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sexta-feira, 5 de junho de 2015

Caso Fifa, mesmo que comprovado, não pode ser considerado crime no Brasil






No dia 27 de maio, sete dirigentes da Fifa foram presos na Suíça a pedido das autoridades dos Estados Unidos. Todos eles acusados de corrupção. Segundo a investigação conjunta do departamento de Justiça dos Estados Unidos, do FBI e do Internal Revenue Service (IRS) pelo menos duas gerações de dirigentes de futebol usaram suas posições para solicitar subornos de empresas esportivas por trocas de direitos comerciais sobre torneios. Pelo menos US$150 milhões foram usados nas transações investigadas.Ministro José Eduardo Cardozo, diz que PF vai investigar envolvimento de brasileiros no esquema.
Agência Brasil

Entre os presos estão o ex-presidente da CBF José Maria Marin e outros dois brasileiros: José Hawilla, dono da empresa de marketing esportivo Traffic, e José Margulies, dirigente da empresa Valente Corp. and Somerton. Diante das denúncias em série e devido ao envolvimento de brasileiros, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmou que a Polícia Federal brasileira, junto com o Ministério Público Federal, vão abrir uma investigação.

No entanto, aqui no Brasil não será possível a condenação dos envolvidos pelo crime de corrupção. Isso porque, segundo advogados, não há na legislação brasileira a tipificação do crime de corrupção entre entes privados, como é o caso da Confederação Brasileira de Futebol e a Fifa.

"O crime de corrupção, segundo está previsto em nossa legislação, está relacionado ao exercício de funções públicas. Portanto, os agentes da CBF não podem ser enquadrados", explica Conrado Almeida Corrêa Gontijo, do Corrêa Gontijo Advogados. O criminalista já havia levantado essa questão em artigo publicado na revista Consultor Jurídico, no qual explica detalhadamente a fragilidade do ordenamento jurídico brasileiro.

Ele explica que, de acordo com as atuais leis, não há o crime de corrupção entre entes privados. Sendo assim, ele explica que na hipótese de uma rede de tv pagar propina para uma entidade para ter direito de transmissão de determinado evento não é crime.Falta de legislação prevendo corrupção entre entidades privadas é duramente criticada por Lenio Streck.
Reprodução

O jurista e advogado Lenio Luiz Streck, do Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados, corrobora: "Marin deveria ter ficado por aqui e Blatter [presidente da Fifa] deve urgentemente vir para Pindorama e se candidatar à presidência da CBF! E Ricardo Teixeira [presidente da CBF] sabe o caminho das pedras. Sabe que ficando por aqui , com pequenas idas a algum paraíso fiscal e ficará livre. Veja: até o cara do Paraguai foi preso. A im(p)unidade brasileira está desmoralizada. Perdemos por W.O.!"

Os advogados alertam, no entanto, que é possível que as empresas sejam condenadas caso a investigação da Polícia Federal e do Ministério Público encontre outras ilicitudes especificadas na legislação.

O próprio ministro da Justiça fez essa ressalva ao anunciar as investigações. “Só podemos investigar delitos que sejam tipificados pela legislação brasileira. Se, no caso houver, e é bem provável que tenha, delitos configurados perante a legislação brasileira, a PF abrirá os inquéritos e fará as investigações rigorosas”, explicou Cardozo.

O delegado de Polícia Federal Luiz Eduardo Navajas explica que mesmo que as investigações encontrem transações financeiras sob uma aparente legalidade é possível investigar para buscar provas de que houve lavagem de dinheiro.

"Caso uma investigação comprove que valores enviados ao exterior retornem ao Brasil mesmo que sob aparente legalidade, nada impede sua apuração. De fato, a Lei 9.613/98, ao ser alterada pela Lei 12.683/2012 deixou de vincular a origem dos valores aos delitos arrolados como numerus clausus em seu artigo 1º, os quais agora não mais existem. Logo, a ocultação de valores obtidos em qualquer infração penal prevista em nossa legislação configura a Lavagem de Dinheiro".

Avanço na legislação
Na opinião do advogado Leonardo Neri Candido de Azevedo, coordenador da área civil e especialista em direito desportivo do Rayes & Fagundes Advogados Associados, o caso Fifa reflete uma questão importante e fundamental para o desenvolvimento do esporte no Brasil: a necessidade de um avanço na regulamentação para o devido controle social das organizações esportivas, adequando-se a estrutura jurídica dessas entidades, que, por sua vez, passaram por drástica transformação nas últimas décadas. “A modernização se faz necessária, haja vista que o negócio virou algo multibilionário, trazendo consigo peculiaridades que não são mais devidamente representadas pelos preceitos legais de uma associação. As entidades esportivas, atualmente, gerenciam um patrimônio da coletividade, sem o devido controle, por falta de evolução da legislação que remonta uma estrutura construída nos tempos ditatoriais”, comenta.

O especialista também sugere a criação de modelos incriminadores que sancionem os pactos ilícitos firmados entre particulares que resultem na apreensão dos corruptos em território nacional, sem a necessidade da comprovação do enquadramento das condutas às normas internacionais. “Além disso, é essencial ao desenvolvimento simultâneo da legislação penal privada, que coexista um modelo jurídico esportivo transparente com a realidade do esporte de hoje em dia. Ou seja, as associações esportivas não vivem mais de contribuições de seus filiados, bem como é imprescindível que recaiam sobre os dirigentes o ônus de suas ações”.

As mudanças na lei para incluir a corrupção entre empresas crime está na pauta da Congresso Nacional. O projeto de reforma do Código Penal, elaborado por uma comissão de juristas, prevê o crime. 

Pela proposta da comissão, a conduta reprimida será a seguinte: "exigir, solicitar, aceitar ou receber vantagem indevida, como representante de empresa ou instituição privada, para favorecer a si ou a terceiros, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de vantagem indevida para favorecer a si ou a terceiro, a fim de realizar ou omitir ato inerente a suas atribuições.”

