Por Felipe Dantas de Araújo
Nesta quinzena, a coluna tem assinatura do camarada de reflexões sobre suporte a litígios Felipe Dantas. O texto que segue trabalha, principalmente, aspectos teóricos sobre a argumentação visual, assunto frequente aqui na coluna (exemplos aqui e aqui) e que sempre desperta interesse dos caríssimos leitores.
A linguagem nas operações jurídicas
A ciência do Direito atual (assim como as demais ciências humanas) é fortemente influenciada pelo chamado “giro linguístico”, um dos principais desenvolvimentos na filosofia ocidental de meados do século XX em diante. A partir do positivismo lógico de Wittgenstein e do reconhecimento de que a linguagem não é um meio transparente de transmissão do pensamento, derivaram durante todo o século XX perspectivas estruturalistas, como a de Ferdinand Saussure, no sentido de que a linguagem em si é um componente estruturante da realidade, ou pelo menos da realidade percebida. Dessa forma, preocupações com a linguagem passaram a ocupar um lugar de destaque na relação de conhecimento, de forma que a epistemologia é complexificada a partir de investigações sobre o processo comunicacional. Pelo fato de ser o direito um saber que se desenvolve em torno de uma realidade abstrata — o sistema jurídico — expressa linguisticamente em termos de proposições prescritivas[1], a filosofia jurídica recente foi enormemente reduzida à análise crítica da linguagem das normas.
Mas é justamente na atividade de debater e pôr em prática as normas jurídicas, atividade esta que ocorre majoritariamente no campo das práticas e discursos judiciários e judicializados, que o giro linguístico influencia mais fortemente as preocupações da epistemologia jurídica. Da mesma forma que não há, portanto, conhecimento sem linguagem, não há normas jurídicas abstratas sem linguagem e, principalmente, não há argumentação jurídico-judiciária (isto é, aplicação por um órgão judiciário do Direito no caso concreto) sem linguagem. As teorias jurídicas pós-positivistas caracterizam-se justamente por: 1) dar aos princípios valor normativo; 2) aproximar a teoria moral à teoria do Direito, reabilitando a axiologia dos direitos fundamentais; (no que interessa particularmente a este trabalho) 3) dar relevância crucial à dimensão argumentativa na compreensão do funcionamento do Direito; e 4) reabilitar a razão prática, buscando correlações entre legitimidade e argumentação no processo de prática jurídica judicial[2].
Todas as manifestações de linguagem que permeiam o mundo jurídico são majoritariamente simbólicas e textuais. Passados alguns milhares de anos do início da história, ainda é comum encontrar doutrina jurídica que se refere a “normas escritas” como uma grande evolução tecnológica da prática jurídica. Não só a “realidade” do Direito — um sistema jurídico formado por normas escritas — aparece como um conjunto de proposições textuais, mas a prática da argumentação judiciária e o estudo científico do fenômeno jurídico são fortemente baseados em experiências textuais. Na experiência jurídica brasileira, essa forte vinculação entre texto (principalmente o escrito) e Direito se percebe nas práticas processuais cartorárias, onde abundam petições, despachos, certidões e sentenças rebuscadas e formulárias. A argumentação jurídica, entre nós, é uma argumentação discursiva textual, muitas vezes inimiga da lógica em virtude de aspirações de erudição e beletrismo.
Essas interinfluências entre o Direito e a linguagem são relevantes para o suporte a litígios porque, como Marcelo Stopanovski e eu demonstramos no artigo sobre o uso de sínteses gráficas nos julgamentos do Coaf (descrito nesta coluna), a prova e a argumentação jurídica ganham capacidade de convencimento quando tratadas com o uso de ferramentas de análise e síntese gráfica de informações. Essas são duas técnicas paralegais reconhecidas e que tem fundamento também em estudos da ciência da informação na técnica segundo a qual a informação apresentada com o uso de sínteses gráficas ganha contundência.
Sínteses gráficas e argumentação jurídica
Pensadores críticos (como Habermas, Foucault e Ricoeur) valeram-se em larga medida do giro linguístico aplicado ao Direito para problematizar aspectos políticos mais amplos, de relações de dominação e poder, manutenção do status quo e falhas, intencionais ou não, no processo lógico de construção normativa e aplicação prática do Direito. Mas o interesse do suporte a litígios pela relação entre linguagem e Direito é de um escopo mais modesto, limitando-se a investigar como técnicas de argumentação linguísticas e pictóricas alternativas influenciam de forma positiva no convencimento judiciário da prova e da argumentação jurídica. Para tanto, usamos o termo “sínteses gráficas” para nos referir a representações gráficas no contexto da argumentação jurídica.
Segundo Perini[3], por representações visuais, gráficas ou pictóricas entendem-se aquelas cujas características de distribuição espacial de símbolos dizem alguma coisa a respeito do referente. Relações espaciais em uma figura podem representar, obviamente, relações espaciais de outra magnitude ou escala (como em um mapa), relações temporais (como em linhas do tempo) e relações entre propriedades (gráficos em geral e também tabelas). Outras características perceptíveis, como cores e tamanhos diferentes de símbolos e letras, podem também contribuir para o significado de representações visuais, dependendo das convenções adotadas caso a caso, mas o papel referencial de relações espaciais é a característica distintiva das representações visuais. Essa autora ressalta que tabelas podem ser incluídas como representações gráficas porque, por mais que seu conteúdo seja eminentemente textual (o que está escrito nas células da tabela), o que sobreleva na sua forma de expressão é o arranjo de dados meramente textuais em duas dimensões, valendo-se de relações espaciais para modelar relações entre determinados aspectos desses dados. Dessa forma, essas relações espaciais permitem a identificação de outros padrões entre os referentes, em uma expressão um nível acima do que a mera enunciação linguística dos dados.
