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quarta-feira, 16 de março de 2016

PL antiterrorismo é ameaça a movimentos sociais e manifestantes





Por Camila Marques e Mariana Rielli


Aprovado em definitivo pelo Congresso no dia 24 de fevereiro, o Projeto de Lei (PL) 2016/2015, conhecido como PL Antiterrorismo, aguarda sanção presidencial para entrar em vigor.

De autoria do Executivo, o texto foi aprovado em primeiro turno na Câmara com algumas modificações, e, posteriormente, sofreu novas alterações no Senado. De volta à Câmara, foi ratificado na versão originalmente aprovada pelos deputados.

Durante toda a tramitação do PL, organizações da sociedade civil e movimentos sociais mobilizaram-se contra sua aprovação, visto que muitos dos dispositivos propostos, sob pretexto de atender a pressões externas pela adoção de leis antiterror, possuem redação excessivamente ampla, ambígua e potencialmente criminalizadora do direito à livre manifestação e expressão.

Diante de todos esses elementos, e da importância do tema, cabe questionar: a aprovação conturbada dessa lei é uma iniciativa isolada? Se não, qual é o contexto que a envolve e quais são suas implicações e consequências?

O histórico de protestos sociais no Brasil é bastante amplo e de análise complexa. É possível, porém, esboçar padrões a partir de recortes específicos quanto à natureza das manifestações, sua amplitude e o período no qual têm ocorrido.

Em relação ao processo iniciado pelas ''Jornadas de Junho'' de 2013, por exemplo, há análises detalhadas que oferecem material para algumas conclusões sólidas. A violenta e desproporcional repressão do Estado verificada neste episódio, caracterizando inúmeras violações de direitos humanos, gerou desaprovação geral da população e da mídia. Ainda assim, não incorreram em uma reformulação das práticas do aparelho estatal, pelo contrário: em muitos aspectos, a repressão foi aprimorada, sobretudo por conta da ocorrência dos megaeventos esportivos dos anos seguintes (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016).

A ação do Estado brasileiro para restringir manifestantes também alcançou novas frentes, como revela o conjunto de PLs cuja tramitação iniciou em 2013 e se intensificou com a proximidade da Copa do Mundo. Os PLs contemplavam desde a proibição do uso de máscaras em manifestações até a modificação do Código Penal para instituir qualificadoras e aumentos de penas para crimes comuns se cometidos em protestos. Houve ainda projetos semelhantes ao PL 2016/2015 que também tinham o objetivo de criminalizar o terrorismo.

À luz desses fatos, as discussões sobre a atual lei antiterrorismo ganham novos contornos.

Como primeira ressalva, cabe dizer que a versão final aprovada pela Câmara contém uma excludente que, em tese, afasta a abrangência da norma sobre manifestações políticas e movimentos sociais. Entretanto, o desenrolar de todo o processo, que culminou na aprovação do projeto, assim como o espírito que o permeia, sugere que a discussão sobre esse tema permanece relevante.

Ainda que de acordo com o texto da lei a manifestação política e social não possa ser alvo de criminalização sob pretexto de corresponder à prática terrorista, o potencial caráter intimidatório da lei permanece, uma vez que autoridades policiais e judiciais poderão fazer interpretações ampliadas, inclusive com a possibilidade de iniciar a persecução penal de manifestantes para, somente após todo o constrangimento causado, afastar o uso da tipificação de “terrorismo”.

Vale lembrar que não é novidade que leis claramente inaplicáveis a casos concretos tenham sido utilizadas contra manifestantes. Em outubro de 2013, dois manifestantes, Luana Bernardo Lopes e Humberto Caporalli, foram detidos em um protesto em São Paulo e indiciados por sabotagem com base na Lei de Segurança Nacional. A lei em questão, aprovada na época da Ditadura Militar, estabelece penas de até 10 anos de reclusão. Na mesma ocasião, os dois também foram enquadrados em várias outras acusações que foram comuns em outros casos de detenções ocorridos em protestos nos últimos anos.

Posteriormente, Luana e Humberto tiveram sua prisão relaxada, pois foi reconhecida a fragilidade e inconsistência das acusações, mas, a essa altura, o desgaste e o estigma social em torno de uma suposta conduta criminosa já haviam se dado. [1]

Para além do problema acerca da aplicação da lei em si, há no PL aprovado pelo Congresso diversos dispositivos preocupantes do ponto de vista da liberdade de expressão e manifestação.

Para começar, os ''atos de terrorismo'' elencados incluem a danificação de locais e objetos, caracterizando a noção de ''terrorismo contra coisa''. A depredação de bens públicos e privados — uma alegação corriqueira em casos nos quais se verifica a intimidação de manifestantes por meio de investigações criminais e processos judiciais — pode passar da caracterização usual de crime de dano à qualidade de ato terrorista, punível com reclusão de 12 a 30 anos.

De forma semelhante, o projeto aprovado determina que serão punidos com reclusão de quatro a oito anos, mais multa, aqueles que fizerem, ''publicamente, apologia de fato tipificado como crime nesta Lei ou de seu autor” (artigo 4). Se o meio utilizado para tal for a internet ou outro meio de comunicação social a pena é aumentada de um sexto a dois terços.

A ausência de elementos descritivos que deem suporte à definição de apologia, associada às penas altas instituídas, gera uma situação de ampla discricionariedade na aplicação do dispositivo, penalizando discursos de forma desproporcional. Já o aumento de pena motivado pelo uso da internet, além de demonstrativo da pouca afinidade do sistema jurídico com a dinâmica proporcionada pela comunicação em rede, demonstra uma tendência: a utilização de opiniões emitidas em redes sociais por manifestantes como elemento incriminatório em investigações.

É o caso, por exemplo, do inquérito dos 23 manifestantes indiciados no Rio de Janeiro na época da Copa do Mundo, que se utilizou da tática de ''ronda virtual'' no Facebook, analisando conversas abertas, comentários em páginas de grupos e movimentos sociais. Na ocasião, até mesmo “curtidas” foram consideradas como fortes indícios de supostas práticas criminosas ou de ordem a outros manifestantes para prática de crimes. [2]

Essa breve análise sugere que a tramitação do PL 2015/2016 não representa uma iniciativa isolada, supostamente justificável por pressões externas sobre o Brasil, mas se insere em um contexto de ações estatais de endurecimento no tratamento dos protestos sociais no país.

Tal cenário se verifica também na sofisticação do aparelho repressivo, que desde 2013 muniu-se de novas técnicas e instrumentos; na intensificação da criminalização de manifestantes via processos judiciais; e, por fim, na proliferação de projetos de lei que incrementam as leis criminais, muitas vezes de forma desnecessária e desproporcional, sob pretexto de punir supostos excessos em manifestações. A utilização dessa via, associada a todo o contexto repressivo descrito, não cumpre o papel de resguardar direitos e garantias fundamentais, mas, pelo contrário, prejudica sua efetivação, ao criar um cenário inibidor da liberdade de expressão de manifestantes e dos movimentos sociais, em geral. Importante lembrar que todas as condutas descritas no novo projeto já estão contempladas em outras leis criminais.

Diante destes apontamentos, e tendo em vista o cenário brevemente descrito, o projeto aprovado e todo o processo que o acompanhou devem ser considerados em sua gravidade e no risco que impõem a atores engajados politicamente e àqueles que se manifestam nas ruas. Discussões mais profundas e próximas da sociedade devem ser organizadas para debater o combate ao terrorismo, com o fim de evitar que a democracia e os direitos fundamentais sejam prejudicados por qualquer ação descuidada nessa área. O veto presidencial, nesse momento, é uma necessidade.

[1]http://oglobo.globo.com/brasil/estudante-presa-em-protesto-faz-desabafo-no-facebook-10325771

[2]http://www.cartacapital.com.br/revista/812/procura-se-bakunin-9772.html


Camila Marques é advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da Artigo 19.

Mariana Rielli é estudante de Direito e integrante da organização Artigo 19.

