quinta-feira, 9 de maio de 2013

ESTADO DE EXCEÇÃO JUDICIÁRIO?

Violências...
O filósofo esloveno Slavoj Zizek em sua obra "Sobre la violencia: seis reflexiones marginales" desenvolve três conceitos de violência que são importantes para entendermos os equívocos das políticas de encarceramento e aumento das penas e controle sobre as pessoas. Zizek nos fala de três formas de violência:
a) Uma violência subjetiva que representa a decisão, vontade, de praticar um ato violento. A violência subjetiva representa a quebra de uma situação de (aparente) não violência por um ato violento. A normalidade seria a não violência, a paz e o respeito às normas (normalidade) que é interrompida por um ato de vontade violento.
b) A violência objetiva, diferente da violência subjetiva é permanente. A violência objetiva são as estruturas sociais e econômicas, as permanentes relações que se reproduzem em uma sociedade hierarquizada, excludente, desigual, opressiva e repressiva.
c) A violência simbólica é também permanente. Esta violência se reproduz na linguagem, na gramática, na arquitetura, no urbanismo, na arte, na moda, e outras formas de representação. Para entendermos melhor, podemos exemplificar a violência simbólica presente na gramática: em diversos idiomas os sobrenomes se referem exclusivamente ao pai ou ainda, o plural, no idioma português, por exemplo, sempre vai para o masculino. Assim, se estiverem em uma sala 40 mulheres e um homem, diremos: "eles estão na sala". O plural para uma mulher passeando com um cachorro será: "eles estão passeando". A violência simbólica, assim como a violência estrutural, objetiva, atuam permanentemente.
Assim, de nada adianta construirmos políticas públicas de combate à violência subjetiva sem mudarmos as estruturas socioeconômicas opressivas e desiguais (violentas) ou todo o universo de significações e representações que reproduzem a desigualdade, a opressão e a exclusão do "outro" diferente, subalternizado, inferiorizado.
Um exemplo interessante: a escola moderna é um importante aparelho ideológico, reproduzindo a mão de obra necessária para ocupar os postos de trabalho que permitirão o funcionamento do sistema socioeconômico assim como reproduzindo os valores e justificativas necessárias para que as pessoas se adequem e não questionem seriamente o seu lugar no sistema social (e no sistema de produção e reprodução). A escola, portanto, tem a fundamental função de uniformizar valores e comportamentos. O recado da escola moderna é: adeque-se; conforme-se; este é o seu lugar no sistema.
Simbolicamente, a escola moderna diz diariamente isso aos seus alunos, por meio do uniforme. Sem o uniforme, a meia, a calça, a camisa e os sapatos da mesma cor, o aluno não pode assistir a aula. Durante muito tempo, e ainda hoje em algumas escolas uniformiza-se os cabelos, o andar, o sentar, e claro mas um monte de outras coisas mais profundas como o pensar, o desejar e o gostar. A criança desde cedo deve se vestir da mesma forma, se comportar da mesma maneira, palavras mágicas, sem as quais as portas não se abrem. Pois bem, vamos ao problema: a criança, mesmo que não seja dito por meio da palavra (o que também ocorre), simbolicamente percebe, diariamente, todo o tempo, que não há lugar para quem não se normaliza, uniformiza. O recado muito claro da escola moderna é: o uniformizado é o bom; não há lugar para o diferente (não uniformizado); para o que se comporta diferente, se veste diferente, ou de alguma forma não se enquadra no padrão. É claro que esta criança, processando o recado permanente (dito e repetido de várias formas) irá compreender que o padrão é bom e o diferente do padrão é ruim. No seu universo de significados em processo de construção, o diferente deve ser excluído, afastado, punido, uma vez que o que foge ao padrão não pode assistir a aula, não pode sequer permanecer na escola. Logo, quando esta criança percebe alguém ou algo em alguém que para ela, é diferente do padrão (o cabelo; uma roupa; a cor; a forma do corpo; da fala; do olhar) esta criança irá de alguma forma reagir a ameaça do diferente, excluindo e punindo o diferente "ruim".
Em outras palavras, a escola moderna ensina diariamente a criança a praticar o "bullying". Vejamos então a ineficiência das políticas de combate à violência, à discriminação, à corrupção que padecem, todas, deste mal. No exemplo descrito acima, a escola, o estado, os governos, criam políticas públicas pontuais de combate ao "bullying" (a tortura mental e agressão física decorrente da discriminação do "diferente") ao mesmo tempo que mantém uma estrutura simbólica que ensina a discriminação (o "bullying").
Voltamos aos conceitos de violência: toda política de combate à violência; às drogas; à corrupção, serão sempre ineficazes se não se transformarem as estruturas sociais e econômicas que permanentemente criam as condições para que esta violência subjetiva se reproduza, assim como o sistema simbólico que continua, da mesma forma reproduzindo a violência. Para acabar com a violência subjetiva só há uma maneira: acabar com a violência simbólica e objetiva. Para acabar com o "bulling" na escola só mudando as estruturas uniformizadoras e excludentes presentes diariamente na escola; para acabar com a corrupção só transformando o sistema social e econômico e de valores (condições objetivas e simbólicas) que reproduzem as condições para que esta (a corrupção) se torne parte da estrutura social e econômica vigente.
Neste artigo pretendemos trazer algumas reflexões (preocupações) sobre a relação entre "ética, cotidiano e corrupção", o que faremos a partir das premissas teóricas acima desenvolvidas. De nada adiantarão as constantes políticas pontuais de combate a corrupção na vida de nosso país, se estas políticas atacarem apenas os efeitos de forma repressiva e (ainda pior) com o direito penal, o aumento do controle e da punição. Os resultados serão enganosos, sempre, se não respondermos algumas perguntas: porque a corrupção¿ Quais são os elementos estruturais e simbólicos em nossa sociedade que reproduzem as condições para a corrupção?

