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sábado, 29 de outubro de 2016

Pensar a atualidade da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen



Por Alexandre Morais da Rosa


Um pouco de Teoria Pura do Direito não faz mal a ninguém. Prometi aos que acompanham a coluna indicar leituras preliminares. E hoje irei falar — brevemente — de Hans Kelsen.

A teoria do Direito proposta por Hans Kelsen[1] representou verdadeiro divisor de águas na Filosofia do Direito em face da maneira pela qual ele propôs o olhar sobre o objeto Direito. Esse olhar tinha pressupostos filosóficos da Escola neokantiana[2], segundo a qual o importante era o método (fundamento neopositivista[3]). É que somente com rigor metodológico poder-se-ia fazer ciência. Tendo em vista o caráter meramente descritivo, Hans Kelsen elegeu as normas jurídicas como seu objeto de estudo, construindo, assim, uma teoria formal, desvinculada, pois, do mundo da vida.

No contexto histórico em que surgiu a Teoria Pura do Direito, a proposta lançada por Hans Kelsen significava o rompimento com o paradigma[4] jusnaturalista[5]. A proposta era a abstração dos aspectos morais, sociológicos e religiosos, bem assim a Justiça, dentre outros, propondo a discussão meramente vinculada ao disposto nas normas jurídicas emanadas pelo Estado (monismo). Formou, destarte, o normativismo Kelseniano, preocupado exclusivamente com a lei e as demais normas positivas, com o escopo de purificar a ciência jurídica, então pululada por diversos fatores. Procurou — e conseguiu — dar personalidade ao Direito, investindo-o de caráter próprio: as normas.

De sorte que a Teoria Pura do Direito pretende analisar cientificamente o seu objeto, munida de pureza metódica, afastando da ciência jurídica qualquer elemento estranho, reduzindo-o à pura norma[6]. O processo de depuração propugnava um duplo decantamento, consistente na exclusão do mundo da vida e de aspectos valorativos, restringindo-se ao mundo lógico: norma jurídica.

Por não ser seu objeto, pouco importa à ciência jurídica como as normas são produzidas ou como deveriam ser, dado que isso seria objeto da Política Jurídica[7]. Com esse desiderato, a tarefa científica restringia-se à descrição, sem qualquer necessidade de discussões valorativas por parte dos juristas, fiel — sempre — ao seu objeto e desprovido de preocupações decorrentes, por exemplo, da Justiça, em decorrência da neutralidade pressuposta[8].

Hans Kelsen distinguia o mundo do ser, próprio das ciências naturais, do dever-ser, no qual o Direito estava situado. Premissa de seu pensamento era de que não existe possibilidade lógica de deduzir o dever-ser do ser, ou seja, de descobrir as normas jurídicas a partir dos fatos — natureza. Com essa dicotomia, o mundo da vida seria regido por leis da causalidade, enquanto o mundo do Direito traria as leis da imputação[9].

Com esse instrumental, a norma jurídica habitaria o mundo do dever-ser e obedeceria à ideia de imputação, decorrente de um comando ou mandamento. Logo, a norma jurídica traria um juízo hipotético de determinada conduta que, uma vez verificada, redundaria na aplicação da correspondente sanção[10].

À formulação das regras de reconhecimento das normas jurídicas, segue-se a aplicação hierarquizada. A estrutura do sistema estaria representada por uma pirâmide normativa, composta no vértice da Norma Fundamental, recurso lógico/pressuposto de validade de um sistema hierárquico, deduzindo-se, formalmente, a delegação da validade da norma superior. A linhagem formal ascendente é o fundamental para o reconhecimento e consequente validade formal da norma jurídica.

De sorte que a primeira manifestação positiva da Norma Fundamental estaria materializada pela Constituição. O conteúdo da Norma Fundamental é meramente formal, sem, pois, vinculação valorativa ou material, não justificando o ordenamento por critérios outros que não o lógico.

A resolução do problema das fontes do Direito foi solvida mediante a implementação de uma perspectiva unificada do Direito, decorrente exclusivamente do Estado. Esse casamento entre Estado e Direito impede a introdução de qualquer pluralismo jurídico, condicionando a validade à emanação formal do Estado[11].

Apesar das críticas a que a Teoria Pura do Direito está sujeita, o importante para efeito deste breve escrito, é que a forma prepondera sobre o conteúdo e o ordenamento jurídico seria estruturado de modo lógico, com inferências formais, colmatadoras da validade das normas jurídicas, emanadas, de qualquer sorte, do Estado. Não se pode, ademais, criticar Hans Kelsen fora do seu tempo, nem o uso que se fez de sua teoria. Mas flutuar sem saber de onde surgiu o discurso kelseniano é um problema para quem defende posições que desconhece.



[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
[2] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito, vol. II. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 136-137, assevera: “Para Kant, a determinação racional da possibilidade e limite do conhecimento puro precede ao conhecimento do real. Da mesma forma, para Kelsen a necessidade de uma teoria pura, que delimite o objeto de conhecimento jurídico e estabeleça as condições e possibilidades do mesmo, precede logicamente o conhecimento das ciências jurídicas positivas. Por isso, a tarefa prioritária da teoria pura é estabelecer as categorias jurídicas distintivas e determinantes, em última instância, do campo temático específico das ciências jurídicas, as categorias constituintes da normatividade. Para este trabalho teórico apelaríamos para o método transcendental kantista, que permitiria a Kelsen estabelecer a legalidade da ciência jurídica”. Na esteira, OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades. Bobbio e a Filosofia dos Juristas. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, p. 51.
[3] OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades. Teoria Jurídica e Novos Direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 5-38.
[4] KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, externa dois conceitos de paradigma: Primeiro: “Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma”. p. 219. Depois: “Os paradigmas são algo compartilhado pelos membros de tais comunidades”. P. 222. Os paradigmas são, assim, como a constelação dos compromissos de grupo.
[5] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, vol. I. Trad. Carmen C. Varriale et alli. Brasília : UNB, 1999, p. 655: “O Jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer”. É uma concepção essencialista, que desconsidera o giro linguístico e a superação da filosofia da consciência, como se verá adiante.
[6] KELSEN, Hans. ¿Qué es la Teoría Pura del Derecho? México: Fontamara S.A., 1995, p. 8, esclarece: “Y por último, apoyándose en la comparación de todos los fenómenos calificados como ‘derecho’, se puede investigar la esencia del derecho, su estructura típica, independientemente del contenido variante que ha tenido en las diferentes épocas y países. Esta es la tarefa de una teoría general del derecho, es decir, de una teoría que no se limita a un determinado orden jurídico o a determinadas normas jurídicas. Esta teoría tiene que precisar el método específico y los conceptos fundamentales con los cuales es posible describir y concebir cualquier tipo de derecho”.
[7] Assim é que a formulação do Direito ficava a cargo do legislador, seara em que o aspecto valorativo desfilava com vigor; ao jurista era descabida essa valoração, mas tão somente a interpretação a-valorativa das normas jurídicas, sem a pretensão de suplantar a tarefa do legislador e, desta forma, violar o dogma da separação de poderes. Conferir: MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994. KELSEN, Hans. O problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
[8] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito... p. 210: “Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico do conteúdo de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada de uma forma determinada — em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito”.
[9] KELSEN, Hans. ¿Qué es la Teoría Pura del Derecho?... p.10-11.
[10] A representação clássica é a de que Se é A, deve ser B, em que A é o ilícito, e B, a sanção.
[11] Conferir: WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1997.



Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2016, 8h00

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O mundo do Direito tem seus Aldrovandos Cantagalos de Monteiro Lobato



EMBARGOS CULTURAIS



Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy


Aldrovando Cantagalo é curioso exemplo da galeria de personagens de Monteiro Lobato. De um modo muito singular, Aldrovando é o mote literário com o qual o escritor paulista também criticou o formalismo e a mediocridade dourada daqueles que pouco ligam para o conteúdo e para as ideias, mas que insistem, com volúpia, na pureza das formas. São os amantes da crase certa, do hífen bem colocado, das mesóclises e das outras óclises. Aldrovando Cantagalo é o caricato gramático putativo do conto “O Colocador de Pronomes”.

Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, São Paulo, em 18 de abril de 1882. Por imposição do avô, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1900. O desinteresse de Monteiro Lobato pelo curso de Direito era total. Parece que Lobato admirou apenas um professor, Pedro Lessa, que lecionava Filosofia do Direito.

Literato até a medula, Lobato bacharelou-se pelas Arcadas, foi promotor, atuou como advogado. Em inúmeras passagens a desilusão de Monteiro Lobato para com o Direito, a Justiça, a profissão do homem de leis, é de todo evidente. Monteiro Lobato também simboliza o livro, foi dos maiores defensores do mercado editorial brasileiro. Escreveu, editou, traduziu. Sempre com um livro debaixo do braço, continuamente lendo, e escrevendo, Lobato nos conta que lia maquinalmente, delirantemente.

A rebeldia e o ceticismo marcaram firmemente suas oposições. Lobato tinha mesmo de ser contra o jurídico e contra todo o tipo de formalidades, afinal ele era mesmo um oposicionista de tudo que tem gosto oficial. Inclusive a ortodoxia dos gramáticos de muitas regras e poucas ideias não fora por ele poupada. É do que trato neste pequeno excerto.

No conto “O colocador de pronomes” essa posição é bem definida. É a estória de Aldrovando Cantagalo. Os pais de Aldrovando, inventou Lobato, se casaram por causa de um problema com o pronome “lhe”. Isto é, quando o pai de Aldrovando pediu ao avô do personagem uma das filhas em casamento, um uso equivocado do pronome fez com que o pai de Aldrovando se visse constrangido a se casar com a irmã que não queria. O problema estava na beleza, era uma questão de atração estética, ainda que sem a percepção moral e histórica de Jacó, entre Lia e Raquel, por quem por sete anos trabalhou para Labão, como se lê na passagem veterotestamentária.