Revista Consultor Jurídico, 15 de março de 2016, 7h22

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

DIREITOS HUMANOS NO DIÁLOGO ENTRE OS CAMPOS DE CONHECIMENTO

Os artigos deste número da Revista Katálysis enfocam o tema dos direitos humanos a partir de diferentes quadros teóricos, o que constitui uma riqueza e contribui para eliminar de antemão muitas objeções hoje vigentes em relação à problemática em questão. Isto porque os diferentes quadros nos oferecem óticas diferenciadas, e não, necessariamente, excludentes, de abordar o tema. O que, certamente, irá contribuir para a percepção de que a maioria das objeções levantadas provém do fato de não se levar em consideração a ótica em que a problemática é tratada e, sobretudo, da não consideração de que, a partir de sua estruturação interna, os diversos quadros teóricos podem dar na abordagem da questão.
Numa perspectiva mais genérica, pode-se dizer que é muito diferente, de um lado, considerar a problemática dos direitos humanos dentro do quadro teórico das ciências sociais, que analisam as condições da vida humana nos contextos específicos das sociedades contemporâneas, e de outro, procurar trabalhar esta problemática no contexto de uma teoria da realidade em seu todo, portanto, no contexto de uma teoria filosófica.
A abordagem em distintas óticas pode contribuir para mostrar como estas podem ser complementares, mesmo guardando seus níveis teóricos diferenciados para a consideração de um tema que se transformou numa das questões centrais do mundo em que vivemos, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista de sua efetivação nos diversos níveis e dimensões da vida humana, pessoal e coletiva.
Um dos problemas básicos que emergem no debate contemporâneo sobre os direitos humanos, e que têm grandes consequências para sua compreensão, é a concepção de ser humano, normalmente implícita, presente nos debates e determinante para a compreensão e a avaliação do que se pretende dizer quando se fala de direitos humanos.
Um elemento decisivo para uma compreensão adequada dos direitos humanos, enquanto "exigências morais" (direitos pré-positivos) que se radicam na constituição ontológica do ser humano e se distinguem dos "direitos positivados" (direitos positivos), é o fato de que o ser humano, ser corporal-espiritual, como indivíduo, constitui-se como um ser situado numa forma específica de configuração do conjunto de seus relacionamentos com os outros indivíduos e com a natureza da qual ele faz parte. Esta estruturação marca e condiciona as diversas dimensões de suas vidas individuais. Mesmo como um ser, em princípio capaz de transcendência a qualquer configuração de seu ser, ele não existe para além de qualquer estruturação sócio-histórica. Desta forma, a compreensão do ser humano como um ser essencialmente aberto à alteridade e histórico implica em compreender a vida humana como um processo de condicionamento recíproco entre indivíduos e estruturas da vida social.
Assim, a conquista efetiva de seu ser passa pela forma de configuração destas relações na medida em que delas depende, se os mundos históricos por ele construídos constituem-se, ou não, como espaços de possibilitação do reconhecimento dos seres humanos enquanto sujeitos, seres corporal-espirituais chamados à liberdade.
A tese fundamental neste contexto é que o indivíduo só pode efetivar-se através da mediação de um mundo de instituições que assegura o espaço de liberdade: é no espaço de mundos de seres livres e iguais que ele se realiza como tal. Por esta razão, é decisiva a forma de estruturação dos mundos intersubjetivos para a efetivação dos direitos humanos que são constitutivamente sempre individuais e sociais. O debate atual sobre os direitos humanos precisa, por isto, partir de um questionamento básico que se situa no quadro teórico específico das ciências: como se configura nosso mundo histórico hoje e que lugar têm aí os direitos humanos?
Em sua dinâmica atual, o capital conquistou para si um espaço de ação para além do espaço dos estados nacionais, constituindo uma economia global através de uma onda de desregulamentações, fusões e privatizações, reestruturação empresarial e produtiva. Fomentou a expansão das empresas transnacionais, estruturadas a partir de seus interesses corporativos que se subtraem cada vez mais ao controle dos estados nacionais e pagam cada vez menos impostos em seus países de origem. Aumentaram a produção e a riqueza mundiais, com distribuição desigual de seus resultados, já que privilegia elites hegemônicas, marcadas por um produtivismo consumista ilimitado, e degrada os ecossistemas, desperdiçando matéria-prima e energia, destruindo a biodiversidade, exaurindo os solos e as águas, realidades que hoje já ameaçam obstruir todo o sistema.
A globalização transformou profundamente nos últimos 20 anos a organização econômica, as relações sociais, os modelos de vida e cultura, os Estados e a política, e acelerou enormemente as mudanças e a geração de novos paradigmas. Recorre-se hoje à lógica da globalização para legitimar o desmantelamento das instituições de proteção social e de controle de mercados, do exercício do papel equilibrador do Estado e da proteção dos direitos dos cidadãos, já que as instituições políticas dispõem de pouca margem de manobra frente aos mecanismos dominadores do mercado, de modo especial frente aos organismos financeiros internacionais.
O resultado deste processo escancara a violação dos direitos elementares do ser humano, gerando: pobreza, miséria, dependência econômica, ditadura política, opressão policial, sequestro, tortura, exílio, assassinato. Acontece com clareza aquilo que Franz Hinkelammert (El sujeto y la ley: El retorno del sujeto reprimido. Heredia: EUNA, 2003, p. 79) chamou de "inversão dos direitos humanos", onde "a história moderna dos direitos humanos é a história de sua inversão, a qual, transforma a violação dos direitos humanos em imperativo categórico da ação política."
Age-se em nome dos direitos humanos contra a pessoa humana o que normalmente vem acoplado à criminalização dos defensores dos direitos humanos que desmascaram a hipocrisia.
Há grandes massas de indivíduos que são os perdedores deste processo e há completa ausência de uma autoridade global efetiva para enfrentar as questões que emergem desta nova situação.
No contexto atual do mercado total, os direitos humanos, fundados na liberdade, são vistos como distorções, pois tudo se reduz ao indivíduo e à sua competência, o que tem conduzido a uma perda acentuada do sentido da coisa pública, do bem comum. O que rege a vida social é a "lei da selva", do "cada um por si", do "levar vantagem em tudo". Cabe ao indivíduo prover a sua vida e as suas necessidades. Daí porque acima dos direitos do ser pessoal, agora desqualificados como privilégios, se põem os "direitos" do grande capital.
A política macroeconômica opta por empreendimentos que levam à exclusão progressiva e à flexibilização do mercado de trabalho em favor da grande empresa. Uma vez que o objetivo básico é submeter a vida social em sua totalidade às leis do mercado, tudo é avaliado de acordo com sua funcionalidade, ou não, ao mercado livre.
Estas experiências dolorosas de degradação da vida humana abriram a muitos um horizonte que lhes permitiu aceder a uma nova consciência da significação dos direitos humanos na vida humana.
Numa outra perspectiva, uma das respostas, talvez desesperada, a esta situação que se apresenta em nosso contexto é o terrorismo que levanta a pretensão de uma legitimação ética; o terror emerge aqui como a resposta dos povos ou grupos oprimidos à arrogância dos poderosos, como penalidade justificada em virtude de sua petulância e crueldade.
A história humana, examinada do ponto de vista normativo (portanto, no nível da reflexão ética, da filosofia da política e do direito), revela-se como o espaço de luta pela efetivação da dignidade específica do ser humano enquanto ser pessoal dotado de corporeidade, inteligência, vontade e liberdade. Isto significa a efetivação de direitos e, como tarefa histórica, implica o enfrentamento de todo tipo de desigualdade e servidão, possibilidades constantes na vida humana, e produz a negação de seu caráter de sujeito e sua redução a objeto, em diferentes formas.
A humanização, portanto, é algo construído, conquistado, o que pressupõe sujeitos ativos e conscientes de sua dignidade que se efetiva em direitos. Enquanto tais, estes sujeitos se fazem autores de seu próprio desenvolvimento, que passa pelo reconhecimento mútuo, o qual por sua vez se faz através da mediação de instituições, que regulam a convivência entre os seres humanos e suas relações com a natureza no sentido de superar todo tipo de instrumentalização e opressão.
Nesta perspectiva, manifesta-se que a igualdade básica dos seres humanos é, antes de tudo, uma igualdade de direitos, por conseguinte normativa, cuja efetivação na história humana pressupõe o estabelecimento de "instituições universalistas" que possam garantir a criação do espaço do reconhecimento universal, o que se traduz em democracia radical e justiça socioeconômica.
Mais do que nunca, neste contexto, os direitos do ser humano, enquanto direitos essenciais, pré-positivos, devem constituir o alicerce de uma convivência racional; e, já que eles são a decorrência da liberdade, isto significa dizer que a liberdade deve ser o fundamento da ordem social.
Desta forma, a efetivação dos direitos humanos significa a garantia de uma vida humana verdadeiramente sustentável e digna. Consequentemente, o poder e o mercado não podem constituir o valor supremo e os controladores incontestáveis da vida humana, mas, antes, só têm sentido na medida em que se submetem aos direitos essenciais do ser humano e se põem a seu serviço, portanto, a serviço da justiça.
A norma decisiva do direito pré-positivo objetivo é precisamente que os direitos subjetivos dos portadores de direito devem ser protegidos com coerção.
Isto significa efetivar a razão como a instância que rege a existência social, na qual os seres humanos conduzem suas vidas a partir de princípios da justiça e se reconhecem reciprocamente como membros de uma entidade de seres livres e iguais.
Toda ação de indivíduos ou estruturas de instituições que entrem em contradição com estas exigências básicas do ser humano devem ser rejeitadas a partir da "medida" de referência que são os direitos humanos.
Por outro lado, um direito moral precisa também garantir a segurança jurídica e, enquanto tal, exige um "Estado de Direito", capaz de unir justiça e segurança legal e, portanto, de reconhecer e garantir a efetivação dos direitos fundamentais do ser humano. São estes direitos que possibilitam a efetivação do ser humano como ser livre, e o Estado só pode ser considerado um Estado de direito quando ele mesmo se submete a estes direitos. Assim, o Estado não constitui a fonte da vida coletiva, mas é um instrumento criado pela sociedade em função da efetivação dos direitos que decorrem da dignidade do ser humano. É a efetivação dos direitos humanos que tornará possível configurar a vida humana de tal forma que ninguém seja excluído de sua dignidade.
Manfredo Araújo de Oliveira, Fortaleza, julho 2011.

Manfredo Araújo de Oliveira manfredo.oliveira@uol.com.brDoutorado em Filosofia pelo Universität München
Ludwig Maximilian, Alemanha
Professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC)

UFC - Centro de Humanidades Departamento de Filosofia
Avenida da Universidade, 2995
Benfica Fortaleza - Ceará - Brasil
CEP: 60020-181


Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-49802011000200001&lang=pt

quinta-feira, 28 de junho de 2012

DIREITOS HUMANOS NO BRASIL - HISTÓRIA E DESVENTURA: O 3º PROGRAMA NACIONAL DE DIREITO HUMANOS

História e desventura: o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos
Sérgio Adorno

RESUMO
Desde a Constituição de 1988 - a assim chamada "constituição cidadã" - os direitos humanos foram assumidos como política de Estado no Brasil. As reações à versão mais recente do Programa Nacional de Direitos Humanos - ampliação e aprofundamento das anteriores - no entanto, procuraram associá-lo a um instrumento de revanche ou de violação do Estado de direito: censura, intervenção estatal. O artigo refaz o histórico da questão no Brasil e analisa o programa e sua repercussão.
Palavras-chave: 3º Programa Nacional de Direitos Humanos; direitos humanos; redemocratização; Constituição de 1988.


ABSTRACT
Since the 1988 Brazilian Constitution - the so-called "citizen's constitution" - human rights were considered a mandatory State policy. The reactions to the latest version of the National Human Rights Program - which developed from the earlier versions - have sought, though, to associate it to a sort of revenge from left-leaning sectors of government and society, or to a violation of the rule of law: censorship, state intervention. The article retraces the Program's history of this issue in Brazil and analysis its proposals and the reaction to it.
Keywords: 3º National Human Rights Program; human rights; re-democratization; 1988 Constitution.




Lançado em dezembro de 2009 por força do Decreto 7. 037, o III Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3, o primeiro elaborado pelo governo Lula (2003-2010), suscitou duras reações de alguns segmentos da sociedade brasileira. Certamente, como nas edições anteriores, ambas durante o governo FHC (1994-2002), o assunto teria merecido discreta atenção da mídia impressa e eletrônica não fossem as polêmicas que provocou. As duras críticas colocaram novamente em evidência termos de debate que pareciam superados. Durante a transição para a democracia no Brasil (1979-1988) e por quase duas décadas, temas de direitos humanos suscitavam reações depreciativas, freqüentemente associados, pela opinião pública, à defesa dos direitos de bandidos, à utopia de militantes que imaginavam uma sociedade despida de violência e de graves violações de direitos humanos ou ainda à sede de vingança por parte de quem havia sido perseguido pela ditadura militar. Desde a promulgação da Constituição de 1988, muito se fez pelo avanço dos direitos humanos nas esferas dos governos federal e estaduais. Pouco a pouco, direitos humanos entraram definitivamente para a agenda política nacional. Comparado às edições anteriores, o PNDH-3 situa-se na linha evolutiva das idéias e dos programas governamentais que apontam antes continuidades do que rupturas entre os governos FHC e Lula. Além do mais, todos os Programas buscaram mover-se dentro dos marcos constitucionais, ainda que algumas iniciativas estivessem sujeitas à interpretação desses preceitos.
Que as polêmicas surgissem já era esperado. Não poderia ser diferente, dada a amplitude e a abrangência das iniciativas, dos programas e das medidas adotadas, muitas das quais reclamando, em pleno ano eleitoral, edição de leis e regulamentos para sua execução. As tradicionais dificuldades para aprovação de projetos de lei - morosidade, excesso de trâmites burocráticos, contingências conjunturais, leque de apoio partidário etc. - tendem a se tornar mais acentuadas, em parte porque o congresso acaba refém das agendas eleitorais e das expectativas dos resultados das urnas. Nada disso é surpreendente, exceto por alguns de seus aspectos. Primeiramente, o fato de que as reações tenham ressuscitado suas expressões mais conservadoras e simplórias, justamente do tipo que se suspeitava superado - mais propriamente, o embate dicotômico, simplificador, entre defensores e críticos dos direitos humanos. Em segundo lugar, o Programa trata de questões com as quais o PT - o partido no governo - tem larga afinidade. Não seria equivocado dizer que esta agremiação partidária também ganhou projeção política nacional em torno da mobilização e da defesa de direitos humanos. O PNDH-3 esteve, assim, desde sua concepção, identificado com essa face do PT, representada principalmente pela figura do ministro Paulo Vannuchi, expreso político e homem público reconhecido tanto por suas ações governamentais neste campo político quanto por suas virtudes como articulador de alianças suprapartidárias, sempre em nome de avanços e progressos no âmbito dos direitos humanos.
A despeito desse patrimônio, e de sua larga aprovação popular, o governo Lula hesitou diante das críticas e realizou alterações no Programa original para apaziguar setores exaltados do governo, em especial o segmento de defesa, ancorado nas forças armadas. O mais surpreendente foi o silêncio dos intelectuais de esquerda, principalmente os identificados publicamente com o PT. Por razões as mais diversas, poucos saíram à defesa do Programa e de suas teses. Houve, é certo, quem se manifestou através de blogs e abaixo-assinados circulantes em sites da internet. Salvo exceções, textos densos e copiosamente argumentados, como ocorrera com freqüência em passado recente, não compareceram no espaço público proporcionado pela mídia impressa e eletrônica - dominado, aliás, pelas críticas. O ministro Vannuchi ficou praticamente desprovido de apoio, o que teria suscitado rumores de sua demissão no auge das polêmicas.
Mas por que tanta polêmica, se o PNDH-3 não é tão diferente de seus antecessores? Quais hipóteses podem explicar as reações e as resistências?

