terça-feira, 6 de outubro de 2015

Prescrição quinquenal de dívidas tem diferentes interpretações no país




Por Eduardo Tomasevicius Filho


Existem obras do espírito humano que são consideradas clássicas, como os grandes textos literários, as músicas mais emocionantes e os quadros mais admirados. Até o futebol no Brasil tomou para si o conceito de “clássico” para designar as importantes partidas regionais.

Ítalo Calvino, no primeiro capítulo de seu livro intitulado Por que ler os clássicos, listou critérios para identificação de obras às quais se atribui essa qualidade, entre os quais: “Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los”; “os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”; ou, ainda, “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.[i]

No Direito, evidentemente, há obras clássicas. São aquelas que, além de atender aos critérios acima indicados, não perdem a sua utilidade com o passar do tempo e proporcionam autoridade na argumentação jurídica por várias gerações de profissionais do Direito. No Brasil, exemplo disso é a obra de Carlos Maximiliano, intitulada “Hermenêutica e Aplicação do Direito”,[ii] de 1925 e reeditada até hoje, que trata de importantes aspectos da atividade de interpretação, entre os quais os métodos filológico, lógico, sistemático, teleológico e histórico. Por mais sofisticadas e refinadas que sejam as teorias contemporâneas sobre interpretação, as quais, inclusive, suscitam debates acalorados, não há como fugir do uso daqueles métodos na aplicação prática do direito no caso concreto.

Nos últimos tempos, tivemos um caso bastante curioso, decorrente da não-aplicação dos tradicionais métodos de interpretação do Direito.[iii] Trata-se da prescrição quinquenal da pretensão para a cobrança de dívidas, conforme disposto no artigo 206, parágrafo 5º, I, do Código Civil brasileiro, nos seguintes termos: “Artigo 206. Prescreve: (...) parágrafo 5º Em cinco anos: I – a pretensão para a cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular”.

A prescrição, no Direito Privado, é a extinção da pretensão do credor à satisfação do seu crédito em razão da inércia na exigência de que o devedor cumpra com sua obrigação. É o que se estabeleceu no artigo 189 do Código Civil de 2002, ao dispor que “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, que se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os artigos 205 e 206”.

O fato jurídico que enseja a ocorrência da prescrição, manifesta-se na dinâmica das relações privadas, nas quais o comportamento esperado é o adimplemento da obrigação. O credor tem a expectativa de que o devedor assim o fará, mas essa pode ser quebrada pelo inadimplemento. Ao credor resta tentar restabelecê-la, aguardando que o devedor cumpra a obrigação, ainda que em atraso, ou, então, que resolva, formalmente, exercer sua pretensão ao crédito. Considerando que o inadimplemento é fato indesejado pelo legislador, estabelecem-se prazos para que o credor tome uma atitude ou que se conforme com o inadimplemento, a fim de que relações jurídicas não continuem pendentes indefinidamente.

Parece condizente com os tempos atuais, para não usar o termo “sociedade pós-moderna”, que seja de cinco anos o prazo para que o credor exija do devedor o cumprimento da obrigação de pagar uma dívida constante de instrumento público ou particular. Afinal, tornou-se quase impossível não ser localizado — ou ser considerado juridicamente ausente — em razão dos avanços da informática, da telemática e da Internet, termos que se referem a aplicações distintas das tecnologias, ainda que aparentemente semelhantes. Todos os dias, dados pessoais são automaticamente coletados em grande quantidade e armazenados indefinidamente. Os salários são pagos mediante depósitos em contas bancárias. Produtos são comprados com cartões de débito e de crédito. Contas são pagas mediante boletos nos bancos ou em casas lotéricas. Por toda parte, o número do CPF ou do CNPJ é solicitado e anualmente se devem apresentar as declarações do imposto de renda, sob pena de tornar a inscrição em situação irregular, inviabilizando boa parte das relações jurídicas.

Ademais, houve praticamente a universalização dos serviços de telefonia móvel, de modo que quase todas as pessoas têm um número de telefone para contato. As redes sociais permitem a localização fácil de quem dela faz parte, mostrando, inclusive, com quem mantém relacionamentos sociais. Inclusive há casos em que se citou ou se intimou pelo Facebook ou pelo Whatsapp.[iv] Contra este estado de coisas, só restam as limitações do direito à privacidade e ao sigilo de dados e de comunicações.

Mas, na prática, nem sempre o que a lei dispõe com clareza — in claris cessat interpretatio — é interpretado da maneira mais adequada.

Por meio da interpretação sistemática em matéria de prescrição, constata-se que o legislador costuma adotar o prazo quinquenal para a prescrição da pretensão à cobrança de dívidas. O Código Tributário Nacional, no artigo 174, estabelece o prazo prescricional de cinco anos para cobrança do crédito tributário. A prescrição para a cobrança de créditos trabalhistas é quinquenal (CF/1988, artigo 7º, XXIX e artigo 11 da CLT), a pretensão para a cobrança de honorários também é quinquenal (EOAB, artigo 25 e CC, artigo 206, parágrafo 5º, II) e o Código de Defesa do Consumidor estabelece, no artigo 27, o prazo quinquenal para a pretensão à reparação de danos.