Um problema estético e platônico que se resolveu negativamente nos planos da gramática, dos pronomes, retos, oblíquos (combinados ou não), reflexivos, de preposições justapostas, que não alcançam problemas de sintaxe e de estilo, e muito menos da órbita dos negócios práticos ou dos estímulos do amor. A mãe de Aldrovando caiu nos braços do pai, por um esbalho pronominal: o “lhe” no pedido de casamento teve como resultado a irmã mais próxima, em detrimento da irmã verdadeiramente desejada. Assim, pelo menos, foi o que decidiu o pai das moças. Nesse caso, não valeu a parêmia “Caesar non super grammaticos”, vale dizer, não se respeitou a suprema lei que nos dá conta de que mais vale a gramática do que a autoridade do chefe. O chefe aqui colocou os pronomes onde bem entendia. Acrescentou-se mais uma norma à regra fundamental das línguas, que é a lei do menor esforço.

Aldrovando viveu marcado com o problema do pronome, até porque um pronome mal colocado selou um casamento, e talvez por esse fato é que freudianamente passou a vida corrigindo erros de gramática, todas as horas, em todos os lugares, em relação a todas as placas e sinais de rua e de lojas, e quanto a tudo e a todos que ouvia. Antes de morrer pretendia deixar uma gramática definitiva, explicando todos os problemas da língua, com o que todos as questões sérias do idioma (e da vida) estariam enfrentadas e resolvidas. Aldrovando salvaria o mundo das impropriedades da língua escrita e falada. Cumpria uma missão. Dedicou sua vida à boa colocação dos pronomes e crases e acentos e desinências.

Já idoso, Aldrovando recebeu do editor os originais desse livro maravilhoso (e necessário) para corrigir; para seu desespero, verificou que todos os acentos estavam trocados, os pronomes equivocados e toda a ortografia não passava de um interminável engano, por descuido do corretor. O esforço todo resultara em nada. O susto e a desilusão apressaram seu fim.

A ironia de Lobato pode ser apreendida com a nota que ele acrescentou ao conto, na primeira edição. Apresentou o espólio do falecido Aldrovando, no qual havia numerosos originais, obras inéditas, de importância superlativa. Havia um estudo sobre o acento circunflexo, em três volumes. Aldrovando deixou um importantíssimo estudo sobre a vírgula no hebraico, que chegava a cinco volumes. Deixou também um valioso texto sobre a psicologia do til, em apenas dez volumes. Lobato registrou igualmente que Aldrovando deixou um estudo valioso sobre a crase, vazado em dez volumes. Muita cultura, muita erudição. Segundo Monteiro Lobato essa obra toda, importantíssima, pesava, “ por junto, 4 arrobas, que renderam, vendidos a 3 tostões o quilo, 18 mil réis. ”

Lobato recriminava o excesso de forma e o niilismo do conteúdo. Ao leitor, informou que não sabia do que Aldrovando morreu, e também não importava ao caso. Para Lobato, o que importava era proclamar aos “quatro ventos que com Aldrovando pereceu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes”, encomendando “paz à sua alma”.

O Aldrovando Cantagalo do Direito seria talvez o perseguidor de prescrições, o obcecado com decadências, o colecionador de naturezas jurídicas (inclusive o tópico problema da natureza jurídica do cadáver), o classificador incansável dos tipos de Constituições e de bens fungíveis e infungíveis que há, o farejador das dissemelhanças entre decisões constitutivas e declaratórias, entre normas de forma e de fundo, entre efeitos ex-tunc e ex-nunc, entre condições resolutivas, potestativas e suspensivas, erros substanciais, reais e obstativos, nulidades e anulabilidades, a par do relevantíssimo problema das exceções, especialmente de pré-executividade em matéria fiscal, no sentido de que seriam enfrentadas por recursos de apelação ou por agravos.

O Aldrovando Cantagalo do Direito viveria no nosso conturbado “imaginário dos juristas”, cujo cotidiano que vivemos é marcado por um paradoxo, substancialmente contraditório, no qual uma ideologia conservadora reafirmaria a harmonia no mundo, num contexto de contradições que seriam absolutamente periféricas, como alertado por Roberto de Aguiar, no mais lúcido texto de crítica de ideologia jurídica até hoje escrito[1].

O Aldrovando Cantagalo do Direito seria talvez o organizador de algumas questões de concurso, que ele mesmo corrigiria, cujos recursos julgaria e sobre cujas vidas decidiria, ou seria quem sabe algum causídico embalado no rubi, sempre contribuindo para a produção de tantos e quantos e muitos outros Aldrovandos Cantagalos que há, e que perambulam pelos fóruns, repartições e cátedras da vida, escolhendo quem vai para a cadeia, dando a cada um o que é seu, redigindo manifestos e pareceres e petições, ensinando os poucos autores estrangeiros que leu (e menos ainda os que compreendeu), dizendo que faculdades são boas ou não, e fazendo justiça, ainda que caia o mundo.



[1] Conferir, Roberto A. R. de Aguiar, O Imaginário dos Juristas, in Amilton B. de Carvalho (org.), Revista de Direito Alternativo, São Paulo: Acadêmica, 1993, pp. 18-27.


Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).



Revista Consultor Jurídico, 17 de janeiro de 2016, 8h00

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Reflexões sobre o substrato teórico da argumentação visual



Por Felipe Dantas de Araújo


Nesta quinzena, a coluna tem assinatura do camarada de reflexões sobre suporte a litígios Felipe Dantas. O texto que segue trabalha, principalmente, aspectos teóricos sobre a argumentação visual, assunto frequente aqui na coluna (exemplos aqui e aqui) e que sempre desperta interesse dos caríssimos leitores.

A linguagem nas operações jurídicas
A ciência do Direito atual (assim como as demais ciências humanas) é fortemente influenciada pelo chamado “giro linguístico”, um dos principais desenvolvimentos na filosofia ocidental de meados do século XX em diante. A partir do positivismo lógico de Wittgenstein e do reconhecimento de que a linguagem não é um meio transparente de transmissão do pensamento, derivaram durante todo o século XX perspectivas estruturalistas, como a de Ferdinand Saussure, no sentido de que a linguagem em si é um componente estruturante da realidade, ou pelo menos da realidade percebida. Dessa forma, preocupações com a linguagem passaram a ocupar um lugar de destaque na relação de conhecimento, de forma que a epistemologia é complexificada a partir de investigações sobre o processo comunicacional. Pelo fato de ser o direito um saber que se desenvolve em torno de uma realidade abstrata — o sistema jurídico — expressa linguisticamente em termos de proposições prescritivas[1], a filosofia jurídica recente foi enormemente reduzida à análise crítica da linguagem das normas.

Mas é justamente na atividade de debater e pôr em prática as normas jurídicas, atividade esta que ocorre majoritariamente no campo das práticas e discursos judiciários e judicializados, que o giro linguístico influencia mais fortemente as preocupações da epistemologia jurídica. Da mesma forma que não há, portanto, conhecimento sem linguagem, não há normas jurídicas abstratas sem linguagem e, principalmente, não há argumentação jurídico-judiciária (isto é, aplicação por um órgão judiciário do Direito no caso concreto) sem linguagem. As teorias jurídicas pós-positivistas caracterizam-se justamente por: 1) dar aos princípios valor normativo; 2) aproximar a teoria moral à teoria do Direito, reabilitando a axiologia dos direitos fundamentais; (no que interessa particularmente a este trabalho) 3) dar relevância crucial à dimensão argumentativa na compreensão do funcionamento do Direito; e 4) reabilitar a razão prática, buscando correlações entre legitimidade e argumentação no processo de prática jurídica judicial[2].

Todas as manifestações de linguagem que permeiam o mundo jurídico são majoritariamente simbólicas e textuais. Passados alguns milhares de anos do início da história, ainda é comum encontrar doutrina jurídica que se refere a “normas escritas” como uma grande evolução tecnológica da prática jurídica. Não só a “realidade” do Direito — um sistema jurídico formado por normas escritas — aparece como um conjunto de proposições textuais, mas a prática da argumentação judiciária e o estudo científico do fenômeno jurídico são fortemente baseados em experiências textuais. Na experiência jurídica brasileira, essa forte vinculação entre texto (principalmente o escrito) e Direito se percebe nas práticas processuais cartorárias, onde abundam petições, despachos, certidões e sentenças rebuscadas e formulárias. A argumentação jurídica, entre nós, é uma argumentação discursiva textual, muitas vezes inimiga da lógica em virtude de aspirações de erudição e beletrismo.

Essas interinfluências entre o Direito e a linguagem são relevantes para o suporte a litígios porque, como Marcelo Stopanovski e eu demonstramos no artigo sobre o uso de sínteses gráficas nos julgamentos do Coaf (descrito nesta coluna), a prova e a argumentação jurídica ganham capacidade de convencimento quando tratadas com o uso de ferramentas de análise e síntese gráfica de informações. Essas são duas técnicas paralegais reconhecidas e que tem fundamento também em estudos da ciência da informação na técnica segundo a qual a informação apresentada com o uso de sínteses gráficas ganha contundência.

Sínteses gráficas e argumentação jurídica
Pensadores críticos (como Habermas, Foucault e Ricoeur) valeram-se em larga medida do giro linguístico aplicado ao Direito para problematizar aspectos políticos mais amplos, de relações de dominação e poder, manutenção do status quo e falhas, intencionais ou não, no processo lógico de construção normativa e aplicação prática do Direito. Mas o interesse do suporte a litígios pela relação entre linguagem e Direito é de um escopo mais modesto, limitando-se a investigar como técnicas de argumentação linguísticas e pictóricas alternativas influenciam de forma positiva no convencimento judiciário da prova e da argumentação jurídica. Para tanto, usamos o termo “sínteses gráficas” para nos referir a representações gráficas no contexto da argumentação jurídica.