HISTÓRICO
À primeira vista, a leitura de notícias, opiniões, reportagens, entrevistas e editorais que se disseminaram pela mídia impressa desde dezembro de 2009 até meados do mês de fevereiro de 2010 parece sugerir que o PNDH-3 é uma criação do governo Lula, razão por que teria incorporado não apenas reivindicações históricas de seu partido como também assimilado seus traços ideológicos. Não poucos artigos de opinião parecem respaldar essa suspeita. A senadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), em artigo no jornal Folha de S. Paulo, no qual critica o tratamento conferido ao agronegócio pelo Programa, que ela julga preconceituoso, e destaca os programas do governo anterior, referenda esse ponto de vista ao afirmar que

[. . . ] no novo Programa Nacional dos Direitos Humanos, PNDH-3, o desenho é outro: saem a democracia, a justiça, a tolerância e o consenso e entra a velha visão esquerdista e ideológica que a humanidade enterrou sem lágrimas nas últimas décadas, depois de muito sofrimento e muita miséria1.

Na mesma direção, Ives Gandra da Silva Martins, jurista e professor emérito da Universidade Mackenzie, critica em artigo publicado no mesmo jornal o que chama de "viés ideológico ditatorial", supostamente presente no plano. De tão afirmativo, vale a pena transcrevê-lo parcialmente:

O Programa Nacional de Direitos Humanos, organizado sob inspiração dos guerrilheiros pretéritos [. . . ] é uma reprodução dos modelos constitucionais venezuelano, equatoriano e boliviano, todos inspirados num centro de políticas sociais espanhol para o qual o Executivo é o único Poder, sendo o Judiciário, o Legislativo e o Ministério Público Poderes vicários, acólitos, subordinados. No programa, pretende-se fortalecer o Executivo, subordinar o Judiciário a organizações tuteladas por "amigos do rei", controlar a imprensa, pisotear valores religiosos, interferir no agronegócio, afastar o direito de propriedade, reduzir o papel do Legislativo e aumentar as consultas populares, no estilo dos referendos e plebiscitos venezuelanos, além de valorizar o homicídio do nascituro e a prostituição como conquistas de direitos humanos. Quem ler a Constituição venezuelana verificará a extrema semelhança entre os instrumentos de que dispõe Chávez para eliminar a oposição e aqueles que o PNDH-3 apresenta, objetivando alterar profundamente a lei brasileira2.

Várias outras análises, disseminadas por outros veículos de imprensa, revelam inclinação semelhante. Identificam o programa com uma espécie de populismo de esquerda, nostalgia ideológica de ex-militantes políticos que reclamam a vingança dos vencidos contra os vencedores. Ainda que de forma caricatural, relembram em parte o mesmo clima de polarização ideológica pré-golpe de Estado em março de 1964.
Todavia, essas suspeitas não resistem aos fatos. A história dos direitos humanos no Brasil - de suas origens à contemporaneidade - ainda está por ser reconstruída. Há poucas menções na historiografia a reivindicações de direitos humanos nos primórdios do regime republicano e mesmo no curso das sucessivas interrupções da normalidade constitucional, por exemplo entre 1937 e 1945. Tudo indica que os direitos humanos emergem como tema na arena pública e política apenas no contexto das lutas contra a ditadura militar (1964-1985), fortemente inspiradas pela Declaração Universal de 1948 e de seus desdobramentos. No processo de transição democrática, assistiu-se à constituição de movimentos de defesa de direitos humanos por todo o país, em especial em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre, em parte por influência de pressões externas, como a da Liga dos Direitos Humanos da França e a política de direitos humanos do governo Carter (1977-1981).
A despeito das desconfianças em relação à política externa da administração Carter, grupos tradicionalmente sensíveis à mobilização política - como profissionais liberais, jornalistas, professores universitários, estudantes, lideranças sindicais -, ainda que motivados por distintas orientações político-ideológicas, foram progressivamente articulando suas lutas com as organizações internacionais de direitos humanos. No curso dos acontecimentos, eclodiram a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita (1978-1979) e a Campanha pelas Diretas Já (1984). Na mesma época, forças políticas conservadoras, comprometidas com a herança deixada pelo regime autoritário, opuseram-se tenazmente aos avanços democráticos nessa direção, entre outras razões porque cuidaram de evitar que denunciados por crimes contra os direitos humanos viessem a ser julgados por tribunais civis e fossem, ao final, condenados. A lei da anistia é, por certo, um dos resultados desses embates.
Qualquer que seja a interpretação que se possa atribuir aos rumos da democracia no Brasil pós-transição, é inegável que os direitos humanos constituem a espinha dorsal da Constituição de 1988. Ela afirma que a República Federativa do Brasil constitui um Estado democrático de direito, fundado, além da soberania e da cidadania, na dignidade da pessoa humana e no pluralismo político. Sob o ponto de vista das relações internacionais, orienta-se por inúmeros preceitos inscritos na Declaração Universal de 1948, tais como independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre Estados, defesa da paz, solução pacífica de conflitos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e concessão de asilo político. A Constituição atribui ao Estado a tarefa de promover, mediante políticas públicas, a universalização do acesso aos direitos econômicos, sociais, políticos e culturais e de elaborar e executar políticas conseqüentes que assegurem a distribuição eqüitativa do direito à educação, à saúde, à habitação, ao transporte público, ao meio ambiente saudável, ao lazer e à livre produção cultural, metas afinadas tanto com a agenda internacional dos direitos humanos como com os Objetivos do milênio3.
A bem da verdade, os governos civis pós-redemocratização deram início à incorporação de direitos humanos nas políticas governamentais. Todavia, foi no governo FHC que o tema entrou definitivamente para a agenda política nacional, em parte graças a uma conjuntura internacional favorável, em parte devido à presença mais destacada no governo de lideranças reconhecidas e identificadas com direitos humanos, como os ministros José Gregori e Paulo Sérgio Pinheiro. Ainda assim, é bom lembrar, não se pode dizer que a composição de forças e alianças de sustentação do governo FHC fosse inteiramente simpática à agenda, sobretudo quando em pauta estavam iniciativas que visassem exercer férreo controle civil sobre as forças policiais militares, ou que pretendessem reparação diante das graves violações de direitos humanos ocorridas no curso da ditadura militar. Quando isto aconteceu, as reações e as críticas não passaram em branco.
A idéia de Programas Nacionais de Direitos Humanos nasceu na Conferência Mundial dos Direitos Humanos (Viena, 1993). Nessa Conferência, decidiu-se recomendar aos países presentes que elaborassem programas nacionais com o propósito de integrar a promoção e a proteção dos direitos humanos como programa de governo4. Em 7 de setembro de 1995, o governo FHC anunciou sua intenção de propor um plano de ação para os direitos humanos.
Contendo 228 propostas, o PDDH-1 foi lançado em 13 de maio de 1996, primeiro documento do tipo na América Latina e um dos primeiros no mundo, a exemplo de Austrália, África do Sul e Filipinas5. Seis anos depois, ainda no governo FHC, foi lançado o PNDH-2, resultado de revisão e aperfeiçoamento do primeiro programa à vista das críticas e recomendações da IV Conferência Nacional dos Direitos Humanos (1999). O PNDH-3 insere-se, por conseguinte, nessa mesma linha de orientação. Trata-se de uma revisão, aperfeiçoamento e ampliação do elenco de direitos humanos a serem protegidos e promovidos. A propósito, no texto introdutório ao PNDH-2, afirma-se que

[. . . ] embora a revisão do Programa Nacional esteja sendo apresentada à sociedade brasileira a pouco mais de um ano da posse do novo governo, os compromissos expressos no texto quanto à promoção e proteção dos direitos humanos transcendem a atual administração e se projetam no tempo, independentemente da orientação política das futuras gestões ("Introdução", Decreto nº 4. 229, de 13 de maio de 2002).

Os Programas Nacionais de Direitos são, antes de medidas governamentais, políticas de Estado. Resultam de uma história recente de consolidação das instituições democráticas na sociedade brasileira. Têm por referência a Constituição de 1988, conhecida como "Constituição cidadã"6. O PNDH-3 não é, sob essa perspectiva, uma iniciativa absolutamente nova, tampouco um tresloucado gesto de militantes políticos da velha esquerda ou de guerrilheiros do passado, hoje convertidos às regras da sociedade política democrática. Ao sancionar o Decreto 7. 037, de 21 de dezembro de 2010, o presidente Lula agiu como chefe de Estado, tal como seu predecessor o fizera, representando todos os poderes constitucionais. Era o que se esperaria de seu papel constitucional.

