Fonte: Conjur
Vivemos tempos diferentes, disto ninguém duvida. Entre temerosos e fascinados, assistimos a profundas mudanças na sociedade, quiçá as maiores na história da humanidade. Das relações familiares aos drones, vamos adentrando em novas práticas, a um só tempo como expectadores e partícipes.
No mundo do Direito não é diferente. Enormes foram as mudanças entre a audiência da qual participei em julho de 1969 como promotor substituto, na comarca de Umuarama (PR), quando o escrivão, com caprichada letra, escreveu as minhas alegações finais em um enorme livro, até os dias atuais, em que uma testemunha depõe em Portugal para um juiz no Brasil, por vídeoconferência.
Entre as múltiplas e incríveis transformações, vê-se o profissional do Direito acuado por temas novos que lhe são submetidos e a tecnologia que avança avassaladora, jogando por terra princípios e práticas seculares.
O mais simples dos exemplos é o processo eletrônico, que obriga os mais idosos a aprender e adaptar-se à leitura de arquivos digitais ou, quando podem pagar, a procurar socorro de jovens estagiários.
Entre os brindes da vida contemporânea, o controle pelas redes sociais é um dos mais fortes. Na vida pública ou privada, cada vez mais, todos controlam todos. E, evidentemente, os que exercem função pública relevante são, ainda, mais controlados.
Neste particular, a série Black Mirror, da Netflix, tem bons exemplos. Alguns episódios podem levar expectadores mais sensíveis à perda do sono. Um deles, Odiados pela nação, em especial, mostra bem o alcance e a influência da viralização de notícias nas redes sociais.
Em ano incerto, na cidade de Londres, um hacker escolhe as pessoas mais odiadas no momento, em razão de más atitudes, e planeja suas mortes com base em ações tecnológicas, sem qualquer contato ou proximidade com a vítima. O julgamento é popular, através das manifestações de reprovação nas redes sociais, muitas delas carregadas de ódio. A execução parte de um inteligente hacker, perito na tecnologia.
Passo da ficção à realidade brasileira. O foco será nos magistrados, porque neles se encerra a parte mais importante dos múltiplos conflitos da sociedade. É na decisão que se define o resultado e, portanto, é no juiz que se descarrega a maior possibilidade de amor e ódio.
Iniciemos pela primeira instância e dela passemos às demais, chegando ao Supremo Tribunal Federal, hoje palco de atenções diárias dos brasileiros.
Em Brasília, o juiz federal da 14ª Vara do Distrito Federal, contrariando resolução do Conselho Federal de Psicologia do Brasil, permitiu que psicólogos atendessem homossexuais que os procurassem, visando orientação sobre terapia de reversão sexual.[
i] O fato provocou enorme discussão nas redes sociais, sofrendo o magistrado pesadas acusações. Foi discutido em programas de TV e aproximadamente 364 mil resultados (acessos) chegaram ao Google em 0,41 segundos.[
ii]
Em Belo Horizonte (MG), o juiz de Direito da Vara da Infância de Juventude, por autorizar a remoção de filhos de pessoas “em situação de risco”,[
iii] parte delas viciadas em drogas, encaminhando-os a abrigos para posterior adoção, sofreu forte campanha na mídia, movimentou órgãos de defesa de direitos humanos e foi tema de audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília.[
iv]
No dia 11 passado, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a suspensão do mandato e consequente afastamento do senador Aécio Neves, suspeito da prática de ações criminosas, deve ser decidida por aquela casa parlamentar e não pelo Judiciário. O assunto viralizou e, em 0,25 segundos, tinha aproximadamente 42.300 resultados no Google.[
v]
Sem fazer qualquer análise do mérito das decisões judiciais, observo que essas manifestações vão de simples comentários a acusações graves, muitas vezes carregadas de ódio incontido. Estas pessoas são chamadas de haters.
Depois do julgamento do STF, um comentarista, em uma rádio de grande repercussão, acusava o ministro Roberto Barroso, a quem se referia com termos pesados e vulgares, de vários fatos, entre outros de ser ligado à esquerda e a movimentos sociais que promovem invasão de propriedades particulares.
