionalidade esperada.

E é, justamente sob essa luz, sob o entendimento de um tipo penal ampliado, que deve ser visto o chamado caso do estupro coletivo. Por abjeto, suscitou ele nova divagação, qual seja a de uma proposta de ampliação de penas quando a conduta fosse realizada por múltiplos agentes. Em outras palavras, propõe-se a tipificação, inédita, da figura do estupro coletivo. Seria esta, contudo, uma saída, ou opção, desde um ponto de vista penal, tecnicamente adequada?

Uma primeira chave de leitura do problema indicaria a dúvida de se pretender legislar em torno de um problema que se mostra incandescente. A serenidade recomendada ao legislador nem sempre, nesses casos, é idealmente observada. Poder-se-ia, inclusive, recordar trágicos acontecimentos do passado, onde, por exemplo, após o sequestro do ônibus 174, houve a proposta de tipificação especifica de sequestro de coletivos. O Direito Penal trabalha com margens penais específicas. Seriam as penas mínimas e máximas previstas para cada situação a ser levada a juízo. O magistrado, dessa forma, e, conforme o artigo 59, do Código Penal, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, deve estabelecer, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, as penas aplicáveis. Portanto, o legislador, atendendo a uma premissa de proporcionalidade, estabelece que pena deve ter cada crime, e o juiz, no caso concreto, com base no mencionado, atribui a sanção a cada caso. Uma eventual perversão dessa regra pode, não raro, abalar o sistema em si.

Outra questão a ser levada em conta diz respeito ao fato de que não é simplesmente o aumento das penas que se estabelece uma suposta segurança. Não se combate impunidade com aumento de penas, mas, sim, com a efetividade da resposta penal. Qualquer outro entendimento denota, mais do que tudo, o estabelecimento de um indevido efeito simbólico e político a ser atribuído à seara penal, nada mais.

É claro que o legislador, como representante do povo, pode entender que é o sentimento deste, o incremento de determinadas sanções criminais. Estas, no entanto, não sempre se mostram racionais ou legítimas, e é sob esse prisma que a questão deve ser vista. E que se lembre que, no horror verificado no caso da morte da atriz Daniela Perez, vitimada por seu colega, e que motivou a inserção do homicídio no rol dos crimes hediondos, os efeitos da modificação legislativa não atenderam à expectativa inicial de diminuição da criminalidade. Não foram aplicados aos seus assassinos. Pela própria principiologia penal, nunca poderiam retroagir. São todas, portanto, reflexões que devem se verificar para um futuro próximo.

Renato de Mello Jorge Silveira é professor titular de Direito Penal da USP e sócio do Silveira e Salles Gomes Advogados. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).



Revista Consultor Jurídico, 9 de junho de 2016, 7h44

terça-feira, 19 de abril de 2016

"Brasil está acabando com sistema de freios e contrapesos dos poderes"




Por Giselle Souza


No dia 17 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência e passou a admitir a prisão de réus condenados em segunda instância. Uma semana depois um desembargador do Rio de Janeiro, ao manter a condenação de um réu, sugeriu: “Vamos pedir a expedição do mandado de prisão contra essa pessoa tendo em vista a decisão do Supremo”.

O episódio, no qual o magistrado tentou aplicar uma decisão que sequer era vinculante e mal tinha sido tomada pelo STF causou perplexidade a quem acompanhava a sessão, relata o advogado Rodrigo Brocchi — que presenciou a cena. Ele conta que outro julgador “mais iluminado” divergiu e o mandado acabou não sendo expedido.

Brocchi, que atua como advogado de defesa na operação “lava jato”, vê com preocupação as recentes mudanças no entendimento dos tribunais, feitas a pretexto de tornar mais efetivas as punições. Para o advogado, muitas mudanças representam um verdadeiro atropelo às garantias da Constituição.

Ele destaca como exemplo disso outra decisão do STF: a que permitiu órgãos da administração tributária pedir aos bancos informações sigilosas de contribuintes, sem a necessidade de autorização judicial.

“O procedimento é uma coisa muito importante no Estado Democrático de Direito. Sem ele, acabamos na história de que os fins justificam os meios, punindo-se da forma que quiser. É uma coisa maquiavélica”, alerta.

Leia a entrevista:

ConJur — O que o senhor achou da decisão do Supremo Tribunal Federal que autorizou a prisão a partir da decisão de segunda instância?
Rodrigo Brocchi — A Constituição não dá margem para interpretação: a presunção de inocência dura até o trânsito em julgado da decisão judicial. Se a execução de pena tem início antes do julgamento dos recursos nas cortes superiores, não houve o trânsito em julgado, então está a se violar uma norma constitucional.