Um parágrafo estabelece que nas mesmas penas incorre quem oferece, promete, entrega ou paga — direta ou indiretamente — vantagem indevida, ao representante da empresa ou instituição privada. Não é essencial para a caracterização da conduta que haja prejuízo à empresa.Caio Rocha, presidente do STJD, aponta que caso Fifa pode configurar alguma infração ética ou regulamentar.

Direito desportivo
O caso de pagamento de propina para dirigentes de entidades do futebol também não está previsto nas leis desportivas. De acordo comCaio César Vieira Rocha, presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, não há previsão para esta conduta específica. No entanto, ele aponta que, em tese, "o caso pode configurar alguma infração ética (agir contra a ética desportiva) ou regulamentar (agir contra disposição legal, regulamentar ou estatutária)".

Caio Rocha registra que "tudo isso ainda dependeria de ação da Procuradoria e da devida comprovação". Além disso, deve-se observar a cada caso se a Justiça Desportiva tem competência para julgar.

Especialista em Direito Desportivo, o advogado Mauricio Corrêa da Veiga, do Corrêa da Veiga Advogados, aponta também que o Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003) coíbe o estelionato desportivo, sendo esse considerado como fraude de resultado de competição esportiva. Nesse caso a pena é de reclusão de 2 a 6 anos.

"Particularmente, tendo em vista a ausência de uma previsão penal específica, entendo que este artigo pode ser aplicado, caso a 'corrupção' seja praticada no Brasil", afirma.

Como exemplo ele cita a hipótese de um dirigente desportivo (que não servidor público) que recebe dinheiro para favorecer determinada cidade para sediar evento desportivo. "Particularmente, entendo que ele está enquadrado no crime de estelionato desportivo, pois indiretamente tal conduta poderá adulterar resultado de partida ou competição (artigo 41-C e 41-E da Lei 10.671/03)", diz.



Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 5 de junho de 2015, 10h48

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Ouvidoria é instrumento fundamental para a cultura de transparência






Depois de longos séculos em que o poder era absoluto nas mãos dos reis e da Igreja Católica, na segunda metade do século XVIII, o mundo passou por profundas transformações políticas e sociais, que culminaram, ao final do processo, com a inserção do ser humano no eixo central de preocupação da civilização na nova era iluminista, com seus nortes democráticos e limitadores do poder.

Ao se tornar o poder participativo e transparente, deixaria de ser abusivo e totalitário, e, por isto, a transparência passaria a ser absolutamente fundamental para a consolidação do sistema democrático. A transparência seria o verdadeiro divisor de águas entre os antigos regimes totalitários e suas cortes para os novos governos democráticos. Aliás, Bobbio define a democracia como “o governo do poder público em público”. Assim, um governo democrático se distingue dos governos imperiais, ditatoriais ou tirânicos por sua visibilidade e transparência

O sistema de ouvidorias foi criado na Suécia em 1809, quando se registra a implantação constitucional do ombudsman, cuja missão era verificar a observância das leis pelos tribunais, com poderes de processar aqueles que cometessem ilegalidades ou negligenciassem o cumprimento de seus deveres

No Brasil, desde a Colonização Portuguesa, os Governos Gerais possuíam ouvidores, indicados pelo Rei de Portugal e que já naquela época promulgavam leis, estabeleciam Câmaras de Vereadores, atuavam como Comissários de Justiça e ouviam reclamações e reivindicações da população sobre improbidades e desmandos por parte dos servidores da Coroa.

A Ouvidoria, na sua compreensão atual — que não se confunde com aquela antiga figura do Ouvidor no Brasil Colonial, uma espécie de juiz ou auxiliar direto dos donatários das capitanias hereditárias — estabelece-se como um canal de manifestação do cidadão, configurando-se, assim, como um mecanismo de exercício da cidadania e meio estratégico de apoio à gestão das organizações, seja na melhoria da qualidade dos serviços oferecidos, seja para atender às crescentes necessidades de transparência, arejamento e revisão de processos impostas às organizações pela nova ordem social globalizada.

A primeira ouvidoria pública no Brasil foi instalada na cidade de Curitiba em 1985. Em São Paulo, em 1989, o jornal Folha de S.Paulo, de forma pioneira, instituiu a sua figura do Ombudsman. Na iniciativa privada, também se destacou o Grupo Pão de Açúcar, que em 1993 lançou seu ombudsman. Na área pública estadual paulista, surgiu em 1992 a ouvidoria do Procon, seguida pelas do IPEM em 1993, da Secretaria de Segurança Pública em 1995, e de um piloto na Secretaria da Saúde em 1996.

Hoje, o ouvidor tornou-se representante direto do cidadão, diferentemente dos tempos coloniais, quando controlava os súditos em prol do rei. Hoje, ele defende o cidadão e a pressão exercida sobre o ouvidor identifica o bom ou mau serviço do setor público ou privado.

Em São Paulo, com o advento da Lei Estadual 10.924, de 20 de abril de 1999, de defesa do usuário do serviço público, e o decreto 44.074, 1º de julho de 1999, que regulamenta a composição e define as competências das Ouvidorias de Serviços Públicos, o Estado de São Paulo estabeleceu que todas as organizações ligadas ao Estado tenham as suas Ouvidorias, formando uma rede, dentro da qual a mais antiga é a da Polícia, criada em janeiro de 1995, por meio de um decreto do então governador Mario Covas.

O princípio constitucional da publicidade e a nova cultura da transparência se fortaleceram com o advento da Lei 12.527/2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI), que regulamenta o direito, previsto na Constituição, de qualquer pessoa solicitar e receber dos Órgãos e Entidades públicos, informações públicas por eles produzidas ou custodiadas. A referida Lei entrou em vigor em 16 de maio de 2012.

No setor privado, por outro lado, observamos que as empresas percebem a necessidade de avançar além dos serviços básicos de ouvir e atender o consumidor e fortalecem as ouvidorias a fim de melhorar os produtos e serviços oferecidos aos clientes, garantindo a fidelização e imagem forte e diferenciada no mercado como empresa transparente e socialmente responsável, onde o ouvidor escuta as críticas dos clientes — muitas vezes insatisfeitos com o próprio serviço de atendimento ao consumidor — e as encaminha aos departamentos responsáveis para as providências cabíveis.