Manifestações de ódio podem alcançar, da mesma forma, a vida privada de celebridades. A modelo Ana Hickmann, ao exibir foto de seu filho, com 3 anos de idade, foi atacada por uma mulher que, entre outras coisas, a ele se referiu como “Eita menino bicha ridículo! Horroroso e magrelo nojento”.[
vi]
Como se vê, tudo o que se está aqui a dizer não é algo que afete apenas magistrados. Manifestações radicais, em grande número, podem recair, da mesma maneira, sobre agentes do Ministério Público, policiais, defensores, advogados públicos e particulares
Focando na magistratura, fácil é ver que se vive um novo tempo e, nele, há novas formas de controle. Elas deixam de ser exercidas com exclusividade pelas corregedorias e conselhos e passam a ser feitas, também, pelas redes sociais e meios de comunicação.
Não há como impor regras a respeito. O acesso é livre, a transmissão imediata e, dependendo do assunto, pode atingir milhares de pessoas em poucos segundos. Tudo o que pode ser feito, por exemplo, pedidos de indenização em Juízo, vem depois. E em tempo real não surtem qualquer efeito. A notícia foi propagada na velocidade do vento e não há liminar que possa fazê-la voltar atrás.
Se é assim, é preciso que os magistrados (e outros atores em posições semelhantes) se preparem. Todos estão sujeitos a ver-se no palco de comentários quando menos esperem. Basta uma decisão em um dos milhares de processos que manejam diariamente.
Preparar-se significa saber como agir e reagir diante de tais situações. Evidentemente, na Faculdade de Direito, nos cursos preparatórios e nos de formação das escolas da magistratura, nada lhes foi ensinado a respeito. Preparar-se, então, significa discutir o assunto nas redes privadas e provocar as Escolas para que ele seja colocado na agenda.
Alguns aspectos desta nova realidade devem ser lembrados, sem prejuízo de outros tantos que pessoas experientes e profissionais de áreas interdisciplinares, como psicólogos ou comunicadores sociais, possam acrescentar. Vejamos.
O primeiro mandamento é prevenir-se. Evidentemente, não fugindo de decidir, pois é para isto que o magistrado foi empossado. O juiz que se omite, não decide, seja qual for a forma (por exemplo, dando vista ao MP para ganhar tempo), está no lugar errado. Prestaria um enorme favor à sociedade pedindo exoneração do cargo.
Prevenir-se significa ter o bom senso de prestar atenção a todos os reflexos de sua decisão, analisar as consequências de seu ato. Verificar, por exemplo, se há risco de a decisão não ser cumprida. Por exemplo, a decisão individual do ministro Marco Aurélio, do STF, de afastar o senador Renan Calheiros, foi descumprida pelo Senado aos 6/12/2016.[
vii] Quais os efeitos desta recusa para a imagem da Suprema Corte?
O segundo é o magistrado não perder a independência por receio de ser atacado na mídia ou nas redes sociais. Se ele se curvar a possíveis críticas, buscando tornar-se popular e simpático aos olhos da sociedade, estará jogando por terra a sua autonomia funcional. A independência dos juízes não lhes foi dada, foi conquistada através de muitas lutas. Exemplo, nos anos 1930, o desembargador Paulo Américo Passalacqua, da então Corte de Apelação de São Paulo, lutou tenazmente e conseguiu que as promoções aos tribunais de Justiça contemplassem o critério de antiguidade.[
viii]
O terceiro é a discrição. Dada a decisão, não cabe ao magistrado exibir-se com entrevistas, caso ela seja festejada, nem se justificar, caso ela seja repudiada. Uma vez tendo decidido, de acordo com a Constituição e as leis de seu país, como jurou ao tomar posse, seu papel está encerrado. Os recursos estão à disposição de quem dela discorda e, no Brasil, eles são fartos.
Isto nem sempre é fácil. Ninguém, inclusive os juízes, gosta de ser repudiado. Mas se isto ocorrer o fato deve ser recebido como ônus do cargo. Qualquer defesa deve ser feita em nota da associação de classe e ponto final.
Entretanto, imagine-se que houve uma ofensa extrema ou uma ameaça de morte. Nestes casos, uma ação de natureza civil, um pedido de proteção policial ou uma representação ao Ministério Público podem ser o caminho adequado. Mas sem alarde ou polêmica.
Em suma, os novos tempos, surpreendendo, encantando ou decepcionando, aí estão. O controle social sobre as decisões judiciais e outras tantas já é uma realidade. Saber conviver com essa nova situação e adaptar-se é o passo certo a ser dado.
iii O Estado de São Paulo, caderno Metrópole, 15/10/2017, A-14.
viii Passalacqua, Paulo Américo. O Poder Judiciário. São Paulo: Saraiva, 1936.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.
Revista Consultor Jurídico, 22 de outubro de 2017, 12h21