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segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Magistratura deve estar preparada para os reflexos das redes sociais

Fonte: Conjur



Vivemos tempos diferentes, disto ninguém duvida. Entre temerosos e fascinados, assistimos a profundas mudanças na sociedade, quiçá as maiores na história da humanidade. Das relações familiares aos drones, vamos adentrando em novas práticas, a um só tempo como expectadores e partícipes.

No mundo do Direito não é diferente. Enormes foram as mudanças entre a audiência da qual participei em julho de 1969 como promotor substituto, na comarca de Umuarama (PR), quando o escrivão, com caprichada letra, escreveu as minhas alegações finais em um enorme livro, até os dias atuais, em que uma testemunha depõe em Portugal para um juiz no Brasil, por vídeoconferência.

Entre as múltiplas e incríveis transformações, vê-se o profissional do Direito acuado por temas novos que lhe são submetidos e a tecnologia que avança avassaladora, jogando por terra princípios e práticas seculares.

O mais simples dos exemplos é o processo eletrônico, que obriga os mais idosos a aprender e adaptar-se à leitura de arquivos digitais ou, quando podem pagar, a procurar socorro de jovens estagiários.

Entre os brindes da vida contemporânea, o controle pelas redes sociais é um dos mais fortes. Na vida pública ou privada, cada vez mais, todos controlam todos. E, evidentemente, os que exercem função pública relevante são, ainda, mais controlados.

Neste particular, a série Black Mirror, da Netflix, tem bons exemplos. Alguns episódios podem levar expectadores mais sensíveis à perda do sono. Um deles, Odiados pela nação, em especial, mostra bem o alcance e a influência da viralização de notícias nas redes sociais.

Em ano incerto, na cidade de Londres, um hacker escolhe as pessoas mais odiadas no momento, em razão de más atitudes, e planeja suas mortes com base em ações tecnológicas, sem qualquer contato ou proximidade com a vítima. O julgamento é popular, através das manifestações de reprovação nas redes sociais, muitas delas carregadas de ódio. A execução parte de um inteligente hacker, perito na tecnologia.

Passo da ficção à realidade brasileira. O foco será nos magistrados, porque neles se encerra a parte mais importante dos múltiplos conflitos da sociedade. É na decisão que se define o resultado e, portanto, é no juiz que se descarrega a maior possibilidade de amor e ódio.

Iniciemos pela primeira instância e dela passemos às demais, chegando ao Supremo Tribunal Federal, hoje palco de atenções diárias dos brasileiros.

Em Brasília, o juiz federal da 14ª Vara do Distrito Federal, contrariando resolução do Conselho Federal de Psicologia do Brasil, permitiu que psicólogos atendessem homossexuais que os procurassem, visando orientação sobre terapia de reversão sexual.[i] O fato provocou enorme discussão nas redes sociais, sofrendo o magistrado pesadas acusações. Foi discutido em programas de TV e aproximadamente 364 mil resultados (acessos) chegaram ao Google em 0,41 segundos.[ii]

Em Belo Horizonte (MG), o juiz de Direito da Vara da Infância de Juventude, por autorizar a remoção de filhos de pessoas “em situação de risco”,[iii] parte delas viciadas em drogas, encaminhando-os a abrigos para posterior adoção, sofreu forte campanha na mídia, movimentou órgãos de defesa de direitos humanos e foi tema de audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília.[iv]

No dia 11 passado, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a suspensão do mandato e consequente afastamento do senador Aécio Neves, suspeito da prática de ações criminosas, deve ser decidida por aquela casa parlamentar e não pelo Judiciário. O assunto viralizou e, em 0,25 segundos, tinha aproximadamente 42.300 resultados no Google.[v]

Sem fazer qualquer análise do mérito das decisões judiciais, observo que essas manifestações vão de simples comentários a acusações graves, muitas vezes carregadas de ódio incontido. Estas pessoas são chamadas de haters.

Depois do julgamento do STF, um comentarista, em uma rádio de grande repercussão, acusava o ministro Roberto Barroso, a quem se referia com termos pesados e vulgares, de vários fatos, entre outros de ser ligado à esquerda e a movimentos sociais que promovem invasão de propriedades particulares.

Manifestações de ódio podem alcançar, da mesma forma, a vida privada de celebridades. A modelo Ana Hickmann, ao exibir foto de seu filho, com 3 anos de idade, foi atacada por uma mulher que, entre outras coisas, a ele se referiu como “Eita menino bicha ridículo! Horroroso e magrelo nojento”.[vi]

Como se vê, tudo o que se está aqui a dizer não é algo que afete apenas magistrados. Manifestações radicais, em grande número, podem recair, da mesma maneira, sobre agentes do Ministério Público, policiais, defensores, advogados públicos e particulares

Focando na magistratura, fácil é ver que se vive um novo tempo e, nele, há novas formas de controle. Elas deixam de ser exercidas com exclusividade pelas corregedorias e conselhos e passam a ser feitas, também, pelas redes sociais e meios de comunicação.

Não há como impor regras a respeito. O acesso é livre, a transmissão imediata e, dependendo do assunto, pode atingir milhares de pessoas em poucos segundos. Tudo o que pode ser feito, por exemplo, pedidos de indenização em Juízo, vem depois. E em tempo real não surtem qualquer efeito. A notícia foi propagada na velocidade do vento e não há liminar que possa fazê-la voltar atrás.

Se é assim, é preciso que os magistrados (e outros atores em posições semelhantes) se preparem. Todos estão sujeitos a ver-se no palco de comentários quando menos esperem. Basta uma decisão em um dos milhares de processos que manejam diariamente.

Preparar-se significa saber como agir e reagir diante de tais situações. Evidentemente, na Faculdade de Direito, nos cursos preparatórios e nos de formação das escolas da magistratura, nada lhes foi ensinado a respeito. Preparar-se, então, significa discutir o assunto nas redes privadas e provocar as Escolas para que ele seja colocado na agenda.

Alguns aspectos desta nova realidade devem ser lembrados, sem prejuízo de outros tantos que pessoas experientes e profissionais de áreas interdisciplinares, como psicólogos ou comunicadores sociais, possam acrescentar. Vejamos.

O primeiro mandamento é prevenir-se. Evidentemente, não fugindo de decidir, pois é para isto que o magistrado foi empossado. O juiz que se omite, não decide, seja qual for a forma (por exemplo, dando vista ao MP para ganhar tempo), está no lugar errado. Prestaria um enorme favor à sociedade pedindo exoneração do cargo.

Prevenir-se significa ter o bom senso de prestar atenção a todos os reflexos de sua decisão, analisar as consequências de seu ato. Verificar, por exemplo, se há risco de a decisão não ser cumprida. Por exemplo, a decisão individual do ministro Marco Aurélio, do STF, de afastar o senador Renan Calheiros, foi descumprida pelo Senado aos 6/12/2016.[vii] Quais os efeitos desta recusa para a imagem da Suprema Corte?

O segundo é o magistrado não perder a independência por receio de ser atacado na mídia ou nas redes sociais. Se ele se curvar a possíveis críticas, buscando tornar-se popular e simpático aos olhos da sociedade, estará jogando por terra a sua autonomia funcional. A independência dos juízes não lhes foi dada, foi conquistada através de muitas lutas. Exemplo, nos anos 1930, o desembargador Paulo Américo Passalacqua, da então Corte de Apelação de São Paulo, lutou tenazmente e conseguiu que as promoções aos tribunais de Justiça contemplassem o critério de antiguidade.[viii]

O terceiro é a discrição. Dada a decisão, não cabe ao magistrado exibir-se com entrevistas, caso ela seja festejada, nem se justificar, caso ela seja repudiada. Uma vez tendo decidido, de acordo com a Constituição e as leis de seu país, como jurou ao tomar posse, seu papel está encerrado. Os recursos estão à disposição de quem dela discorda e, no Brasil, eles são fartos.

Isto nem sempre é fácil. Ninguém, inclusive os juízes, gosta de ser repudiado. Mas se isto ocorrer o fato deve ser recebido como ônus do cargo. Qualquer defesa deve ser feita em nota da associação de classe e ponto final.

Entretanto, imagine-se que houve uma ofensa extrema ou uma ameaça de morte. Nestes casos, uma ação de natureza civil, um pedido de proteção policial ou uma representação ao Ministério Público podem ser o caminho adequado. Mas sem alarde ou polêmica.