Esta nova figura do ouvidor passou a ser instrumento de garantia da personalização do atendimento e sinalização de certeza de que os problemas sejam resolvidos, funcionando como um representante do cliente dentro da empresa, recebendo também elogios, sugestões e críticas, apurando as manifestações apresentadas e propondo melhorias nos processos, visando mediar a solução de conflitos.

Apesar dos sensíveis avanços verificados, tanto na esfera privada como na pública, nosso marco legal da transparência (LAI) é recente, enquanto a Suécia tem sua lei desde 1766, o que talvez permita entender a notícia recente sobre a desativação de quatro presídios por falta de criminosos ou mesmo sua presença constante no topo do Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional, que coloca a Suécia no patamar de um dos países menos corruptos do mundo.

A ouvidoria é instrumento fundamental para a solidificação da cultura de transparência. Avancemos sem medo, pois Platão nos ensinou que podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro, mas a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz.



Roberto Livianu é promotor de Justiça em São Paulo, doutor em Direito Pela USP e idealizador e coordenador da campanha Não Aceito Corrupção.

Roberta Lídice é advogada, ouvidora certificada pela Associação Brasileira de Ouvidores e Ombudsman do Brasil (ABO).



Revista Consultor Jurídico, 3 de junho de 2015, 6h32

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Os "corpos do rei" e a segurança jurídica: o que esperar das cortes superiores?








É conhecida a elaboração de Ernest Kantorowicz que desenvolveu a teoria dos dois corpos do rei. De um lado, o corpo natural, calcado nas efemeridades humanas, na visão conjuntural e contingente inerentes ao agir e pensar humano. De outro lado, revela-se o corpo místico e político do rei, engendrado na idéia de verdade, legitimidade e perenidade. Esse quadro buscado por Kantorowicz na tradição medieval, metaforicamente, pode ser bem aplicado ao paradoxismo da segurança jurídica na contemporaneidade, nomeadamente nos litígios familiares.

Se, por um lado, a instabilidade do mundo nunca esteve tão evidente, com mudanças e relativizações de certezas a todo instante, por outro lado, nunca se ansiou tanto por um lócus de previsibilidade. Nessa equação quase que de oferta e procura, é certo que a previsibilidade jurídica que tanto se almeja vai ter seu preço deveras aumentado. E o ágio da segurança jurídica se materializa justamente no esforço que se exige daqueles que tem o dever de harmonizar as fontes e lidar, inafastavelmente, com as complexidades da hiper-modernidade.

Fato é que ao julgador fica a difícil tarefa de dar a melhor solução ao caso concreto, sem, com isso, extrapolar limites mínimos ou minar a já diminuta segurança jurídica existente. Neste contexto de incertezas, algumas medidas se apresentam para tentar garantir a previsibilidade possível ao sistema. Uma delas é a cada vez mais presente introdução dos precedentes no direito brasileiro, que acabou de se materializar por meio da sanção do novo Código de Processo Civil Brasileiro. Por certo, e muito compreensivelmente, há uma busca incessante bela estabilização. Entretanto, será mesmo que a mera introdução de um sistema de precedentes pode garantir a estabilidade desejada?

Não se pode negar o crescente diálogo entre as tradições jurídicas, de modo que o sistema de precedentes, característico do Common Law , pode ser de grande valia para o que se pretende no Civil Law. Em princípio, no entanto, é preciso que se crie um terreno favorável, o que significa criar uma jurisprudência de fato no Brasil, que não se resuma a ementas e dispositivo, bem como faz-se mister criar parâmetros para definir os precedentes. Da mesma forma, não pode essa sistemática simplesmente aniquilar a relevância da função jurisdicional de base. Estes são alguns termos essenciais para que o sistema de precedentes cumpra sua função no ordenamento jurídico pátrio.

Em verdade, não se quer uma jurisprudência de conjuntura, Igualmente, não se pretende a jurisprudência cega à realidade. Eis que aí reside o desafio da segurança jurídica no Brasil, isto é, no exato balancear entre a manutenção do previsível e a abertura de espaço para o imprevisível, um equilíbrio, enfim, entre os “dois corpos do rei”. Nesse influxo, o Direito de Família em muito tem para contribuir para o debate, afinal, tudo o que se almeja é a segurança às famílias, ao mesmo tempo em que paulatinamente surgem novos modelos familiares e novas discussões neste âmbito, sobretudo em função dos avanços da biotecnologia, demandando justiça.

Diversos são os exemplos dessa incidência privilegiada do Direito de Família na discussão da segurança jurídica, senão vejamos. A união estável entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, demonstra a necessária mudança da perspectiva hermenêutica, em prol do reconhecimento de um direito. Muito embora alguns setores possam considerar tal decisão demasiado ativista por parte do STF, fato é que não houve atentado à segurança jurídica nem mesmo quebra de previsibilidade, haja vista que a garantia de direitos fundamentais a todos, incluindo as minorias e grupos vulneráveis, é a tendência dos Tribunais e representa mandamento constitucional. O reconhecimento da união estável homoafetiva apenas seguiu tal lógica. Raciocínio semelhante pode se aplicar ao reconhecimento, para fins previdenciários, de uniões estáveis paralelas, de modo que também não se trata de uma afronta a segurança jurídica. Ademais, não se retiram direitos: é uma atribuição.

Por certo, as situações relacionadas ao direito de família acima apontadas coadunam com a idéia de segurança jurídica material, que prioriza a justiça social. A noção formalista de segurança jurídica, corolário do positivismo jurídico, não mais se adéqua ao atual estado da arte do direito. Nesta senda, a segurança jurídica material não prescinde da previsibilidade e coerência sistêmica, no entanto, amplia a percepção de mundo do direito para trazer para a noção de previsibilidade e segurança do ordenamento o ideal de bem comum e justiça social.