Ademais, do ponto de vista histórico, o prazo prescricional quinquenal no Direito luso-brasileiro já estava previsto no Regimento dos Almoxarifes, Recebedores e Ordenações, de 1516, o qual estabelecia o prazo de cinco anos para cobrança de dívidas d’El Rey. Essa regra se trasladou pela legislação imperial brasileira, foi recepcionada no Código Civil de 1916 e está até hoje no Decreto 20.910/1932.

No Código Civil de 1916, havia dois prazos prescricionais para a cobrança de dívidas: um inicialmente de 30 anos — depois reduzido para 20 anos — fixado no artigo 177, e outro prazo de dois anos, para dívidas de pequeno valor, do artigo 178, parágrafo 7º, II. No caso, aplicável a dívidas inferiores a 100 mil réis. Com a desvalorização da moeda brasileira, este prazo prescricional caiu em desuso, porque não havia mais dívida no Brasil com valor tão irrisório. Assim, consolidou-se a regra de que o prazo prescricional seria aquele maior, geral, de 20 anos.

Já no Código Civil de 2002, estatuiu-se o artigo 206, parágrafo 5º I, cujo prazo é quinquenal, o qual atinge, com clareza, todas as dívidas constantes de instrumento público ou particular. Em uma interpretação teleológica, houve evidente intenção de harmonizar o prazo de cinco anos para toda e qualquer cobrança de dívida, tal como já ocorre em matéria tributária, administrativa, trabalhista e consumerista.

A título de esclarecimento, a origem remota da redação do artigo 206, parágrafo 5º, I, está no Livro III, Título LIX, das Ordenações Filipinas e a origem próxima da redação está no artigo 442 do Código Comercial de 1850. Como diferenças específicas, as Ordenações usavam o termo “contraídas” e o Código Civil de 2002, a expressão “constantes”. Por sua vez, o Código Comercial estabelecia o prazo vintenário e o Código Civil de 2002, o prazo quinquenal.

Mesmo com todas as advertências de que não se poderia interpretar o Código Civil de 2002 como se interpretava o Código Civil de 1916, o artigo 206, parágrafo 5º, I, do Código Civil não era aplicado corretamente! A explicação é simples: como a pretensão para a cobrança de dívidas era vintenária por aplicação do artigo 177 do Código Civil de 1916, aplicou-se, por curiosa “analogia” — na verdade, incorria-se na falácia post hoc ergo propter hoc — o artigo 205 do Código Civil de 2002, regra geral que estabelece o prazo de prescrição decenal.

Assim, surgiram problemas relativos a essa matéria. O primeiro deles é a contradição entre o prazo prescricional para a cobrança de dívidas e o prazo para manutenção do devedor em cadastros de restrição ao crédito, o que compromete a ideia de pacificação social. No imaginário popular, a prescrição para o exercício da pretensão de cobrança de dívidas é quinquenal, porque o leigo confunde prescrição com retirada da restrição ao crédito. O prazo máximo para manutenção dessa restrição foi fixado como quinquenal pelo Superior Tribunal de Justiça, pela Súmula 323, que, inclusive, foi reeditada e deixa claro que o prazo prescricional não é necessariamente quinquenal, quando distingue a natureza dos dois prazos, conforme segue: “[a] inscrição do nome do devedor pode ser mantida nos serviços de proteção ao crédito até o prazo máximo de cinco anos, independentemente da prescrição da execução”.

Ao que parece, o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento de que, ao menos em matéria de dívida decorrente de contrato de abertura de crédito em conta-corrente, o prazo prescricional é quinquenal, a partir do Recurso Especial 1.327.786/RS.

Vale a pena repetir: o Código Civil de 2002 estabeleceu no artigo 206, parágrafo 5º I, que todas as dívidas constantes de instrumento público ou particular têm prazo quinquenal de prescrição. Consequentemente, é quinquenal o prazo prescricional de toda e qualquer dívida contraída por consumidor, a qual possa ser provada por escrito, porque todas essas dívidas costumam ser registradas em contratos de adesão em papel ou virtuais e são apresentadas para pagamento por meio de faturas e boletos bancários. Além disso, nada mais lógico e sistemático conicidir em cinco anos os prazos de prescrição e o de manutenção do nome do consumidor em cadastros de restrição ao crédito.