Segundo Perini[3], por representações visuais, gráficas ou pictóricas entendem-se aquelas cujas características de distribuição espacial de símbolos dizem alguma coisa a respeito do referente. Relações espaciais em uma figura podem representar, obviamente, relações espaciais de outra magnitude ou escala (como em um mapa), relações temporais (como em linhas do tempo) e relações entre propriedades (gráficos em geral e também tabelas). Outras características perceptíveis, como cores e tamanhos diferentes de símbolos e letras, podem também contribuir para o significado de representações visuais, dependendo das convenções adotadas caso a caso, mas o papel referencial de relações espaciais é a característica distintiva das representações visuais. Essa autora ressalta que tabelas podem ser incluídas como representações gráficas porque, por mais que seu conteúdo seja eminentemente textual (o que está escrito nas células da tabela), o que sobreleva na sua forma de expressão é o arranjo de dados meramente textuais em duas dimensões, valendo-se de relações espaciais para modelar relações entre determinados aspectos desses dados. Dessa forma, essas relações espaciais permitem a identificação de outros padrões entre os referentes, em uma expressão um nível acima do que a mera enunciação linguística dos dados.

Estudos específicos sobre o papel do uso de representações visuais na argumentação científica apontam que a cognição humana, mesmo em um campo linguisticamente controlado, como o científico, emite e percebe representações visuais como representações com força e valor em si, e não como meras traduções. O modelo da argumentação como tradução afirma que a figura é traduzida para signos linguísticos (matemáticos ou textuais) e a tradução é o que conta, e não a figura. Todavia, sabe-se que esse modelo da mera tradução não descreve de forma apropriada nem a técnica da tabela, uma figura formada a partir da orientação espacial da linguagem textual.

De fato, também com referência a Perini, a tradução em uma representação linguística serial do conteúdo de uma tabela pode representar bem o conteúdo do que está escrito nas suas células (o que não é surpresa, já que as células da tabela contêm termos escritos), mas falha em capturar o importante efeito da tabela como arranjo espacial: como o conteúdo da tabela se relaciona ou importa nos argumentos que esta suporta.

Todavia, enquanto não há ainda uma preocupação da ciência do Direito mainstream com esse assunto, o que se reflete como ausência de literatura a respeito no campo jurídico, é possível valer-se, interdisciplinarmente, de referências epistemológicas ligadas ao estudo das ciências em geral. Nesse sentido, é banal a observação de que acadêmicos de todos os campos apresentam suas hipóteses em periódicos e conferências científicas por meio de argumentos que têm como suporte não apenas texto, mas também representações visuais. Um paralelo entre o campo da prática jurídica com seus procedimentos judiciários e o campo acadêmico com as exigências do método científico demonstra uma comum ritualização de práticas e procedimentos. Assim, acreditamos que, se o manejo pictórico da argumentação é útil para o campo científico, há também um farto campo de investigação (e uso) de sínteses gráficas na argumentação jurídica.

O possível contra-argumento de que a argumentação jurídica é um discurso a respeito de entes abstratos sem existência física (as normas), o que impossibilitaria as sínteses gráficas na prática jurídica pode ser refutado em três níveis:

1) Fatos concretos são essenciais ao campo judiciário: a argumentação jurídica é um discurso que relaciona um fato (por exemplo, homicídio) a proposições prescritivas sancionáveis (“não matar”, que se desobedecido acarreta uma pena). A perspectiva de que os fatos são vistos pela ciência jurídica tradicional como menos nobres, deixando sua verificação a cargo de peritos, enquanto a tarefa do advogado seria apenas a de brilhar na retórica argumentativa, não afasta a realidade prática de que não existe um caso judiciário sem um fato… E esse fato pode ser mais bem compreendido/representado por meio de uma figura;

2) É possível representar visualmente entidades abstratas: matemática (que utiliza gráficos para expressar conceitos também não geométricos), psicologia (mandalas jungianas), física de partículas (dualidades onda-partícula), representações de extrapolações estatísticas nas ciências sociais econométricas e a própria pirâmide normativa kelseniana são exemplos da possibilidade de ilustrar conceitos, ideias, proposições com o uso pictórico de figuras que não são, grosso modo, ilustrações da realidade, mas tão somente representações visuais convencionais de entes sem existência corpórea;

3) A figura pode ser o argumento: indo além, as hard sciences não usam figuras como meras ilustrações ou representações ou como expressões redundantes de informação apresentada no texto científico. Ao contrário, os cientistas tratam as representações pictóricas que criam como se elas tivessem um papel integral nos argumentos nos quais elas aparecem (p. 913). Esse fenômeno, a prevalência de figuras apresentadas para fundamentar hipóteses e as formas como os cientistas avaliam essas figuras na análise da hipótese como um todo sugerem que a representação visual faz uma contribuição significativa aos argumentos, que é distinta da mera representação linguística.

Para um aspecto prático do texto, destaca-se que, da mesma forma que certos estilos e tipografias “combinam” mais com a função de determinados textos, há, por exemplo, gêneros de gráficos mais adequados para melhor representar fatos e relações de acordo com o que se queira ressaltar (veja quadro).



[1] As proposições prescritivas seriam a forma linguística universal da norma jurídica, distinguindo-as das proposições prescritivas (relativas às hard sciences) e das expressivas (características das expressões artísticas). Vide: BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Bauru: Edipro, 2003, p. 180.
[2] Chain Perelman, Robert Alexy e Jürgen Habermas, todos apresentam em suas obras, sob diferentes formulações, alguma relação de correlação entre legitimidade e argumentação racional. Vide: PERELMAN , Chain. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 222; ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. São Paulo: Landy, 2001, p. 17; e HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre facticidade e validade, v. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p 222 e 245).
[3] PERINI, Laura. Visual Representations and Confirmation. Philosophy of Science, n. 72, p. 913-926, dez. 2005

Felipe Dantas de Araújo é advogado e diretor de Compliance Anticorrupção no Walmart. Mestre em Direito pela UniCEUB e doutorando, também em Direito, pela USP, foi delegado de polícia e procurador federal.

Revista Consultor Jurídico, 28 de outubro de 2015, 14h39

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Dworkin contra o pragmatismo de Posner na decisão judicial





A problemática em torno da relação entre Direito e moral é antiga nas discussões de Teoria do Direito, estando presente desde os dilemas de Antígona, perpassa pelo debate moderno entre juspositivistas e jusnaturalistas até autores contemporâneos. Discussão famosa a respeito do assunto foi travada entre Herbert Hart e Ronald Dworkin. Enquanto Dworkin defendia uma conexão necessária entre Direito e Moral[1], Hart sustentava que, embora existam diferentes conexões contingentes, não há conexões necessárias entre o conteúdo do Direito e o da Moral[2].

Essa polêmica alcançou a teoria da decisão judicial, principalmente quando se começou a indagar se a teoria moral é útil aos magistrados no processo decisório e em que medida ela deve servir de parâmetro para pautar suas decisões.

Para dar conta dessa problemática, primeiramente há que se indagar: mas afinal, o que seria a teoria moral? Em breves palavras, a teoria moral se revela no discurso presente em práticas culturais que buscam dizer como as pessoas devem se comportar, ou seja, o discurso teórico que procura captar a correção do nosso agir no que diz respeito às nossas obrigações sociais. Essa teoria trata sobre questões como: “será sempre errado mentir ou descumprir uma promessa?”; “Será moral o infanticídio?”; “A discriminação sexual é correta?”, etc.

Sobre o tema da viabilidade de se adentrar em debates morais e de utilizar argumentos e raciocínios morais na decisão judicial complexa, recentemente, na condição de orientador, tive a satisfação de presidir a banca de defesa da dissertação de mestrado do acadêmico Bruno Farage, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da UERJ, intitulada “O pragmatismo antiteórico de Richard A. Posner e as respostas da teoria moral para a decisão judicial”.

Em seu trabalho, Farage resgatou a discussão travada entre Richard Posner, que defende uma “abordagem judicial pragmática”, isenta da utilização da teoria moral no processo decisório e os(jus)filósofos morais, argumentando acerca da importância da teoria moral e do raciocínio moral nas decisões judiciais difíceis, corrente capitaneada por Ronald Dworkin e reforçada por Charles Fried[3], Anthony Kronman[4], John T. Noonan Jr.[5] e Martha C. Nussbaum[6]

Seguirei, então, com a dissertação mencionada, para apresentar ao leitor os principais pontos desse debate e a forte crítica de Dworkin à pretendida assepsia moral do pragmatismo de Posner.

O ceticismo moral
Conforme bem destacado no texto de Bruno Farage, a abordagem “posneriana” se diz prática, instrumental, “voltada para frente”, ativista, cética, antidogmática e experimental. Essa perspectiva se intitula fruto de um pragmatismo cotidiano, que valoriza a visão prática das ações e que dá peso crucial às melhores consequências e ao uso da razoabilidade e racionalidade, ao invés de se importar com debates teóricos que possam levar a uma posição consensual ou “verdade moral”[7]. Sem embargo, a abordagem pragmática recorre constantemente à intuição para captar as “necessidades da época” - elevando a opinião pública a um patamar de destaque como guia para a decisão judicial -, assim como à orientação científica (empírica) dos juízes para suprir as lacunas inerentes aos casos difíceis que emergem no Direito.

Todavia, ela é hostil à ideia de utilizar a teoria moral ou qualquer outra teoria considerada “abstrata” para a orientação do processo de tomada de decisão judicial, o que por vezes justifica o rótulo de “antiteoria”.

Além da rejeição à teoria moral, a proposta “posneriana” também tem repulsa pelo “moralismo acadêmico”, o qual, segundo ele, representa a ética aplicada formulada por professores acadêmicos e muitas das vezes utilizada em forma de argumentos morais no processo de tomada de decisão judicial na seara constitucional. Posner acredita que os chamados moralistas acadêmicos buscam impor uma moral uniforme, encontrando-se essa questão explícita na discussão de casos constitucionais. Entretanto, tal ambição seria impossível de se concretizar. Como não há acordo no debate moral, o consenso é impossível neste campo.