Em suma, os novos tempos, surpreendendo, encantando ou decepcionando, aí estão. O controle social sobre as decisões judiciais e outras tantas já é uma realidade. Saber conviver com essa nova situação e adaptar-se é o passo certo a ser dado.






iii O Estado de São Paulo, caderno Metrópole, 15/10/2017, A-14.










viii Passalacqua, Paulo Américo. O Poder Judiciário. São Paulo: Saraiva, 1936.

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Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.



Revista Consultor Jurídico, 22 de outubro de 2017, 12h21

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

O fetiche punitivista e o colapso do Estado de Direito





O estado de incerteza e insegurança causado pelo atual cenário político, econômico e social permite dizer que a democracia brasileira talvez enfrente sua pior crise desde a promulgação da Constituição de 1988. Os tempos vividos são nebulosos, e a instabilidade experimentada é catalisada por altos índices de criminalidade, explorados e propalados pela mídia, muitas vezes de forma açodada e, por que não, irresponsável. Os discursos de ódio e clamores punitivistas conquistam adeptos e audiência, disseminando opiniões prontas e infensas a qualquer reflexão crítica.

Para além da “cultura do medo” que instaura, fato é que, de forma insidiosa, essa onda justiceira corrói as bases do próprio Estado de Direito, na medida em que influencia diretamente os discursos e ações daqueles responsáveis pela aplicação da lei, afastando-os justamente dos limites que deveriam resguardar. Aliás, o respeito à lei é justamente a marca de um Estado de Direito, ou seja, de um Estado que se funda e que autolimita o exercício de seu poder a partir da racionalidade da lei. E é justamente no âmbito do sistema penal, em que o poder estatal se expressa de forma mais radical — ojus puniendi enquanto expressão do poder soberano de privar o cidadão de sua liberdade — que essa racionalidade deve se fazer mais efetiva, de modo a evitar que a intervenção repressiva se converta em mal maior que aquele causado pela conduta que a ensejou. Rompidos os limites racionais da lei, o poder, em casos tais, se perverte em crime, traindo o Estado de Direito e as bases que legitimam e estruturam a Justiça pública.

Nessa dinâmica, invertem-se os papéis: o cidadão atingido pela intervenção repressiva transforma-se em vítima, enquanto o Estado, em criminoso mais forte. Reificado pela violência estatal, o ser humano perde a condição de “fim em si mesmo”, em vilipêndio às máximas kantianas que regeram a Declaração de 1948 e que estão na base da afirmação da dignidade humana como centro de gravidade de nosso ordenamento constitucional.

Justamente por isso, é motivo de apreensão e assombro a constatação de uma progressiva adesão por parte das autoridades públicas aos apelos midiáticos e clamores acríticos que pressionam por uma conversão do sistema penal em instrumento de consumação de vinganças privadas, regidos por uma lei de talião atualizada, que busca expressão pelo poder de punir estatal — que, fora dos limites da lei, se manifesta como expressão de poder do mais forte. Sob pena de se transformar em criminoso, o Estado não pode se confundir com a vítima[1], que não tem e da qual não se pode exigir um compromisso com os padrões de racionalidade que estão na base da Justiça pública, precisamente para conter um poder que sempre tende a extrapolar limites, convertendo-se em pura violência que coloca em risco a própria estrutura — o Estado de Direito — que a faz legítima na medida em que a controla.

Mesmo diante de uma criminalidade que avança, portanto, é o respeito à lei que nos resguarda da anomia garantindo o avanço civilizatório, de modo que é a barbárie que nos espreita caso também se ponham acima — e, logo, fora — da lei as autoridades investidas de poder para resguardá-la. Se não houver quem zele pelo templo da razão do qual a lei é símbolo, interpretando-a e aplicando-a com os olhos voltados à dimensão transcendental do interesse público — que diz de todos e de cada um —, o crime terá fluxo livre e linear, igualando na imanência autoridades e delinquentes. É o que não se pode admitir, sob pena de se fomentar um processo em que o Estado termina por se integrar à espiral de violência que deveria conter, deixando de reger “de cima” — do lugar “terceiro” da lei — a relação entre os cidadãos.

Diante das instigações e clamores pelo uso ilimitado do poder, portanto, o que se deve esperar do Estado e das autoridades que o representam é uma atuação pautada na racionalidade que se expressa pela estrita observância da lei, que está acima de todos, inclusive, e, principalmente, daqueles que a aplicam e guardam. Aliás, se as próprias autoridades não se submetem à lei, não têm legitimidade para aplicá-la em punição àqueles que também não o façam.

Posto isso, novamente orientando a discussão para o período crítico que vivenciamos no Brasil, cumpre esclarecer e ressaltar que o problema da criminalidade — e tantos outros — tem causas complexas e profundas, para as quais não há soluções mágicas, como as que se propõem tendo por base o simples recrudescimento das leis e da intervenção penal. A sensação de segurança um dia experimentada jamais se deveu a um direito penal rigoroso ou a um processo penal de fracas garantias. Em tempos idos, a segurança subjetiva e social experimentada devia-se muito mais a padrões éticos sustentados por instituições e autoridades desencantadas[2] que a uma intervenção penal efetiva[3]. Despido do anteparo que tais instituições e autoridades lhe asseguravam, o direito e o processo penal — enfim, o sistema penal — estão nus, e não será a truculência policial, não serão as prisões provisórias excessivas e arbitrárias ou as condenações antecipadas pela mídia que resolverão a questão. O respeito a garantias fundamentais ou a demora inerente ao devido processo legal — nos limites da razoabilidade — não podem ser confundidos com impunidade — confusão em grande parte induzida e disseminada pela mídia, diga-se —, sob pena de se converter a Justiça pública em sistema de institucionalização de vinganças privadas. E todo cuidado é pouco, uma vez que, como já alertava Zaffaroni, nos subterrâneos do Estado de Direito espreita o Estado de polícia, pronto a expandir sua violência e assim afirmar-se à menor oportunidade[4].

Nesse contexto, a democracia e o Estado de Direito apresentam-se como as únicas — primeiras e últimas — escolhas possíveis em contenção ao estado de barbárie instaurado pelos nossos índices de violência e criminalidade — inclusive institucional, frise-se. E o respeito à lei — a contenção diante de suas garantias e a racionalidade em sua aplicação — não é opção, mas dever que se impõe não só ao Poder Judiciário, mas a todas as instituições e funções que interagem estruturando o sistema penal. Entretanto, uma vez que a adesão progressiva ao clamor punitivista tem por consequências mais diretas e nefastas a violação a garantias e os abusos de poder, sobressai em importância a atuação da Defensoria Pública, como refúgio último das parcelas da população mais atingidas pelo furor repressivo estatal, verdadeiro anteparo contra os refluxos de uma escravidão recalcada, atualizada em nossos cárceres e favelas[5].

E frise-se: ao lutar pela aplicação estrita da lei e pelo respeito a garantias fundamentais, combate-se aquele que talvez seja o pior dos crimes, exatamente o cometido pelo Estado quando, no exercício de seu poder, não se contém diante do direito por ele próprio posto.

Numa república democrática constituída em Estado de Direito, o império da impunidade não deve interessar a ninguém, tampouco o atropelo a garantias fundamentais. E, nas dinâmicas de equalização desse tensionamento, os fins não justificam os meios. Pelo contrário, em uma democracia republicana arrimada no Direito, é justamente o respeito aos meios racionalizados que legitima o exercício do poder para alcance dos fins constitucionalmente definidos.



[1] Aliás, deve postar-se acima e além de acusados e vítimas, assim autorizado, portanto, a investigar e analisar os fatos com racionalidade, julgando-os com imparcialidade, estritamente vinculado à lei que limita seu poder de punir, que não pode ser confundido com violência de vingança.
[2] GAUCHET, Marcel. El desencantamiento del mundo. Una historia política de la religión. Madrid: Editorial Trotta, 2005.
[3] COSTA, Domingos Barroso da. A crise do supereu e o caráter criminógeno da sociedade de consumo. Curitiba: Juruá, 2009.
[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 169-170.
[5] ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 33.


Domingos Barroso da Costa é defensor público no Rio Grande do Sul, especialista em Criminologia e Direito Público e mestre em Psicologia pela PUC-MG.



