A busca de um Habeas ou de como ainda existem desembargadores no RJ
Por Lenio Luiz Streck
Já falei aqui que em um país com tantos contrastes e com um grau de violação de direitos fundamentais incomensurável, com dezenas de carreiras jurídicas e altos salários, não conseguimos até hoje construir uma estrada — pavimentada juridicamente com ladrilhos constitucionais — que leve um direito à liberdade de qualquer comarca até os tribunais superiores (STJ e STF) ou, melhor dizendo, um caminho para possibilitar que alguém preso equivocadamente possa responder um processo em liberdade ou tenha a sua ação penal trancada por falta de justa causa.
Um toque de John Grisham e Scott Turrow: em busca de um writ
Se nos tribunais superiores temos essa dramática situação, imaginem os leitores o que acontece rotineiramente nos Estados federados. Vou relatar um caso que acompanhei como observador, uma vez que os dois advogados que cuidaram da causa são meus alunos na pós-graduação da Unesa-RJ (mestrado).[1]
Cidadão é preso no Rio de Janeiro no dia 15 de setembro, terça-feira, em flagrante. Policiais, sem mandado, chegam à residência do cidadão, que franqueia a entrada. Estariam à procura de drogas, motivados por delação da sua ex-companheira. De fato, encontraram pequena quantidade de maconha. Também foram encontrados cinco cartuchos de vários calibres. Só que os cartuchos só lá estavam porque ele, estilista, havia utilizado os projéteis para ornamentar um boné em roupa desenhada tempos atrás, havendo, inclusive, fotos em álbum para comprovar o dito.
Imediatamente o indigitado teve voz de prisão e foi levado ao ergástulo. E aí começou o drama. Os dois causídicos, contactados por familiares, foram à 12ª Delegacia de Polícia, em Copacabana. Não foram autorizados a conversar em particular com o preso (um inspetor de polícia “acompanhou” a entrevista). Como era fim de expediente, a delegada não despachou o Auto de Prisão em Flagrante (APF). Conseguiram apenas parte do APF.
Na madrugada do dia 15 de setembro, foram ao Plantão Judiciário. Em conversa com o secretário do juízo, souberam que ele não decidiria sem a integralidade do APF. “— Doutores, há juízes que decidem sem o despacho do delegado, mas, aqui, tem que estar tudo instruído.”;
Dia 16, voltaram à delegacia, mas não conseguiram o referido despacho. No entanto, souberam que a comunicação da prisão e o APF tinham sido remetidos ao juiz, para a 19ª Vara Criminal. Nesse cartório, souberam que os autos ainda não haviam “subido”. No setor de distribuição, disseram-lhes que, de praxe, os APFs recém-chegados apenas “sobem” no dia seguinte, ou seja, seriam remetidos ao cartório apenas em 17 de setembro. Tão ilegal e inconstitucional que o porteiro do Fórum deveria saber disso.
Diligentemente, falaram com a secretária da juíza, que lhes deu “a boa nova”: “a juíza permitiu que alguém do cartório fosse ao distribuidor buscar o APF, porém, disse que não decidirá sem que o MP se pronuncie; logo, hoje (16/9), como é fim de expediente, não há mais o que fazer, doutores”. Bingo.
Dia 17, após o meio dia, foram despachar o pedido de liberdade provisória. Afinal, a esta altura, já deveria haver uma decisão acerca do APF. Descobriram, no cartório, que o APF ainda não havia “subido”. Conversaram novamente com a secretaria do juízo. Foi determinado que alguém do cartório pegasse o malsinado APF — determinação não acatada pelo cartório, por razão desconhecida.
Finalmente, por volta das 16h do dia 17 (quinta-feira), o APF chegou ao cartório. Às 17h, o sistema indicou “conclusão ao juiz”. Às 18h, constava o seguinte: “Ciente. Ao Ministério Público, inclusive com o pedido de liberdade provisória”.
