quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

O fetiche punitivista e o colapso do Estado de Direito





O estado de incerteza e insegurança causado pelo atual cenário político, econômico e social permite dizer que a democracia brasileira talvez enfrente sua pior crise desde a promulgação da Constituição de 1988. Os tempos vividos são nebulosos, e a instabilidade experimentada é catalisada por altos índices de criminalidade, explorados e propalados pela mídia, muitas vezes de forma açodada e, por que não, irresponsável. Os discursos de ódio e clamores punitivistas conquistam adeptos e audiência, disseminando opiniões prontas e infensas a qualquer reflexão crítica.

Para além da “cultura do medo” que instaura, fato é que, de forma insidiosa, essa onda justiceira corrói as bases do próprio Estado de Direito, na medida em que influencia diretamente os discursos e ações daqueles responsáveis pela aplicação da lei, afastando-os justamente dos limites que deveriam resguardar. Aliás, o respeito à lei é justamente a marca de um Estado de Direito, ou seja, de um Estado que se funda e que autolimita o exercício de seu poder a partir da racionalidade da lei. E é justamente no âmbito do sistema penal, em que o poder estatal se expressa de forma mais radical — ojus puniendi enquanto expressão do poder soberano de privar o cidadão de sua liberdade — que essa racionalidade deve se fazer mais efetiva, de modo a evitar que a intervenção repressiva se converta em mal maior que aquele causado pela conduta que a ensejou. Rompidos os limites racionais da lei, o poder, em casos tais, se perverte em crime, traindo o Estado de Direito e as bases que legitimam e estruturam a Justiça pública.

Nessa dinâmica, invertem-se os papéis: o cidadão atingido pela intervenção repressiva transforma-se em vítima, enquanto o Estado, em criminoso mais forte. Reificado pela violência estatal, o ser humano perde a condição de “fim em si mesmo”, em vilipêndio às máximas kantianas que regeram a Declaração de 1948 e que estão na base da afirmação da dignidade humana como centro de gravidade de nosso ordenamento constitucional.

Justamente por isso, é motivo de apreensão e assombro a constatação de uma progressiva adesão por parte das autoridades públicas aos apelos midiáticos e clamores acríticos que pressionam por uma conversão do sistema penal em instrumento de consumação de vinganças privadas, regidos por uma lei de talião atualizada, que busca expressão pelo poder de punir estatal — que, fora dos limites da lei, se manifesta como expressão de poder do mais forte. Sob pena de se transformar em criminoso, o Estado não pode se confundir com a vítima[1], que não tem e da qual não se pode exigir um compromisso com os padrões de racionalidade que estão na base da Justiça pública, precisamente para conter um poder que sempre tende a extrapolar limites, convertendo-se em pura violência que coloca em risco a própria estrutura — o Estado de Direito — que a faz legítima na medida em que a controla.

Mesmo diante de uma criminalidade que avança, portanto, é o respeito à lei que nos resguarda da anomia garantindo o avanço civilizatório, de modo que é a barbárie que nos espreita caso também se ponham acima — e, logo, fora — da lei as autoridades investidas de poder para resguardá-la. Se não houver quem zele pelo templo da razão do qual a lei é símbolo, interpretando-a e aplicando-a com os olhos voltados à dimensão transcendental do interesse público — que diz de todos e de cada um —, o crime terá fluxo livre e linear, igualando na imanência autoridades e delinquentes. É o que não se pode admitir, sob pena de se fomentar um processo em que o Estado termina por se integrar à espiral de violência que deveria conter, deixando de reger “de cima” — do lugar “terceiro” da lei — a relação entre os cidadãos.

Diante das instigações e clamores pelo uso ilimitado do poder, portanto, o que se deve esperar do Estado e das autoridades que o representam é uma atuação pautada na racionalidade que se expressa pela estrita observância da lei, que está acima de todos, inclusive, e, principalmente, daqueles que a aplicam e guardam. Aliás, se as próprias autoridades não se submetem à lei, não têm legitimidade para aplicá-la em punição àqueles que também não o façam.