Revista Consultor Jurídico, 2 de fevereiro de 2016, 8h10

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

RETROSPECTIVA PARTE II: As 10 principais decisões da pauta "qualitativa" do Supremo Tribunal Federal







Parte II
*(Clique aqui para ler a primeira parte deste texto)

Após o conjunto de reflexões sobre o ano do Supremo Tribunal Federal e as questões que dominaram a sua pauta, vale analisar o conteúdo de dez das decisões mais importantes do STF em 2015 e de outros 3 casos relevantes cujo julgamento foi iniciado neste ano, mais ainda não concluído. Sem a pretensão de sumariar todas as (muitas) decisões proeminentes da Corte no período, a seleção busca evidenciar o papel de destaque assumido pelo STF, ao catalisar as discussões mais candentes do ponto de vista jurídico, moral, político, econômico e social do país.

II.1) O STF e interações com os demais Poderes
O rito do processo de Impeachment (ADPF 378 MC, Rel. Min. Edson Fachin, Rel. p/ acórdão Min. Luís Roberto Barroso, julgamento concluído em 18.12.2015)

A ADPF 378 foi ajuizada pelo PCdoB, objetivando a realização de umafiltragem constitucional da Lei n. 1.079/1950, que define crimes de responsabilidade e disciplina o processo de julgamento de tais delitos, de modo a tornar claro e estreme de dúvida o rito aplicável ao processo deimpeachment do Presidente da República. A ação pede a adoção de várias providências, sob o argumento de que seriam necessárias para sanar as lesões a preceitos fundamentais da Constituição Federal, decorrentes da manutenção na ordem jurídica de textos normativos e interpretações relativos ao processo de impedimento incompatíveis com o texto constitucional vigente.

No julgamento dos 13 pedidos de medida cautelar, 4 foram os principais pontos debatidos pela Corte: (i) a existência de um direito à apresentação de defesa prévia pelo acusado, (ii) a possibilidade de candidaturas avulsas para a formação da comissão especial da Câmara dos Deputados, responsável por analisar o processo, (iii) a possibilidade de votação secreta para formação da comissão especial instaurada para examinar a denúncia, e (iv) a definição dos papeis da Câmara e do Senado Federal no processo de impeachment, em especial se o Senado poderia decidir pela não instauração do processo e, em caso positivo, qual seria o quórum aplicável a esta deliberação. Em relação a esses temas, vale apontar que no caso do Presidente Fernando Collor (i) não houve defesa prévia, (ii) os membros da comissão especial foram eleitos por chapa única, formada a partir de indicações dos líderes partidários, (iii) a eleição dos membros da comissão foi aberta (simbólica), e (iv) o Senado realizou uma análise prévia sobre o recebimento (ou não) da denúncia, de modo que o afastamento do Presidente se deu apenas após votação nominal do Plenário pela instauração do processo, por quórum de maioria simples[1].

Iniciado o julgamento, o ministro Edson Fachin, relator originário, votou no sentido de (i) negar a existência de um direito à defesa prévia, (ii) validar a possibilidade de apresentação de candidaturas avulsas para a eleição da comissão especial, (iii) declarar a constitucionalidade de eleição secreta dos membros da comissão, e (iv) assentar que, após a autorização pela Câmara, o Senado é obrigado a instaurar o processo de impeachment. Em relação aos três últimos pontos, porém, a maioria do Plenário discordou do relator. Prevaleceu o voto do ministro Luís Roberto Barroso, no sentido de (i) impedir a apresentação de candidaturas ou chapas avulsas para a formação da comissão especial (por 7 votos a 4), (ii) definir que a votação para a formação de tal comissão somente pode se dar por voto aberto (por 6 votos a 5), e (iii) afirmar a competência do Senado para deliberar sobre a instauração ou não do processo, em votação do Plenário (por 8 votos a 3), por maioria simples de votos (vencidos os ministros Marco Aurélio e Edson Fachin, que acolhiam o pedido do autor de definir quórum de 2/3). O STF manteve, assim, o mesmo rito seguido em 1992 no caso Collor.
Contrabando legislativo em medida provisória (ADI 5.127, Rel. Min. Rosa Weber, Rel. p/ acórdão Min. Edson Fachin, julgamento concluído em 15.10.2015)

Neste julgamento, mais uma vez, a Corte apreciou procedimentos internos ao parlamento. A ADI 5.127 discutiu a constitucionalidade da prática consolidada no Congresso Nacional de introduzir, nos projetos de leis de conversão, emendas sobre matérias estranhas às medidas provisórias (os chamados “contrabandos legislativos” ou “jabutis”). No caso, questionava-se dispositivo da Lei no 12.249/2010 que definia novas condições para o exercício da profissão contábil, mas que teria sido incluído por emenda parlamentar em MP com a qual não guardava pertinência temática.

No julgamento, o STF entendeu, por maioria (vencido apenas o Min. Dias Toffoli), que tal prática é inconstitucional, por ensejar violação: (i) à atribuição do Chefe do Executivo para avaliar a relevância e a urgência das matérias que serão objeto de medida provisória; (ii) ao devido processo legislativo; e (iii) ao princípio democrático, por frustrar um debate amplo e informado sobre a matéria e restringir o exercício da função representativa pelo parlamentar. Houve, porém, divergência em relação à solução a ser aplicada ao caso concreto. A ministra Rosa Weber votou pela procedência da ação, com a declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada. Já o ministro Edson Fachin, por reconhecer que inúmeras leis de conversão atualmente em vigor apresentam o mesmo vício legislativo, votou por manter hígidas até a data do julgamento (i.e., 15 de outubro), as leis fruto de emendas em projetos de conversão de medida provisória em lei, inclusive aquela impugnada na ação. Este entendimento foi seguido pela maioria da Corte (ministros Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Celso de Mello).
Prisão do senador Delcídio do Amaral (AC 4.039, Rel. Min. Teori Zavascki, julgamento concluído em 25.11.2015)

O julgamento da AC 4.039 representou um momento histórico no país: pela primeira vez, sob a égide da Constituição de 1988, um senador foi preso no exercício do mandato. O requerimento de prisão, formulado pelo PGR, apontava que o Senador Delcídio do Amaral estaria atuando concretamente para fraudar investigação em curso no âmbito da operação Lava Jato e atentar contra a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, entre outros, por meio de promessa de influência junto a ministros do STF, do planejamento da fuga de preso para dissuadi-lo da celebração de acordo de colaboração premiada, e da obtenção ilegal de documentos sigilosos.

Ao apreciar o pedido na noite do dia 24 de novembro de 2015, o ministro Teori Zavascki decretou a prisão cautelar do senador Delcídio do Amaral, ad referendum da Segunda Turma do STF. Para o relator, estavam presentes situação de flagrância de crime inafiançável (pela caracterização do delito de organização criminosa, reconhecido como crime permanente) e os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal (prova da existência do crime, indício suficiente de autoria, assim como a necessidade de garantir a instrução criminal e resguardar a ordem pública). Na manhã do dia seguinte, em sessão extraordinária, a Segunda Turma referendou a decisão por unanimidade. Na sequência, os autos foram remetidos ao Senado Federal, que deliberou pela manutenção da prisão, conforme exigido pelo artigo 53, § 2º, da Constituição.

II.2) O STF e os Direitos Fundamentais
Estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário (ADPF 347 MC, relator ministro Marco Aurélio, julgamento da medida cautelar concluído em 09.09.2015)

A ADPF 347, ajuizada pelo PSOL a partir de representação da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ, representou outro importante capítulo da atuação do Supremo no ano, em favor dos direitos fundamentais de minorias. Na ação, requereu-se ao STF o reconhecimento do sistema prisional brasileiro como um “estado de coisas inconstitucional” e a adoção de diversas providências para sanar as gravíssimas lesões a direitos básicos dos detentos. Tal técnica decisória, “importada” da Corte Constitucional Colombiana, permite ao Tribunal impor aos poderes estatais um conjunto de medidas tendentes à superação de um quadro de violações massivas de direitos fundamentais e a monitorar a implementação da decisão. A ideia já havia aparecido – ainda que de forma embrionária – na jurisprudência do STF no julgamento da Questão de Ordem nas ADI 4.357 e 4.425, relativa à modulação temporal da decisão sobre pagamento de precatórios[2].



Apreciando os pedidos de medida cautelar formulados, a Corte entendeu, de forma unânime e na linha do voto do ministro Marco Aurélio, pelo cabimento da ADPF e pela caracterização do sistema penitenciário nacional como um estado de coisas inconstitucional, uma vez presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais dos presos, decorrente de falhas estruturais de políticas públicas, cuja superação depende de medidas abrangentes a serem levadas a cabo por diversos órgãos e poderes estatais. Justificou-se a intervenção mais ativa do STF no fato de que os presos constituem uma minoria que, além de impopular e estigmatizada, não tem voto, de modo que faltam incentivos para que as instâncias representativas promovam a melhoria das condições carcerárias.