CONTINUIDADES E INOVAÇÕES
Uma breve comparação entre os PNDHs reforça ainda mais as linhas de continuidade. As três edições têm características comuns. Em primeiro lugar, sua natureza suprapartidária. Como aponta a literatura especializada, cada vez mais o respeito, a proteção e a promoção dos direitos humanos têm se convertido em requisito para consolidação das instituições democráticas. A despeito de sua jovem democracia, em comparação com outras experiências do mundo ocidental, a sociedade brasileira está imersa nesta mesma tendência. Em segundo lugar, os programas pretendem enfrentar a desarticulação entre instâncias decisórias do aparato de Estado e de governo bem como entre governantes e governados, representados na esfera civil pelas organizações não-governamentais (Ongs). Os programas cuidam não apenas de promover articulações entre poderes, como entre ministérios e seus mais distintos organismos e, sempre que possível, entre governos federal, estaduais e municipais. Do mesmo modo, convocam parcerias entre governos e Ongs para além de um mero contrato de confiança. Não sem razão, as edições indicam órgãos responsáveis pela execução do programa, assim como parceiros. Ao mesmo tempo, sempre que a execução de medidas envolva governos estaduais e municipais, o Programa mantém cautelas em respeito ao pacto federativo, motivo pelo qual optam pelo formato de recomendações.
As três edições incorporam, também, uma nova concepção de direitos humanos. Seguindo a orientação da Conferência Mundial de 1993, reconhece-se a indivisibilidade dos direitos humanos: direitos humanos não são apenas direitos civis e políticos, mas também direitos econômicos, sociais, culturais e coletivos, o que é uma grande novidade na história social e política republicana no Brasil. Por fim, todas elas resultam de consultas à sociedade civil, em praticamente todo o território nacional, seja sob a forma de seminário para acolhimento de propostas e sugestões (PNDH-1), seja sob a forma de Conferências Nacionais de Direitos Humanos (como nos PNDH 2 e 3).
Sob esta perspectiva, as três edições compreendem metas (de curto e médio prazos) com objetivos claros e precisos, consubstanciados em medidas e ações que se irradiam em múltiplas direções e com distintos alcances. O propósito final é traduzir direitos, consagrados tanto na Constituição como em acordos internacionais de que o Brasil é signatário, em planos visando reduzir desigualdades sociais de toda espécie e assegurar o exercício das liberdades civis e públicas. Em última instância, pretendem conferir maior consistência e integração às ações governamentais capazes de promover e garantir direitos.
A comparação entre as três edições indica continuidades, aperfeiçoamentos e inovações. No PNDH-1, o maior foco residiu no combate às injustiças, ao arbítrio e à impunidade, nomeadamente daqueles encarregados de aplicar leis. O Programa cuidou da proteção do direito à vida, do direito à liberdade, do tratamento igualitário das leis - "direitos humanos para todos" -, dos direitos de crianças e adolescentes, das mulheres, da população negra, das sociedades indígenas, dos estrangeiros, refugiados e migrantes, e das pessoas portadoras de deficiência, assim como se propôs lutar contra a impunidade. Abordou igualmente a educação para os direitos humanos com vistas a fomentar uma cultura de respeito e de promoção. Sinalizou para ações internacionais, inclusive ratificação de convenções internacionais de que o país é signatário. Referiu-se ainda ao apoio às organizações de defesa dos direitos humanos, bem como ao monitoramento dos programas. Silenciou quanto aos direitos à livre orientação sexual e às identidades de gênero, o que motivou protestos do movimento LGBT.
Os principais resultados foram alcançados no campo da segurança pública, entre os quais se destacam: transferência da competência, da Justiça Militar para a Comum, para julgamento de policiais militares acusados de crimes dolosos contra a vida;tipificação do crime de tortura com a fixação de penas severas; criminalização do porte ilegal de armas e criação do Sistema Nacional de Armas (Sinarm);aprovação do Estatuto dos Refugiados; criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos; regulamentação da escuta telefônica (artigo 5º da Constituição federal). Outra medida, com repercussão, foi a gratuidade do registro de nascimento, à vista da existência de parcela não desprezível de brasileiros desprovida desse título, que assegura nacionalidade e cidadania.
O PNDH-2 manteve essas orientações e ampliou o escopo de direitos a serem protegidos. Compreendeu 518 medidas. Em face das críticas que o anterior mereceu, este incorporou os direitos de livre orientação sexual e identidade de gênero, assim como proteção dos ciganos. Conferiu maior ênfase à violência intrafamiliar, o combate ao trabalho infantil e ao trabalho forçado, bem como à luta para inclusão dos cidadãos que demandam cuidados especiais ("pessoas portadoras de deficiência", conforme o texto do programa).
Para além desses avanços, o PNDH-2 é reconhecido por dois enfoques: a incorporação dos direitos econômicos, sociais e culturais que, por razões políticas, haviam sido sombreados no PNDH-1, e os direitos de afrodescendentes. De fato, anteriormente, a área econômica do governo FHC, sobretudo no primeiro mandato, manteve sob férreo e cerrado controle a política econômica e sua execução orçamentária. Essa política de controle fiscal, visando garantir a estabilidade monetária e os indicadores macroeconômicos, exerceu uma espécie de interdito a todas as demais iniciativas governamentais que demandassem aplicação de recursos extra-orçamentários. Daí porque o PNDH-1 não pôde, na prática, aplicar o preceito de indivisibilidade dos direitos, tal como anunciado na Cúpula Internacional de Viena e incorporado à agenda política brasileira. No PNDH-2, foi possível incorporar aqueles direitos. A economia apresentava sinais de maior estabilidade, a despeito da crise de desvalorização monetária ao final do segundo mandato do governo FHC. Por isso, o PNDH-2 detalhou a proteção de direitos à educação, à saúde, à previdência e assistência social, à saúde mental, aos dependentes químicos e portadores de HIV/Aids, ao trabalho, ao acesso à terra, à moradia, ao meio ambiente saudável, à alimentação, à cultura e ao lazer.
O segundo enfoque diz respeito aos direitos de afrodescendentes. Pela primeira vez, o Estado brasileiro reconhece a existência do racismo e aponta iniciativas visando promover políticas compensatórias com o propósito de eliminar a discriminação racial e promover a igualdade de oportunidades. Trata-se de medidas de ação afirmativa, que contemplaram possibilidades de reparação diante da violação sistemática de direitos humanos contra essa população, ampliação do acesso dos afrodescendentes à justiça, cadastramento e identificação de comunidades remanescentes de quilombos, preservação da memória e da cultura afrodescendente, participação equilibrada desses grupos sociais nas propagandas governamentais e em matérias e campanhas publicitárias em geral e revisão dos livros didáticos de modo a resgatar a contribuição de afrodescendentes para a construção da identidade nacional.
O PNDH-3 cuidou de aprofundar e ampliar o elenco de direitos. Ele responde, em grande medida, às demandas nascidas de cinqüenta conferências temáticas realizadas desde 2003 (segurança alimentar, educação, saúde, igualdade racial, direitos da mulher, crianças e adolescentes, habitação, meio ambiente, entre outras) e às conclusões da XI Conferência Nacional de Direitos Humanos (realizada em dezembro de 2008), precedida de amplo processo consultivo por meio de conferências prévias ("Conferências Livres"), conferências estaduais e distritais, que elegeram 1. 200 delegados e indicaram 800 observadores e convidados.
Comparado aos anteriores, é mais extenso e com organização distinta. Está estruturado em torno de seis eixos - interação democrática entre Estado e sociedade civil; desenvolvimento e direitos humanos;universalização de direitos em contexto de desigualdades sociais; segurança pública, acesso à justiça e combate à violência; educação e cultura em direitos humanos; e direito à memória e à verdade. Esses eixos estão subdivididos em 25 diretrizes, 82 objetivos estratégicos e 521 ações programáticas. Sua redação identifica organismos responsáveis pela execução e parcerias. É flagrantemente mais extenso do que as edições anteriores, mas sua linguagem e mesmo redação não se diferenciam substantivamente.
As ações programáticas gravitam em torno de um universo léxico: apoiar, fomentar, criar mecanismos, aperfeiçoar, estimular, assegurar e garantir, articular e integrar, propor, elaborar, definir, ampliar, expandir, avançar, incentivar, fortalecer, erradicar, promover, adotar (medidas), desenvolver, produzir (informações, pesquisas), instituir (código de conduta), incluir, implementar. Opiniões veiculadas na mídia impressa e eletrônica observaram que os direitos foram anunciados nos PNDHs 1-2 em linguagem mais contida, enquanto no PNDH-3 a linguagem é mais direta, "desabrida" como lembrou o ex-ministro da Justiça José Gregori, cujo ministério foi responsável pela primeira edição. A despeito desses reparos, em essência, o PNDH-3 conserva as ações programáticas das edições anteriores, porém com maior detalhamento. Igualmente, como nas anteriores, algumas medidas dependem de leis e inclusive de mudanças constitucionais.
Todavia, forçoso é reconhecer, o PNDH-3 introduziu várias inovações, como respostas às crescentes demandas da sociedade civil. Entre elas, algumas provocaram ruidosa polêmica, como a proposta de criação da Comissão Nacional de Verdade, a descriminalização do aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, o direito de adoção por casais homoafetivos, a interdição à ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União, o "controle da mídia" e a adoção de mecanismos de mediação judicial nos conflitos urbanos e rurais,

[...] priorizando a realização de audiência coletiva com os envolvidos, com a presença do Ministério Público, do poder público local, órgãos especializados e Polícia Militar, como medida preliminar à avaliação da concessão de medidas liminares, sem prejuízo de outros meios institucionais para solução de conflitos (Eixo IV, diretriz 17, objetivo estratégico VI - Acesso à justiça no campo e na cidade).

De um modo ou outro, esses temas polêmicos já estavam presentes nas edições anteriores, ainda que em formulações mais contidas e discretas. No caso da descriminalização do aborto, o PNDH-1 nada disse. No PNDH-2, o tema comparece, porém sob uma formulação muito próxima de sua atual inscrição legal. Fala-se em direitos reprodutivos como conceito a ser disseminado e estimulado em campanhas de pré-natal e parto humanizado, bem como na prevenção da mortalidade materna e da gravidez na adolescência. Ao mesmo tempo, considerou o aborto como "tema de saúde pública, com garantia do acesso aos serviços de saúde nos casos previstos em lei". Na mesma direção, propõe o desenvolvimento de programas educativos de planejamento familiar, "promovendo acesso aos métodos anticoncepcionais no âmbito do SUS". Portanto, a polêmica com as igrejas já estava instaurada. No PNDH-3, o tema é deslocado do âmbito da saúde pública para a diretriz "combate às desigualdades estruturais" (Eixo III, objetivo estratégico III - Garantia dos direitos das mulheres para o estabelecimento das condições necessárias para sua plena cidadania). Nesta edição, propõe-se "apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos". Trata-se de substantiva mudança de enunciado. O deslocamento dá-se da esfera da saúde pública (portanto, de uma esfera pública de cuidados coletivos) para a esfera de decisão individual e subjetiva, nem sempre considerada pela opinião pública como fonte legítima de direitos que envolvem direitos de amplas maiorias. Portanto, sustenta-se aqui a hipótese de que a linguagem do PNDH-3 é direta e, mesmo até, isenta do pudor político de que se costumam cercar os formuladores de políticas públicas em áreas da vida associativa tão sensíveis a polêmicas e a valores e visões de mundo dicotômicas e polarizadas.
Como afirmado anteriormente, o PNDH-1 silenciou a respeito da livre orientação sexual e identidade de gênero. O PNDH-2 incluiu esses direitos, priorizando duas diretrizes: luta contra o preconceito e as formas de discriminação e combate à violência contra os GLTTB (gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais). No entanto, nas diretrizes pertinentes à orientação sexual já propunha "apoiar a regulamentação da parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e a regulamentação da lei de redesignação de sexo e mudança de registro civil para transexuais". O PNDH-3, portanto, reafirmou esses objetivos, embora tenha sido mais ousado em reconhecer o direito à adoção por casais homoafetivos. Na mesma direção, as três edições afirmam a liberdade de culto e de crença. Combatem a intolerância religiosa, a veiculação de mensagens racistas e/ou xenofóbicas e incentivam o diálogo entre movimentos religiosos com vistas à construção de uma sociedade pluralista. O PNDH-3 foi mais além ao propor a extinção de símbolos religiosos das dependências onde funcionam serviços da União como garantia de laicidade do Estado.
Tanto nas edições anteriores como na atual essas questões não deixaram de ser alvo de críticas. Afinal, o conservadorismo moral é ainda forte na sociedade brasileira, incentivado por igrejas e seitas, segmentos da mídia impressa e eletrônica e pelo tradicionalismo da educação básica no Brasil. As mudanças custam a ser assimiladas, mesmo quando muitos reconheçam que o aborto e a homossexualidade façam parte da realidade de muitas famílias, nas suas múltiplas formas de organização e associação, ou que muitos se declarem formalmente religiosos, embora ausentes das igrejas e dos rituais cotidianos de reafirmação da fé.
Quanto ao controle da mídia, esse é um tema que mereceria maior atenção. A Constituição garante a liberdade de expressão e opinião e veda a censura sob quaisquer formas. Nos artigos 220 e 221, estabelece que lei federal regulará diversões e espetáculos públicos e indica os princípios que devem reger a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão, o que pode apontar para instrumentos regulatórios. Já o artigo 224 previu a instituição, no Congresso Nacional, de um Conselho de Comunicação Social7. As fronteiras e os limites entre regulação e restrição de direitos é, por conseguinte, tênue e não raro estão subordinados aos humores dos governantes e legisladores. O PNDH-1 apostou no diálogo entre produtores e distribuidores visando à cooperação para o cumprimento da legislação em vigor. O PNDH-2 foi mais direto: propôs garantir a

[...] possibilidade de fiscalização da programação das emissoras de rádio e televisão, com vistas a assegurar o controle social sobre os meios de comunicação e a penalizar, na forma da lei, as empresas de telecomunicação que veicularem programação ou publicidade atentatória aos direitos humanos.