Nesse contexto complexo se espera, sobretudo do STF e do STJ, a consolidação da unidade possível ao sistema jurídico, que perpassa desde a formulação de acórdãos e ementas, até a nítida exposição das razões de decidir, de modo que haja preocupação com toda a decisão e não apenas com seu dispositivo. Isso é essencial para a solidificação da segurança jurídica que se almeja. Neste influxo, há que se admitir igualmente que o sentido da segurança jurídica não se resume à garantia das legítimas expectativas das partes, mas também pressupõe a previsibilidade da incidência material da legalidade constitucional. Isto porque jurisprudência não é apenas resultado, mas, principalmente, método.

Se na teorização de Kantorowicz os “dois corpos do rei” se encontram amalgamados, na superposição metafórica para o dilema da segurança jurídica não poderia ser diferente. O corpo contingencial e conjuntural da decisão não se separa do corpo perene e uno. Em suma, parece haver uma inconciliável contradição na pretensão de segurança jurídica. Contudo, o correto balancear desses dois corpos calcados na compreensão de segurança jurídica material pode fazer dessa aparente contradição o ritmo perfeito do andar jurisprudencial, que leva em conta o caso concreto e a hipercomplexidade da vida, sem deixar de perseguir, teleologicamente, a unidade e previsibilidade possível a fim de garantir a segurança. Sem dúvida, encontrar esse equilíbrio ideal não é tarefa fácil, mas é o horizonte que se faz necessário.
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Luiz Edson Fachin é sócio fundador do escritório Fachin Advogados Associados e sócio do Fachin Girardi Escritórios Associados. É pesquisador convidado do Instituto Max Planck (Alemanha) e professor titular de Direito Civil da UFPR.



Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2015, 8h01

Em decisão, Suprema Corte dos EUA exige simplicidade nas petições







As recentes discussões na comunidade jurídica americana sobre a linguagem das petições chegaram à Suprema Corte dos EUA. Em decisão unânime, em um “processo disciplinar extraordinário”, os ministros advertiram advogados e procuradores que atuam na corte: as petições devem ser redigidas em plain terms — que significa linguagem clara, direta e objetiva.

Em dezembro de 2014, a Suprema Corte abriu um processo disciplinar extraordinário contra o advogado Howard Shipley, da banca Foley & Lardner, por apresentar à corte uma petição, em um caso de patente, repleta de juridiquês, jargões técnicos, abreviaturas e tipografia incomum”. Pior que isso, por permitir que o cliente participasse ativamente da redação da petição e colocasse nela seu próprio nome.

A corte deu um prazo de 40 dias para o advogado se defender, explicando aos ministros por que não deveriam lhe aplicar uma sanção. O escritório de Shipley contratou, para defendê-lo, o advogado e ex-procurador-geral Paul Clement, considerado, nos EUA, o “redator jurídico mais claro do planeta”.

Clement reconheceu que a petição tinha uma redação nada ortodoxa, mas que isso se deve a um cliente difícil, que “insistiu em manter o controle primário” de seu conteúdo. E que, de qualquer forma, ela refletiu de forma clara e fiel a visão do cliente.

Além disso, foi necessário conciliar, tanto quanto possível, as demandas conflitantes da lealdade que o advogado deve ao cliente e de seu dever perante as regras da corte. Acrescentou que o produto final seria bem diferente, se o cliente fosse uma pessoa mais respeitadora. Argumentos à parte, os ministros da Suprema Corte também respeitam Clement. E em uma breve decisão, os ministros fizeram uma advertência válida para todos os advogados.

“A resposta foi apresentada e a ordem para se defender, de 8 de dezembro de 2014, fica extinta. Entretanto, todos os advogados que atuam na corte ficam advertidos que devem cumprir as exigências da Regra 14.3 da Suprema Corte, segundo as quais as petições de certiorari (de remessa dos autos) devem ser redigidas em linguagem clara, direta e objetiva. E essa responsabilidade não pode ser delegada ao cliente”.

A chefe da Suprema Corte, Lisa Blatt, disse ao Legal Times: “É sempre bom se lembrar de que é melhor contar sua história com simplicidade. Todos os advogados, promotores e procuradores devem obedecer a regra de ouro: faça de conta que você é o juiz, quando estiver redigindo uma petição”.

Agitação
Muitos advogados se disseram chocados com o fato de Shipley deixar o cliente escrever a petição. E pelo fato da Suprema Corte fazer a recomendação, não solicitada, aos advogados em geral, renovando a discussão perene sobre alguns advogados que escrevem petição densas, pomposas e recheadas de juridiquês.

“Quase todos os advogados me dizem que redigir em linguagem clara, direta e objetiva faz mais sentido, disse ao Legal Times o advogado e jornalista Hank Wallace, que ensina redação em plain language em seminários para advogados e outros profissionais. “Porém, alguns de seus chefes ou mesmo o cliente podem achar a petição fraca, sem dignidade. Ou eles não acham isso, mas seu oponente no tribunal pode considerar a petição fraca, sem dignidade”.

“Porém, se uma petição for muito vaga e sem fundamentos, o juiz irá cobrar isso do redator. No entanto, a redação em linguagem clara, direta e objetiva é um seguro contra constrangimento”, afirmou.

Para o presidente da Legal Writing Pro, Ross Guberman, não será fácil para os advogados mudarem a marcha. “Há um mito predominante de que os advogados escrevem petições complicadas de propósito e que poderiam mudar isso se quisessem. Porém, é realmente muito difícil para o redator jurídico escrever apenas sentenças simples e claras, a não ser que tenham uma forma de pensar muito clara e uma capacidade de edição impecável”.

“A Suprema Corte dificilmente pratica o que ela prega. Essa regra que exige redação em linguagem clara, direta e objetiva é uma simplificação exagerada que os próprios ministros não cumprem em suas decisões”, ele disse. Guberman é o autor do livro Ponto feito: Como escrever à semelhança dos melhores advogados da nação, lançado em 2014, e do livro Ponto aceito: Como escrever à semelhança dos melhores juízes do mundo, a ser lançado este ano.