Outro problema foi o prazo para a cobrança das contribuições condominiais. Anteriormente, o prazo era vintenário, pela aplicação da regra geral do artigo 177 do Código Civil de 1916. A jurisprudência entendia ser decenal o prazo prescricional, não apenas pela falácia post hoc ergo propter hoc, mas também por não se vislumbrar contribuições condominiais como dívidas consubstanciadas em instrumento público ou particular. Porém, débitos condominiais são obrigações propter rem e a liquidez e certeza destas advém da convenção de condomínio e das subsequentes atas de assembleia. Consequentemente, a cobrança é feita mediante apresentação de boleto bancário para pagamento. Felizmente, esse lapso hermenêutico foi corrigido pelo Superior Tribunal de Justiça e o entendimento atual é o de que o prazo prescricional para cobrança de dívidas é quinquenal, a partir do Recurso Especial 1.139.030/RJ. Nada mais justo e coerente, não só pela aplicação correta do artigo 206, parágrafo 5º I, como também por ser inadmissível a alegação por parte do condomínio edilício que era impossível localizar o condômino inadimplente.

Em se tratando de títulos de crédito, o Código Civil estabeleceu, no artigo 206, parágrafo 3º VIII, o prazo trienal para a cobrança destes. Porém, mesmo sendo a pretensão fulminada pela prescrição, isso não faz com que o título de crédito perca a sua característica de dívida constante de instrumento particular, em razão de a cartularidade ser um dos requisitos para a constituição de um título de crédito. Por isso, quando estes são atingidos pela prescrição trienal, ainda podem ser cobrados em cinco anos como se fossem dívidas constantes de instrumentos particulares. É o que está consolidado na Súmula 503 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “[o] prazo para ajuizamento de ação monitória em face do emitente de cheque sem força executiva é quinquenal, a contar do dia seguinte à data de emissão estampada na cártula” e também na Súmula nº 504 do mesmo Tribunal: “[o] prazo para ajuizamento de ação monitória em face do emitente de nota promissória sem força executiva é quinquenal, a contar do dia seguinte ao vencimento do título”.

Ainda merece reparo a interpretação relativa ao prazo prescricional para a cobrança de tarifas, sobretudo as de água. Por muito tempo, houve dúvidas quanto à sua natureza jurídica: a de taxa, regida pelo direito tributário, ou a de preço público, cuja natureza jurídica seria de Direito Privado. Após longo debate, decidiu-se que a tarifa não tem natureza jurídica de taxa, sendo inaplicável o prazo prescricional quinquenal fixado no Código Tributário Nacional, mas o do Código Civil. Entretanto, considera-se decenal esse prazo, conforme julgamento no Recurso Especial 1.113.403/RJ, sob o regime dos Recursos Repetitivos.

Deve-se observar que o envio de contas impressas em papel para a casa do consumidor — portanto, instrumentos particulares — ou, se o consumidor desejar, por e-mail ou por SMS, é justamente o fato descrito no artigo 206, parágrafo 5º, I, sendo, portanto, prazo quinquenal e não, decenal. Também cabe questionar se uma prestadora desses serviços públicos tem mesmo enormes dificuldades para fazer valer sua pretensão à satisfação do crédito.

À guisa de conclusão, vale ainda refletir sobre mais um aspecto referente à prescrição, por uma questão lógica: se dívidas registradas em instrumentos particulares têm prazos prescricionais quinquenais, as dívidas não formalizadas por escrito deveriam ter prazos prescricionais menores, e não, maiores, ante a dificuldade maior quanto à sua prova, comprometendo-se a pacificação social. Por isso, bom seria a redução do prazo prescricional do artigo 205 para cinco anos, estabelecendo-se prazo maior somente quando expressamente previsto em lei. Mas que isso se dê por alteração legislativa e não, por distorções interpretativas, porque ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.[v] Ou, como diria Carlos Maximiliano, “(..) cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas”.[vi]

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).



[i] CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos; tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 10-12


[ii] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e applicação do direito. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, Barcellos, Bertaso & Cia, 1925 (A 20ª edição de 2011, mas optei por usar a primeira edição).


[iii] Para maiores detalhes, deixo o texto usado como base para a elaboração deste menor: TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. “A prescrição quinquenal para cobrança de dívidas no Código Civil de 2002”. São Paulo. Revista dos Tribunais. Volume 100. Número 907, pp. 31–58. maio de 2011.


[iv] Cf. CONJUR. “NOVOS TEMPOS. Corte inglesa autoriza citação de parte pelo Facebook”. São Paulo, 23 de fevereiro de 2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-fev-23/corte-superior-inglaterra-autoriza-parte-seja-citada-facebook; CONJUR. “CELERIDADE PROCESSUAL. Juiz usa Whatsapp para intimar réu que vive no exterior”. São Paulo, 10 de julho de 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jul-10/juiz-usa-whatsapp-intimar-reu-vive-exterior


[v] A tradução é a seguinte: “Não cabe ao intérprete distinguir, se a lei não distingue”. Para Carlos Maximiliano (Idem. p. 264),


[vi] MAXIMILIANO, Carlos. Idem. p. 264


Eduardo Tomasevicius Filho é Professor Doutor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.

Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2015, 8h00

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