O PNDH-3 mantém a mesma diretriz; contudo, propõe criar um "ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios dos Direitos Humanos, assim como os que cometerem violações".
Não é o caso de se fazer, aqui, um debate acurado a respeito do alcance dessas propostas. É certo que os programas não pretendem exercer controle social8 sobre toda a mídia, tão-somente sobre as informações a respeito de direitos humanos. Se isto é censura, é questão para o debate público e político. Nunca é demais lembrar, como já dito antes, que direitos humanos são o alicerce da Constituição federal. Pode-se argumentar que os programas pretendem justamente proteger esse alicerce contra possíveis e eventuais ataques, o que, no limite, estaria colocando em risco a própria estabilidade institucional da sociedade brasileira. Desde logo se vê que o debate é complexo justamente porque imerso no emaranhado de direitos de várias espécies, referido a distintos escopos e voltado à proteção de bens diversos.
No tocante ao acesso à justiça, O PNDH-1 não se referiu diretamente aos mecanismos de mediação de conflitos agrários e urbanos. PNDH-2 refere-se a estes mecanismos. E mais, propôs apoiar a lei complementar 88/96, que estabeleceu rito sumário, assim como outros instrumentos legais para dinamizar expropriação de terra para fins de reforma agrária, "assegurando-se, para prevenir atos de violência, maior cautela na produção de liminares". O PNDH-3 conservou este propósito, conquanto tenha introduzido o diálogo entre as partes como medida preliminar à concessão de liminares. Portanto, a questão já estava presente na edição anterior. Se pertinentes, as duras críticas da presidente da CNA e do ministro Reinhold Stephanes (Agricultura, governo Lula), segundo as quais a medida provocará instabilidade jurídica no campo, deveriam ser estendidas à edição sob responsabilidade do governo FHC. Certamente, se há instabilidade nos conflitos sociais no campo, eles se devem a razões mais complexas, e não se resumem às intervenções judiciais.
Por fim, o direito à memória e à verdade. Não é o caso de historiar a luta da sociedade brasileira, ou ao menos de seus segmentos mais organizados, pelo acesso aos arquivos da ditadura, pelo direito a tomar conhecimento do que se passou com aqueles que desapareceram ou foram mortos durante a ditadura, especialmente os que estavam sob custódia das forças repressivas, e pela responsabilização daqueles que cometeram graves violações de direitos humanos. Essas reivindicações estiveram presentes em todos os movimentos pela reconstrução da normalidade democrática, desde a edição de Brasil: nunca mais, na luta pela anistia, nas campanhas pelas Diretas-já e tantos outros movimentos de afirmação de direitos. Na transição para a democracia, foram postergados para permitir o retorno ao Estado de direito com o aval dos militares e da classe política que havia sustentado o regime autoritário. As duas primeiras edições não fizeram menção a esses direitos, senão indiretamente quando advogaram reparações para graves violações de direitos humanos. Foi com o PNDH-3 que se incorporou o tema.
Havia antecedentes. A Secretaria Nacional de Direitos vinha se ocupando do assunto: publicou o relatório "Direito à memória e à verdade" (2007), reunindo resultados de pesquisas a respeito da repressão à dissidência política durante a ditadura. Igualmente, a Comissão de Anistia havia alcançado a marca de 700 sessões de julgamento. Desde 2008, patrocinava as caravanas de anistia, com o propósito de divulgar os casos julgados em todo o país. Reivindicações nessa direção e sentido foram se fortalecendo na sociedade brasileira há, pelo menos, uma década, seja em virtude da responsabilização de governantes e agentes públicos comprometidos com as ditaduras no Chile, na Argentina e no Peru, seja por força da descoberta, aqui e acolá, de arquivos que se julgavam perdidos ou destruídos. Nestas sociedades, esses casos ensejaram abertura de processos penais em cortes civis, levando os autores à condenação e à prisão por penas longas.
Foi neste contexto que o PNDH-3 propôs a criação de uma Comissão Nacional de Verdade, composta de forma plural e suprapartidária, com mandatos e prazos definidos, "para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política no período mencionado". O Programa ousou mais ao "propor legislação de abrangência nacional proibindo que logradouros, atos e próprios nacionais e prédios públicos recebam nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade, bem como determinar a alteração de nomes que já tenham sido atribuídos" (Eixo 6 - Direito à Memória e à Verdade, Diretriz 25, ação programática c).
Não é necessário esforço para compreender as razões pelas quais essas proposições suscitaram crise no governo, ameaçaram dois ministros - o da Defesa e o dos Direitos Humanos - de demissão, provocaram protestos de setores das forças armadas e uma torrente de críticas contra o "revanchismo" do PNDH-3, inclusive de segmentos civis da opinião pública. Associados a ex-militantes de esquerda com posições proeminentes no governo, a ministra Dilma Rousseff, o ministro Franklin Martins e o próprio ministro Vannuchi, as críticas arrastaram na sua cauda todas as demais críticas referidas anteriormente. Tão contundentes foram as críticas e as tensões entre o Ministério da Defesa e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos que o governo se viu constrangido a rever os termos de criação da Comissão Nacional de Verdade.
Se, com exceção do domínio do direito à memória, existem linhas de continuidade e de evolução entre as três edições do Programa Nacional de Direitos Humanos, por que tanta celeuma? O que explicam essas reações tão duras, que os programas anteriores não conheceram?

RAZÕES DA POLÊMICA
Certamente, a introdução do tema memória e verdade é um dos motivos9. Entre outras questões sensíveis à polarização político-ideológica, a apuração de responsabilidade pelas graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar permanece um divisor de águas. Neste domínio, o corporativismo mantém-se forte a despeito da sucessão geracional e da renovação dos quadros militares. Aparentemente, não há fissuras, tampouco a geração de novos comandantes parece inclinada a rever sua história - a história dos vencedores, como costumam dizer -, o que poderia abrir as portas, para além das reparações aceitas com certa resistência, para a responsabilização e punição daqueles diretamente envolvidos na repressão, e turvar imagens socialmente construídas. A ausência de uma justiça de transição, logo após o retorno à democracia, contribuiu para a persistência de tabus - isto é, interdição de se falar livremente e em público a respeito de temas "delicados" ou "perigosos", de abordar zonas de conflitos não resolvidos ou superados.
A ausência de uma justiça de transição contribuiu igualmente para que esses temas - e talvez mesmo não seja menos verdadeiro para outros como a descriminalização do aborto, a união civil entre casais do mesmo sexo, a adoção por casais homoafetivos, o controle social da mídia - fossem abordados segundo um estilo, por assim dizer, direto, abrupto e em direção ao confronto. Esse é, ou era, em grande medida, um estilo de fazer política muito próximo do partido que elegeu o presidente Lula. Como se sabe, os vínculos do PT com movimentos sociais são embrionários. A idéia de democracia direta, baseada em amplas consultas populares, com destacada organização e participação de delegados e representantes, com assento em conselhos consultivos e diretivos, com elevada capacidade de traduzir reivindicações em regulamentos e planos de ação, sempre esteve identificada com este partido e seus militantes. Não raro, este estilo de poder caminhou no sentido de confrontação de idéias e posições, de que resultaram protestos coletivos sob as mais distintas formas (das greves e manifestações de rua, às campanhas partidárias e obstruções parlamentares).
No poder, sob a liderança do presidente Lula e com governabilidade assegurada por um leque de alianças - da extrema direita à extrema esquerda -, esse estilo de fazer política não é mais hegemônico. Talvez, mais do que o governo FHC, que dependeu de uma aliança majoritária entre PSDB e DEM, partidos cuja imersão nos movimentos sociais é rarefeita, o governo Lula é flagrantemente menos "uniforme" em seu perfil do que talvez pareça. Embora a unidade no interior de governos que dependem de alianças entre partidos com perfil ideológico distinto seja quase um mito, é certo que neste governo ela aparece mais vulnerável ao loteamento interno, à disputa entre ministérios, ao encastelamento de interesses - e tudo isso a despeito das virtudes reconhecidas do presidente em mediar conflitos e alcançar consensos. Não é o caso de repertoriar os principais embates. Basta apenas lembrar os confrontos entre os Ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente e, mais recentemente, entre o Ministério da Defesa e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos em torno do lançamento do PNDH-3.
Dadas as suas características e suas relações contidas com os movimentos sociais, o governo FHC tinha condições políticas mais favoráveis para exercer com pudor a oportunidade política de discutir temas e questões delicados, como se viu, ainda que isto gerasse protestos e críticas de movimentos sociais, ligados ou não ao PT. Embora livres, as consultas populares produziam reivindicações que eram politicamente tratadas. Evitou-se, o quanto possível, confrontos, conquanto as críticas fossem, a par de inevitáveis, necessárias. Em matéria de direitos humanos, atravessou oceanos sem grandes turbulências.
Não é de se esperar que os movimentos de defesa de direitos sejam contidos. A paixão lhes é inerente, sobretudo quando se trata de colocar, lado a lado, como se fosse um acerto de contas, as heranças do passado e as tarefas do futuro. Todavia, essa estreita ligação entre assembléias e decisões políticas, quando transportada para a esfera governamental, não pode deixar de trazer consigo um turbilhão de críticas. As mais exageradas viram no PNDH-3 a substituição da carta constitucional, o prenúncio de uma ruptura institucional ou a anulação do papel exercido nas democracias pelo parlamento, este espaço onde os representantes do povo votam as leis e referendam programas de governo. Quando, além da memória e da verdade, veio à tona o tema do "controle social" da mídia, o estopim estava detonado. O fantasma do estatismo de esquerda veio novamente assombrar mentes e acender espíritos vigilantes contra "ideais sepultados com lágrimas". Nomais, a conjuntura pré-eleitoral cumpriu seu papel, tornando o espaço político mais sensível e mais inclinado ao confronto do que à negociação. Assim, também ressuscitou o lado conservador da sociedade brasileira, em matéria de hábitos e costumes, suas tradicionais dificuldades de aceitar diferenças, de conviver com novos padrões de relacionamento, menos hierarquizados, menos sujeitos a regras fixas e rígidas.
As críticas ao PNDH-3 são bem-vindas, porque necessárias à vida democrática. As polêmicas revelaram-se exageradas. Há mais continuidade entre as três edições do Programa Nacional de Direitos Humanos do que rupturas. Pensados na Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena, esses programas foram concebidos como instrumento capaz de conferir maior unidade e coerência à proteção e à promoção desses direitos. Articulam diferentes e múltiplas iniciativas, em torno de objetivos comuns e metas programáticas, conferindo responsabilidades a agentes e agências. Não pretendem substituir os instrumentos tradicionais de fazer política institucional, tampouco os espaços onde a política é debatida, negociada e as leis são votadas. É curioso, aliás, que as críticas não tenham se detido em um quesito presente nas três edições:a exigência de monitoramento do programa, que deve ser feito periodicamente. Esse é, de fato, o espaço da crítica. É nele que se pode confrontar o ideal e o real, o que se propôs e o que se fez, avanços e recuos. É por meio do monitoramento que os governos ficam sujeitos a cobranças e - mais do que isto - vulneráveis em suas tarefas de proteger a espinha dorsal da constituição política brasileira.