A teoria moral seria apenas uma camuflagem, pois, na prática, essa concepção perece diante das intuições dos juízes nos casos concretos. Na leitura pragmática, os juízes são guiados por um “choque de intuições” ou da “oposição do interesse próprio” e, muitas vezes, principalmente em hard cases, a intuição e a crença que prevalecem sobre a teoria moral têm caráter político, ainda que não partidarista.

Daí os magistrados não precisarem tomar partido em questões morais: as questões morais podem ser suprimidas ou reformuladas como questões de interpretação, de competência institucional, de prática política, de separação de poderes ou de stare decisis, etc. Nesse sentido, o raciocínio moral deveria ser substituído pelo raciocínio em sua forma pura (toutcourt).

Para Farage, a antiteoria pragmatista tem sustentáculo em um posicionamento particular em relação à moral denominado de ceticismo moral pragmático. Esse posicionamento não crê na existência de um realismo moral, sendo a moral tão somente um fenômeno local e variável, não se poderia falar em moral universal. O pragmatismo posneriano também acredita em uma forma particular de relativismo moral, rejeitando a possibilidade do seu progresso. Consequentemente, essa posição descredencia a capacidade da moral em resolver conflitos, sejam eles morais ou jurídicos.

A oposição de Dworkin
Essa visão de que as decisões judiciais devem ser pragmáticas, evitando a teoria moral, é enfaticamente combatida por Dworkin. A começar pela crença de que a moral está intrinsecamente ligada ao Direito, crendo a concepção dworkiniana na existência de princípios morais que compõem o Direito como prova dessa conexão necessária. Para Dworkin deve haver, no mínimo, uma fundamentação moral aparente que sustente a afirmação da existência de deveres jurídicos.

Ele considera o fato de que os direitos na sua dimensão jurídica devem ser entendidos como uma espécie de direitos morais, sendo essa tese um elemento crucial em sua Teoria do Direito. As constituições, igualmente, necessitam ser corretamente interpretadas como instâncias que impõem limites morais a quaisquer leis que possam ser validamente criadas. Para tanto, é preciso que a moral tenha um fundamento objetivo, o qual sirva de parâmetro para a correção (ou não) da decisão judicial.

Na leitura de Dworkin, algumas instituições são de fato injustas e algumas ações são realmente erradas, independentemente de existir uma grande quantidade de pessoas que acredite no contrário. Essa ideia se sustenta em seu posicionamento em relação à moral denominado de Independência metafísica do valor[8], significando que qualquer princípio moral, por mais que esteja completamente inserido em nossa cultura, língua e prática, pode ser falso. De outro lado, por mais que o princípio seja completamente rejeitado socialmente, pode ser verdadeiro.Os juízos de valor podem ser verdadeiros e a verdade independe da correspondência com entidades morais especiais. Como as verdades morais são próprias do campo da argumentação, não dependem de instâncias metafísicas, daí a “independência metafísica do valor”[9].

Segundo sua proposta, raciocinar em termos jurídicos significa aplicar a problemas jurídicos específicos uma ampla rede de princípios de natureza jurídica ou de moralidade política. Na prática, seria impossível refletir sobre a resposta correta referente a questões de direito a menos que se tenha refletido profundamente ou se esteja disposto analisar um vasto e abrangente sistema teórico de princípios complexos.

Conforme a abordagem teórica dworkiniana, uma alegação de direito é equivalente à afirmação de que um ou outro princípio oferece uma melhor justificação de algum aspecto da prática jurídica. Melhor no sentido interpretativo, isto é, porque tal princípio se ajusta de forma mais adequada e coerente à prática jurídica, colocando esta sob uma “luz mais favorável”.

Em seu ponto de vista, essa abordagem constitui descrição fidedigna do raciocínio jurídico e de como podemos discutir adequadamente algumas afirmações sobre o que é o Direito. O raciocínio jurídico, por sua vez, pressupõe um vasto campo de justificação, aí incluídos princípios bastante abstratos de moralidade política. Não é possível responder questões jurídicas profundas e controversas sem “mergulhar” no âmbito da teoria.

Nesse sentido, Dworkin entende que, ao se esconder em parâmetros ditos econômicos/racionais e parecer equilibrada, sensata e norte-americana, a abordagem prática de Posner oculta que a abordagem teórica é inevitável mesmo parecendo abstrata[10].

A própria “antiteoria” de Posner é, ela mesma, uma teoria moral. Para Dworkin resta claro que a antiteoria pragmatista é um juízo moral de natureza teórica e global, pois o fato de se questionar se algum tipo de afirmação moral oferece “base sólida” para outra já constitui, em si, uma questão moral.

Ainda, ao tratar dos hard cases, Dworkin propõe que, se os juízes tiverem de lidar com questões morais, seria um erro de categoria – como dizer a alguém com problemas com álgebra que tente usar um abridor de latas – dizer-lhes que resolvam essas questões através da história, da economia ou de qualquer outra técnica não moral, como sugere Posner.

Além de expor as incoerências e contradições da antiteoria pragmatista com os argumentos dos filósofos morais, Farage demonstra como a abordagem antiteórica é incompatível com a conjuntura justeórica ocidental contemporânea. Ao retirar de sua matriz teórica a força da leitura moral do Direito, Posner contribui para o relativismo decisório, escondendo-o em fórmulas ditas científicas na análise dos casos concretos.

No contexto brasileiro, isso se torna especialmente dramático, tendo em vista o fenômeno cada vez mais comum de decisões proferidas sem fundamentação teórica consistente. Pior, tais decisões, em regra, são justificadas por um apanhado de argumentos que fazem um arrazoado pseudo-pragmático, não raro violando expressamente o texto legal. 

De minha parte, penso que, por não levar a sério a decisão judicial e o fundo hermenêutico sempre nela presente, Posner ignora algo essencial: o juiz não sai do mundo para compreender o caso e, sem o pano de fundo existencial que demarca sua posição no mundo, não há perguntas. E a pergunta, como ensina Gadamer, é sempre o ponto determinante da resposta que se busca. É a partir dela [pergunta] que o intérprete/cientista opera. Daí não é possível saltar fora da linguagem e do contexto moral antes de formular os questionamentos de cada caso. O juiz posneriano, quando pergunta, desde antes já estabeleceu parâmetros morais ainda que não perceba.

Assim, ignorar a teoria moral é, antes de tudo, fugir do enfrentamento fundamental para se evitar relativismos decisórios. Ademais, não se pode esquecer que a atual proposta antiteórica de Posner foi formulada após a sua Teoria Econômica no Direito ter sofrido importantes críticas, apontando-se, por exemplo, a inconsistência de adoções simplistas do conceito de eficiência. Desse modo, parece-me que o pragmatismo posneriano é uma tentativa de fugir do necessário debate de teorias do Direito e moral depois do razoável fracasso da sua reflexão teórica anterior. 



[1] Vide, p. ex. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 568 p.
[2] HART, H.L.A. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. 348 p.
[3]FRIED, Charles. Philosophy Matters. Harvard Law Review, Cambridge, v. 111, n. 7, p.1739- 1750, maio 1998.
[4]KRONMAN, Anthony Townsend. The Value of Moral Philosophy. Harvard Law Review, Cambridge, v. 1751, p.1751 -1767, 1 jan. 1998.
[5]NOONAN JUNIOR, John T.. Posner's Problematics. Harvard Law Review, Cambridge, v. 111, n. 7, p.1768-1775, maio 1998.
[6]NUSSBAUM, Martha C.. Still Worthy of Praise. Harvard Law Review, Cambridge, v. 111, n. 7, p.1776-1795, maio 1998.
[7]POSNER, Richard. Direito, pragmatismo e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 299 p.
[8]DWORKIN, Ronald. Justiça para ouriços. Coimbra: Almedina, 2012, p. 33-97.
[9]FARAGE, Bruno da Costa Felipe. O pragmatismo antiteórico de Richard A. Posner e as respostas da teoria moral para a decisão judicial. Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ, 2015, p. 65.
[10]DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 116.

Marco Aurélio Marrafon é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).



Revista Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2015, 16h14

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? O modelo alemão





A classe dos professores mandarins
A figura do imperador do Sacro Império Romano Germânico sempre foi envolta em uma áurea de simpatia popular, ao menos em sua dimensão mítica. O exemplo mais perfeito do soberano “desejado das gentes” é do Frederico Barba-Ruiva (1122-1190), que morreu afogado ao tentar atravessar o rio Sèlef, na região da atual Turquia, quando comandava a Terceira Cruzada, cujo objetivo era retomar Jerusalém das mãos de Saladino. Seu desaparecimento, aliado ao fato de não terem encontrado seu corpo, alimentou lendas muito parecidas com as que até hoje cercam D. Sebastião em Portugal. Frederico tentou centralizar o poder em pleno feudalismo, combatendo os poderes da aristocracia local, no que era visto pelo povo como alguém capaz de controlar os abusos da nobreza sobre os camponeses e habitantes dos burgos.

No Segundo Reich, nascido após as guerras prussianas contra a Dinamarca (Guerra dos Ducados do Elba), a Áustria e a França, o mito do “bom imperador” ressurge com força, especialmente em um cenário marcado pela conservação de enormes poderes pelos reis, príncipes e duques da Alemanha recém-unificada em 1870. Essa rivalidade entre o imperador e a fidalguia regional foi muito bem explorada pelos soberanos da nova Alemanha. Entre os camponeses e a crescente classe operária, o poder central era um anteparo contra os excessos dos representantes do poder local, que, por estar próximo e visível, é sempre mais odioso do que aquel’outro, mais distante e por isso mesmo com menor capacidade de controle. Um exemplo da impopularidade dessa aristocracia rural está no belíssimo filme A fita branca, de 2009, dirigido por Michael Haneke.