ConJur — O senhor acha que o atual momento político e as denúncias da operação “lava jato” contribuíram para essa decisão?
Rodrigo Brocchi — Acho que não só a “lava jato”, mas a crise atual, com o suposto envolvimento de pessoas importantes da República, o que tem gerado o pleito da sociedade pela prisão daqueles, em tese, teriam praticado qualquer conduta criminosa. Acho que o Supremo vem refletindo esse apelo popular, o que é errado. Para fazer um paralelo, na decisão de 2009, que dizia que a execução da pena só podia ter início após o trânsito em julgado, o relator disse que “se começarmos a acabar com os direitos e garantias fundamentais com a justificativa de que temos que por fim a impunidade no país, devemos ir todos às ruas com porretes e fazer justiça com as próprias mãos”. Temos que aparelhar o Poder Judiciário e melhorar o trâmite dos processos para que se acabe com essa história de que a impunidade é culpa dos bons advogados, os recursos e da prescrição. É preciso melhorar o Judiciário e manter em pé os direitos e garantias fundamentais.

ConJur — Como diminuir a sensação de impunidade e cumprir à Constituição ao mesmo tempo?
Rodrigo Brocchi — Acho que a gente tem que aparelhar as instituições; ter mais juízes, mais serventuários e mais pessoas de administração no Judiciário para que o processo tenha um trâmite mais célere.

ConJur — Na sua avaliação, essa decisão vai aumentar o número de pessoas dispostas a fazer delações?
Rodrigo Brocchi — Acho que sim. E acho também que isso não vai se refletir apenas na operação [“lava jato”]. Um exemplo concreto disso vi aqui no [Tribunal de Justiça do] Rio de Janeiro, em que terminado o julgamento de uma apelação, o desembargador pediu a palavra e disse: “agora temos que pedir que seja expedido do mandado de prisão contra essa pessoa por causa da decisão do Supremo, da semana passada”. Houve um pavor generalizado. Um desembargador mais iluminado pediu a palavra e disse que “não dava para ser assim, que a decisão não tinha efeito vinculante”. Aquele desembargador ficou emudecido e outro que compunha o quorum acompanhou este que fez a intervenção.

ConJur — A repercussão foi imediata.
RodrigoBrocchi — Acho que sim. Esse dia mostrou que a tendência do Judiciário de, quando houver condenação em segunda instância, é determinar a prisão das pessoas.

ConJur — Diante da atual conjuntura, o senhor acha que o Brasil está caminhando para um estado de justiçamento?
Rodrigo Brocchi — Sim, e para um estado de justiçamento preocupante. Estava falando outro dia com a minha sócia [Maria Cláudia Napolitano], que o Brasil está em um momento em que acabou-se com o sistema de freios e contrapesos de Montesquieu. O Executivo está sem poder, o Legislativo também, e o Judiciário está se sobrepondo aos outros dois. Não há um equilíbrio entre eles e isso é preocupante.

ConJur — Como o senhor avalia a posição do Ministério Público nessa conjuntura?
Rodrigo Brocchi — Acho que o Ministério Público está exercendo a função dele, da maneira que acha mais adequada, na parte da relação processual que busca a punição de quem ele entende ser o culpado.

ConJur — Sobre a operação “lava jato”, o senhor acha que realmente tem havido vazamento seletivo?
Rodrigo Brocchi — Não consigo dizer em concreto, mas a sensação é de que há um vazamento seletivo, até por estratégia de atuação.

ConJur — E qual é o prejuízo disso pra quem ainda está sendo julgado?
Rodrigo Brocchi— Pré-julgamento. As pessoas são julgadas pela imprensa antes de terem um julgamento judicial.

ConJur — Recentemente, um advogado de Mato Grosso do Sul questionou o vazamento da delação feita pela cliente dele, por temer pela integridade física dela. Essa é uma preocupação real?
Rodrigo Brocchi — Sim. A lei, ao falar de delações, é expressa sobre a manutenção do sigilo e as medidas de proteção para a pessoa que faz a delação. Na própria “lava jato”, diversos interrogatórios são feitos sem a filmagem da pessoa, mas simplesmente com o áudio, justamente para que não haja exposição.

ConJur — Como o senhor avalia a alteração na Lei Anticorrupção, no ano passado, que permite que as empresas envolvidas em corrupção voltem a contratar com o poder público?
Rodrigo Brocchi — O espírito da Lei Anticorrupção é punir, mas não obrigatoriamente por fim às empresas. Acabar com as grandes empreiteiras vai gerar um problema social enorme, seja por causa do desemprego ou da execução de obras para o Estado. Então as modificações são boas. A lei é clara: você é obrigado a ressarcir qualquer dano causado ao erário. A primeira das empresas a firmar o acordo de leniência pode ser isentada do pagamento de multa, mas não do pagamento do prejuízo. Temos que punir e tentar fazer com que elas [as empresas] criem regulamentos internos e normas de compliance, mas mantendo-as em pé. Extingui-las, só em última análise. Impossibilitá-las de contratar com o poder público é quase que decretar a quebra dessas companhias.