Na sequência, o STF decidiu, por maioria e nos termos do voto do Relator, deferir parcialmente a cautelar pleiteada para (i) determinar aos juízes e tribunais que realizem, em até 90 dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão, nos termos do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos, e (ii) determinar à União que libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos. O Tribunal, por maioria, também deferiu a proposta do ministro Luís Roberto Barroso de concessão de cautelar de ofício para que se determine à União e aos Estados, e especificamente ao Estado de São Paulo, que encaminhem ao STF informações sobre a situação prisional. Aguarda-se, ainda, o julgamento dos pedidos principais da ADPF.
Obras emergenciais em presídios (RE 592.581, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento concluído em 13.08.2015)

O recurso extraordinário discutiu se o Poder Judiciário pode impor aos governos estaduais a realização de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais. O caso concreto subjacente envolvia ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, pleiteando a condenação do Estado a realizar obras de reforma geral no Albergue Estadual de Uruguaiana, cujas condições estruturais atingiram um grau elevado de risco à saúde e à vida dos apenados e já havia ocasionado a morte de um detento por choque elétrico. No julgamento, o Plenário do STF decidiu, por unanimidade, que o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública realize obras emergenciais em estabelecimentos prisionais, de modo a assegurar a supremacia da dignidade da pessoa humana e o respeito à integridade física e moral dos presos. Reconheceu, assim, a impossibilidade de opor-se o argumento da reserva do possível e o princípio da separação dos poderes para afastar a responsabilidade estatal na hipótese.
Biografias não-autorizadas (ADI 4.815, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento concluído em 10.06.2015)

Em julgamento de grande repercussão, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, julgou procedente a ação direta ajuizada pela Associação Nacional dos Editores de Livros, para declarar inexigível autorização dos biografados e de seus familiares para a divulgação de obras biográficas literárias ou audiovisuais. Ao conferir interpretação conforme a Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, a Corte, na linha do voto da ministra Cármen Lúcia, reconheceu que a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias, com a possibilidade de proibição judicial da sua divulgação, constitui censura prévia particular incompatível com a Constituição, em violação aos direitos fundamentais à liberdade de expressão e informação.
Porte de drogas para consumo pessoal (RE 635.659, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento ainda não concluído).

Neste ano, o STF também iniciou o julgamento do polêmico tema da descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, atualmente tipificado no artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). O caso concreto em discussão, que recebeu repercussão geral, envolvia o porte de 3 gramas de maconha. O ministro Gilmar Mendes, relator do RE 635.659, votou pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, sem redução de texto, de forma a preservar a aplicação na esfera administrativa e cível das sanções previstas para o usuário, como advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento em curso educativo. Segundo o relator, os efeitos não penais do artigo 28 deveriam continuar em vigor, na medida do possível, como medida de transição, enquanto não forem estabelecidas novas regras para prevenir e combater o uso de drogas. Ainda, buscando evitar que usuários sejam presos preventivamente, o ministro estabeleceu que, nos casos de flagrante por tráfico de drogas, o autor seja apresentado imediatamente à presença do juiz, de modo que este possa avaliar se a hipótese é de uso ou de tráfico. A votação foi, então, suspensa por pedido de vista do ministro Edson Fachin.

No prazo regimental, o ministro Fachin devolveu o pedido de vista e, com a retomada do julgamento, votou pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, sem redução de texto, para definir atípico o porte exclusivamente de maconha. Adicionalmente, Fachin propôs que o STF (i) declare como atribuição legislativa a fixação de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante, (ii) determine aos órgãos do Poder Executivo responsáveis pela elaboração e a execução de políticas públicas sobre drogas que emitam, em até 90 dias, parâmetros provisórios de quantidade para diferenciar uso e tráfico, que teriam validade até a promulgação de lei, e (iii) crie no âmbito do STF, um Observatório Judicial sobre Drogas na forma de comissão temporária, para o fim de acompanhar os efeitos da deliberação do Tribunal neste caso.

Na sequência, votou o ministro Luís Roberto Barroso. Em seu voto, foram elencados 3 fundamentos jurídicos (violação ao direito de privacidade, à autonomia individual e ao princípio da proporcionalidade) e 3 razões pragmáticas (o fracasso da política atual de criminalização, o alto custo desta política para a sociedade e para o Estado, e os prejuízos para a proteção da saúde pública) para a descriminalização do porte para consumo pessoal. Porém, o voto também se limitou à descriminalização em relação à maconha, sem se pronunciar sobre outras drogas. Embora muitos dos argumentos que valem para a descriminalização do porte da maconha pudessem valer para outras substâncias, o entendimento adotado foi o de que os avanços devem ser feitos passo a passo, em interlocução com especialistas e com a sociedade, sem impedir que, mais à frente, em um caso específico, o STF discuta, por exemplo, a questão do crack. Avançando em relação ao voto do ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin, o ministro propôs, ainda, que o Tribunal fixe, desde logo, critérios objetivos para distinguir o consumo pessoal de tráfico, adotando-se a presunção de que quem esteja portando até 25 gramas de maconha ou possua até 6 plantas fêmeas de Cannabis é usuário, e não traficante. O julgamento foi, porém, interrompido por pedido de vista do ministro Teori Zavascki.
Tratamento social de transexuais (RE 845.779, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgamento ainda não concluído)

Outro relevante caso ainda não concluído é o RE 845.779, que discute o direito de transexuais – uma das minorias mais marginalizadas da sociedade – serem tratados socialmente de forma condizente com sua identidade de gênero. Na origem, uma transexual ajuizou ação de indenização por danos morais em face de shopping center, que a impediu de utilizar o banheiro feminino do estabelecimento, em abordagem grosseira e vexatória.

O relator, ministro Luís Roberto Barroso, votou pelo provimento do recurso, a fim de que seja restabelecida a sentença que condenou o shopping a pagar uma indenização de R$15 mil à transexual e propôs a afirmação da seguinte tese: “Os transexuais têm direito a serem tratados socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público”. Os fundamentos centrais do voto foram (i) a dignidade como valor intrínseco, que impõe o direito dos transexuais a serem tratados de maneira digna e compatível com a forma pela qual se reconhecem, (ii) a dignidade como autonomia, que exige que o Estado proteja as escolhas existenciais das pessoas, adotando uma postura ativa contra o preconceito, e (iii) o princípio democrático, que requer, para a legitimidade do governo pela maioria, a observância aos direitos fundamentais das minorias.



Na sequência, o ministro Edson Fachin acompanhou o voto do relator, mas entendeu que a indenização por danos morais deveria ser majorada para R$50 mil e que o processo deveria ser reautuado, a fim de incluir o nome social da requerente. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Luiz Fux.


Danos morais a presos (RE 580.252, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Teori Zavascki, julgamento ainda não concluído)

O processo discute o direito de presos submetidos a condições desumanas de encarceramento à obtenção de indenização do Poder Público a título de danos morais. O caso concreto subjacente envolve detento que permaneceu por cerca de 5 anos em presídio estadual superlotado com condições degradantes. Em sede de apelação, definiu-se que o recorrente fazia jus à quantia de R$ 2 mil, mas a decisão foi reformada, afastando-se o dever de reparação pela aplicação da cláusula da reserva do possível.

Iniciado o julgamento, ainda em 2014, o ministro Teori Zavascki, relator do caso, proferiu voto no sentido do provimento do RE, de modo a restabelecer a condenação do Estado a indenizar o preso em R$ 2 mil. O ministro Luís Roberto Barroso apresentou voto vista, em que adotou integralmente as premissas fixadas no voto do relator, assentando que não é legítima a invocação da reserva do possível para negar a uma minoria estigmatizada o direito à indenização por lesões evidentes aos seus direitos fundamentais. Porém, diante do caráter estrutural e sistêmico das graves disfunções verificadas no sistema prisional brasileiro, entendeu que a entrega de uma indenização em dinheiro confere uma resposta pouco efetiva aos danos morais suportados pelos detentos, além de drenar recursos escassos que poderiam ser empregados na melhoria das condições de encarceramento. Como consequência, votou pela adoção de mecanismo de reparação alternativo, que confira primazia ao ressarcimento in naturados danos, por meio da remição de parte do tempo de execução da pena. Após o voto do ministro Barroso, o julgamento foi interrompido por um pedido de vista da ministra Rosa Weber.