Recebido para publicação em 2 de março de 2010.


SÉRGIO ADORNO é professor titular do Departamento de Sociologia (FFLCH), coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-CEPID-USP) e da Cátedra Unesco de Direitos Humanos, Educação para a Paz, Tolerância e Democracia.


[1] Abreu, K. "Direitos humanos ou gato por lebre?". Folha de S. Paulo, Opinião, 12/01/2010. [ Links ]
[2] Silva Martins, I. G. "Guerrilha e redemocratização". Folha de S. Paulo, Tendências/Debates, 22/01/2010. [ Links ]
[3] A Cúpula do Milênio das Nações Unidas teve lugar em Nova York, de 6 a 8 de setembro de 2000. Resultou na Declaração do Milênio das Nações Unidas (2000), que estabeleceu metas para redução da miséria, da pobreza e das desigualdades sociais. Contempla metas para redução da incidência de epidemias e endemias, da mortalidade infantil e mortalidade materna, da proporção de pessoas vivendo com rendimentos que a classificam como miseráveis e pobres; e para expansão da alfabetização (feminina e masculina), do acesso à água e ao saneamento básico, de acesso ao telefone e ao computador. Ver Biblioteca Virtual de Direitos Humanos (USP), <http://www.direitoshumanos.usp.br>.
[4] A Declaração da Conferência Mundial de Viena recomendou que cada Estado considerasse a oportunidade de elaboração de um plano de ação nacional voltado para promoção e proteção dos Direitos Humanos. Em outras palavras, no âmbito da ONU, reconhecia-se esse plano como política pública. Ao mesmo tempo, a Declaração pondera a responsabilidade dos Estados na implementação dos Direitos Humanos, particularmente quando envolvem convenções internacionais firmadas. Nessa medida, os Programas são tanto planos governamentais como políticas de Estado.
[5] Nunca é demais lembrar, o lançamento deu-se durante conjuntura bastante conturbada: a do trauma nacional motivado pelo massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará.
[6] A Constituição de 1988 é denominada "cidadã" porque, pela primeira vez na história republicana, não se limitou a enunciar formalmente direitos. Além de estender o elenco dos direitos individuais e coletivos, inscrevê-los no terreno dos direitos humanos, indicou instrumentos para sua garantia e efetividade. Os instrumentos ampliaram a participação dos cidadãos na formulação e na implementação de políticas públicas, através por exemplo dos conselhos consultivos e deliberativos.
[7] Regulamentado pela Lei nº 8389/91.
[8] A noção de controle social, referida nos programas, é ambígua. Quem deve exercer o controle social e em que consiste? É a sociedade que, por meio do debate e da crítica, acompanha a veiculação de notícias a respeito de direitos humanos, como, por exemplo, a Associação Nacional dos Direitos da Criança (Andi) monitora as informações que circulam sobre crianças e adolescentes? Ou será designado um órgão governamental para exercer essa tarefa, fundado em regulamentos?
[9] Por certo, um tratamento mais denso e completo desta análise exigiria considerar as mudanças que se verificaram no domínio dos conflitos sociais, tanto na sociedade brasileira como nas esferas internacionais que podem ter reascendido a polarização entre defensores e críticos dos direitos humanos.



DISPONÍVEL: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002010000100001&lang=pt

quarta-feira, 27 de junho de 2012

A RECONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: A CONTRIBUIÇÃO DE HANNAH ARENDT

A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt

Celso Lafer

"MUITAS COISAS sabe a raposa; mas o ouriço uma grande". A partir deste verso do poeta grego Arquíloco, Isaiah Berlin propôs sua conhecida classificação de escritores e pensadores. Os ouriços seriam aqueles que tudo referem a uma visão unitária e coerente, a qual opera como um projeto organizador fundamental de tudo o que pensam. Tendem, portanto, a uma perspectiva centrípeta e monista da realidade. As raposas seriam aqueles que se interessam por coisas várias, perseguem múltiplos fins e objetivos, cuja interconexão, ademais, não é nem óbvia nem explícita. A tendência que aí se manifesta é centrífuga e pluralista.

A classificação ouriço/raposa apresenta, como qualquer dicotomia, o risco da simplificação, mas pode ser um ponto de partida para análises extremamente fecundas. É o caso, se tiver como nota um distinguo, ou seja, uma capacidade heurística de indicar diferenças e dissimilitudes. Esta capacidade, como aponta Hobbes, é um ingrediente do discernimento indispensável para um bom julgamento. A qualidade deste juízo tende a aumentar (diria eu, como raposa) se, adicionalmente, a dicotomia não partir de uma visão taxativa de duas partes incomunicáveis, num aut/aut que absolutiza a diferença, mas for concebida como pólos de um contínuo com função pluralista voltada para iluminar uma realidade ontologicamente complexa. É nesta linha, seguindo a lição metodológica de Norberto Bobbio, que me valerei da dicotomia raposa/ouriço para discutir a contribuição de Hannah Arendt para a temática dos direitos humanos, fruto de uma reflexão sobre o significado do totalitarismo.

* * *

Hannah Arendt pensadora é tanto ouriço quanto raposa. No que toca ao tema dos direitos humanos, ela é um ouriço no diagnóstico e na avaliação, ao identificar na ruptura trazida pela experiência totalitária do nazismo e do stalinismo a inauguração do tudo é possível. O tudo é possível levou pessoas a serem tratadas, de jure e de facto, como supérfluas e descartáveis.

Tal fato contrariou frontalmente os valores consagrados da Justiça e do Direito – valores voltados a evitar a punição desproporcional; a distribuição não-eqüitativa de bens e situações; o descumprimento das promessas e compromissos (pacta sunt servanda).

Disso resultou o esfacelamento dos padrões e categorias que, com base na idéia de um Direito Natural, constituíam o conjunto da tradição ocidental a qual havia historicamente feito da pessoa humana um valor-fonte da experiência ético-jurídica. Conseqüentemente, disso adveio também o hiato entre o passado e o futuro. Esse hiato gera constantes perplexidades no presente, já que a tradição – inclusive a do pensamento jurídico – não nos oferece critérios para a ação futura, nem conceitos para o entendimento dos acontecimentos passados.

Ela é raposa, por sua vez, na sua percepção da realidade – que vê como ontologicamente complexa e rica nas suas particularidades e contingências – e na sua proposta de reconstrução, após a ruptura já diagnosticada. Tal proposta fundamenta-se em uma retomada crítica do pensamento ocidental, que almeja o exame das condições políticas e jurídicas que permitam assegurar um mundo comum. Um mundo marcado pela pluralidade e pela diversidade e vivificado pela criatividade do novo, o qual, através do exercício da liberdade inerente à visão arendtiana de natalidade, impediria o ressurgimento de um novo estado totalitário de natureza.

No mundo contemporâneo continuam a persistir situações sociais, políticas e econômicas que, mesmo depois do término dos regimes totalitários, contribuem para tornar os homens supérfluos e sem lugar num mundo comum. Entre outras tendências, menciono a ubiqüidade da pobreza e da miséria; a ameaça do holocausto nuclear; a irrupção da violência, os surtos terroristas, a limpeza étnica, os fundamentalismos excludentes e intolerantes.

Cabe, igualmente, salientar que a coincidência entre a explosão demográfica e a descoberta de novas técnicas aponta para a possibilidade terrível de que segmentos inteiros da população possam se tornar descartáveis do ponto de vista da produção. Em síntese, continua relevante e atual a preocupação de Hannah Arendt enquanto ouriço, pois os seres humanos têm múltiplas razões para não se sentir nem à vontade nem em casa no mundo. Daí o interesse de um diálogo com seu pensamento e com as pistas que a sua dimensão de raposa oferecem para uma reflexão sobre as condições de possibilidade de aprimorar a convivência coletiva através da asserção dos direitos humanos.

Foi o que tentei fazer no meu livro A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt (São Paulo, Cia. das Letras, 1988), do qual este texto é uma sinopse aggiornata. Devo, no entanto, esclarecer que, sendo fragmentária a reflexão arendtiana sobre os direitos humanos, o diálogo que conduzi e conduzo com o seu pensamento se baseia em uma ampla liberdade. Esta liberdade encontra precedente e pretexto na própria maneira como Hannah Arendt repensou os clássicos e, por exemplo, apropriou-se livremente da Crítica do juízo de Kant, fazendo-a fertilizar uma filosofia política distinta mas não incompatível com uma visão kantiana. Sigo, assim, o selbstdenken que ela tanto apreciava em Lessing e que com ela aprendi quando tive o privilégio de ser seu aluno na Universidade de Cornell nos Estados Unidos.

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Para Hannah Arendt, a ruptura no plano jurídico surge quando a lógica do razoável que permeia a reflexão jurídica não consegue dar conta da não-razoabilidade que caracteriza uma experiência como a totalitária. Esta não resultou de uma ameaça externa, mas foi gerada no bojo da própria modernidade, como um desdobramento inesperado e não-razoável de seus valores.

O totalitarismo, em suma, é uma proposta inédita de organização da sociedade que escapa ao senso comum (sensus communis) do estar entre os homens (inter-homines esse), posto que, desconcertante para qualquer medida ou critério razoável de Justiça tradicionalmente relacionado à punição proporcional ao ato punível; a distribuição eqüitativa de bens e situações e a boa-fé inerente ao pacta sunt servanda. É, com efeito, uma nova forma de governo que, ao almejar a dominação total através do uso da ideologia e do emprego do terror para promover a ubiqüidade do medo, fez do campo de concentração o seu paradigma organizacional. Fundamenta-se, assim, no pressuposto de que os seres humanos, independentemente do que fazem ou aspiram, podem, a qualquer momento, ser qualificados como inimigos objetivos e encarados como supérfluos para a sociedade. Tal convicção explicitamente assumida pelo totalitarismo, de que os seres humanos são supérfluos e descartáveis, representa uma contestação frontal à idéia do valor da pessoa humana enquanto valor-fonte da legitimidade da ordem jurídica, como formulada pela tradição, senão como verdade pelo menos como conjectura plausível da organização da vida em sociedade.