Ele adverte, no entanto, que os advogados não podem assumir que todos os juízes, desembargadores e ministros estão familiarizados com todas as tecnicalidades de todos os campos do Direito, muitos menos daquelas específicas da área de atuação do cliente. Na verdade, o processo pode cair nas mesas de juízes generalistas que terão muita dificuldade de entender um texto tecnicamente complexo.

O presidente do comitê executivo da Sidley Austin, Carter Phillips, disse aoLegal Times que advogados novos costumam pensar, erradamente, que o juiz entende ou se importa com a questão proposta na petição mais do que realmente ele realmente entende ou se importa ou, ainda, que tem tempo para se dedicar a ela. “Os advogados experientes sabem como é importante “traduzir materiais ou ideias complexas em algo que é realmente fácil de entender, se a redação for em linguagem clara, direta e objetiva".
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João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.



Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2015, 11h19

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? O modelo alemão





A classe dos professores mandarins
A figura do imperador do Sacro Império Romano Germânico sempre foi envolta em uma áurea de simpatia popular, ao menos em sua dimensão mítica. O exemplo mais perfeito do soberano “desejado das gentes” é do Frederico Barba-Ruiva (1122-1190), que morreu afogado ao tentar atravessar o rio Sèlef, na região da atual Turquia, quando comandava a Terceira Cruzada, cujo objetivo era retomar Jerusalém das mãos de Saladino. Seu desaparecimento, aliado ao fato de não terem encontrado seu corpo, alimentou lendas muito parecidas com as que até hoje cercam D. Sebastião em Portugal. Frederico tentou centralizar o poder em pleno feudalismo, combatendo os poderes da aristocracia local, no que era visto pelo povo como alguém capaz de controlar os abusos da nobreza sobre os camponeses e habitantes dos burgos.

No Segundo Reich, nascido após as guerras prussianas contra a Dinamarca (Guerra dos Ducados do Elba), a Áustria e a França, o mito do “bom imperador” ressurge com força, especialmente em um cenário marcado pela conservação de enormes poderes pelos reis, príncipes e duques da Alemanha recém-unificada em 1870. Essa rivalidade entre o imperador e a fidalguia regional foi muito bem explorada pelos soberanos da nova Alemanha. Entre os camponeses e a crescente classe operária, o poder central era um anteparo contra os excessos dos representantes do poder local, que, por estar próximo e visível, é sempre mais odioso do que aquel’outro, mais distante e por isso mesmo com menor capacidade de controle. Um exemplo da impopularidade dessa aristocracia rural está no belíssimo filme A fita branca, de 2009, dirigido por Michael Haneke.

Para auxiliá-lo a administrar o estado alemão, sem ficar refém da aristocracia, que já dominava o Exército e a carreira diplomática, após 1870, os imperadores firmaram uma aliança informal com uma classe antiga, mas que só a partir do século XVIII começou a ganhar consciência de seu próprio poder. Tratava-se dos acadêmicos, dos professores universitários, ou, como prefere Franz K. Ringer, dos “intelectuais mandarins”. Ringer formulou a interessante hipótese de que os soberanos do Segundo Reich incentivaram a ocupação de postos relevantes na burocracia estatal pelos professores, aproveitando-se de seus conhecimentos superiores e de seu senso de superioridade moral (quase religiosa naqueles tempos de cientificismo extremo), a fim de criar uma nova aristocracia do mérito.

Como bem assinalou Martônio Mont’Alverne Barreto Lima, a hipótese de Ringer já havia sido proposta em relação à burocracia imperial brasileira em artigo de Eul-So Pang e Ronald Seckinger.[1] Como afirmado na coluna que abriu esta série (clique aqui para ler), nossas ligações com as tradições imperiais de origem austro-alemã são mais profundas do que se imagina.

Alguns efeitos dessa política de Estado da monarquia alemã oitocentista foram logo sentidos. A qualificação de Herr Professor Doktor ganhou contornos de um autêntico título de nobreza e tornou-se praticamente uma partícula do nome civil de seus titulares, que figurava em cartões de visita, placas nas universidades e até em lápides e obituários publicados nos jornais. Esse processo ganhou tal dimensão que, segundo Franz K. Ringer, o recebimento dos títulos de Adel (fidalgo) e Ritter (cavaleiro), da baixa nobreza, que conferiam o direito ao uso da partícula von (de), não mais despertava o interesse dos “acadêmicos mandarins”, salvo notórias exceções como Otto Gierke, que recebeu o título de nobreza na década de 1900 e passou a ostentá-lo em suas publicações como Otto von Gierke.

Mesmo com a queda da Casa de Hohenzollern, a consciência de classe e a ocupação de papeis relevantes na sociedade alemã persistiu na República de Weimar. Os “acadêmicos mandarins”, desse modo referidos em alusão aomandarinato, a classe burocrática do velho Império da China, continuaram prestigiados, embora a crise de 1920-1930 haja comprometido sua condição remuneratória. Enfraquecidos economicamente, com a chegada no nazismo, muitos jovens professores assistentes agiram como alpinistas sociais e usaram da ideologia política (sociais democratas e monarquistas) ou étnica (judeus) dos catedráticos para derrubá-los e ocupar suas cadeiras nas universidades. Muitos dos demitidos nunca mais voltaram à universidade.

Com o pós-guerra, a universidade alemã foi reconstruída, seguindo-se os padrões de excelência do passado. Os professores, embora não mais possam ser considerados como uma classe de mandarins, dada a ampliação da elite econômica, política e cultural na Alemanha, são ainda hoje um grupo especial na sociedade alemã. Pode-se arriscar a dizer que não exista um país no mundo onde os catedráticos sejam tão bem remunerados, respeitados e valorizados quanto na Alemanha. O cargo de professor catedrático tem um prestígio equivalente ao de senador da República. O título de Herr Professor Doktor ainda possui o brilho de uma partícula nobiliárquica e a sociedade lhes reconhece uma preeminência nos negócios públicos sem par em muitas nações desenvolvidas.