Para auxiliá-lo a administrar o estado alemão, sem ficar refém da aristocracia, que já dominava o Exército e a carreira diplomática, após 1870, os imperadores firmaram uma aliança informal com uma classe antiga, mas que só a partir do século XVIII começou a ganhar consciência de seu próprio poder. Tratava-se dos acadêmicos, dos professores universitários, ou, como prefere Franz K. Ringer, dos “intelectuais mandarins”. Ringer formulou a interessante hipótese de que os soberanos do Segundo Reich incentivaram a ocupação de postos relevantes na burocracia estatal pelos professores, aproveitando-se de seus conhecimentos superiores e de seu senso de superioridade moral (quase religiosa naqueles tempos de cientificismo extremo), a fim de criar uma nova aristocracia do mérito.

Como bem assinalou Martônio Mont’Alverne Barreto Lima, a hipótese de Ringer já havia sido proposta em relação à burocracia imperial brasileira em artigo de Eul-So Pang e Ronald Seckinger.[1] Como afirmado na coluna que abriu esta série (clique aqui para ler), nossas ligações com as tradições imperiais de origem austro-alemã são mais profundas do que se imagina.

Alguns efeitos dessa política de Estado da monarquia alemã oitocentista foram logo sentidos. A qualificação de Herr Professor Doktor ganhou contornos de um autêntico título de nobreza e tornou-se praticamente uma partícula do nome civil de seus titulares, que figurava em cartões de visita, placas nas universidades e até em lápides e obituários publicados nos jornais. Esse processo ganhou tal dimensão que, segundo Franz K. Ringer, o recebimento dos títulos de Adel (fidalgo) e Ritter (cavaleiro), da baixa nobreza, que conferiam o direito ao uso da partícula von (de), não mais despertava o interesse dos “acadêmicos mandarins”, salvo notórias exceções como Otto Gierke, que recebeu o título de nobreza na década de 1900 e passou a ostentá-lo em suas publicações como Otto von Gierke.

Mesmo com a queda da Casa de Hohenzollern, a consciência de classe e a ocupação de papeis relevantes na sociedade alemã persistiu na República de Weimar. Os “acadêmicos mandarins”, desse modo referidos em alusão aomandarinato, a classe burocrática do velho Império da China, continuaram prestigiados, embora a crise de 1920-1930 haja comprometido sua condição remuneratória. Enfraquecidos economicamente, com a chegada no nazismo, muitos jovens professores assistentes agiram como alpinistas sociais e usaram da ideologia política (sociais democratas e monarquistas) ou étnica (judeus) dos catedráticos para derrubá-los e ocupar suas cadeiras nas universidades. Muitos dos demitidos nunca mais voltaram à universidade.

Com o pós-guerra, a universidade alemã foi reconstruída, seguindo-se os padrões de excelência do passado. Os professores, embora não mais possam ser considerados como uma classe de mandarins, dada a ampliação da elite econômica, política e cultural na Alemanha, são ainda hoje um grupo especial na sociedade alemã. Pode-se arriscar a dizer que não exista um país no mundo onde os catedráticos sejam tão bem remunerados, respeitados e valorizados quanto na Alemanha. O cargo de professor catedrático tem um prestígio equivalente ao de senador da República. O título de Herr Professor Doktor ainda possui o brilho de uma partícula nobiliárquica e a sociedade lhes reconhece uma preeminência nos negócios públicos sem par em muitas nações desenvolvidas.

Um símbolo dessa condição notável está nos 105 prêmios Nobel que a Alemanha recebeu, o que a coloca em terceiro lugar no ranking das nações agraciadas, perdendo apenas para os Estados Unidos da América (352), por razões óbvias, e para o Reino Unido (120), durante muito tempo a sede do “império onde o sol nunca se põe”. Considerando-se que a Alemanha foi arrasada duas vezes no século XX, não deixa de ser um número impressionante.

Em uma série de colunas sobre ensino jurídico, não se poderia ignorar essas particularidades da Alemanha, o país que será estudado hoje. Vamos agora examinar um pouco sobre a carreira docente alemã, com evidente ênfase no Direito, embora muitos dados sejam intercambiáveis para outras áreas.

É importante conhecer as características do modelo alemão sob 3 aspectos: a) o docente; b) a universidade e c) a formação discente. 

A docência jurídica na Alemanha
Na Alemanha, diferentemente do que se dá no Brasil, a palavra professor é exclusiva do ocupante do cargo equivalente brasileiro a “professor titular”. O professor alemão é o catedrático e somente este. Nesse sentido, os professores assistentes, adjuntos e associados (títulos brasileiros inferiores ao de titular) não correspondem tecnicamente às expressões alemãsrichtiger Professor, Vollprofessor, Ordentlicher Professor. No plano de carreiras alemão, esses docentes são qualificados por letras, que correspondem a sua remuneração. O catedrático é o professor C4, embora raramente se encontre nessa classe os professores C3. É condição prévia para a obtenção desse cargo ter o candidato prestado o exame de habilitação, com a defesa de uma tese (Habilitationsschrif), o trabalho mais importante na carreira de um docente, que anteriormente já deve ter sido aprovado no doutorado (Promotion).

Abaixo de catedrático, há uma série de posições acadêmicas, como a deMitarbeiter, Assitent, Privatdozent, Referent ou ainda außerplanmäßiger Professor. O professor catedrático, à semelhança do modelo brasileiro pré-reforma educacional dos anos 1970, é um polo em torno do qual se associam pesquisadores mais jovens, assistentes de docência, estagiários em números inimagináveis para os padrões brasileiros.

A escolha dos candidatos à cátedra (Lehrstuhl, literalmente “cadeira de lente”) dá-se por meio de uma seleção pública composta de etapas como entrevista, análise de currículo e uma exposição, que pode ser uma palestra ou uma aula, com base em texto escrito para esse fim. Evidentemente, é pré-requisito ter o candidato a Habilitation. As bancas funcionam como autênticos “comitês de busca”, elegendo para as vagas um perfil de professor ideal, cujas características o escolhido deve preencher. Para um brasileiro, esse sistema seria chocante pelo elevado grau de subjetividade e pessoalidade da seleção. Há, no entanto, uma série de contrapesos: não se pode ser professor na instituição que foi a alma mater do candidato, o que impõe uma severa exogenia e faz com que se oxigenem as composições dos corpos docentes. A figura do Doktorvater (orientador) é muito relevante para o futuro da carreira do candidato à docência. 

Existem, ainda, contratações de professores catedráticos entre instituições. Universidades menores ou menos prestigiadas oferecem condições especiais para atrair catedráticos de outras instituições, como, por exemplo, auxílio-moradia, transporte ferroviário e bônus remuneratórios, à moda do que se dá nos Estados Unidos. Não necessariamente o catedrático precisa residir na cidade-sede da instituição. É comum haver professores com duplo domicílio ou mesmo exercendo atividades de pesquisador em um local e docente em outro.

Um número também surpreendente: na Alemanha há, em termos aproximados, 950 catedráticos em cursos jurídicos.[2] Martônio Mont’Alverne Barreto Lima e Marcelo D. Varella, em estudo de enorme impacto sobre a revalidação de títulos estrangeiros no Brasil, reforçam esses números: “A gigantesca Universidade Livre de Berlin possui 50 professores; a Universidade de Bremen tem 15 professores; a de Frankfurt/M. possui 28 professores; a de Munique, 31; e a de Münster, 30. Ocorre que em cada uma destas o número de assistentes científicos, Lehrbeauftragter, Privatdozenten,Professor in Vertretung e de pesquisadores com atividades em centros de pesquisa vinculados à área de Direito ou em atividade conjunta com outras áreas (...), faz com que o reduzido número de professores, somado a esta força de trabalho de boa qualidade, porém não amadurecida, seja triplicado”.[3]

Essa quantidade tão reduzida de professores catedráticos, considerando-se os padrões brasileiros, é ainda mais eloquente quando comparada ao número de alunos: aproximadamente 100 mil discentes. E também ao número de faculdades de Direito: 43 escolas, sendo apenas três privadas, com sede em Hambugo, Wiesbaden e Lüneburg. Um detalhe: essas instituições privadas são pequenas e tentam seguir um caminho de excelência educacional. Exemplo disso é a Bucerius Law School, de Hamburgo, fundada em 2000, com orçamento anual de 16,8 milhões de euros em 2014, que possui menos de 600 estudantes de graduação, com 15 professores em dedicação exclusiva e 30 em tempo parcial, além de assistentes e visitantes. A Bucerius foi uma criação do político e jornalista

Gerd Bucerius (1906-1995), fundador do jornal Die Zeit, que foi juiz nos anos 1930 e lutou contra os nazistas, além de defender judeus. A ideia de Bucerius era criar um think tank e uma escola jurídica de qualidade, para o que deixou expressivos recursos em legado para essa finalidade.

O leitor deve-se indagar neste momento como podem tão poucos catedráticos exerceram o magistério para tantos alunos e em tão poucas instituições? A pergunta é mais do que oportuna e ela se justifica por uma aparente contradição decorrente de haver poucos professores, muitos alunos e poucas faculdades.

Não se quer avançar na estrutura das instituições e na formação discente, do que se cuidará na próxima semana. Logo, a resposta será parcial. Mas, vamos a ela.

Primeiramente, é necessário referir que o número tão pequeno de catedráticos implica a possibilidade do Estado alemão pagar boas remunerações para esses docentes, ao menos seguindo-se o padrão do serviço público e, em termos comparativos, com certas atividades do mercado privado. Segundo dados do CIHE - Center for International Higher Education, [4] no topo da carreira docente, a Alemanha paga o equivalente a 6.377 dólares norte-americanos. Na Europa, está abaixo do Reino Unido (US$ 8.369), Holanda (US$ 7.123), dois países com custo de vida mais elevado que o alemão. A Itália surpreende com o valor de 9.118 dólares norte-americanos, o mais alto padrão em solo europeu, perdendo apenas para o Canadá, quem melhor paga os catedráticos no mundo, com remuneração de U$9.485. O Brasil paga U$4.500 a seus professores titulares em final de carreira, o que implica uma diferença de 104 dólares a menos do que o padrão japonês. Esses dados variam muito se forem tomados pela média do início, do meio e do final da carreira. Nessa hipótese, a média brasileira seria de 3.179 dólares. Como, para esta coluna, importa somente os valores pagos aos catedráticos, o quantum médio é desconsiderado.