Dia 18, sexta-feira (lembremos que o cidadão fora preso na terça-feira), dirigiram-se ao cartório e descobriram que os autos haviam sido remetidos ao MP. Ansiosos — afinal, aprendem no mestrado, na disciplina de jurisdição constitucional, que as garantias não são um favor, mas um direito — foram ao MP e lá souberam que os autos não haviam chegado. Que autos, não? Andam a passos de cágado?
Conversaram com a promotora de Justiça, que lhes disse que seria impossível opinar no mesmo dia, uma vez que os autos ainda estavam com a “mensageria”. Também lhes disse que não estaria em seu gabinete, pois participaria de uma solenidade acerca da implementação — paradoxalmente — das “audiências de custódia”. Bingo de novo! Foram orientados a voltar... na segunda-feira. Como explicar o agir da promotora de Justiça? Ela não é a fiscal da lei? O Ministério Público não é o guardião da cidadania? Nos meus 28 anos de MP nunca tinha visto algo assim, pelo menos próximo a mim ou que eu soubesse, porque eu mesmo impetraria Habeas Corpus a favor do paciente. Pois é. A promotora agiu como o médico que deixa o paciente na maca, morrendo, e calmamente vai a uma solenidade de inauguração de um novo centro cirúrgico. De fato, perdemos nossa capacidade de indignação. Quanto vale uma liberdade? Uma ida a uma solenidade?
Os “chatos” dos causídicos tentaram, então, uma coisa óbvia. Buscaram uma audiência de custódia (afinal, a promotora havia dito que participaria da solenidade de sua implantação naquele dia!). Pois bem. Lá chegando, foram informados de que audiência de custódia somente “valia” para as pessoas que foram presas em flagrante a partir do dia de sua... implementação. Binguíssimo! Audiência de custódia com efeito ex nunc. Pindorama é bárbaro (stricto sensu).
No bar ao pé da Estácio, no centro, contaram-me essa história. Eram 19h de sexta-feira. Acabara a aula e bebericava um chope escuro naqueles copos baixos típicos do Rio. E acrescentaram: “— Professor: Pesquisamos a jurisprudência do TJ-RJ. Tratam isso como uma mera irregularidade”. Disse-lhes, soltando uma baforada do Cohiba (escrevo essa frase piegas de propósito, tipo-romance de John Grisham): “— Façam um Habeas urgente. Um HC certeiro. Na veia. A omissão da juíza e da promotora configura a coação”. E emendei, brincando, agora tipo-romance de Scott Turrow: “— Ainda há juízes em Berlim”. E contei a história do moleiro de Sans Souci que, diante do Imperador que queria fazer um puxado do seu castelo para cima do moinho que lhe dava sustento, disse, sem soltar baforada: não saio daqui; ficar é meu direito; ainda há juízes em Berlim. Na sequência, capturei um táxi no tumulto do horário e fui ao Santos Dummont.
Contam que passaram a noite elaborando o writ. Já na madrugada do dia 19, sábado, investigando o imaginário do plantão, “se tocaram” que o desembargador-plantonista tinha posição de não conhecer Habeas Corpus sem decisão judicial no APF. Seria a tese do “juiz natural”. O Habeas deles cairia em uma aporia (um dilema sem saída). Sem decisão judicial de exame do APF, nada poderia ser feito.
Esperaram o dia seguinte, domingo, dia 20. E foram despachar com o desembargador de plantão, Marcos André Chut, que talvez tivesse uma posição mais constitucional acerca da aporia. O desembargador Chut, depois de detalhado exame, deferiu a liminar. Alvíssaras. Considerou, acertadamente, que a omissão da juíza em decidir, aliada à demora da devolução dos autos, configurava ilegalidade. Ou seja, até aquele momento, o APF prendia-por-si-só. O paciente estava preso fazia dias com base na prisão feita pelos policiais. Só para lembrar um pouco do que diz o CPP, no artigo 310: "ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação" (grifei).
E a CF diz que a prisão será imediatamente comunicada ao juiz (quanto tempo levou para isso? E, mesmo sabendo, o que fez a juíza?). Isso tudo aliado ao fato de que a própria conduta imputada beirava a atipicidade (a pequena quantidade de maconha não justificava a prisão e muito menos os cartuchos que, além de vários calibres, para nada serviam em termos de lesividade). Fosse condenado, não passaria uma hora na prisão. Já pelo flagrante...