ConJur — O acordo de leniência não suspende a investigação criminal. Mesmo assim vale a pena para as empresas?
Rodrigo Brocchi — Vale a pena. Quem parte para um acordo de leniência tem noção de que certamente vai ser envolvido em algum procedimento criminal. Então, pesa o que é melhor: esperar o procedimento criminal chegar ou se apresentar, fazer um acordo de leniência e conseguir salvar seus executivos. Sim, porque a Lei Anticorrupção prevê expressamente que os executivos envolvidos nos atos de corrupção serão inseridos nesse acordo.

ConJur — Como o senhor avalia o ambiente da advocacia criminal atualmente?
Rodrigo Brocchi — Difícil. Saiu na ConJur e na Folha de S.Paulo uma carta dos velhos advogados para os jovens, que dizia “o momento é duro, mas a gente precisa continuar a brigar; vocês não passaram por isso, mas nós passamos na ditadura, e a gente tem que brigar não só pelos nossos clientes, mas para retomar o Estado Democrático de Direito e as garantias que vem sendo tolhidas”. Acho que a mentalidade hoje é essa: a realidade é dura, mas vamos continuar a brigar.

ConJur — Os advogados têm sido alvo de ataques?
Rodrigo Brocchi — A opinião pública é sempre ruim com relação aos advogados criminais. Confundem os advogados com os réus. Acham que eles não têm direito à defesa e que por defendermos alguém que supostamente cometeu um delito, cometemos os delitos juntos. Isso tudo é um círculo vicioso do momento que a gente vive.

ConJur — Como o senhor avalia a carta publicada pelos advogados que atuam na “lava jato”?
Rodrigo Brocchi — Os advogados têm que se manifestar, a OAB tem que se manifestar.

ConJur — A OAB tem sido omissa?
Rodrigo Brocchi — Omissa é um termo muito forte, mas tinha que ser mais presente na defesa das prerrogativas. No Rio, a OAB é muito atuante, mas eu estou falando de ir em defesa das prerrogativas, até de um modo genérico, pelas coisas que vem acontecendo.

ConJur — A “lava jato” tem uma quantidade histórica de colaborações premiadas. A que isso se deve?
Rodrigo Brocchi — Falando em tese, o que pode acontecer é que novas coisas são descobertas e contrapostas com o que foi dito antes. Então, verifica-se que a verdade não foi dita por completo ou falsearam a verdade.

ConJur — O que você achou da decisão que declarou constitucional a lei que autoriza a quebra do sigilo bancário pela administração tributária?
Rodrigo Brocchi — Um absurdo, mais uma quebra de garantia fundamental. É inacreditável o que o Supremo vem praticando. Eu li o voto do ministro Celso de Mello e ele aborda de forma bem clara e explícita o absurdo de se quebrar essa garantia e o benefício que se está dando a um terceiro, no caso o fisco, para exercer alguma poder de execução contra nós, contribuintes.

ConJur — O senhor acha que isso pode se refletir em um aumento de denúncias de lavagem de dinheiro?
Rodrigo Brocchi — Pode ser que sim. A gente não sabe quais os limites disso, qual será a interpretação que eles vão dar a partir do momento em que tiverem acesso às nossas contas. É complicado, pois isso serve para qualquer um, ainda mais em um país igual ao nosso, em que há um crime para qualquer ato praticado. Certamente é reflexo dessa decisão do STF [que autorizou a prisão a partir da condenação na segunda instância].

ConJur — Qual é o risco da execução começar com a decisão da segunda instância?
Rodrigo Brocchi — Começar a executar a pena e antes do fim de trânsito em julgado, por si só, é uma injustiça. O procedimento é uma coisa muito importante no Estado Democrático de Direito. Sem ele, acabamos na história de que os fins justificam os meios, punindo-se da forma que quiser. É uma coisa maquiavélica.

ConJur — Essa tem sido a lógica adotada nas investigações no Brasil?
Rodrigo Brocchi — Não é a regra, mas em alguns isso acontece. O Supremo vinha anulando operações em que tinham isso, de que os fins justificavam os meios. Mas agora passou a ser preocupante a vulnerabilidade dos direitos e das garantias fundamentais em função do momento que vivemos.

ConJur — Os advogados têm sido muito criticados por só atacarem a nulidade e pouco o mérito das denúncias. É o momento de se repensar como as defesas são conduzidas?
Rodrigo Brocchi — Não. O exercício da defesa pelo advogado tem que passar tanto pelo mérito quanto pelo respeito ao procedimento. Para isso, temos que usar de todas as cartas que a legislação permite. Não dá para valorar se a defesa está ou não combatendo o mérito de forma direta, se está ou não sendo efetiva. Se há alguma nulidade a ser atacada, tem que ser mostrada.

*Texto alterado às 10h30 de 18/4.

Giselle Souza é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 17 de abril de 2016, 9h37

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...