Por Hugo Barroso UelzeUma das características do Sistema Jurídico brasileiro é o de sua conhecida instabilidade, para a qual contribui o inequívoco histórico de mutação legislativa, inclusive constitucional, aspecto relevante, porque permeia outros setores de nossa experiência jurídica e, dentre eles, a própria jurisprudência, tal como destaca José Miguel Garcia Medina:
“[...] Há mais de dez anos, escrevi, [...] que o Estado não respeita as decisões do Poder Judiciário, e nem os próprios órgãos do Poder Judiciário respeitam as decisões que proferem. De fato, parece não haver, entre nós, preocupação em se criar decisões das quais se poderá extrair um precedente (no sentido de orientação, e não de ‘uma decisão judicial’ qualquer) que deverá ser seguido pelo próprio tribunal ou pelos demais tribunais do País (ou stare decisis vertical e horizontal). À época, tratando da súmula vinculante, afirmei que [...] a [...] criação de mecanismos tendentes a forçar a observância de entendimentos sumulados, se não respaldada em uma prática jurisprudencial consistente, tende a fracassar”[1].
Na sequência conclui o autor que:
“Talvez a atenção com o que sucede no common law seja excessiva. Afinal, a preocupação com a qualidade [...] dos julgados [...] não é restrita a países que adotam tal modelo. [...] Se levarmos a sério a afirmação de que o Brasil ‘constitui-se em Estado Democrático de Direito’ [...], e entendermos as consequências disso, já teremos dado um grande passo.
Viragens jurisprudenciais não justificadas – como a que se anuncia na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito do ‘prequestionamento ficto’ – não condizem com a ideia de estabilidade e previsibilidade, ínsitas ao Estado de Direito [...].” [2]
Ora, se o Estado Democrático de Direito tem como missão propiciar a paz no meio social, a observância e a previsibilidade das decisões surge como um elemento indispensável à segurança jurídica, mas também acarreta uma mudança bastante positiva, porque importa em um novo paradigma à efetiva participação popular, agora melhor qualificada a partir de experiências já conhecidas e consolidadas – inclusive jurisprudenciais –, para que se evitem erros passados, sem prejuízo à criação de novas regras de comportamento – ou, mesmo, de estrutura –, por meio da criatividade do Poder Legislativo – o que afasta qualquer ideia de imobilismo –, e, isso, sem prejuízo ao quanto decidido pelo Poder Judiciário.
Ao tratar do tema, sob a ótica do artigo 170-A do Código Tributário Nacional, Cláudio Lopes Cardoso Júnior evidencia que a instabilidade jurídico-processual alcança outras áreas e, dentre elas, a da compensação tributária:
“[...] Essa pretensão de ampliar o debate se apoia em recente legislação que pretende vincular a [...] Administração Tributária ao entendimento firmado [...] em julgamentos representativos de controvérsias de que tratam os artigos 543-B [...] e 543-C [...] do Código de Processo Civil.
[...]
Legislação recentemente criada [...] pretende melhorar esse cenário. A Lei 12.844/2013 pretende vincular a [...] Administração Pública ao entendimento dos Tribunais Superiores. [...] E mais: essa nova legislação também prescreve a possibilidade de a Administração Tributária respeitar o entendimento do STJ e STF, o que é uma inovação, haja vista que até então somente as súmulas vinculantes do STF tinham esse efeito. A Lei 12844 [...] não equipara os efeitos dos julgamentos representativos de controvérsia aos das súmulas vinculantes. Todavia, é inegável que a força persuasiva daqueles julgamentos aumenta.
É importante registrar que disposição semelhante [...] já consta do Regimento Interno (RI) do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) desde 2010. [...] Imaginemos que o STJ, em dezembro de 2010, tivesse reconhecido, em sede de julgamento representativo de controvérsia, a ilegalidade do imposto X. Nesse cenário, a empresa Arrojada [...] opta por não recolher o imposto no ano de 2011 e não propõe qualquer medida judicial. A empresa Boa Samaritana [...] opta por continuar a recolher o imposto X em 2011.
No início de 2012, Arrojada [...] tem auto de infração lavrado contra si [...]. Já a Boa Samaritana [...] ajuíza ação de repetição do indébito para a recuperação dos valores [...]. Arrojada [...] pode apresentar recurso administrativo e, de acordo com o artigo 62-A do Carf, deverá ser provido para [...] seguir o entendimento da jurisprudência dominante do STJ. E a Boa Samaritana [...], poderia compensar os créditos objeto da discussão judicial com outros débitos antes do trânsito em julgado? Sendo negativa a resposta, o recurso administrativo [...] seria julgado pelo Carf que o desproveria em razão do óbice do artigo 170-A do CTN? A pensar assim, o mesmo Tribunal Administrativo que cancela a cobrança do imposto dum [...], não reconheceria o crédito de outro que pagou o mesmo imposto [...]? [...]”[3]
Realmente, a incerteza e a insegurança decorrentes dos citados exemplos, não contribui para a harmonia do Sistema Jurídico, cuja funcionalidade depende da observância de padrões mínimos de coerência e racionalidade, sem os quais restam inócuos os critérios de justiça, validade e eficácia[4] acolhidos como imperativos ético-jurídicos pelo Estado de Democrático de Direito, daí a razoabilidade de se conferir uma maior eficácia aos precedentes, cuja inobservância se mostra deletéria às relações Fisco-contribuinte.