Um símbolo dessa condição notável está nos 105 prêmios Nobel que a Alemanha recebeu, o que a coloca em terceiro lugar no ranking das nações agraciadas, perdendo apenas para os Estados Unidos da América (352), por razões óbvias, e para o Reino Unido (120), durante muito tempo a sede do “império onde o sol nunca se põe”. Considerando-se que a Alemanha foi arrasada duas vezes no século XX, não deixa de ser um número impressionante.

Em uma série de colunas sobre ensino jurídico, não se poderia ignorar essas particularidades da Alemanha, o país que será estudado hoje. Vamos agora examinar um pouco sobre a carreira docente alemã, com evidente ênfase no Direito, embora muitos dados sejam intercambiáveis para outras áreas.

É importante conhecer as características do modelo alemão sob 3 aspectos: a) o docente; b) a universidade e c) a formação discente. 

A docência jurídica na Alemanha
Na Alemanha, diferentemente do que se dá no Brasil, a palavra professor é exclusiva do ocupante do cargo equivalente brasileiro a “professor titular”. O professor alemão é o catedrático e somente este. Nesse sentido, os professores assistentes, adjuntos e associados (títulos brasileiros inferiores ao de titular) não correspondem tecnicamente às expressões alemãsrichtiger Professor, Vollprofessor, Ordentlicher Professor. No plano de carreiras alemão, esses docentes são qualificados por letras, que correspondem a sua remuneração. O catedrático é o professor C4, embora raramente se encontre nessa classe os professores C3. É condição prévia para a obtenção desse cargo ter o candidato prestado o exame de habilitação, com a defesa de uma tese (Habilitationsschrif), o trabalho mais importante na carreira de um docente, que anteriormente já deve ter sido aprovado no doutorado (Promotion).

Abaixo de catedrático, há uma série de posições acadêmicas, como a deMitarbeiter, Assitent, Privatdozent, Referent ou ainda außerplanmäßiger Professor. O professor catedrático, à semelhança do modelo brasileiro pré-reforma educacional dos anos 1970, é um polo em torno do qual se associam pesquisadores mais jovens, assistentes de docência, estagiários em números inimagináveis para os padrões brasileiros.

A escolha dos candidatos à cátedra (Lehrstuhl, literalmente “cadeira de lente”) dá-se por meio de uma seleção pública composta de etapas como entrevista, análise de currículo e uma exposição, que pode ser uma palestra ou uma aula, com base em texto escrito para esse fim. Evidentemente, é pré-requisito ter o candidato a Habilitation. As bancas funcionam como autênticos “comitês de busca”, elegendo para as vagas um perfil de professor ideal, cujas características o escolhido deve preencher. Para um brasileiro, esse sistema seria chocante pelo elevado grau de subjetividade e pessoalidade da seleção. Há, no entanto, uma série de contrapesos: não se pode ser professor na instituição que foi a alma mater do candidato, o que impõe uma severa exogenia e faz com que se oxigenem as composições dos corpos docentes. A figura do Doktorvater (orientador) é muito relevante para o futuro da carreira do candidato à docência. 

Existem, ainda, contratações de professores catedráticos entre instituições. Universidades menores ou menos prestigiadas oferecem condições especiais para atrair catedráticos de outras instituições, como, por exemplo, auxílio-moradia, transporte ferroviário e bônus remuneratórios, à moda do que se dá nos Estados Unidos. Não necessariamente o catedrático precisa residir na cidade-sede da instituição. É comum haver professores com duplo domicílio ou mesmo exercendo atividades de pesquisador em um local e docente em outro.

Um número também surpreendente: na Alemanha há, em termos aproximados, 950 catedráticos em cursos jurídicos.[2] Martônio Mont’Alverne Barreto Lima e Marcelo D. Varella, em estudo de enorme impacto sobre a revalidação de títulos estrangeiros no Brasil, reforçam esses números: “A gigantesca Universidade Livre de Berlin possui 50 professores; a Universidade de Bremen tem 15 professores; a de Frankfurt/M. possui 28 professores; a de Munique, 31; e a de Münster, 30. Ocorre que em cada uma destas o número de assistentes científicos, Lehrbeauftragter, Privatdozenten,Professor in Vertretung e de pesquisadores com atividades em centros de pesquisa vinculados à área de Direito ou em atividade conjunta com outras áreas (...), faz com que o reduzido número de professores, somado a esta força de trabalho de boa qualidade, porém não amadurecida, seja triplicado”.[3]

Essa quantidade tão reduzida de professores catedráticos, considerando-se os padrões brasileiros, é ainda mais eloquente quando comparada ao número de alunos: aproximadamente 100 mil discentes. E também ao número de faculdades de Direito: 43 escolas, sendo apenas três privadas, com sede em Hambugo, Wiesbaden e Lüneburg. Um detalhe: essas instituições privadas são pequenas e tentam seguir um caminho de excelência educacional. Exemplo disso é a Bucerius Law School, de Hamburgo, fundada em 2000, com orçamento anual de 16,8 milhões de euros em 2014, que possui menos de 600 estudantes de graduação, com 15 professores em dedicação exclusiva e 30 em tempo parcial, além de assistentes e visitantes. A Bucerius foi uma criação do político e jornalista

Gerd Bucerius (1906-1995), fundador do jornal Die Zeit, que foi juiz nos anos 1930 e lutou contra os nazistas, além de defender judeus. A ideia de Bucerius era criar um think tank e uma escola jurídica de qualidade, para o que deixou expressivos recursos em legado para essa finalidade.

O leitor deve-se indagar neste momento como podem tão poucos catedráticos exerceram o magistério para tantos alunos e em tão poucas instituições? A pergunta é mais do que oportuna e ela se justifica por uma aparente contradição decorrente de haver poucos professores, muitos alunos e poucas faculdades.