II.3) O STF e o Sistema Político-Eleitoral
Financiamento empresarial de campanhas (ADI 4.650, Rel. Min. Luiz Fux, julgamento concluído em 17.09.2015)

Neste ano, em uma de suas decisões mais emblemáticas, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento, iniciado em dezembro de 2013, da ADI 4.650, que questionou a constitucionalidade das normas que regulam o financiamento de campanhas. Por maioria e nos termos do voto do ministro Luiz Fux, a Corte declarou inconstitucional a participação de empresas no financiamento eleitoral, com aplicação inclusive às eleições de 2016. Porém, a maioria formada adotou fundamentos diversos para a decisão. Alguns ministros, como o ministro Luiz Fux, entenderam que o direito de participação política só se aplica a cidadãos, e não a empresas. Outros, como o ministro Luís Roberto Barroso, entenderam que empresas podem participar do financiamento eleitoral se o Congresso assim decidisse, mas que a lei impugnada era inconstitucional por não impor certas restrições mínimas que seriam exigíveis, como: (i) a impossibilidade de doar a candidatos rivais, (ii) a impossibilidade de que a empresa financiadora seja contratada pelo poder público após as eleições, e (iii) a imposição de limites máximos às doações, em valores absolutos. A ADI também impugnava dispositivo legal que previa limite percentual (10% dos rendimentos auferidos no ano anterior) para doações por pessoas físicas. Porém, não se formou maioria para a declaração de sua inconstitucionalidade.

Ficaram vencidos os ministros Teori Zavascki, Celso de Mello e Gilmar Mendes, que davam interpretação conforme aos dispositivos impugnados, para, nos termos do voto reajustado do ministro Teori Zavascki (inicialmente, o ministro havia votado pela improcedência dos pedidos formulados), acrescer a dispositivos das leis eleitorais a vedação de contribuições (i) de pessoas jurídicas ou de suas controladas e coligadas que mantenham contratos onerosos celebrados com a Administração Pública, e (ii) de pessoas jurídicas a partidos e candidatos diferentes que competirem entre si.
Fidelidade partidária para cargos majoritários (ADI 5.081, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgamento concluído em 27.05.2015)

Em decisão unânime, o Plenário do STF concluiu que a perda do mandato por infidelidade partidária não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário. Conforme consignou o relator, Min. Luís Roberto Barroso, o sistema majoritário, adotado para a eleição de presidente, governador, prefeito e senador, tem lógica e dinâmica diversas da do sistema proporcional. As características do sistema majoritário, com sua ênfase na figura do candidato, fazem com que a perda do mandato, no caso de mudança de partido, frustre a vontade do eleitor e vulnere a soberania popular.

II.4) Outras Decisões Relevantes
Validade de cláusula de renúncia em plano de dispensa incentivada (RE 590.415, co, repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgamento concluído em 30.04.2015)

Em relevante decisão no âmbito do direito do trabalho, o Plenário do STF reconheceu, em votação unânime, a validade de cláusula de quitação ampla de todas as parcelas decorrentes do contrato de emprego nos Planos de Dispensa Incentivada (PDIs), desde que este item conste de Acordo Coletivo de Trabalho e demais instrumentos assinados pelo empregado. Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, os PDIs constituem uma alternativa social relevante para atenuar o impacto de demissões em massa, pois permitem ao empregado condições de rescisão mais benéficas do que teria no caso de uma simples dispensa. Para ele, no âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como resultado, a Corte entendeu que, no caso da quitação nos PDIs, justifica-se a atenuação da proteção ao trabalhador para assegurar a credibilidade de tais planos e não desestimular o seu uso. Em época de crise econômica, a decisão do STF tem o mérito de permitir uma alternativa às empresas, mitigando, tanto quanto possível, os efeitos da dispensa para o trabalhador.
Poderes investigatórios do Ministério Público (RE 593.727, Rel. original Min. Cezar Peluso, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, julgamento concluído em 18.05.2015)

No ano, a Corte também concluiu o aguardado julgamento do RE que discutia os poderes investigatórios do Ministério Público, que havia se iniciado em junho de 2012. O Plenário, por maioria, afirmou a tese de que o MP dispõe de competência para promover investigações de natureza penal, por autoridade própria e em prazo razoável. O voto do Min. Gilmar Mendes, redator do acórdão, fixou, ainda, parâmetros da atuação do MP, tais como a exigência de observância dos direitos e garantias fundamentais dos investigados, e o respeito às hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e às prerrogativas garantidas aos advogados. Acompanharam o redator os ministros Celso de Melo, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Ficaram vencidos os ministros Cezar Peluso (relator original, aposentado), Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, que votaram pelo provimento parcial do RE, reconhecendo a legitimidade da atuação do MP em hipóteses excepcionais. Também ficou vencido o ministro Marco Aurélio, que considerou que o MP não possui legitimidade para promover investigações, mas apenas para acompanhá-las, exercendo o controle externo da polícia.



[1] Uma curiosidade: no caso Collor, como decorrência do ambiente político da época, a instauração do processo de impeachment pelo Senado foi muito célere: em 2 dias a comissão especial daquela Casa foi formada, emitiu parecer e este foi aprovado pelo Plenário, com o consequente afastamento do Presidente.


[2] Na ocasião, o Ministro Luís Roberto Barroso entendeu que pagamento de condenações judiciais contra a Fazenda Pública constituía um “estado de inconstitucionalidade grave e permanente” e, ao final, a Corte atribuiu ao CNJ a função de supervisionar o cumprimento da decisão do STF.



Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal, professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor visitante do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

Aline Osorio é mestre em Direito Público pela UERJ e assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal.



Revista Consultor Jurídico, 28 de dezembro de 2015, 13h20

RETROSPECTIVA: Crise testou o respeito do país à Constituição Federal e às instituições







PARTE I
*(Clique aqui para ler a segunda parte deste texto)

A RAZÃO E AS PAIXÕES

1. A vitória das instituições
Foi um ano difícil para todo mundo, na política, na economia, nos tribunais e na sociedade. Todos dominados pela sensação melancólica de que a vida ficou pior e mais confusa, com litígios em todos os níveis. Crises são o grande teste para a Constituição e para as instituições que ela cria. Constituições e instituições existem para nos proteger de vendavais, tempestades e enchentes. Todas as democracias estão sujeitas a intempéries. O que diferencia as grandes nações das republiquetas é o modo como lidam com os infortúnios inevitáveis. Sob esse aspecto, por paradoxal que pareça, foi um ano de grande sucesso. Em outras épocas, tentações golpistas, messiânicas e populistas já teriam aflorado, e a legalidade constitucional teria sucumbido. Isso já não acontece mais! Varremos os aventureiros desastrados para a margem da história. A crise assustadora que nos assombrou em 2015 encontrou um país que amadureceu e superou diversos ciclos do atraso institucional. Na vida sempre há o que comemorar.

É verdade que a economia desandou e a política nos desagregou. Porém, demos o primeiro passo para mudar o patamar ético do país. E o primeiro passo para curar qualquer doença é o diagnóstico certo. Uma combinação lamentável entre mediocridade, esperteza e desrespeito às normas éticas e jurídicas nos trouxe até aqui. Estamos infelizes com o que somos e queremos mudar. É um bom começo, mas não é fácil. Todos acham que quem precisa mudar são os outros. Por isso, continuam a cobrar preços diferentes com nota ou sem nota, colocam valores subfaturados nos imóveis que vendem, deixam os filhos dirigirem sem carteira antes da idade legal e não assinam a carteira da empregada doméstica. Nos debates públicos, não apresentam ideias ou argumentos, mas insultos e provocações. Pior: quando chegam nos cargos de poder, tornam-se as pessoas contra quem nos advertiam. Precisamos mudar na ética pública e na ética privada. Precisamos melhorar como sociedade, como povo, como projeto civilizatório. A verdadeira transformação virá quando introjetarmos um dos melhores insights do grande libertador pacifista que foi Mahatma Ghandi: “Seja você a mudança que deseja para o mundo”.