Nesse passo, parece útil lembrar o embate, havido há quase vinte anos, acerca da Contribuição ao Pro Labore e Autônomos, declarada inconstitucional pelo Plenário do STF quando do julgamento do RE 166.772-9-RS:
“Circular 1.600, n. 40, de 23-6-94, da Diretoria de Arrecadação e Fiscalização do INSS – Não publicada no DOU. Em face da decisão [...], prolatada no RE 166.772-9/RS, de 12-5-94 [...] e em função da nova manifestação da Procuradoria Geral do INSS [...]:
a) enquanto não for determinada a suspensão da executoriedade do inciso I do artigo 3º, da Lei 7.787/89, pelo Senado Federal, ou não houver decisão do Supremo Tribunal Federal que o declare inconstitucional, por via de ação direta, deverá a fiscalização continuar a apurar a contribuição incidente sobre a remuneração paga ou creditada aos autônomos e administradores [...]”[5].
Contudo, se prestigiada a figura dos precedentes jurisprudenciais – porque úteis à justiça, validade e eficácia sistêmicas –, e, pois, à segurança jurídica ínsitas ao Estado Democrático de Direito, inexistiria dúvida acerca da razoabilidade de se suspender a cobrança já em 9/9/1994[6], mesmo antes do advento da Resolução 14 do Senado Federal em 28/4/1995[7] face à inequívoca semelhança entre o artigo 3º, I da Lei 7.787[8] e o artigo 22, I, da Lei 8.212[9], daí ter-se sustentado a possibilidade de pleitear:
“Ação Popular Tributária [...] garantia constitucional coletiva, de índole política – porque calcada nos princípios republicano e da soberania popular – conferida a qualquer cidadão, para a anulação de atos que, desrespeitando algum dentre os princípios e normas do Sistema Constitucional Tributário, causem prejuízo ao Erário [princípio da indisponibilidade dos bens públicos] ou, simplesmente, caracterizem afronta ao princípio da moralidade administrativa no âmbito das relações jurídico-tributárias.”[10]
Note-se, porém, que a Ação Popular Tributária não pode ser manejada como uma variante do controle direto de constitucionalidade[11], daí a pertinência e razoabilidade acerca da observância dos precedentes [v.g., artigos 62 e 62-A do RI Carf], pois, salvo aqueles casos, o requisito da ilegalidade somente restaria satisfeito se presentes as figuras de dolo ou fraude[12] ou, então, excepcionalmente, se inequívoca a ausência do pressuposto de direito, v.g., isenção concedida por decreto[13].
Aqui, porém, é o momento de retomar a análise do artigo 170-A do CTN, que a despeito de suas características heterotópicas[14] – norma de direito material, com efeitos processuais[15] –, não pode atritar com a supremacia da constituição – aspecto reiterado pelo artigo 110 do CTN –, e, assim, desrespeitar os atributos intrínsecos à definição do conteúdo e alcance dos institutos, conceitos e formas de direito privado, razão pela qual a compensação tributária – porque ínsita à defesa do magno direito de propriedade –, deve respeitar os atributos de categoria mais ampla, as do próprio instituto da compensação, salvo se presente alguma especificidade.
Com efeito, face à inequívoca natureza de obrigações ex lege dos tributos[16], vê-se logo afastada a compensação voluntária, embora possíveis às demais espécies – compensação legal e judicial[17] –, as quais, todavia, reclamam a natural fungibilidade dos créditos e débitos fiscais, bem como a reciprocidade das obrigações, para, enfim, alcançar os requisitos de liquidez e certeza, que se presentes autorizam a compensação legal prevista no artigo 170 do CTN, isso a partir do conteúdo, sentido e alcance dos precedentes jurisprudenciais – por exemplo, o RE 166.772-9-RS e a ADI 1102-2-DF –, ou, então, se ausentes os pressupostos relativos à exigibilidade imediata, aplica-se a compensação judicial prevista no artigo 170-A do CTN para conferir a liquidez e certeza – ainda inexistentes –, aos créditos do sujeito passivo, daí se aguardar o trânsito em julgado da respectiva ação.