Não se quer avançar na estrutura das instituições e na formação discente, do que se cuidará na próxima semana. Logo, a resposta será parcial. Mas, vamos a ela.

Primeiramente, é necessário referir que o número tão pequeno de catedráticos implica a possibilidade do Estado alemão pagar boas remunerações para esses docentes, ao menos seguindo-se o padrão do serviço público e, em termos comparativos, com certas atividades do mercado privado. Segundo dados do CIHE - Center for International Higher Education, [4] no topo da carreira docente, a Alemanha paga o equivalente a 6.377 dólares norte-americanos. Na Europa, está abaixo do Reino Unido (US$ 8.369), Holanda (US$ 7.123), dois países com custo de vida mais elevado que o alemão. A Itália surpreende com o valor de 9.118 dólares norte-americanos, o mais alto padrão em solo europeu, perdendo apenas para o Canadá, quem melhor paga os catedráticos no mundo, com remuneração de U$9.485. O Brasil paga U$4.500 a seus professores titulares em final de carreira, o que implica uma diferença de 104 dólares a menos do que o padrão japonês. Esses dados variam muito se forem tomados pela média do início, do meio e do final da carreira. Nessa hipótese, a média brasileira seria de 3.179 dólares. Como, para esta coluna, importa somente os valores pagos aos catedráticos, o quantum médio é desconsiderado.

Em segundo lugar, deve-se ter em mente que o professor catedrático alemão não possui um regime de aulas sequenciais como se dá no Brasil. Ele profere a Vorlesung, uma espécie de aula magna, em períodos específicos (semanais ou quinzenais), para auditórios lotados com 100, 200 a 400. Em muitos casos, as aulas ocorrem em pavimentos diferentes, com uma parte da turma assistindo a Vorlesung por meio de telões, às quais também comparecem os alunos do Magister, um curso de pós-graduação, de variável natureza, conforme a universidade que o ofereça, equiparável, na maior parte dos casos, a uma especialização ou, mais raramente, a um mestrado. Posteriormente, os alunos reúnem-se com os assistentes e vão fazer estudos de casos, fortemente baseados no método subsuntivo e na exegese do Código Civil, nas disciplinas de Direito Civil.

Finalmente, há uma maior liberdade no comparecimento dessas aulas e no modo como os alunos se relacionam com a universidade e com as avaliações internas, do que se cuidará na próxima coluna.

Inserção jurídico-política do professor de Direito na Alemanha
A forte tradição de “acadêmicos mandarins”, embora relativamente transformada após 1949, não poderia deixar de repercutir nos dias de hoje. Os professores de Direito não se isolam em suas cátedras e não são mal vistos quando deixam a universidade para atuar politicamente ou em órgãos públicos. É muito comum a participação dos catedráticos de Direito no processo legislativo, por meio de oferta de projetos de lei ou pela crítica sistemática (e impiedosa) ao trabalho parlamentar, quando não são os próprios professores que se candidatam a cargos públicos ou assumem a chefia de ministérios, agências, autarquias e afins.

É igualmente vulgar a indicação de professores para cargos nos tribunais regionais ou superiores, quando não ao próprio Tribunal Constitucional Federal. Como bem destacou Tilman Quarch, em seu artigo Introdução à Hermenêutica do Direito Alemão: Der Gutachtenstil, publicado no volume 1 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, a relação entre professores e juízes é de complementariedade e de enorme respeito pelo trabalho de lecionar e de julgar, a despeito das críticas ácidas dos docentes a muitas decisões das cortes alemãs.

Existe ainda uma forte tradição de clivagem ideológica entre os professores de Direito. Os dois grandes partidos políticos – a União Democrática Cristã e o Partido Social Democrata – possuem fundações, à semelhança do que ocorre no Brasil, que financiam pesadamente estudantes e pesquisadores, além de publicações de teses (que são pagas pelos autores) e outros projetos acadêmicos, diferentemente do que se dá no Brasil. Desde cedo é possível identificar a orientação ideológica de muitos docentes, o que se reflete nas universidades. Em larga medida, isso não afeta a independência científica, porque não há uma apropriação “partidária” das instituições em níveis que comprometam sua independência. 

Conclusões parciais e algumas comparações: é um sistema ideal? 
O modelo de docência universitária alemão, particularmente a jurídica, tem enormes méritos. A remuneração é boa, mas não é a maior da Europa. Os catedráticos possuem condições de trabalho e de pesquisa muito superiores a seus congêneres europeus e ainda podem ser “disputados” em um saudável processo de concorrência entre as instituições, que só encontra paralelo equiparável nos Estados Unidos. A seleção é mais dinâmica e focada nas necessidades da instituição e não somente em aspectos formais que muitas vezes não selecionam os melhores candidatos. A existência de um grande número de assistentes, adjuntos e associados em volta do catedrático permite-lhe realizar pesquisas de maior qualidade, concentrar seu tempo para preparar aulas de melhor nível, ao passo em que também lhe dá o reconhecimento social invulgar em termos contemporâneos. A representação social do professor é superiormente interessante na Alemanha.

A despeito de suas grandes qualidades, o modelo alemão, no que se refere à docência, também possui problemas e alguns deles têm sido objeto de críticas por parte de setores da sociedade. As mais graves, como se verá, dizem respeito ao modo como os estudantes são avaliados.

Limitando-se o problema aos professores, existem algumas censuras veladas ao método de seleção, que abriria muito espaço para o peso do orientador do candidato. É também crescente a discussão sobre as relações entre oDoktorvater (orientador) e os doutorandos. O número de denúncias de plágio cresceu muito e isso causou espécie na sociedade alemã. Foi muito divulgado o escândalo envolvendo a tese de doutorado de Karl-Theodor Freiherr von und zu Guttenberg, então ministro da Defesa do governo Merkel, acusado de plágio no trabalho que apresentou à Universidade de Bayreuth, sob orientação de Peter Häberle. O barão Guttenberg, ou barão Googleberg, como se tornou jocosamente conhecido, era cotado para o cargo de chanceler federal e um nome muito popular na Alemanha. Jovem, carismático, bem sucedido como ministro e com impecáveis credenciais familiares: seus antepassados militaram ativamente contra Hitler e envolveram-se na Operação Valquíria. Sua reputação foi abaixo com o plágio, o que simboliza o valor de um título acadêmico na Alemanha.