Posto isso, novamente orientando a discussão para o período crítico que vivenciamos no Brasil, cumpre esclarecer e ressaltar que o problema da criminalidade — e tantos outros — tem causas complexas e profundas, para as quais não há soluções mágicas, como as que se propõem tendo por base o simples recrudescimento das leis e da intervenção penal. A sensação de segurança um dia experimentada jamais se deveu a um direito penal rigoroso ou a um processo penal de fracas garantias. Em tempos idos, a segurança subjetiva e social experimentada devia-se muito mais a padrões éticos sustentados por instituições e autoridades desencantadas[2] que a uma intervenção penal efetiva[3]. Despido do anteparo que tais instituições e autoridades lhe asseguravam, o direito e o processo penal — enfim, o sistema penal — estão nus, e não será a truculência policial, não serão as prisões provisórias excessivas e arbitrárias ou as condenações antecipadas pela mídia que resolverão a questão. O respeito a garantias fundamentais ou a demora inerente ao devido processo legal — nos limites da razoabilidade — não podem ser confundidos com impunidade — confusão em grande parte induzida e disseminada pela mídia, diga-se —, sob pena de se converter a Justiça pública em sistema de institucionalização de vinganças privadas. E todo cuidado é pouco, uma vez que, como já alertava Zaffaroni, nos subterrâneos do Estado de Direito espreita o Estado de polícia, pronto a expandir sua violência e assim afirmar-se à menor oportunidade[4].

Nesse contexto, a democracia e o Estado de Direito apresentam-se como as únicas — primeiras e últimas — escolhas possíveis em contenção ao estado de barbárie instaurado pelos nossos índices de violência e criminalidade — inclusive institucional, frise-se. E o respeito à lei — a contenção diante de suas garantias e a racionalidade em sua aplicação — não é opção, mas dever que se impõe não só ao Poder Judiciário, mas a todas as instituições e funções que interagem estruturando o sistema penal. Entretanto, uma vez que a adesão progressiva ao clamor punitivista tem por consequências mais diretas e nefastas a violação a garantias e os abusos de poder, sobressai em importância a atuação da Defensoria Pública, como refúgio último das parcelas da população mais atingidas pelo furor repressivo estatal, verdadeiro anteparo contra os refluxos de uma escravidão recalcada, atualizada em nossos cárceres e favelas[5].

E frise-se: ao lutar pela aplicação estrita da lei e pelo respeito a garantias fundamentais, combate-se aquele que talvez seja o pior dos crimes, exatamente o cometido pelo Estado quando, no exercício de seu poder, não se contém diante do direito por ele próprio posto.

Numa república democrática constituída em Estado de Direito, o império da impunidade não deve interessar a ninguém, tampouco o atropelo a garantias fundamentais. E, nas dinâmicas de equalização desse tensionamento, os fins não justificam os meios. Pelo contrário, em uma democracia republicana arrimada no Direito, é justamente o respeito aos meios racionalizados que legitima o exercício do poder para alcance dos fins constitucionalmente definidos.



[1] Aliás, deve postar-se acima e além de acusados e vítimas, assim autorizado, portanto, a investigar e analisar os fatos com racionalidade, julgando-os com imparcialidade, estritamente vinculado à lei que limita seu poder de punir, que não pode ser confundido com violência de vingança.
[2] GAUCHET, Marcel. El desencantamiento del mundo. Una historia política de la religión. Madrid: Editorial Trotta, 2005.
[3] COSTA, Domingos Barroso da. A crise do supereu e o caráter criminógeno da sociedade de consumo. Curitiba: Juruá, 2009.
[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 169-170.
[5] ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 33.


Domingos Barroso da Costa é defensor público no Rio Grande do Sul, especialista em Criminologia e Direito Público e mestre em Psicologia pela PUC-MG.



Revista Consultor Jurídico, 2 de fevereiro de 2016, 8h10

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