Estudos específicos sobre o papel do uso de representações visuais na argumentação científica apontam que a cognição humana, mesmo em um campo linguisticamente controlado, como o científico, emite e percebe representações visuais como representações com força e valor em si, e não como meras traduções. O modelo da argumentação como tradução afirma que a figura é traduzida para signos linguísticos (matemáticos ou textuais) e a tradução é o que conta, e não a figura. Todavia, sabe-se que esse modelo da mera tradução não descreve de forma apropriada nem a técnica da tabela, uma figura formada a partir da orientação espacial da linguagem textual.
De fato, também com referência a Perini, a tradução em uma representação linguística serial do conteúdo de uma tabela pode representar bem o conteúdo do que está escrito nas suas células (o que não é surpresa, já que as células da tabela contêm termos escritos), mas falha em capturar o importante efeito da tabela como arranjo espacial: como o conteúdo da tabela se relaciona ou importa nos argumentos que esta suporta.
Todavia, enquanto não há ainda uma preocupação da ciência do Direito mainstream com esse assunto, o que se reflete como ausência de literatura a respeito no campo jurídico, é possível valer-se, interdisciplinarmente, de referências epistemológicas ligadas ao estudo das ciências em geral. Nesse sentido, é banal a observação de que acadêmicos de todos os campos apresentam suas hipóteses em periódicos e conferências científicas por meio de argumentos que têm como suporte não apenas texto, mas também representações visuais. Um paralelo entre o campo da prática jurídica com seus procedimentos judiciários e o campo acadêmico com as exigências do método científico demonstra uma comum ritualização de práticas e procedimentos. Assim, acreditamos que, se o manejo pictórico da argumentação é útil para o campo científico, há também um farto campo de investigação (e uso) de sínteses gráficas na argumentação jurídica.
O possível contra-argumento de que a argumentação jurídica é um discurso a respeito de entes abstratos sem existência física (as normas), o que impossibilitaria as sínteses gráficas na prática jurídica pode ser refutado em três níveis:
1) Fatos concretos são essenciais ao campo judiciário: a argumentação jurídica é um discurso que relaciona um fato (por exemplo, homicídio) a proposições prescritivas sancionáveis (“não matar”, que se desobedecido acarreta uma pena). A perspectiva de que os fatos são vistos pela ciência jurídica tradicional como menos nobres, deixando sua verificação a cargo de peritos, enquanto a tarefa do advogado seria apenas a de brilhar na retórica argumentativa, não afasta a realidade prática de que não existe um caso judiciário sem um fato… E esse fato pode ser mais bem compreendido/representado por meio de uma figura;
2) É possível representar visualmente entidades abstratas: matemática (que utiliza gráficos para expressar conceitos também não geométricos), psicologia (mandalas jungianas), física de partículas (dualidades onda-partícula), representações de extrapolações estatísticas nas ciências sociais econométricas e a própria pirâmide normativa kelseniana são exemplos da possibilidade de ilustrar conceitos, ideias, proposições com o uso pictórico de figuras que não são, grosso modo, ilustrações da realidade, mas tão somente representações visuais convencionais de entes sem existência corpórea;
3) A figura pode ser o argumento: indo além, as hard sciences não usam figuras como meras ilustrações ou representações ou como expressões redundantes de informação apresentada no texto científico. Ao contrário, os cientistas tratam as representações pictóricas que criam como se elas tivessem um papel integral nos argumentos nos quais elas aparecem (p. 913). Esse fenômeno, a prevalência de figuras apresentadas para fundamentar hipóteses e as formas como os cientistas avaliam essas figuras na análise da hipótese como um todo sugerem que a representação visual faz uma contribuição significativa aos argumentos, que é distinta da mera representação linguística.
Para um aspecto prático do texto, destaca-se que, da mesma forma que certos estilos e tipografias “combinam” mais com a função de determinados textos, há, por exemplo, gêneros de gráficos mais adequados para melhor representar fatos e relações de acordo com o que se queira ressaltar (veja quadro).
[1] As proposições prescritivas seriam a forma linguística universal da norma jurídica, distinguindo-as das proposições prescritivas (relativas às hard sciences) e das expressivas (características das expressões artísticas). Vide: BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Bauru: Edipro, 2003, p. 180.
[2] Chain Perelman, Robert Alexy e Jürgen Habermas, todos apresentam em suas obras, sob diferentes formulações, alguma relação de correlação entre legitimidade e argumentação racional. Vide: PERELMAN , Chain. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 222; ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. São Paulo: Landy, 2001, p. 17; e HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre facticidade e validade, v. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p 222 e 245).
[3] PERINI, Laura. Visual Representations and Confirmation. Philosophy of Science, n. 72, p. 913-926, dez. 2005
Felipe Dantas de Araújo é advogado e diretor de Compliance Anticorrupção no Walmart. Mestre em Direito pela UniCEUB e doutorando, também em Direito, pela USP, foi delegado de polícia e procurador federal.
Revista Consultor Jurídico, 28 de outubro de 2015, 14h39
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