Eis a história. Eis o périplo. O cidadão ficou preso quase uma semana (na realidade, foi solto dia 21). Um APF que, até a decisão do desembargador, “prendeu por si só”. Ilegalidade e inconstitucionalidade que apenas demonstram quão longe estamos de uma democracia em que se respeitam direitos fundamentais. Não me parecem adequadas e condizentes com as garantias de vitaliciedade, independência e inamovibilidade as condutas da juíza e da promotora. Talvez as respectivas corregedorias devessem examinar os procederes das doutoras.
Se no Rio de Janeiro (como será que funciona a “coisa” nos demais Estados?) era assim (digo “era”, porque penso que isso vai mudar com a audiência de custódia e também porque esta coluna vai servir de alerta), imagine-se que algum policial, por inimizade com alguém, prenda-o por prender. Isso, nessa sistemática, faria com que o pobre patuleu ficasse preso no mínimo por 3 ou 4 ou mais dias. Ou estou equivocado?
Em um país em que até já estão decidindo que existe uma coisa chamada “ECI — estado de coisas inconstitucional” (o que em Pindorama não o é?), o problema das liberdades deve urgentemente ser enfrentado. Até para não gerar indenizações a serem pagas pela combalida viúva. Afinal, prisão ilegal pode gerar indenização.
Parabenizo a perseverança dos advogados Alberto Sampaio Júnior e Djefferson Amadeus. Lamento como jurista, professor, advogado e ex-procurador de Justiça, que o paciente tenha ficado preso por tantos dias de forma ilegal. Mas sempre exsurge algo de bom em face desse tipo de ocorrência. E meu cumprimentos ao desembargador Marcos Chut, que deu ao caso a resposta adequada à Constituição ou, se se quiser, aquilo que denomino de “a resposta correta”.
1 Trata-se dos advogados Alberto Sampaio de Oliveira Júnior e Djefferson Amadeus.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 1 de outubro de 2015, 8h00
Por Lenio Luiz Streck
Já falei aqui que em um país com tantos contrastes e com um grau de violação de direitos fundamentais incomensurável, com dezenas de carreiras jurídicas e altos salários, não conseguimos até hoje construir uma estrada — pavimentada juridicamente com ladrilhos constitucionais — que leve um direito à liberdade de qualquer comarca até os tribunais superiores (STJ e STF) ou, melhor dizendo, um caminho para possibilitar que alguém preso equivocadamente possa responder um processo em liberdade ou tenha a sua ação penal trancada por falta de justa causa.
Um toque de John Grisham e Scott Turrow: em busca de um writ
Se nos tribunais superiores temos essa dramática situação, imaginem os leitores o que acontece rotineiramente nos Estados federados. Vou relatar um caso que acompanhei como observador, uma vez que os dois advogados que cuidaram da causa são meus alunos na pós-graduação da Unesa-RJ (mestrado).[1]
Cidadão é preso no Rio de Janeiro no dia 15 de setembro, terça-feira, em flagrante. Policiais, sem mandado, chegam à residência do cidadão, que franqueia a entrada. Estariam à procura de drogas, motivados por delação da sua ex-companheira. De fato, encontraram pequena quantidade de maconha. Também foram encontrados cinco cartuchos de vários calibres. Só que os cartuchos só lá estavam porque ele, estilista, havia utilizado os projéteis para ornamentar um boné em roupa desenhada tempos atrás, havendo, inclusive, fotos em álbum para comprovar o dito.
Imediatamente o indigitado teve voz de prisão e foi levado ao ergástulo. E aí começou o drama. Os dois causídicos, contactados por familiares, foram à 12ª Delegacia de Polícia, em Copacabana. Não foram autorizados a conversar em particular com o preso (um inspetor de polícia “acompanhou” a entrevista). Como era fim de expediente, a delegada não despachou o Auto de Prisão em Flagrante (APF). Conseguiram apenas parte do APF.