Em segundo lugar, deve-se ter em mente que o professor catedrático alemão não possui um regime de aulas sequenciais como se dá no Brasil. Ele profere a Vorlesung, uma espécie de aula magna, em períodos específicos (semanais ou quinzenais), para auditórios lotados com 100, 200 a 400. Em muitos casos, as aulas ocorrem em pavimentos diferentes, com uma parte da turma assistindo a Vorlesung por meio de telões, às quais também comparecem os alunos do Magister, um curso de pós-graduação, de variável natureza, conforme a universidade que o ofereça, equiparável, na maior parte dos casos, a uma especialização ou, mais raramente, a um mestrado. Posteriormente, os alunos reúnem-se com os assistentes e vão fazer estudos de casos, fortemente baseados no método subsuntivo e na exegese do Código Civil, nas disciplinas de Direito Civil.

Finalmente, há uma maior liberdade no comparecimento dessas aulas e no modo como os alunos se relacionam com a universidade e com as avaliações internas, do que se cuidará na próxima coluna.

Inserção jurídico-política do professor de Direito na Alemanha
A forte tradição de “acadêmicos mandarins”, embora relativamente transformada após 1949, não poderia deixar de repercutir nos dias de hoje. Os professores de Direito não se isolam em suas cátedras e não são mal vistos quando deixam a universidade para atuar politicamente ou em órgãos públicos. É muito comum a participação dos catedráticos de Direito no processo legislativo, por meio de oferta de projetos de lei ou pela crítica sistemática (e impiedosa) ao trabalho parlamentar, quando não são os próprios professores que se candidatam a cargos públicos ou assumem a chefia de ministérios, agências, autarquias e afins.

É igualmente vulgar a indicação de professores para cargos nos tribunais regionais ou superiores, quando não ao próprio Tribunal Constitucional Federal. Como bem destacou Tilman Quarch, em seu artigo Introdução à Hermenêutica do Direito Alemão: Der Gutachtenstil, publicado no volume 1 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, a relação entre professores e juízes é de complementariedade e de enorme respeito pelo trabalho de lecionar e de julgar, a despeito das críticas ácidas dos docentes a muitas decisões das cortes alemãs.

Existe ainda uma forte tradição de clivagem ideológica entre os professores de Direito. Os dois grandes partidos políticos – a União Democrática Cristã e o Partido Social Democrata – possuem fundações, à semelhança do que ocorre no Brasil, que financiam pesadamente estudantes e pesquisadores, além de publicações de teses (que são pagas pelos autores) e outros projetos acadêmicos, diferentemente do que se dá no Brasil. Desde cedo é possível identificar a orientação ideológica de muitos docentes, o que se reflete nas universidades. Em larga medida, isso não afeta a independência científica, porque não há uma apropriação “partidária” das instituições em níveis que comprometam sua independência. 

Conclusões parciais e algumas comparações: é um sistema ideal? 
O modelo de docência universitária alemão, particularmente a jurídica, tem enormes méritos. A remuneração é boa, mas não é a maior da Europa. Os catedráticos possuem condições de trabalho e de pesquisa muito superiores a seus congêneres europeus e ainda podem ser “disputados” em um saudável processo de concorrência entre as instituições, que só encontra paralelo equiparável nos Estados Unidos. A seleção é mais dinâmica e focada nas necessidades da instituição e não somente em aspectos formais que muitas vezes não selecionam os melhores candidatos. A existência de um grande número de assistentes, adjuntos e associados em volta do catedrático permite-lhe realizar pesquisas de maior qualidade, concentrar seu tempo para preparar aulas de melhor nível, ao passo em que também lhe dá o reconhecimento social invulgar em termos contemporâneos. A representação social do professor é superiormente interessante na Alemanha.

A despeito de suas grandes qualidades, o modelo alemão, no que se refere à docência, também possui problemas e alguns deles têm sido objeto de críticas por parte de setores da sociedade. As mais graves, como se verá, dizem respeito ao modo como os estudantes são avaliados.

Limitando-se o problema aos professores, existem algumas censuras veladas ao método de seleção, que abriria muito espaço para o peso do orientador do candidato. É também crescente a discussão sobre as relações entre oDoktorvater (orientador) e os doutorandos. O número de denúncias de plágio cresceu muito e isso causou espécie na sociedade alemã. Foi muito divulgado o escândalo envolvendo a tese de doutorado de Karl-Theodor Freiherr von und zu Guttenberg, então ministro da Defesa do governo Merkel, acusado de plágio no trabalho que apresentou à Universidade de Bayreuth, sob orientação de Peter Häberle. O barão Guttenberg, ou barão Googleberg, como se tornou jocosamente conhecido, era cotado para o cargo de chanceler federal e um nome muito popular na Alemanha. Jovem, carismático, bem sucedido como ministro e com impecáveis credenciais familiares: seus antepassados militaram ativamente contra Hitler e envolveram-se na Operação Valquíria. Sua reputação foi abaixo com o plágio, o que simboliza o valor de um título acadêmico na Alemanha.

A remuneração dos pesquisadores e assistentes é considerada baixa e seus vínculos são precários. Eles firmam contratos temporários, que são renovados a depender de seu desempenho e das verbas para se manter o grupo vinculado ao catedrático.

A transposição do modelo de docência alemã para o Brasil implicaria se rever a quase inexistência de estrutura de carreira real nas universidades brasileiras. À exceção de alguns departamentos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, são poucas as escolas jurídicas que ainda dão posição de preeminência aos professores titulares. Ademais, na prática, não seria sustentável a atual divisão entre professores catedráticos (na acepção alemã) e os não catedráticos. Outra incompatibilidade está na administração de equipes de docência e pesquisa, o que, com nossas regras de estabilidade, é praticamente inviável. Para não se recordar da hipótese de migração por “concorrência” entre instituições.

Elogiar ou se inspirar no modelo de docência alemã é muito interessante. Mas, não se pode perder de vista que os regimes jurídicos únicos são fortes obstáculos a transposição do exemplo da Alemanha. Embora se possa ficar com a seguinte reflexão: não teriam sido esses regimes jurídicos, como o instituído pela Lei 8.112/1990, uma reação natural aos desmandos e ao descontrole, ao compadrio e à pessoalidade patrimonialista da Administração brasileira?

Na próxima coluna, a formação docente e, se houver espaço, o currículo e o método de ensino alemães.

***

Agradeço imensamente à leitura e às contribuições de Tilman Quarch, Jan Peter Schmidt e a Martônio Mont’Alverne Barreto Lima. 



[1] Comparatives Studies in Society and History, v. 14, n.2, 1972, pp. 215-244. Cambridge Univ. Press, London. (Agradeço a Martônio Mont’Alverne Barreto Lima pela referência).


[2] Parte dos dados quantitativos (informações não oficiais) foi extraída deste site: http://www.lto.de/jura/studium/uni/augsburg/. Acesso em 2-2-2015.


[3] P.156



Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.



Revista Consultor Jurídico, 4 de fevereiro de 2015, 10h53

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Quem só pode se defender dos fatos acaba sendo atingido pelo Direito


Quem só pode se defender dos fatos acaba sendo atingido pelo Direito




"No princípio era o Verbo (...). Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.” (João 1:1-4).

Nesse ponto não poderia ser mais correto o Evangelho: no princípio sempre estará o verbo, pois o ser humano só apreende e consegue organizar o caos em que se apresentam os fatos através da linguagem. “Ser que pode ser compreendido é linguagem”.

No direito, contudo, não obstante a imanente vinculação entre normas e fatos, isto é, entrelinguagem normativa e realidade, muitas decisões e julgamentos que são desenvolvidos nos tribunais pressupõem, como se fosse possível, uma clara e indiscutível separação entre os juízos de direito e juízos de fatos. O presente artigo pretende discutir a correção ou falibilidade dessa premissa, que tem, notadamente em processos acusatórios, especial importância.

Quando se cuida de conhecer a vida pelo olhar do direito, não é difícil demonstrar, há uma indefectível relação entre fatos e normas. Se, por um lado, não há como destacar na ordem jurídica as normas que aplicaremos ao caso concreto sem uma prévia consideração dos fatos que foram entendidos como importantes para a questão a ser decidida, por outro, também não é possível destacar do caos — que é a realidade — os fatos que julgamos elementares ao caso concreto, sem anteciparmos, ainda que abstratamente, as normas que — pressupomos — deverão ser aplicadas à situação da vida tornada litigiosa. 

Explicando ainda mais um pouco, o jurista apenas pode aproximar-sejuridicamente dos fatos a partir da classificação ou descrição jurídica que, certo ou errado, entenda por bem imputar-lhes. No mundo do direito, não há possibilidade de conhecer fatos — distingui-los da realidade total — sem a intermediação das normas jurídicas, como também não há possibilidade de conhecer as normas — distingui-las da ordem jurídica total — sem a intermediação dos fatos antecipados como importantes à nossa decisão. Um concorre para a distinção cognoscitiva do outro.

Podemos, é certo, tomar conhecimento de “fatos puros” — “fatos puros” que, de todo modo, bem observados, não passam de distinção cognoscitiva filtrada por nossa linguagem comum, ou linguagem de alguma ciência natural -, mas, se desejarmos pensar ou descrever os fatos juridicamente, apenas podemos fazê-lo à consideração simultânea de normas que utilizamos como premissa de descrição-distinção jurídica dos fatos que observamos; de outra mão, em verdadeiro círculo hermenêutico (H-G Gadamer e Konrad Hesse), apenas conseguimos destacar essas premissas normativas do emaranhado que é a ordem jurídica total, porque, em simultâneo processo, nos valemos dos fatos que destacamos – abstratamente – da realidade. É, simplificando, o contínuo ir do fato à norma e da norma ao fato de que falava K. Engisch[1].