Daí a necessidade de precisar como ocorreu especificamente essa ruptura no plano jurídico e quais são algumas das respostas possíveis a tal situação.

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O valor da pessoa humana como valor-fonte da ordem da vida em sociedade encontra a sua expressão jurídica nos direitos humanos. Estes foram, a partir do século XVIII, positivados em declarações constitucionais. Tais positivações buscavam, para usar as categorias arendtianas, a durabilidade do work do homo-faber, através de normas da hierarquia constitucional. Tinham como objetivo tornar aceitável, ex parte populi o estar entre os homens (o inter homines esse) em sociedades que se caracterizariam pela variabilidade do Direito Positivo – a sua dimensão de labor – requerida pelas necessidades da gestão do mundo moderno, tal como percebidas pelos governantes.

O elenco dos direitos humanos contemplados pelo Direito Positivo foi se alterando do século XVIII até os nossos dias. Assim caminhou-se historicamente dos direitos humanos de primeira geração – os direitos civis e políticos de garantia, de cunho individualista voltados para tutelar a diferença entre Estado e Sociedade e impedir a dissolução do indivíduo num todo coletivo – para os direitos de segunda geração – os direitos econômicos, sociais e culturais concebidos como créditos dos indivíduos com relação à sociedade, a serem saldados pelo Estado em nome da comunidade nacional. O processo de asserção histórica das duas gerações de direitos humanos, que são direitos de titularidade individual, foi inspirado pelos legados cosmopolita e universalista do liberalismo e do socialismo.

Tal processo ocorreu, no entanto, na moldura ex parte populi da soberania nacional, consoante o modelo da Revolução Francesa, ou seja, foi conjugado no âmbito de um espaço que consagrava um direito popular de titularidade coletiva: o do princípio das nacionalidades. Este princípio foi substituindo o princípio dinástico dos regimes monárquicos enquanto critério do crescente reconhecimento internacional da legitimidade da soberania.

A convergência entre os direitos humanos e os direitos dos povos baseava-se no pressuposto implícito de que o padrão de normalidade era a distribuição, em escala mundial, dos seres humanos entre os Estados de que eram nacionais – um padrão colocado em questão pelas realidades históricas do primeiro pós-guerra. Foi o surgimento em larga escala dos refugiados e apátridas – os expulsos da trindade Povo-Estado-Território – que assinalou, com a emergência do totalitarismo, o ponto de ruptura cujo cerne foi a dissociação entre os direitos humanos e os direitos dos povos.

De fato, à medida em que os refugiados e apátridas se viram destituídos, com a perda da cidadania, dos benefícios do princípio da legalidade, não puderam se valer dos direitos humanos, e não encontrando lugar – qualquer lugar – num mundo como o do século XX, inteiramente organizado e ocupado politicamente, tornaram-se efetivamente desnecessários, porque indesejáveis erga omnes, e acabaram encontrando o seu destino e lugar natural nos campos de concentração.

A experiência histórica dos displaced people levou Hannah Arendt a concluir que a cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. Em resumo, é esse acesso ao espaço público – o direito de pertencer a uma comunidade política – que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos.

A construção de um mundo comum, baseado no direito de todo ser humano à hospitalidade universal (Kant) e contestado na prática pelos refugiados, pelos apátridas, pelos deslocados, pelos campos de concentração, só começaria a ser tornada viável – como aponta inicialmente Hannah Arendt em The rights of men. What are they? (1949) e desenvolve depois em The origins of totalitarianism – se o direito a ter direitos tivesse uma tutela internacional, homologadora do ponto de vista da humanidade. Nas palavras de Hannah Arendt, no fecho deste artigo de 1949: "This human right, like all other rights can exist only through mutual agreement and guarantee. Transcending the rights of the citizen – being the right of men to citizenship – this right is the only one that can and can only be guaranted by the comunity of nations". Em síntese, para usar uma linguagem contemporânea, à medida em que o direito a ter direitos se convertesse num tema global, de governança da ordem mundial, a transcender as soberanias, ex vi da inserção operativa de uma razão abrangente da humanidade.

As conseqüências e a atualidade da conclusão arendtiana foram reconhecidas pelo Direito Internacional Público contemporâneo, o qual passou a considerar a nacionalidade como um direito humano fundamental, além de buscar substituir as insuficiências do mecanismo de proteção diplomática pelas garantias coletivas, confiadas a todos os Estados-partes nas Convenções Internacionais dos Direitos Humanos.

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A situação de fato que criou as condições para o genocídio foi justamente o problema dos seres humanos supérfluos e como tais encarados, posto pela experiência totalitária e juridicamente ensejado pela privação da cidadania. Aqueles que se viram reduzidos a "mera existência em todos os assuntos de interesse público" foram arrebanhados, por falta de um lugar no mundo, nos campos de concentração.

O genocídio não é um crime contra um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. É um crime que ocorre, lógica e praticamente, acima das nações e dos Estados – das comunidades políticas. É um tema global, pois diz respeito ao mundo como um todo. Trata-se, portanto, de um crime contra a humanidade que assinala, pelo seu ineditismo, a especificidade da ruptura totalitária. A ruptura totalitária levou, assim, no pós-Segunda Guerra Mundial, à afirmação de um Direito Internacional Penal. Este procura tutelar interesses e valores de escopo universal, cuja salvaguarda é fundamental para a sobrevivência não apenas de comunidades nacionais, de grupos étnicos, raciais ou religiosos minoritários, mas da própria comunidade internacional. Entre tais valores e interesses está a repressão ao genocídio.

Este é um ingrediente básico das conclusões de Hannah Arendt no seu livro sobre o processo Eichmann. O crime de genocídio, administrado por Eichmann e perpetrado no corpo do povo judeu, é um crime contra a humanidade porque é uma recusa frontal da diversidade e da pluralidade – características da condição humana na proposta arendtiana de um mundo plural. A fundamentação da repressão ao genocídio na visão arendtiana baseia-se, assim, na sua análise da condição humana in The human condition e nos princípios kantianos, por ela esposados nas suas Lectures on Kant's political philosophy, da hospitalidade universal e da confiança recíproca, articulados no Projeto de paz perpétua. A hospitalidade universal vem a ser um princípio de jus cogens de ordem internacional, pois o fato de o genocídio ter ocorrido é um precedente que ameaça a ordem pública internacional. Nenhum povo da terra pode se sentir razoavelmente seguro de sua existência e sobrevivência e, portanto, à vontade e em casa no mundo, na medida que se admite o genocídio como uma possibilidade futura, pois esta possibilidade compromete o também kantiano princípio da confiança recíproca.

Cabe aqui observar que a análise de Hannah Arendt – voltada para a natureza e a tipificação do crime de genocídio, e não movida pelo sofrimento das vítimas – foi criticada por falta de compaixão e tida como carência de amor ao povo judeu. Na verdade está de acordo com a tradição judaica, bíblica e talmúdica, a qual afirma concomitantemente a unidade do gênero humano e o pluralismo das nações. Dessa maneira, é uma tradição que oferece igualmente elementos para a tipificação do crime de genocídio, compatíveis com os propostos por Hannah Arendt.

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O totalitarismo, na exata medida que representou uma proposta de organização do Estado e da Sociedade, que escapa ao sensus communis de qualquer critério razoável de Justiça, tornou a propor em novos termos o tema clássico da resistência à opressão e, por via de conseqüência, o da obrigação política. É a partir desta mise-au-point que cumpre analisar inicialmente a contribuição de Hannah Arendt ao alcance do direito de associação. O direito de associação é um ingrediente indispensável à análise do poder como agir em conjunto e, conseqüentemente, ao por que poder e autoridade, que são conceitos distintos, não se confundem com violência. Daí flui, na minha leitura, a relação entre Direito e Poder na perspectiva de Hannah Arendt e o significado que se pode dar à desobediência civil com base no seu pensamento.

Como observou Habermas, Hannah Arendt, na sua reflexão, não se preocupou com a aquisição e a manutenção do poder, nem com o seu uso pelos governantes, mas sim com o que a isto antecede: a sua geração pelos governados. O potestas in populo ciceroniano, para ela, quer dizer o poder entendido como a aptidão humana para agir em conjunto. Daí a importância decisiva do direito de associação para uma comunidade política, pois é a associação que gera o poder de que se valem os governantes. Por isso, em última instância, a questão da obediência à lei não se resolve pela força, como afirma a tradição, mas sim pela opinião e pelo número daqueles que compartilham o curso comum de ação expresso no comando legal. Em síntese, a pergunta essencial não é por que se obedece a lei, mas por que se apoia a lei, obedecendo-a.

O poder não necessita de justificação, mas requer legitimidade que Hannah Arendt vincula à autoridade, categoria que ela examina em Between past and future, mostrando as suas origens romanas. Deriva do início da ação conjunta, do ato de fundação da comunidade política (ab urbe condita).

O tema da gênese do nós de uma comunidade política, que Hannah Arendt também enfatizou em Willing (o segundo volume de The life of the mind) – chamando atenção para a discussão que Kant empreende na Crítica da razão pura a respeito do início espontâneo de uma nova série de coisas ou situações – é relevante para o entendimento, no mundo moderno, da Revolução como um evento sem precedentes.

De fato, foi só a partir da Revolução Francesa que uma renovatio ex parte populi ab imis fundamentis, de natureza interna, passou a ser encarada como evento-matriz, transformador e instaurador da autoridade, deixando de ser vista como revolta e rebeldia desagregadoras da ordem.

É a importância desse evento-matriz que carrega no seu bojo a esperança do inaugural contida na fundação do nós de uma nova comunidade política (mas também os riscos dos seus descaminhos, examinados por Hannah Arendt em On revolution), o que levou a teoria política a atribuir legitimidade à noção de soberania popular e ao princípio das nacionalidades.

O Direito Internacional Público Contemporâneo, ao tutelar o princípio de autodeterminação dos povos, como critério de independência e autonomia dos Estados, chancela a importância atribuída por Hannah Arendt à fundação do nós de uma comunidade política e reconhece a esperança que pode trazer a liberação de uma antiga ordem colonial ou baseada em impérios dinásticos por meio da liberdade do agir conjunto.

Poder e Autoridade são fenômenos plurais de natureza coletiva, distintos, pela sua natureza, da força, do vigor e da violência, que se colocam no singular. Daí a crítica de Hannah Arendt à criatividade da violência no campo da política, em conhecido ensaio, recolhido em Crisis of the republic.

A violência tem caráter instrumental e, no mundo contemporâneo, o seu alcance viu-se multiplicado pela técnica. De acordo com Hannah Arendt, a violência ex parte populi, no campo da política, é uma resposta à hipocrisia dos governantes que converte governados engagés em enragés. Tal resposta pode representar uma resistência à opressão. Não gera, no entanto, poder. Este sempre resulta do agir conjunto, que se baseia no direito de associação e requer a comunicação entre as pessoas no espaço público e, portanto, o direito à informação como adiante se verá. Por isso, poder não se confunde com força e violência e estas, quando deixam de ser reação e se convertem em estratégia, são destrutivas da faculdade do agir e, conseqüentemente, impeditivas do poder que gera e vivifica uma comunidade política.

