segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Direito ao conhecimento da origem genética difere do direito à filiação





Em diversos trabalhos, desde 1999, procuramos salientar a distinção necessária que se há de fazer entre o direito ao reconhecimento à parentalidade (paternidade, maternidade, filiação e demais relações de parentesco) e direito ao conhecimento da origem genética ou biológica. O primeiro diz respeito ao direito da personalidade, de caráter absoluto e oponível a todas as demais pessoas. O segundo emerge das relações de família.

Os direitos da personalidade integram o núcleo intangível e indisponível da qualificação jurídica da pessoa, que destaca sua singularidade. Compõem a qualificação jurídica da pessoa em si. Por essa razão, o Código Civil (artigo 11) confere-lhes os requisitos de intransmissibilidade e irrenunciabilidade. Deles podem resultar consequências patrimoniais em virtude de sua lesão por outrem, mas não de relação jurídica originária com este. Entre eles, está o direito à identificação pessoal, que não se resume aos aspectos formais e registrais, tais como a nacionalidade, a data e o local de nascimento, a filiação e outras características exigíveis. Nele se inclui, igualmente, a identificação que brota da natureza humana, com as características irredutíveis do corpo, da mente, dos modos de expressão, natos ou adquiridos, além de, no ponto que agora nos interessa, a origem genética de cada pessoa.

Diferentemente, o direito à parentalidade, inclusive o da filiação, não resulta da natureza humana. Sua natureza é cultural. Seu objeto é certificar a integração de uma pessoa em determinado grupo familiar. Cada povo, cada ordenamento jurídico, refletindo seus graus de cultura, tradição e história, vão definindo e alterando o que consideram parentes (pai, mãe, filho e demais parentes). Não é um dado da natureza, mas uma construção cultural. Em nosso direito atual, a filiação resultante da adoção é plena e imutável, mas nem sempre foi assim, pois admitia certos graus, com limitações de direitos parentais e sucessórios. Em nosso Direito, já houve proibição de reconhecimento de filhos biológicos, quando prevaleceu a filiação dita ilegítima (extraconjugal). A partir do Código Civil de 2002, na sequência da eliminação das desigualdades jurídicas pela Constituição de 1988, há quatro espécies de filiação: a de origem biológica e as que resultam da adoção, da inseminação artificial heteróloga (técnica de reprodução assistida) e da posse de estado de filiação.

Portanto, nem sempre a parentalidade e a filiação têm origem biológica. Porém, qualquer pessoa tem direito a conhecer sua origem biológica, ainda que não implique atribuição de parentalidade. Pouco importa sua motivação, seja para satisfazer o anseio humano de saber de quem veio, seja para assegurar o direito à saúde (e a vida), para prevenção de doenças geneticamente transmissíveis.

No tocante à adoção, a Lei 12.010/2009, ao dar nova redação ao artigo 48 do ECA, introduziu na legislação o “direito [do adotado] de conhecer sua origem biológica”, mediante acesso ao processo de adoção, após completar 18 anos, ou quando menor com assistência jurídica e psicológica. A norma assegura o exercício do direito da personalidade do adotado, mas sem qualquer reflexo na relação de parentesco. O conhecimento da origem biológica não importa desfazimento da adoção, que é irreversível.

Se são distintos os direitos (direito da personalidade e direito de família), então não se pode pretender a obtenção do conhecimento da origem genética mediante ação de investigação de paternidade. O que se busca é esclarecer a origem genética, mas não a atribuição de paternidade ou maternidade, ou a negação da parentalidade já constituída. Quando uma pessoa que foi adotada pugna por conhecer sua origem genética e consegue seu intento, disso não resulta o desfazimento da relação parental/filial. Do mesmo modo, se tiver sido concebido a partir de sêmen de homem que não é seu pai. Pode-se afirmar que as situações de genitor biológico e de pai nem sempre estão reunidas.

As questões que frequentemente demandam decisões judiciais são relativas à posse de estado de filiação, cuja relação de parentalidade, emergente de fatos, não ostentam o mesmo grau de cognoscibilidade da adoção ou da inseminação artificial heteróloga. Quando o Judiciário confirma a existência da posse de estado de filiação e sua consequente imutabilidade, emergem insatisfações acerca das pretensões econômicas que normalmente estavam subjacentes, notadamente alimentos e sucessão hereditária.

Pensamos que, para harmonizar o princípio da imutabilidade do estado de filiação, decorrente da posse de estado, com a possível pretensão patrimonial, pode-se encontrar solução dentro do sistema jurídico existente, máxime com recurso à reparação civil. Com efeito, a Constituição (artigo 229) estabelece que os pais têm o dever de criar, educar e assistir os filhos menores. A não assunção da paternidade (ou maternidade) do descendente biológico (salvo no caso de dação de sêmen), cuja filiação foi assumida apenas pela mãe e, depois, pelo pai socioafetivo, implica inadimplemento de dever jurídico, que se resolve com a reparação civil correspondente. Se o genitor biológico for vivo, deve responder pelo equivalente ao valor que teria de arcar com a criação, educação e assistência do filho não reconhecido, de acordo com suas condições econômicas, até a maioridade deste. Se morto for, o mesmo valor pode consistir em crédito contra a herança, pois significa dívida deixada pelo de cujus.



Paulo Lôbo é advogado, doutor em Direito Civil pela USP, professor emérito da UFAL e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Foi conselheiro do CNJ.



Revista Consultor Jurídico, 14 de fevereiro de 2016, 8h00

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