2. Judicialização sem ativismo
Para entender a atuação do Supremo Tribunal Federal no Brasil dos últimos anos, é imperativo compreender a distinção que existe entre judicialização e ativismo judicial. Judicialização significa que algumas das grandes questões sociais, políticas e morais da sociedade estão tendo o seu último capítulo (às vezes, até o primeiro) de discussão perante os tribunais. É um fenômeno mundial, em alguma medida, e que no Brasil é potencializado por duas circunstâncias: (i) uma constitucionalização abrangente e (ii) um sistema de controle de constitucionalidade que permite que quase todas as questões constitucionais sejam levadas ao Judiciário. De fato, constitucionalizar uma matéria significa, de certa forma, retirá-la da política e trazê-la para o Direito. E a Constituição brasileira assim fez, ao cuidar dos temas mais variados com grande grau de detalhamento. Além disso, um longo elenco de legitimados pode propor ações diretas perante o STF para discutir praticamente qualquer questão. E o Tribunal não pode negar jurisdição e recusar-se a apreciar o processo. Sem surpresa, a vida brasileira se judicializou de fora a fora, do impeachment à importação de pneus. A judicialização, portanto, é um fato, decorrente do arranjo institucional brasileiro. Quase tudo pode ser judicializado.

Porém, a despeito da judicialização ampla, o STF, como regra geral, não é ativista, mas autocontido. As pessoas nem sempre percebem, mas na grande maioria dos casos, embora a matéria chegue à Corte, ela mantém a decisão política do Legislativo ou do Executivo. Foi assim com pesquisas com células-tronco embrionárias, cotas raciais ou a Lei da Copa, em que se preservou a validade da lei editada; foi assim, igualmente, com a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, quando se validou a portaria do ministro da Justiça, homologada pelo Presidente. A compreensão desta distinção entre judicialização e ativismo, que nem é tão sutil, é indispensável para interpretar adequadamente o que se passa no Brasil.

3. A razão serena
Fizemos muito progresso nesses 30 anos de poder civil e democracia. Mas o terceiro-mundismo e o subdesenvolvimento ainda cobram o seu preço. Um deles se materializa na seguinte atitude: se a lei atender ao meu interesse, ela deve ser cumprida adequadamente e quem a aplica é bom. Se a lei não atender ao meu interesse, ela não precisa ser cumprida e quem a aplica é mau. Ainda precisamos de algum tempo para superar estedéficit civilizatório e espiritual. Em meio à turbulência das paixões políticas e desatinos verbais que elas deflagram, o Supremo Tribunal Federal contribuiu para manter o domínio da razão e da serenidade.

Quem defendia o impeachment queria que o Tribunal mudasse as regras fixadas em 1992, de modo a facilitar a destituição da presidente. Quem defendia a permanência da presidente desejava que o Tribunal criasse novas dificuldades, para inviabilizar o afastamento da presidente. A maioria expressiva dos ministros, no entanto, optou por seguir à risca, sem desviar um milímetro, a jurisprudência e os ritos que valeram para o impeachment do presidente Collor. E devolveu o assunto para a política. Regras claras, estáveis e definidas anteriormente aos fatos são componentes essenciais da segurança jurídica e do Estado Democrático de Direito. Sempre lembrando que a Constituição e as leis existem, sobretudo, para proteger os adversários.

Há mais de uma década escrevo esta retrospectiva acerca do ano no direito constitucional e no Supremo Tribunal Federal. A deste ano foi elaborada com a colaboração valiosa de Aline Osório, uma das alunas mais brilhantes que tive ao longo dos anos, e que trabalha como minha assessora no Tribunal. Dividimos o texto em duas partes. A Parte I traz uma reflexão sobre dois temas que assinalaram a atuação do STF este ano: as interações com outros Poderes e a proteção dos direitos fundamentais. A Parte II contém a seleção de alguns dos principais casos julgados pelo Tribunal em 2015, com um breve resumo da hipótese e do que foi decidido. Elas podem ser lidas autonomamente.

Parte I

O STF entre a pauta “quantitativa” e a “qualitativa”
O Supremo Tribunal Federal recebe e julga milhares de processos por ano. Em 2015, os 11 ministros da Corte receberam 93 mil novos processos[1] e proferiram pouco mais de 116 mil decisões, sendo cerca de 98,3 mil monocráticas e 17,7 mil colegiadas[2]. Destas, aproximadamente 96,6 mil decisões (84%) se deram no exercício de competência recursal. Os números demonstram que, do ponto de vista estatístico, o STF é um tribunal recursal e monocrático[3]. Boa parte do tempo e dos recursos escassos dos ministros e de seus gabinetes é gasta para lidar com o “volume”, e isso com pouco proveito para o sistema, já que há dados que indicam que 94,6% das decisões em recursos extraordinários, agravos de instrumento e agravos em recursos extraordinários mantêm as decisões proferidas pelas instâncias inferiores[4]. Apesar de todo o esforço, a Corte ainda possui um acervo de 54,4 mil processos[5].

Por trás desta expressiva judicialização “quantitativa”, esconde-se uma judicialização “qualitativa”, relativa ao julgamento dos casos de maior relevância jurídica, moral, política, econômica e social para o país. É esta última que ganha as páginas dos jornais, que toma conta do debate público e que vira assunto nas redes sociais. É sobre ela que tratará a presente retrospectiva, que, com inevitável dose de subjetividade, apresentará a seleção das decisões mais importantes do ano do Supremo Tribunal Federal, acompanhada de breve comentário geral e de resumo delas.

Em um ano de grandes decisões, a pauta “qualitativa” do STF foi marcada por duas temáticas principais. De um lado, por intensas interações — e, por vezes, tensões — com as instâncias representativas tradicionais, em especial o Poder Legislativo. De outro, pela proteção de direitos fundamentais, com destaque para a tentativa de equacionar a crise do sistema prisional e tutelar os direitos das pessoas encarceradas.

I.1) O STF e interações com os demais Poderes
Em relação à primeira temática, o Supremo Tribunal Federal foi instado, com maior frequência, a ocupar a posição de árbitro dos conflitos entre os Poderes Executivo e Legislativo e entre as diferentes correntes partidárias[6]. Este aumento de “demanda” resultou, em especial, de uma reorganização de forças no quadro político nacional. Neste ano, a fragilidade da Presidente Dilma Rousseff e a ausência de uma sólida base de sustentação do governo foram responsáveis pela desestruturação do modelo de presidencialismo de coalizão[7]. Sem ampla maioria parlamentar, o Executivo enfrentou dificuldades para governar e os conflitos com o Legislativo tornaram-se mais acirrados. Tal cenário conferiu ao Congresso Nacional um protagonismo e possibilidade de controle da agenda política sem precedentes no pós-Constituição de 1988.

Ao longo de 2015, a Câmara dos Deputados e o Senado foram palco de intensas disputas em meio à crise econômica e à necessidade de promover o ajuste fiscal; aos escândalos de corrupção que vieram à tona com a operação Lava Jato; e à imposição de uma pauta conservadora. Em matéria de direitos fundamentais, por exemplo, estiveram em discussão (i) a redução da maioridade penal (PEC 171/1993, já aprovada na Câmara), (ii) o estatuto da família, que define família como a união entre homem e mulher (PL 6.583/2013, também já aprovado na Câmara), (iii) a criação de entraves a novas demarcações indígenas a partir da transferência de competência para o Congresso (PEC 215/2000, aprovada por comissão especial na Câmara), (iv) o restabelecimento do financiamento empresarial de campanhas (PEC 182/2007) e (v) a ampliação da terceirização (PL 4330/2004, aprovada pelo Plenário da Câmara), entre muitas outras. Todas essas proposições normativas ganharam grande cobertura na mídia e nas discussões na sociedade e evidenciam o aumento da influência do Legislativo na vida nacional.

Porém, o maior espaço ocupado pelo parlamento no debate público não foi acompanhado de uma retração do papel do STF no equacionamento das grandes controvérsias. Muito pelo contrário, a Corte foi constantemente chamada a arbitrar as disputas internas e externas do Congresso, muitas vezes por iniciativa dos próprios atores políticos. A título exemplificativo, foi assim com a tentativa de suspensão da tramitação da PEC que reduz a maioridade penal (MS 33.697, Rel. Min. Celso de Mello) e do projeto de lei sobre terceirização (MS 33.557, Rel. Min. Gilmar Mendes). O mesmo ocorreu com o questionamento da votação das contas presidenciais em sessão separada pela Câmara dos Deputados (MS 33.729, Rel. Min. Luís Roberto Barroso), com as impugnações ao relator de procedimento contra o Presidente da Câmara perante o Conselho de Ética (MS 33.927, Rel. Min. Luís Roberto Barroso; e MS 33.942, Rel. Min. Rosa Weber), e com o questionamento da natureza secreta da deliberação sobre a ordem de prisão do Senador Delcídio do Amaral (MS 33.908, Rel. Min. Edson Fachin).