O direito penal não resolve.

Nesta perspectiva podemos trazer nossas reflexões para o Brasil, 2012, segundo semestre, às vésperas das eleições municipais.
O pano de fundo do julgamento é construído pela insistente campanha dos principais meios de informação (a grande mídia) que aposta na punição dos excluídos, dos não enquadrados, dos não uniformizados e normalizados. As cidades, a exemplo da Paris do Barão Haussmann (1853-1867), não é para todos. A higienização urbana (a exclusão dos pobres) continua sendo a mais nova política urbana do século XXI. O direito penal é a grande aposta. A ideia também não é nova. Se voltarmos ao século XIX nos reencontramos com este morto vivo que perambula pelo século XXI. A brutal concentração de riquezas causada pela aposta em uma economia naturalizada que recompensará o mais ousado e eficaz competidor no mercado gera a exclusão; a exploração radical do trabalho; a desigualdade, e com esta, a crescente insatisfação, que se traduz em rebeliões difusas de um lado (o que se pode chamar de uma criminalidade "comum") e rebeliões políticas de outro lado (que são também criminalizadas pelo Estado ocupado pelos grandes proprietários). Em meio a tamanha insatisfação causada pela desregulamentação econômica que agrava a concentração de riqueza e deixa livre os grandes proprietários para o abuso do poder econômico (qualquer semelhança com a atual crise não é mera coincidência), a resposta do Estado será (estamos no século XIX) mais direito penal; mais encarceramento; mais controle social; mais polícia; mais manicômios e presídios. Toda uma justificativa ideológica é construída para explicar a situação. Os problemas econômicos não são sistêmicos mas atribuídos às condutas de alguns indivíduos. A criminalidade tampouco é sistêmica, e não se reconhece nenhuma conexão desta com o sistema econômico, social e cultural do liberalismo. Se existe crime é por causa dos indivíduos que escolhem o caminho do mal ou são doentes mentais. O poder do Estado, nas mãos dos proprietários, define o que é crime, normalidade e pecado, o que, é claro, são as condutas dos pobres excedentes do sistema econômico. Este retrato do século XIX restaurado com cores falsas no final do século XX é colocado em grandes imagens globalizadas no século XXI. Este é o pano de fundo para o "espetáculo" transmitido diariamente para todo o país. Onze juízes, vaidosos, com poses e gestos, com capas pretas até o tornozelo, sentindo-se a consciência moral do país, julgam e condenam sem provas mas segundo "indícios fortes" (alegação transmitida e gravada pela TV para todos ouvirem). Não, não estamos no século XVI. O mais interessante é a coincidência do julgamento com as eleições municipais.
O julgamento dos políticos envolvidos na acusação, coincide, quase, com o dia do pleito eleitoral municipal de 2012. Coincidências a parte, lembramos que os fatos que envolvem o julgamento foram utilizados para uma tentativa de "golpe de estado" contra o presidente eleito democraticamente e no poder em 2005 (no novo formato de golpe utilizado em Honduras e Paraguai - o golpe parlamentar travestido de falsa legalidade).
Não, o direito penal não resolverá a corrupção. A corrupção está na estrutura e nas representações simbólicas de um sistema social, econômico e político intrinsecamente corrupto. A corrupção está no futebol de toda semana; na fila furada; na propina diária; nas pequenas vantagens; a corrupção está na sala de aula; no assinar a presença sem estar presente na aula; na mentira na mídia; na mentira e no encobrimento; na notícia distorcida; nas coincidências... No jogo do roto e do esfarrapado só um é mostrado como tal. Assim como vimos apoiadores da ditadura acusando democratas de autoritários, assistimos corruptos "históricos" pronunciando discursos históricos de moralidade.
Efetivamente, o direito penal não resolverá a corrupção. Lei de "ficha limpa"; o espetáculo televisivo da ação penal 470 (realizado por uma mídia que se tornou autista); isto não resolverá a corrupção. Felizmente alguma coisa está fora da ordem (como diria Caetano). Por algum momento "eles" (na verdade o "nós" no poder) perderam o controle do monopólio da desinformação diária. A mídia alternativa mostra o que a grande mídia (que defende a liberdade dos donos dos meios de comunicação e não a liberdade de imprensa) não mostra, mas propositalmente esconde. O "autismo" em que se lança a mídia pode ser um sinal de esperança para a conquista da liberdade de expressão. O "julgamento do século" como insistiu a grande mídia, não mobilizou ninguém e ainda nos expos ao pior, à ameaça e comprometimento do Estado constitucional e democrático por uma prática que lembra um "tribunal de exceção" (condenação por indícios). Alias, o que vemos revelado nas telas da TV é o que acontece com muita frequência, de forma não revelada, com os pobres.
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Professor da PUC-Minas, UFMG e FDSM. Mestre e Doutor em Direito. www.joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com.br
ZIZEK, Slavoj. Sobre la violencia: seis reflexiones marginales, editora Paidós, Buenos Aires, 2009.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado - nota sobre aparelhos ideológicos do estado, Biblioteca de Ciências Sociais, editora Graal, 9 edição, Rio de Janeiro, 1985.
 
Fonte: Coluna do Professor José Luiz Quadros Magalhães
publicada no dia 07/12/2012

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