Não obstante essas considerações, no direito brasileiro, especialmente nos processos acusatórios — na ação penal e de improbidade administrativa —, tem-se admitido a condenação do acusado com base em dispositivo diverso do que foi proposto na petição inicial; tudo sob a consideração de que o acusado se defende dos fatos, não da norma que os qualifica, partindo-se da premissa de que a sua condenação com base em norma diversa da apontada na inicial não lhe prepara qualquer prejuízo, nomeadamente, diante dos princípios do contraditório e da ampla defesa.

O que fundamenta essa orientação jurisprudencial, contudo, agora podemos dizê-lo, é a crença de que haveria sempre uma clara distinção entre a atividade de delimitar os fatos e aquela outra, em que eles são classificados ou definidos juridicamente. Ou seja, persiste a crença, divulgada sem contestação, de que o juízo sobre os fatos não compromete o juízo sobre a sua qualificação jurídica (juízo sobre normas), e vice-versa. 

Entretanto, como veem, a estarem corretas as premissas que introduziram o presente artigo, no mínimo, devemos tomar a sério essa antiga orientação de nossos tribunais de que, em nenhuma circunstância, o acusado sairá prejudicado pelo fato de o magistrado, ao final do processo, conferir aos fatos que lhe são imputados uma classificação jurídica diferente daquela que foi expressamente sugerida na inicial e que, o que é mais grave, foi tomada em consideração durante toda a instrução do processo. Confrontemos essas questão de forma analítica.

Tanto nas ações penais como nas ações de improbidade administrativa, como se sabe, costuma-se ressaltar a possibilidade de o órgão judicial conferir aos fatos qualificação diversa daquela constante da inicial acusatória, para, inclusive, condenar o acusado em sanção mais grave do que a sugerida pelo acusado. Aliás, o Código de Processo Penal veicula comando expresso sobre o tema, ao dispor no seu art. 383 que “O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave”. No artigo 384, do CPP, permite-se, mais do que isso, a possibilidade de novo enquadramento, inclusive para incluir elementar não contida na ação penal (mutatio libelli), exigindo-se, nesse passo entretanto, que a petição acusatória seja emendada com o fim de propiciar o contraditório[2].

No processo civil, o tratamento é diferenciado, já que conjugados os artigos 264 e 294 do CPC, conclui-se que o autor poderá aditar livremente o pedido, apenas até a citação do acusado (artigo 264), mas, após esse momento processual, só poderá alterar o pedido ou a causa de pedir com o consentimento do réu (artigo 294). Entretanto, não obstante os limites expressos do artigo 293 e artigo 460, do CPC, que estabelecem, respectivamente, a interpretação restritiva do pedido bem como a vinculação da decisão judicial aos limites do pedido e dos seus fundamentos, a jurisprudência, seguindo orientação do STJ, tem entendido que também na ação de improbidade administrativa, à similitude do que ocorre no processo penal, o magistrado poderá conferir qualificação/classificação jurídica aos fatos diversa daquela que foi proposta na petição inicial, com base na teoria da substanciação (veja o REsp 439.280/RS)[3].

Como se sabe, numa como noutra esfera, na ação penal como na ação de improbidade administrativa, a conduta do magistrado orienta-se pela máxima de que o réu se defende dos fatos, e não da qualificação jurídica que tenha sido proposta pelo acusador. Portanto, exaurida a instrução probatória, certificados os fatos, não implicaria qualquer dificuldade ou prejuízo aos direitos do réu a circunstância de o magistrado conferir aos fatos qualificação jurídica diversa da proposta na inicial. Nós estamos acostumados, portanto, a acreditar que o magistrado apenas confere aos fatos — que seriam trazidos puros pelas partes — a correta qualificação jurídica, não alterando com isso a substância dos fatos que lhe foram trazidos a consideração (da mihi factum, dabo tibi jus), ou seja, na nossa tradição hermenêutica, acredita-se que há uma clara distinção entre a atividade de delimitar os fatos e aquela outra de lhes qualificar juridicamente.

Contudo, como dizíamos, mais contemporaneamente, a partir de H-G Gadamer, juristas como Konrad Hesse, têm acentuado que, na atividade de qualificação dos fatos, o mais certo é que ocorra um verdadeiro círculo hermenêutico, em que o intérprete seleciona a norma a partir do fato colhido na realidade, mas, da mesma forma, o fato é selecionado tendo em consideração uma prévia antecipação da norma que se pretende aplicar. Se isso é verdade, não é difícil perceber que, no mais das vezes, o acusado tenderá — durante toda a instrução probatória — defender-se não apenas dos fatos puros, mas dos fatos como foram qualificados pelo autor. Aliás, em processo judicial e no âmbito do direito, não existem fatos puros, mas fatos qualificados por uma ou outra norma.

O autor não imputa “fatos puros” ao acusado. Diversamente, são-lhe imputados fatos previamente destacados da realidade à luz de abstrata consideração ou qualificação normativa. Descrição de fatos no direito é, em primeiro lugar, descrição ou imputação jurídica de fatos. 

Ao jurista hoje não representa qualquer novidade afirmar-se que a relação entre fatos e normas nem sempre é de fácil concretização. E não fosse por outras razões, lembra R. Alexy, uma dificuldade imanente encontra-se presente em qualquer submissão de fatos concretos a normas jurídicas: enquanto as normas se revelam, em regra, com considerável índice de abstração e generalidade, contendo poucos caracteres distintivos (Merkmale), os fatos são individuais e concretos, apresentando-se ao mundo com infinitos indícios e marcas distintivas que os podem separar no universo de acontecimentos que os cercam. Na verdade, são essas infinitas marcas distintivas que individualizam um fato e o distinguem dos restantes fatos que o rodeiam[4].

Entretanto, no que tange ao fato ao qual se dirige uma norma, para que se possa isolá-lo do mundo da vida com as características que têm importância para a aplicação do direito, há de se perceber e descrevê-lo com a ajuda doTatbestand hipotético da norma. De outro lado, na exata dedução de Alexy, essas características relevantes do fato podem oferecer motivo para, no caso concreto, não se aplicar a norma que inicialmente se tinha diante dos olhos, assim como para precisar, ou rejeitar algumas marcas distintivas do próprioTatbestand normativo, ou mesmo para acrescentar-lhe alguns indícios antes considerados como não relevantes[5]. Dá-se aqui o instrutivo ir e vir de perspectiva de que nos falava K. Engisch, isto é, para compreender e delimitar o caso concreto, carecemos da perspectiva da norma; para compreender a norma, precisamos da perspectiva no fato[6].

Assim, não obstante se reconheça que o acusado deva se defender dos fatos, o certo é que ele se defenderá dos fatos como foram qualificados pelo próprio autor. Como consequência, por exemplo, dificilmente, o autor irá imputar ao acusado a prática de fato juridicamente por ele classificado como suporte fático (motivo) de aplicação da artigo 9º da Lei 8.429/92, e o acusado irá se defender destes fatos como suporte fático previsto no artigo 10 da mesma lei — e vice-versa. A exceção de classificação normativa abertamente indevida e teratológica, o mais certo é que o acusado se defenderá, durante toda a instrução probatória, dos fatos como juridicamente descritos e qualificados pelo autor.

Atento a isso, em posição contrária à nossa jurisprudência, tem o Tribunal Constitucional alemão emprestado especial homenagem ao princípio da não-surpresa processual, não aceitando que qualquer condenação seja importa ao acusado sem que antes ele possa falar dos motivos de fato e de direito que, ao final, concretamente servirão de base à sua condenação. Cumpre ao Tribunal, portanto, não lhe surpreender com condenação baseada em fatos, ou normas de direito, que não foram indicadas na ação inicialmente admitida pelo órgão julgador.

Fala-se na verdade em três níveis ou estágios de realização do direito à audiência perante os Tribunais (das Recht auf rechtliches Gehör): (1) num primeiro nível, obrigam-se os Tribunais a proporcionar à parte conhecimento completo sobre todas as manifestações da outra parte, o que abrange todos os fatos por e meios de prova apresentados e indicados pela parte contrária; envolve também as opiniões jurídicas com base nas quais o próprio Tribunal pretende tomar sua decisão, além de informar a parte sobre aquelas opiniões sobre as quais elas não precisam contar (direito a não se surpreender); (2) no outro nível, implica a possibilidade efetiva de a parte poder se manifestar por escrito sobre as questões de fato e de direito; (3) e, por fim, no terceiro nível, o direito a que os Tribunais considerem nas suas decisões os argumentos essenciais apresentados pelas partes[7].

Aliás, no processo penal, anote-se, o Código de Processo Penal alemão (SfPO) é absolutamente rígido quanto à impossibilidade de mudança nos fundamentos legais de uma decisão, ao ponto de estabelecer no seu parágrafo 265, (1), que o acusado não pode ser condenado com base em uma lei diferente daquela que foi indicada na ação inicialmente admitida pelo tribunal, sem que antes seja comunicado desse mudança de posição e sem que seja dada a ele oportunidade de defesa[8].

No Brasil, também já encontra repercussão entre ilustradas vozes o princípio da não surpresa em matéria de processo acusatório. Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero acentuam o direito à segurança do cidadão, precisamente, na suas relações com o poder judiciário, especialmente, em respeito ao princípio do contraditório e ampla defesa. De fato, “por força dessa nova conformação da ideia de contraditório, a regra está em que todas as decisões definitivas do juízo se apoiem tão somente em questões previamente debatidas pelas partes, isto é, sobre matéria debatida anteriormente pelas partes. Em outras palavras, veda o juízo de ‘terza via’. Há proibição de decisões surpresa (Verbot der Überrachungsentscheidungen)[9]”. É isso.


[1] K. Engisch. Logische Studien zur Gesetzesanwendung, p. 15, cfe. nota de rodapé em Robert Alexy. Elemente einer juristischen Begründungslehre, p. 115.