Na madrugada do dia 15 de setembro, foram ao Plantão Judiciário. Em conversa com o secretário do juízo, souberam que ele não decidiria sem a integralidade do APF. “— Doutores, há juízes que decidem sem o despacho do delegado, mas, aqui, tem que estar tudo instruído.”;
Dia 16, voltaram à delegacia, mas não conseguiram o referido despacho. No entanto, souberam que a comunicação da prisão e o APF tinham sido remetidos ao juiz, para a 19ª Vara Criminal. Nesse cartório, souberam que os autos ainda não haviam “subido”. No setor de distribuição, disseram-lhes que, de praxe, os APFs recém-chegados apenas “sobem” no dia seguinte, ou seja, seriam remetidos ao cartório apenas em 17 de setembro. Tão ilegal e inconstitucional que o porteiro do Fórum deveria saber disso.
Diligentemente, falaram com a secretária da juíza, que lhes deu “a boa nova”: “a juíza permitiu que alguém do cartório fosse ao distribuidor buscar o APF, porém, disse que não decidirá sem que o MP se pronuncie; logo, hoje (16/9), como é fim de expediente, não há mais o que fazer, doutores”. Bingo.
Dia 17, após o meio dia, foram despachar o pedido de liberdade provisória. Afinal, a esta altura, já deveria haver uma decisão acerca do APF. Descobriram, no cartório, que o APF ainda não havia “subido”. Conversaram novamente com a secretaria do juízo. Foi determinado que alguém do cartório pegasse o malsinado APF — determinação não acatada pelo cartório, por razão desconhecida.
Finalmente, por volta das 16h do dia 17 (quinta-feira), o APF chegou ao cartório. Às 17h, o sistema indicou “conclusão ao juiz”. Às 18h, constava o seguinte: “Ciente. Ao Ministério Público, inclusive com o pedido de liberdade provisória”.
Dia 18, sexta-feira (lembremos que o cidadão fora preso na terça-feira), dirigiram-se ao cartório e descobriram que os autos haviam sido remetidos ao MP. Ansiosos — afinal, aprendem no mestrado, na disciplina de jurisdição constitucional, que as garantias não são um favor, mas um direito — foram ao MP e lá souberam que os autos não haviam chegado. Que autos, não? Andam a passos de cágado?
Conversaram com a promotora de Justiça, que lhes disse que seria impossível opinar no mesmo dia, uma vez que os autos ainda estavam com a “mensageria”. Também lhes disse que não estaria em seu gabinete, pois participaria de uma solenidade acerca da implementação — paradoxalmente — das “audiências de custódia”. Bingo de novo! Foram orientados a voltar... na segunda-feira. Como explicar o agir da promotora de Justiça? Ela não é a fiscal da lei? O Ministério Público não é o guardião da cidadania? Nos meus 28 anos de MP nunca tinha visto algo assim, pelo menos próximo a mim ou que eu soubesse, porque eu mesmo impetraria Habeas Corpus a favor do paciente. Pois é. A promotora agiu como o médico que deixa o paciente na maca, morrendo, e calmamente vai a uma solenidade de inauguração de um novo centro cirúrgico. De fato, perdemos nossa capacidade de indignação. Quanto vale uma liberdade? Uma ida a uma solenidade?
Os “chatos” dos causídicos tentaram, então, uma coisa óbvia. Buscaram uma audiência de custódia (afinal, a promotora havia dito que participaria da solenidade de sua implantação naquele dia!). Pois bem. Lá chegando, foram informados de que audiência de custódia somente “valia” para as pessoas que foram presas em flagrante a partir do dia de sua... implementação. Binguíssimo! Audiência de custódia com efeito ex nunc. Pindorama é bárbaro (stricto sensu).