De forma ainda mais acentuada, as forças políticas judicializaram diversas etapas do rito do processo de impeachment perante a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, incluindo (i) a possibilidade de recurso da negativa de seguimento a denúncias (MS 33.558, Rel. Min. Celso de Mello), (ii) a validade do ato do Presidente da Câmara dos Deputados que disciplinou o procedimento naquela Casa (MS 33.837, Rel. Min. Teori Zavascki, e MS 33.838, Rel. Min. Rosa Weber); (iii) a legitimidade da abertura do processo de impedimento contra a Presidente Dilma Rousseff pelo deputado Eduardo Cunha (MS 33.920, Rel. Min. Celso de Mello e MS 33.921, Rel. Min. Gilmar Mendes), e (iv) a recepção pela Constituição de 1988 de diversos dispositivos da Lei 1.079/1950, que dispõe sobre os crimes de responsabilidade (ADPF 378, Rel. Min. Edson Fachin).

Como assinalado na Introdução, e diversamente de um certo senso comum que se criou, em boa parte das oportunidades em que foi chamado amoderar o jogo político, o Supremo adotou uma postura autocontida, de deferência às escolhas majoritárias, evitando intervenções em procedimentos definidos no interior das Casas Legislativas. Entre todos os casos citados acima, apenas 4 tiveram pedidos de liminar deferidos: o MS 33.908, em que se determinou a deliberação por voto aberto sobre a prisão de Senador, os MS 33.837 e MS 33.838, ambos para suspender os efeitos do ato do Presidente da Câmara que disciplinou o procedimento doimpeachment, e a ADPF 378, em que o STF reafirmou as regras aplicadas aoimpeachment do Presidente Collor, conforme comentário na Parte II, abaixo. No primeiro deles, a intervenção do STF sequer chegou a se concretizar, já que, independentemente da decisão, os próprios senadores deliberaram pelo escrutínio aberto. Nos últimos três, a atuação do Supremo se deu no sentido de garantir o respeito às regras do jogo democrático, em um contexto de manifesta insegurança sobre o rito aplicável ao processo de impedimento do Presidente da República. Todos os demais processos ou tiveram o pedido de liminar negado, ou sequer foram conhecidos pela Corte.

I.2) O STF e os Direitos Fundamentais
Paralelamente à interação com os demais Poderes, em 2015, o Supremo Tribunal Federal voltou a ter uma atuação mais destacada na insubstituível tarefa de defesa dos direitos fundamentais, em especial de minorias impopulares e estigmatizadas. Em relação a esta segunda temática principal, a Corte empreendeu esforços significativos no sentido de conter a crise do sistema carcerário. A agenda do Tribunal nesta seara incluiu: (i) o reconhecimento de que o Poder Judiciário pode determinar aos governos estaduais que realizem obras emergenciais nos presídios, de modo a garantir os direitos fundamentais dos detentos (RE 592.581, Rel. Min. Ricardo Lewandowski), (ii) a possibilidade de aplicar o princípio da insignificância no caso de reincidência delitiva (HCs 123734, 123533 e123108, Rel. ministro Luís Roberto Barroso), e (iii) a declaração de constitucionalidade de ato que regulamentou as “audiências de custódia”, por constituir direito já assegurado pela Convenção Americana de Direitos Humanos (ADI 5.240, Rel. Min. Luiz Fux).

Além destes casos, o STF iniciou o julgamento da existência do dever de indenizar presos em condições desumanas (RE 580.252, Rel. Min. Teori Zavascki), e da possibilidade de cumprimento da pena pelo sentenciado em regime mais benéfico quando não houver vagas no regime adequado (RE 641.320, Rel. Min. Gilmar Mendes). Ambos, porém, foram interrompidos por pedidos de vista e encontram-se ainda pendentes de conclusão.

A mais emblemática das decisões sobre o tema foi, sem dúvida, o reconhecimento pelo STF de que as graves disfunções crônicas e estruturais do sistema carcerário brasileiro, decorrentes de um conjunto de ações e omissões dos poderes públicos, configuram um “estado de coisas inconstitucional”, que promove a violação massiva da dignidade humana e demais direitos fundamentais dos presos (ADPF 347, Rel. Min. Marco Aurélio)[8]. Com a “importação” desta categoria, desenvolvida inicialmente pela Corte Constitucional da Colômbia, o STF abre espaço para a adoção de técnicas decisórias mais flexíveis, que permitam o enfrentamento sistêmico de problemas estruturais, por meio de ordens complexas, dirigidas a diferentes órgãos e instâncias de poder, que envolvem a (re)formulação de políticas públicas. Embora a ação ainda se encontre em estágio inicial, o STF já avançou (ainda que de forma tímida) no equacionamento do problema, ao conceder algumas medidas cautelares, conforme será explicitado na Parte II, a seguir.

Os direitos decorrentes da dignidade humana dos presidiários não foram, porém, os únicos tutelados pela Corte no ano. Também ganharam destaque discussões envolvendo os direitos: (i) à liberdade de expressão, no caso das biografias não autorizadas (ADI 4.815, Rel. Min. Cármen Lúcia); (ii) àigualdade, nos julgamentos sobre a recepção do crime militar de pederastia pela Constituição de 1988 (ADPF 291, Rel. Min. Luís Roberto Barroso); sobre o direito de transexuais a serem tratados de acordo com a sua identidade de gênero (RE 845.779, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, ainda não concluído); e sobre a impossibilidade de paciente do Sistema Único de Saúde pagar para ter acomodações superiores ou médico de sua preferência (RE 581.488, Rel. Min. Dias Toffoli); (iii) à igualdade política, no caso em que se declarou a inconstitucionalidade das normas que autorizavam doações de empresas a campanhas eleitorais (ADI 4.650, Rel. Min. Luiz Fux); e (iv) àliberdade/autonomia, na análise da constitucionalidade da criminalização do porte de drogas para consumo pessoal (RE 635.659, Rel. Min. Gilmar Mendes, não concluído).

Na quase totalidade desses casos, a decisão da Corte representou a invalidação (ainda que parcial) de leis e atos normativos, emanados tanto do Legislativo quanto do Executivo, promoveu a integração de lacunas normativas ou supriu omissões inconstitucionais, de modo a evidenciar o papel de maior protagonismo da jurisdição constitucional no contexto nacional.

I.3) O STF em 2015 e os papéis das Cortes Constitucionais
Em trabalho acadêmico recente, cujas ideias centrais foram publicadas aqui na Revista Consultor Jurídico, o primeiro autor desta retrospectiva sustentou que as cortes constitucionais desempenham três papeis distintos: contramajoritário, representativo e iluminista[9]. O conjunto expressivo de decisões referidas acima nas duas temáticas selecionadas exibe um Supremo Tribunal Federal que atua com maior parcimônia e autocontenção em casos que se limitam a questionar procedimentos internos das Casas Legislativas, mas exercita sem timidez o seu papel contramajoritário quando estão em jogo especialmente as necessidades de proteger direitos fundamentais (como no caso dos presos) e de resguardar os pressupostos de funcionamento da democracia e das instituições republicanas (como no caso do rito do processo de impeachment).

Ademais, é possível perceber que, simultaneamente ao papel contramajoritário tradicional, em alguns desses casos, o STF desempenhou um papel representativo, pelo qual foi capaz de atender demandas sociais relevantes que não foram satisfeitas pelo processo político majoritário. Exemplo emblemático foi a ADI 4.650, na qual o Supremo proibiu o financiamento de campanhas por empresas, em linha com o anseio social majoritário de diminuição do peso do dinheiro no processo eleitoral. Ainda, em outros julgados, a decisão espelhou o comprometimento do Tribunal com o avanço social e civilizatório do país e com a proteção de minorias estigmatizadas e excluídas, cujos interesses não encontram eco nem nos parlamentos, nem na maioria da população, desempenhando o papel iluminista da jurisdição constitucional. Ilustra o exercício desta função o julgamento da medida cautelar na ADPF 347, contra as violações massivas aos direitos dos presos. É também possível que o Supremo venha a exercer este papel no julgamento envolvendo o direito de transexuais serem tratados socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, atualmente interrompido por pedido de vista.

No tópico que se segue, faz-se um comentário, o mais objetivo possível, de alguns dos casos mais relevantes julgados pelo Supremo neste ano.