[2] Veja-se por todos o excepcional estudo de Calil Simão. Improbidade Administrativa. Teoria e Prática. 2ª ed., J.H. Mizuno, 2014, p. 662.

[3] Calil Simão. Improbidade Administrativa. Teoria e Prática. 2ª ed., J.H. Mizuno, 2014, p. 661 e seguintes.

[4] Robert Alexy. Elemente einer juristischen Begründungslehre, 115.

[5] Robert Alexy. Elemente einer juristischen Begründungslehre, p. 115/116.

[6] K. Engisch. Logische Studien zur Gesetzesanwendung, p. 15, cfe. nota de rodapé em Robert Alexy. Elemente einer juristischen Begründungslehre, p. 115.

[7]BodoPieroth/Bernhard Schlink. Grundrechte – Staatsrecht II. 16ª ed., Heidelberg, 2000, p. 274/275.

[8] SfPO - § 265 (1) Der Angeklagte darf nicht auf Grund eines anderen als des in der gerichtlich zugelassenen Anklage angeführten Strafgesetzes verurteilt werden, ohne daß er zuvor auf die Veränderung des rechtlichen Gesichtspunktes besonders hingewiesen und ihm Gelegenheit zur Verteidigung gegeben worden ist.

[9] Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero. Curso de Direito Constitucional. SP: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2013, p. 732.



Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.



Revista Consultor Jurídico, 23 de setembro de 2014, 20:47

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O pensamento de Hannah Arendt e os paradoxos dos direitos humanos





Em “As Origens do Totalitarismo”, importante livro de Hannah Arendt (1906-1975), há um fragmento provocativo, que nos remete a uma reflexão sobre algumas perplexidades e paradoxos dos direitos humanos[1]. Esse precioso livro discute o antissemitismo, o imperialismo e, principalmente, os regimes totalitaristas[2]. O livro foi escrito nos Estados Unidos, originariamente em inglês (que não era a língua materna de sua autora), em contexto de muita angústia, que marcou o pós-guerra. É mais um desdobramento intelectual das denúncias que se colhiam contra o nazismo e o estalinismo. Trata-se de livro emblemático dos tempos da guerra fria. Os temas e posições que Hannah Arendt enfrentou e revelou, no entanto, são absolutamente atuais[3]. Há direitos humanos sem vínculo de seus titulares com alguma forma política organizada e detentora de força que os garanta?

As declarações de direitos humanos são identificadas como marcos decisivos na história: para Hannah Arendt, o homem, e não uma entidade metafísica, e nem os costumes, poderiam ser identificados como fontes exclusivas das leis e das prescrições dos comportamentos. Livre de todas as tutelas, o homem imaginário da tradição iluminista - - na qual triunfou a agenda dos direitos humanos - - percebeu que a maioridade o alcançava. No entanto, no ambiente de uma sociedade emancipada e secularizada, havia uma implicação que incomodava: a invocação de direitos humanos, por parte de seus destinatários, exigiria a mediação do Estado. Esse o núcleo do argumento de Hannah Arendt, nesse provocante excerto.

Ao homem se outorgou uma soberania em questões de lei (os direitos humanos são para os homens garantidos), enquanto ao povo (ainda que tomado de modo ficcional) se definiu uma soberania em questões de governo. Constata-se, então, mais um paradoxo: as declarações de direitos humanos dirigem-se a um ser humano abstrato, que não existiria em parte alguma, justamente porque existia em todas as partes e lugares. Selvagens das mais remotas paragens deteriam esses direitos, ainda que não se explicasse exatamente para quê. Por isso, provocou Hannah Arendt, a questão dos direitos humanos deveria considerar um contexto político de emancipação nacional: apenas uma soberania nacional teria capacidade de assegurar a fruição do rol desses direitos, não para um ser abstrato; o destinatário é o titular de nacionalidade que garanta esses direitos, por intermédio de arranjos institucionais, dotados de poder de coerção[4].

Imaginaria e originalmente inalienáveis, porque concebidos para serem independentes de todos os governos, os direitos humanos perderiam o sentido prático, na exata medida em que seres humanos desprovidos de vínculos políticos próprios de cidadania não contariam com governos que protegessem direitos disponibilizados pelas declarações do século XVIII. Apátridas e membros de minorias, afirmou Arendt, não deteriam direitos em seu sentido fático e elementar, porquanto lhes faltaria um governo estabelecido que os defendesse. Nesse rol, ao longo da segunda guerra mundial, poloneses, judeus e alguns russos (inclusive aristocratas)[5].

Idealistas, filantropos e juristas levavam a frente o tema dos direitos humanos, assunto que até o fim do século XIX ainda não fora incorporado aos projetos dos grandes partidos políticos. Arendt constatou um tratamento marginal[6]. Direitos civis se confundiam com os direitos humanos, na gramática jurídica do século XIX; isto é, os seres humanos que contavam com alguma proteção eram justamente os cidadãos que viviam em seus próprios Estados. Por isso, problematizava Arendt, os direitos humanos seriam inexequíveis quando os respectivos titulares não detinham cidadania[7]. Para tudo prestariam, mas para nada serviriam, na medida em que seus destinatários putativos não detivessem meios para reivindicá-los.

Quando as grandes tragédias engendradas pela política redundaram na perda de proteção estatal, os apátridas que perambulavam pela Europa viram-se em situação mais delicada do que a vivida pelos estrangeiros inimigos. Segundo Hannah Arendt os refugiados eram perseguidos pelo que eram (raça ou condição econômica, a exemplo dos judeus, dos ciganos ou dos aristocratas russos) ou pelo que pensavam ou acreditavam (anarquistas, democratas, insatisfeitos, ortodoxos)[8].

As fórmulas norte-americanas (vida, liberdade e procura da felicidade) e francesas (igualdade perante a lei, liberdade, proteção à propriedade e soberania nacional) eram inoperantes para quem não contasse com um governo para defendê-las[9]. O problema dos refugiados não era - - necessariamente - - a igualdade perante a lei; o que os afetava, efetivamente, era a ausência de lei. Ninguém, ou nenhum governo, reclamaria proteção sobre direitos de quem não comprovasse vínculos justificativos de alguma medida de intervenção[10]. Comparativamente, Arendt nos remete à liberdade de opinião de um encarcerado: esta é fútil; nada que o encarcerado pensa teria alguma importância. Resumidamente: não haveria proteção para quem perdesse uma relação comunitária politicamente reconhecida[11].

A sensação de perda de laços com a comunidade política resultaria em uma sumária expulsão da própria humanidade. Os direitos humanos, assim, deixariam de persistir, justamente porque dependentes de uma pluralidade humana organizada[12]. Hannah Arendt reconhecia que essas ideias qualificavam uma confirmação tardia (e irônica) dos argumentos de Edmund Burke (1729-1797)[13], avatar dos conservadores, crítico mais veemente do ideário da revolução francesa[14], para quem os governos não são criados em virtude dos direitos naturais[15]. Burke foi impugnado por Thomas Paine (1737-1809), inglês, que que viveu nos Estados Unidos, conhecido entusiasta defensor dos direitos do homem[16].

Burke condenava a abstração simbólica da agenda dos direitos humanos; preferia uma herança histórica vinculada (uma ligação política com uma entidade que conferia e que garantia direitos) do que uma formulação ideal de direitos inalienáveis do homem. Arendt remete-nos a Burke, para quem os direitos emanam de uma organização política, e não de alguma lei natural, e muito menos de algum mandamento divino[17].

A perda de direitos, decorrentes da perda de liames políticos, resultaria na impossibilidade de se poder invocar proteção a direitos humanos, validando-se, pragmaticamente, as premonições de Burke[18]. Por isso, afirmou Arendt, os sobreviventes dos campos de concentração entenderam que “a nudez abstrata de serem unicamente humanos era o maior risco que corriam”[19].

Os direitos humanos (ou qualquer outra garantia, a exemplo da igualdade), segundo Hannah Arendt, ao contrário de quase tudo que afeta a existência humana, não é um dado, mas o resultado da ação de organização humana, ainda que orientada para princípios de justiça. Para Arendt, não se nasce igual, torna-se igual. O pertencimento a um grupo politicamente organizado é que garante essa decisão e essa constatação[20].

Quanto se reduz o ser humano a um estado de necessidade bruta e de selvageria, desprovido de qualquer forma de proteção estatal, a agenda dos diretos humanos é um dado flutuante em um espaço inexistente. A inserção de todos os seres humanos, nesse âmbito de proteção, é a tarefa de nossa geração, que se realiza por medidas políticas e econômicas de emancipação e de inserção. É, ao mesmo tempo, o nosso desafio, e a nossa redenção. 
[1] Arendt, Hannah, As Origens do Totalitarismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 395 e ss. Tradução de Roberto Raposo.
[2] O tema dos direitos humanos em Hannah Arendt foi explorado por Lafer, Celso, A Reconstrução dos Direitos Humanos- um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[3] O tema dos direitos humanos em Hannah Arendt foi explorado por Lafer, Celso, A Reconstrução dos Direitos Humanos- um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[4] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 396.
[5] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 397.
[6] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 398.
[7] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 399.
[8] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 400.
[9] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 401.
[10] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 402.
[11] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 403.
[12] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 405.
[13] Edmund Burke foi biograficamente tratado em Kirk, Russell, Edmund Burke- A Genius Reconsidered, Wilmington: ISI Books, 2009.
[14] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 407.
[15] Cf. Burke, Edmund, Reflexões sobre a Revolução em França, Brasília: Editora da UnB, 1997, p. 89. Tradução de Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura.
[16] Paine, Thomas, Os Direitos do Homem, Petrópolis: Vozes, 1989. Tradução de Jaime A. Clasen.
[17] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 408.
[18] Cf. Arendt, Hannah, cit., loc. cit.
[19] Arendt, Hannah, cit., loc. cit.
[20] Cf. Arendt, Hannah, cit., p. 410.


Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2014, 08:00


Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...