No bar ao pé da Estácio, no centro, contaram-me essa história. Eram 19h de sexta-feira. Acabara a aula e bebericava um chope escuro naqueles copos baixos típicos do Rio. E acrescentaram: “— Professor: Pesquisamos a jurisprudência do TJ-RJ. Tratam isso como uma mera irregularidade”. Disse-lhes, soltando uma baforada do Cohiba (escrevo essa frase piegas de propósito, tipo-romance de John Grisham): “— Façam um Habeas urgente. Um HC certeiro. Na veia. A omissão da juíza e da promotora configura a coação”. E emendei, brincando, agora tipo-romance de Scott Turrow: “— Ainda há juízes em Berlim”. E contei a história do moleiro de Sans Souci que, diante do Imperador que queria fazer um puxado do seu castelo para cima do moinho que lhe dava sustento, disse, sem soltar baforada: não saio daqui; ficar é meu direito; ainda há juízes em Berlim. Na sequência, capturei um táxi no tumulto do horário e fui ao Santos Dummont.
Contam que passaram a noite elaborando o writ. Já na madrugada do dia 19, sábado, investigando o imaginário do plantão, “se tocaram” que o desembargador-plantonista tinha posição de não conhecer Habeas Corpus sem decisão judicial no APF. Seria a tese do “juiz natural”. O Habeas deles cairia em uma aporia (um dilema sem saída). Sem decisão judicial de exame do APF, nada poderia ser feito.
Esperaram o dia seguinte, domingo, dia 20. E foram despachar com o desembargador de plantão, Marcos André Chut, que talvez tivesse uma posição mais constitucional acerca da aporia. O desembargador Chut, depois de detalhado exame, deferiu a liminar. Alvíssaras. Considerou, acertadamente, que a omissão da juíza em decidir, aliada à demora da devolução dos autos, configurava ilegalidade. Ou seja, até aquele momento, o APF prendia-por-si-só. O paciente estava preso fazia dias com base na prisão feita pelos policiais. Só para lembrar um pouco do que diz o CPP, no artigo 310: "ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação" (grifei).
E a CF diz que a prisão será imediatamente comunicada ao juiz (quanto tempo levou para isso? E, mesmo sabendo, o que fez a juíza?). Isso tudo aliado ao fato de que a própria conduta imputada beirava a atipicidade (a pequena quantidade de maconha não justificava a prisão e muito menos os cartuchos que, além de vários calibres, para nada serviam em termos de lesividade). Fosse condenado, não passaria uma hora na prisão. Já pelo flagrante...
Eis a história. Eis o périplo. O cidadão ficou preso quase uma semana (na realidade, foi solto dia 21). Um APF que, até a decisão do desembargador, “prendeu por si só”. Ilegalidade e inconstitucionalidade que apenas demonstram quão longe estamos de uma democracia em que se respeitam direitos fundamentais. Não me parecem adequadas e condizentes com as garantias de vitaliciedade, independência e inamovibilidade as condutas da juíza e da promotora. Talvez as respectivas corregedorias devessem examinar os procederes das doutoras.
Se no Rio de Janeiro (como será que funciona a “coisa” nos demais Estados?) era assim (digo “era”, porque penso que isso vai mudar com a audiência de custódia e também porque esta coluna vai servir de alerta), imagine-se que algum policial, por inimizade com alguém, prenda-o por prender. Isso, nessa sistemática, faria com que o pobre patuleu ficasse preso no mínimo por 3 ou 4 ou mais dias. Ou estou equivocado?
Em um país em que até já estão decidindo que existe uma coisa chamada “ECI — estado de coisas inconstitucional” (o que em Pindorama não o é?), o problema das liberdades deve urgentemente ser enfrentado. Até para não gerar indenizações a serem pagas pela combalida viúva. Afinal, prisão ilegal pode gerar indenização.
Parabenizo a perseverança dos advogados Alberto Sampaio Júnior e Djefferson Amadeus. Lamento como jurista, professor, advogado e ex-procurador de Justiça, que o paciente tenha ficado preso por tantos dias de forma ilegal. Mas sempre exsurge algo de bom em face desse tipo de ocorrência. E meu cumprimentos ao desembargador Marcos Chut, que deu ao caso a resposta adequada à Constituição ou, se se quiser, aquilo que denomino de “a resposta correta”.
1 Trata-se dos advogados Alberto Sampaio de Oliveira Júnior e Djefferson Amadeus.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 1 de outubro de 2015, 8h00
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