Depois dessa crítica aos meios violentos da resistência à opressão, meios que apenas destroem a autoridade e o poder mas não os criam ou os substituem, cabe sublinhar, inspirado na reflexão de Hannah Arendt em The human condition, a complementaridade entre Direito e Política para o entendimento da obrigação política. O Direito é constitutivo e regulador da ação política, requer consenso e se fundamenta na promessa, categoria que Hannah Arendt reelabora na sua análise de ação juntamente com a do perdão.

A promessa estabelece um limite estabilizador necessário à imprevisibilidade e à criatividade da ação. Daí a importância, na interação humana, do pacta sunt servanda ciceroniano, no qual se fundamenta o Direito. Uma constituição – como mostra Hannah Arendt na análise da experiência norte-americana que, em On revolution, ela discute como metáfora exemplar do poder constituinte originário – tem duas dimensões que esclarecem a relação entre Direito e Política de maneira mais concreta. São elas a da construção pelo homo faber do espaço público, e a da obtenção do acordo para o agir conjunto, por meio da promessa. A Constituição é, portanto, um construído convencional, no qual a contingência do consenso, cuja autoridade deriva do ato de fundação, é uma virtude, pois a verdade da lei repousa na convenção criadora de uma comunidade política, que enseja a gramática da ação e a sintaxe do poder.

E, porque as comunidades políticas não são produto do pensamento mas resultado da ação – da vita activa –, as constituições não têm existência independente. Não são apenas uma obra de técnica do homo faber – do grande legislador. Estão sujeitas a outros sucessivos atos e dependem deles para subsistir. É por essa razão que é preciso preservar as condições para a gramática da ação e para a sintaxe do poder, a fim de que haja obediência à lei.

É possível resgatar tal dimensão da obrigação política no mundo contemporâneo? Um mundo avassalado pela destrutividade em larga escala da violência; no qual a Lei se esvai no metabolismo do labor da administração da sociedade e onde todos experimentam a crescente multiplicação das possibilidades da opressão que corrói a autoridade do Direito?

Uma resposta esperançosa a esses dilemas, que dificultam a afirmação de uma obrigação política autêntica, permeia a reflexão arendtiana. Ela passa pela criatividade da política, pelo potencial do novo – de um initium agostiniano – que o agir conjunto, baseado na associação entre os homens no espaço público, oferece ao desafio da ruptura. É o que Hannah Arendt explora, com a sua capacidade de pensar teoricamente a partir de situações concretas, no ensaio sobre a experiência norte-americana de desobediência civil.

Nesse ensaio, ela mostra como a desobediência civil é uma forma extrema de dissentimento que, ao se exprimir por meio da associação, fala a linguagem da persuasão, resgata a faculdade de agir, gera poder pela ação conjunta de muitos e se coloca na esfera do interesse público.

Hannah Arendt entende que, em situações-limite – uma categoria de existencialismo, de inspiração jasperiana, importante na sua reflexão –, a desobediência civil é legítima e pode ser bem sucedida na resistência à opressão. Foi o caso por ela comentado em Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil, da resistência dos dinamarqueses, através da desobediência civil, à política anti-semita do invasor nazista. Foi o que conduziu a luta de Ghandi. Foi também o caso da luta contra a segregação racial e da resistência à guerra do Vietnã, a partir das quais ela refletiu sobre a desobediência civil no ensaio mencionado, que integra Crisis of the republic. De fato, nesses casos, a desobediência civil, sendo a expressão de um empenho político coletivo na resistência à opressão, não se constitui como rejeição da obrigação política, mas a sua reafirmação.

A análise que Hannah Arendt faz da desobediência civil é criativa por se afastar da lógica do razoável, que não dá conta das realidades contemporâneas. Devo ressalvar, também, que esta análise carece de standards que permitam identificar situações-limite. Tal carência coloca problemas sérios, pois, sem estes standards, a prática generalizada da desobediência civil pode levar à anarquia e à ingovernabilidade. De fato, no contexto de uma legitimidade centrífuga e tópica que caracteriza o mundo contemporâneo, em parte resultado de uma reação à ruptura totalitária, o particularismo compromete a idéia de unidade que preside o conceito de comunidade política na elaboração teórica, o qual vai da polis grega ao Estado Moderno e é fundamental para a governabilidade. Este ponto é importante, pois a defesa da anarquia não é a posição arendtiana, que não pretende o desaparecimento do poder e da autoridade, mas a sua recuperação.

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Aludo brevemente a outro tópico da reconstrução dos direitos humanos que se pode extrair do pensamento de Hannah Arendt e tem também a sua origem na reflexão sobre a experiência totalitária. Refiro-me ao que ela aponta nas conclusões do The origin of totalitarianism sobre o "isolamento" que leva à impotência, frustrando a capacidade humana para ação e o poder na esfera pública, e sobre a "desolação" (loneliness), que destrói a vida privada, exacerba o desenraizamento, impede o pensamento e reduz a condição humana exclusivamente ao metabolismo de animal laborans. Impedir o isolamento e a desolação permite fundamentar o direito à informação e o direito à intimidade, com base num distinguo entre o público e o privado.

Para Hannah Arendt – como ela explicita em The human condition – o público é simultaneamente o comum e o visível. Daí a importância da transparência do público por meio do direito ex parte populi à informação, ligado à democracia, como forma de vida e de governo, que requer uma cidadania apta a avaliar o que se passa na res publica para dela poder participar. Sem o direito à informação, não se garante a sobrevivência da verdade factual – a verdade da política –, na qual se baseia a interação e o juízo político, abrindo-se uma margem incontrolada para a mentira e os segredos conservados pelos governantes nas arcana imperii. Tanto as mentiras quanto os segredos corrompem o espaço público. A transparência do público através de uma informação honesta e precisa é, portanto, condição para o juízo e a ação numa autêntica comunidade política.

Para Hannah Arendt, coerente com o seu entendimento do público como o comum e o visível, o privado, na dimensão da intimidade, é aquilo que é exclusivo do ser humano na sua individualidade e, não sendo de interesse público, não deve ser divulgado.

A intimidade, como um direito autônomo da personalidade, foi articulada conceitualmente por Rousseau como resposta do indivíduo ao conformismo nivelador da sociedade, aquilo que Hannah Arendt qualifica como "o surgir do social". Na fundamentação de sua tutela, entendo que Hannah Arendt oferece como critério para limitar o direito à informação o princípio de exclusividade. Esse critério, articulado nos seus textos Reflections on Little Rock e Public rights and private interests, é compatível com os preceitos kantianos de publicidade, por ela esposados, à medida em que a intimidade enquanto the right to be let alone não envolve direitos de terceiros.

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A reconstrução do tema dos direitos humanos elaborada com base em desenvolvimento ou sugestões contidas na obra de Hannah Arendt não leva a um sistema. Permite, no entanto, identificar problemas que são importantes e se tornaram relevantes em virtude da ruptura totalitária e dos seus desdobramentos. A identificação de tais problemas resulta de um juízo, uma faculdade da mente com que Hannah Arendt se preocupou – é, na verdade, um tema recorrente de sua reflexão – mas sobre a qual não chegou a escrever, e que seria o fecho de The life of the mind, seu último livro, publicado postumamente.

O juízo, entendido kantianamente como a faculdade de pensar o particular contido no geral, é um dos temas fundamentais do Direito, por ser uma das características da experiência jurídica moderna o processo através do qual o caso concreto é qualificado e subsumido pela norma geral. A lógica do razoável no pensamento jurídico explorou amplamente, em matéria de hermenêutica jurídica, as dificuldades da subsunção. Entretanto, sempre partiu do pressuposto de existir um geral, ao qual se possa razoavelmente recorrer por meio de interpretação.

Precisamente porque articulou, como um ouriço, a ruptura que dissolveu o geral, Hannah Arendt se deu conta da inexistência de um sistema de universais para aquilo que desborda da lógica do razoável. Por isso, toda a sua reflexão tem como horizonte o problema de como julgar um particular, para o qual não existe previamente o dado de um universal. Foi por essa razão que, diante das dificuldades do juízo determinante em situações-limite provenientes da impossibilidade de se aplicar uma regra universal de entendimento a um caso particular, ela explorou o campo dos juízos reflexivos e raciocinantes. Estes entreabrem a faculdade de pensar o particular, através de sua validade exemplar, que pode ser realçada e comunicada.

O juízo reflexivo e raciocinante – que Kant examina na Crítica do juízo – na análise da estética foi o ponto de partida heurístico de Hannah Arendt para unir a teoria à prática na sua proposta de reconstrução, como se vislumbra nas suas Lectures on Kant's political philosophy, também publicadas postumamente sob os cuidados de Ronald Beiner.

Tal proposta harmoniza-se com a sua visão de raposa perante um mundo percebido centrifugamente, pois a importância dos juízos reflexivos e raciocinantes deriva da relação problemática entre o universal e o particular que a ruptura tornou evidente. Em síntese: precisamente porque o juízo, no mundo contemporâneo, não pode ser reduzido a uma fórmula inequívoca de subsunção é que se pode falar no seu peso e na sua responsabilidade.

Hannah Arendt assumiu, com a sua obra, o ônus e a responsabilidade de juízos reflexivos e raciocinantes, que são esforços de mediação entre o particular e um universal fugidio. Ela nos convida a fazer a mesma coisa. Não é fácil aceitar tal convite, inclusive por força das limitações teóricas e práticas ao que se pode fazer com as indicações por ela deixadas a propósito do juízo. Estas indicações, no entanto, são suficientes para fundamentar por que uma reconstrução pós-totalitarismo do tema dos direitos humanos inspirada em Hannah Arendt só poderia ser tópica – e não sistemática –, mas que existe indiscutível validade nos problemas investigados com base em sua reflexão.

Com efeito, e resumindo para a seguir concluir, quais são os temas de direitos humanos discutidos neste texto, voltados para impedir a reemergência de um novo estado totalitário de natureza, e heuristicamente inspirados por um diálogo livre com o pensamento de Hannah Arendt? São eles:

  • a cidadania concebida com o "direito a ter direitos", pois sem ela não se trabalha a igualdade que requer o acesso ao espaço público, pois os direitos – todos os direitos – não são dados (physei) mas construídos (nomoi) no âmbito de uma comunidade política;

  • a repressão ao genocídio concebido como um crime contra a humanidade e fundamentado na tutela da condição humana da pluralidade e da diversidade que o genocídio visa destruir;

  • o estudo da obrigação política em conexão: com o direito de associação como a base do agir conjunto e condição de possibilidade da geração de poder; com a dimensão de autoridade e legitimidade da fundação do nós de uma comunidade política e a sua relação com o direito à autodeterminação dos povos; com o poder da promessa e conseqüentemente com o pacta sunt servanda enquanto base da obediência ao Direito; com a resistência à opressão, através da desobediência civil, que em situações-limite pode resgatar a obrigação política da destrutividade da violência;

  • o direito à informação, como condição essencial para a manutenção de um espaço público democrático, e o direito à intimidade, indispensável para a preservação do calor da vida humana na esfera privada.

Todos estes temas são, penso eu, uma eloqüente e pertinente indicação da capacidade arendtiana de indicar caminhos teóricos a partir de problemas concretos. Daí os fermenta cognitionis dos tópicos abordados, derivados da experiência de ruptura, que revelam, pela sua validade exemplar, uma generalidade que de outra forma não poderia ser percebida.

Celso Lafer, professor titular de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, é chefe da missão do Brasil junto à onu em Genebra e ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil.

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