[2] Ver: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=decisoesgeral


[3] Sobre o tema, v. Joaquim Falcão, “Para ser mais, o Supremo tem que ser menos”, in O Supremo, 2015; e Joaquim Falcão e Adriana Lacombe, “Big data e a reforma do Supremo”, Tribuna do Advogado, n. 244, dez. 2014/jan. 2015: “Primeiro, viu-se que o Supremo é muito mais uma corte recursal do que uma corte constitucional. Isso porque, enquanto os processos de controle abstrato de constitucionalidade – ADIns, ADCs, ADOs – representaram apenas 0,5% dos processos julgados pelo tribunal entre 1988 e 2009, os recursos representavam 91,69% (o restante é representado pela corte ordinária, composta de processos que têm o Supremo como originário, como ações penais com foro privilegiado). Viu-se também que o STF é uma corte monocrática, muito mais do que uma colegiada. Entre 2008 e 2014, por exemplo, mais de 85% das decisões foram proferidas por um só ministro”.


[4] A estatística foi levantada no gabinete do ministro Luís Roberto Barroso com dados de junho de 2013 até setembro de 2015, mas espelha a média geral do Tribunal.




[6] De D. Pedro II a Ruy Barbosa, autores diversos têm se referido a essa atuação como sendo equiparável à de um “poder moderador”. V. Oscar Vilhena Vieira, Supremocracia, Revista de Direito do Estado 12:55, 2008, p. 60.


[7] ABRANCHES, Sérgio H. H. de. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. vol. 31, n. 1, 1988, pp. 5-34.


[8] A ADPF 347 foi proposta pelo PSOL, a partir de representação da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ.


[9] V. livro no prelo, organizado por Oscar Vilhena Vieira e Luís Roberto Barroso, A razão sem voto: um diálogo com o pensamento constitucional de Luís Roberto Barroso. Um resumo das ideias principais foi publicado na Revista Consultor Jurídico sob o título “Contramajoritário, representativo e iluminista: os papeis das cortes constitucionais nas democracias contemporâneas” (http://s.conjur.com.br/dl/notas-palestra-luis-robertobarroso.pdf).



Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal, professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor visitante do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

Aline Osorio é mestre em Direito Público pela UERJ e assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal.



Revista Consultor Jurídico, 28 de dezembro de 2015, 13h20

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Estado deve adotar postura ativa contra preconceito e intolerância, diz Barroso



“Em todos os casos em que não haja restrição significativa a direitos de terceiros ou a qualquer valor coletivo merecedor de tutela jurídica, o Estado deve adotar uma postura ativa contra o preconceito e a intolerância, protegendo as escolhas existenciais das pessoas, inclusive, no presente caso, por meio da afirmação do direito de serem tratadas socialmente em consonância à sua identidade de gênero.”Democracia envolve a proteção dos direitos fundamentais de todos, inclusive e sobretudo das minorias, diz ministro.

A conclusão é do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal. Ele é relator dorecurso extraordinário que discute se uma transexual que foi expulsa do banheiro feminino de um shopping tem direito a ser indenizada ou não.

Barroso votou a favor da indenização, entendendo que o Supremo deve sempre zelar pelo respeito aos direitos fundamentais. Neste caso, pelo princípio da dignidade da pessoa humana. “A democracia não é apenas a circunstância formal do governo da maioria. Ela tem também uma dimensão substantiva que envolve a proteção dos direitos fundamentais de todos, inclusive e sobretudo das minorias”, escreveu em seu voto.

A discussão chegou ao Supremo por meio de recurso contra acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que negou o direito à indenização. Em primeiro grau, foi reconhecido que a transexual sofrera dano moral e tinha direito a R$ 15 mil. No TJ, o entendimento foi de que o episódio causou “mero dissabor” e não justificaria uma indenização.

Como o caso tem repercussão geral reconhecida, Barroso sugeriu uma tese: “Os transexuais têm direito a ser tratados socialmente de acordo com sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público”.

O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Luiz Fux. Ele disse que gostaria de “ouvir a sociedade” a respeito do tema, porque detectou “um desacordo moral” entre a tese defendida por Barroso e a sociedade. “Nos processos objetivos é preciso que nós fiquemos atentos ao que sociedade pensa”, disse o ministro.

Depois de Barroso, o ministro Luiz Edson Fachin votou para acompanhá-lo. Apenas acrescentou que gostaria de aumentar o valor da indenização de R$ 15 mil para R$ 50 mil, com correção monetária e juros de 1% ao mês desde a data do fato, em 2008.

Clique aqui para ler o voto do ministro Luís Roberto Barroso.

RE 845.779


Revista Consultor Jurídico, 19 de novembro de 2015, 18h46

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Em Habeas Data, Supremo garante a contribuinte direito a dados da Receita






O Habeas Data pode ser usado pelos contribuintes para ter acesso a dados sobre a arrecadação tributária estatal. Foi o que decidiu nesta quarta-feira (17/6), por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal.

A decisão foi proferida em Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida. Fixou-se a seguinte tese: "Habeas data é a garantia constitucional adequada para obtenção, pelo cidadão, de dados concernentes ao pagamento de tributos constantes dos sistemas informatizados de apoio à arrecadação dos órgãos de arreia fazendária dos entes estatais".

O recurso foi apresentado por uma empresa que impetrou, na Justiça Federal em Santa Catarina, um Habeas Data para ter acesso a informações a seu respeito junto à Receita Federal. Ele pedia dados do Sistema de Conta Corrente de Pessoa Jurídica (Siconr), da Receita.

A decisão do tribunal de origem foi de que o Siconr é um "cadastro de uso privativo" do Fisco, "o que retira o enquadramento do direito invocado ao Habeas Data".

O Supremo seguiu o voto do ministro Luiz Fux, relator. Ele afirmou que o contribuinte tem direito de saber o que se encontra em bancos de dados públicos a seu respeito. De acordo com Fux, os sistemas de apoio à arrecadação usados pelas fazendas públicas não estão envolvidos pelo sigilo fiscal.

Este foi o primeiro caso em que o ministro Luiz Edson Fachin, empossado na última terça-feira (16/6), votou. O ministro Marco Aurélio, que nesta quarta foi homenageado por seus 25 anos de Supremo, ressaltou que este foi o primeiro Habeas Data que julgou em Plenário.


Amiga da corte
A Ordem dos Advogados do Brasil participou do caso como amicus curiae. Em memorial enviado aos ministros, a entidade afirmou que a Receita viola o direito constitucional de as pessoas terem acesso a dados de seu interesse ao disponibilizar apenas informações relativas a débitos tributários, mas não a eventuais créditos ou pagamentos feitos que não estejam alocados a débitos. O documento é assinado pelo presidente do Conselho Federal,Marcus Vinícius Furtado Coêlho, pelo procurador especial tributário da OAB, Luiz Gustavo Bichara, e pelo advogado Owaldo Pinheiro Ribeiro Júnior.



“Com efeito, é notório que diversos pagamentos efetuados pelos contribuintes ficam sem vinculação a um débito específico. É dizer: muito embora tenha havido o pagamento de um tributo, o mesmo não é processado no sistema, constando o débito em aberto ad aeternum, inclusive servindo de motivo para que seja negada a indispensável certidão negativa para os contribuintes”, diz o memorial.

De acordo com os advogados, é inadmissível que o Fisco e o Judiciário se recusem a fornecer informações sob a alegação de sigilo fiscal, uma vez que esse princípio não pode ser invocado contra dados do próprio contribuinte. E essa recusa acaba prejudicando-o, apontam:

“A demora da Receita Federal do Brasil em fazer a consolidação de pagamentos realizados nos programas de parcelamentos (Refis e suas reaberturas, Paes, Paex etc.) é outro grave exemplo que prejudica o contribuinte, na medida em que, enquanto não há consolidação, necessita com frequência da via judicial para obter sua Certidão Negativa de Débitos, assoberbando o Poder Judiciário, inobstante o fato de ter cumprido todos os requisitos da legislação tributária”.

Para fundamentar seu argumento, o Conselho Federal da Ordem destacou que a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2012) estabeleceu que os órgãos públicos devem observar a publicidade como preceito geral. A entidade também citou a recente decisão do Supremo que privilegiou o direito à informação ao liberar as biografias não autorizadas.

Quanto à via adequada para o contribuinte requerer acesso aos seus dados, os advogados apontaram o Habeas Data, instrumento que, de acordo com voto do ministro Celso de Mello, “envolve um dos aspectos mais expressivos da tutela jurídica dos direitos da personalidade”.

Clique aqui para ler o memorial.

RE 673.707

*Texto alterado às 23h do dia 17 de junho de 2015 para correção de informações

Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 17 de junho de 2015, 18h53

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...