Em conclusão, a observância às decisões emanadas pelos Tribunais Superiores prestigia a coerência e a racionalidade do Sistema Jurídico, porque melhor ajustada aos critérios de justiça, validade e eficácia, que o informam, tal como estabelecidos pelo Texto Constitucional, enfoque útil não apenas ao debate científico quanto ao sentido, conteúdo e alcance dos precedentes jurisprudenciais, mas também à construção de um novo paradigma à participação popular perante os debates junto ao Poder Legislativo, melhor qualificada através de experiências já conhecidas e consolidadas – o que afasta qualquer ideia de imobilismo –, sem prejuízo à missão constitucional do Poder Judiciário – face à sua imparcialidade –, para assim “dizer o direito” em caso de conflitos, solução que, aliás, a todos se impõe como imperativo ético-jurídico à convivência social, a ser seguido também na esfera do Poder Executivo – pelo conjunto da Administração Pública –, pois como adverte Celso Antônio Bandeira de Mello “[...] os interesses secundários não são atendíveis senão quando coincidirem com interesses primários, únicos a serem perseguido por quem axiologicamente os encarna e os representa [...]”[18], o que, pois, se mostra absolutamente sintonizado com os princípios da harmonia dos poderes, da legalidade, da razoabilidade, da moralidade administrativa, mas também o republicano, cânone esse, aliás, bastante encarecido pelo saudoso Geraldo Ataliba[19], como arquétipo orientador da igualdade ou paridade real nas relações jurídico-tributárias, o que, pois, ultrapassa os lindes do Fisco, para orientar os cidadãos-contribuintes a idêntico dever, na direção e, mesmo, no agir, da mais estrita e objetiva boa-fé.
[1] MEDINA, José Miguel Garcia. O que precisamos é de uma jurisprudência íntegra. Revista Consultor Jurídico, 12 ago. 2013, Disponível em:
[2] Idem, ibidem.
[3] CARDOSO JÚNIOR, Cláudio Lopes. Artigo 170-A do CTN não trouxe só benefícios. Revista Consultor Jurídico, 24 ago. 2013, Disponível em:
[4] BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 2. ed. Bauru: Edipro, 2003, p. 45-7
[5] Textos Legais IOB. Boletim 27/94, TL 747.
[6] Medida Liminar em ADI. Contribuições a cargo das empresas destinadas a seguridade social, artigo 195, I, da Constituição Federal. Expressões ‘Empresários’ e ‘Autônomos’ contidas no artigo 22, I, da Lei 8.212, de 25 jul. 1991. Precedentes. MC na ADI 1.102 – DF, Rel.: Min. Paulo Brossard, Brasília, DF, j. 4 ago. 1994, DJ 9 set. 1994, p. 23.441.
[7] Resolução 14, de 1994. Suspende a execução da expressão avulsos, autônomos e administradores, contida no inciso I do artigo 3º da Lei 7.787, de 1989. DOFC 28 abr. 1995.
[8] “Artigo 3º A contribuição das empresas em geral e das entidades ou órgãos a ela equiparados, destinada à Previdência Social, incidente sobre a folha de salários, será:
I – de 20% sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados empregados, avulsos, autônomos e administradores; [...]” [Lei 7.787, de 30 de junho de 1989, Dispõe sobre alterações na legislação de custeio da Previdência Social e dá outras providências. DOFC 03 jul. 1989, p. 10.777].
[9] “Artigo 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no artigo 23, é de:
I – 20% (vinte por cento) sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados empregados, empresários, trabalhadores avulsos e autônomos que lhe prestem serviços; [...]” [Lei 8.212, de 24 jul. de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. DO 25 jul. 1991, p. 14.801].
[10] Uelze, Hugo Barroso. Ação popular tributária. RTJE, São Paulo: RT, v. 19, nº 136, p. 93, maio de 1995.
[11] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular [...]. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 154-5.
[12] “Artigo 48. [...]
Parágrafo único. São prerrogativas do Conselheiro integrante do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – Carf:
I – somente ser responsabilizado civilmente, em processo judicial ou administrativo, em razão de decisões proferidas em julgamento de processo no âmbito do Carf, quando proceder comprovadamente com dolo ou fraude no exercício de suas funções; e [...]”. [Lei 12.833, de 20 jun. 2013. Altera as Leis [...] 11.941, de 27 mai. 2009 [...] e dá outras providências. DOU 21 jun. 2013, p. 2].
[13] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 1.002-3.
[14] THEODORO JÚNIOR, Humberto. O novo código civil e as regras heterotópicas de natureza processual. Academia Brasileira de Direito Processual Civil, Porto Alegre, ago. 2004. Disponível em:
[15] UELZE, Hugo Barroso. A compensação de tributos e o artigo 170-A do CTN. Repertório IOB de Jurisprudência. São Paulo: IOB, 2001, v. 11, p. 314, vol. 1.
[16] Ataliba, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 35.
[17] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 12. ed., São Paulo: Atlas, p. 271-2, v. 2.
[18] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 44.
[19] ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 160.
Hugo Barroso Uelze é advogado, secretário adjunto da 116ª Subseção da OAB-SP e coordenador do Núcleo Jabaquara da Escola Superior de Advocacia da OAB-SP.
Revista Consultor Jurídico, 9 de outubro de 2013