A remuneração dos pesquisadores e assistentes é considerada baixa e seus vínculos são precários. Eles firmam contratos temporários, que são renovados a depender de seu desempenho e das verbas para se manter o grupo vinculado ao catedrático.

A transposição do modelo de docência alemã para o Brasil implicaria se rever a quase inexistência de estrutura de carreira real nas universidades brasileiras. À exceção de alguns departamentos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, são poucas as escolas jurídicas que ainda dão posição de preeminência aos professores titulares. Ademais, na prática, não seria sustentável a atual divisão entre professores catedráticos (na acepção alemã) e os não catedráticos. Outra incompatibilidade está na administração de equipes de docência e pesquisa, o que, com nossas regras de estabilidade, é praticamente inviável. Para não se recordar da hipótese de migração por “concorrência” entre instituições.

Elogiar ou se inspirar no modelo de docência alemã é muito interessante. Mas, não se pode perder de vista que os regimes jurídicos únicos são fortes obstáculos a transposição do exemplo da Alemanha. Embora se possa ficar com a seguinte reflexão: não teriam sido esses regimes jurídicos, como o instituído pela Lei 8.112/1990, uma reação natural aos desmandos e ao descontrole, ao compadrio e à pessoalidade patrimonialista da Administração brasileira?

Na próxima coluna, a formação docente e, se houver espaço, o currículo e o método de ensino alemães.

***

Agradeço imensamente à leitura e às contribuições de Tilman Quarch, Jan Peter Schmidt e a Martônio Mont’Alverne Barreto Lima. 



[1] Comparatives Studies in Society and History, v. 14, n.2, 1972, pp. 215-244. Cambridge Univ. Press, London. (Agradeço a Martônio Mont’Alverne Barreto Lima pela referência).


[2] Parte dos dados quantitativos (informações não oficiais) foi extraída deste site: http://www.lto.de/jura/studium/uni/augsburg/. Acesso em 2-2-2015.


[3] P.156



Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.



Revista Consultor Jurídico, 4 de fevereiro de 2015, 10h53

sexta-feira, 7 de março de 2014

O DIREITO COMPARADO NA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL



O direito comparado na jurisdição constitucional

The comparative law in the constitutional adjudication


Gustavo Vitorino Cardoso

Mestrando em direito constitucional na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra


RESUMO

Este estudo aborda o crescente uso do direito comparado na racionalidade das decisões dos tribunais constitucionais. Tema extremamente interessante e atual, a aproximação do direito constitucional ao direito comparado é ilustrada a partir de casos julgados em Portugal, Estados Unidos e África do Sul e que receberam atenção especial da doutrina, destacando-se, nomeadamente, os contornos históricos e jurídicos caracterizadores desses ordenamentos jurídicos. O primeiro objetivo perfaz a verificação do alinhamento do Supremo Tribunal Federal à tendência comparativa, o que é feito mediante a análise materialmente direcionada da sua jurisprudência colhida no sítio oficial. A segunda etapa tem como escopo uma explicação possível para o problema intrínseco à interpretação/concretização de regras e princípios constitucionais, lançada na fundamentação de uma decisão com base em elementos apurados em outra ordem jurídica, tarefa essa que é levada a efeito com apoio na caracterização do denominado estado constitucional. Todas as etapas cumprem a função mais geral de indagação acerca do papel que a comparação de direitos tem alcançado no constitucionalismo do presente.

Palavras-chave: direito constitucional; direito comparado; Estado constitucional; tribunais constitucionais; Supremo Tribunal Federal.


Fonte: Scielo

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

REFORMA PROCESSUAL FALHA E JUSTIÇA DA ITÁLIA FICA MAIS LENTA

Direito na Europa

Reforma processual falha e Justiça da Itália fica mais lenta

 
Começo de ano nada animador na Justiça da Itália. De um lado, os advogados protestando contra nova proposta de reforma do processo civil. De outro, números divulgados pelo Conselho Nacional Forense mostra que a Justiça está cada vez mais lenta. Segundo o balanço, nos últimos oito anos, foram feitas 17 mudanças no processo civil para torná-lo mais rápido. Nada adiantou. O tempo de tramitação subiu de cinco anos e meio para sete e meio. Atualmente, há 9 milhões de processos — cíveis e criminais — em tramitação em todo o Judiciário italiano.
Crime sem provas
Continua o imbróglio sobre o julgamento do presidente do Quênia, Uhuru Muigai Kenyatta, no Tribunal Penal Internacional. A corte vai se reunir na quarta-feira da próxima semana (5/2) para decidir o que fazer. O julgamento deveria ter começado em novembro, mas acabou adiado para fevereiro. Em dezembro, a Promotoria pediu um novo adiamento alegando não estar preparada para provar que Kenyatta comandou assaltos e estupros em massa depois das eleições de 2007. É que a acusação perdeu duas testemunhas fundamentais. Uma delas desistiu de depor e a outra confessou ter mentido para os promotores, então teve de ser descartada.
Água fria
A imprensa italiana até que se animou com a possibilidade de seu inimigo número um voltar oficialmente à cena política do país. Afinal, Silvio Berlusconi no poder é sempre sinal de escândalos e manchetes. Mas ainda não foi dessa vez. Na semana passada, jornais italianos divulgaram que a Corte Europeia de Direitos Humanos havia aceitado um recurso que impediria que a Lei da Ficha Limpa no país retroagisse para crimes cometidos antes de entrar em vigor. Assim, Berlusconi estaria livre e poderia recuperar seu cargo no Senado. Em nota à imprensa, a corte explicou que não foi nada disso. Os juízes apenas aceitaram julgar a retroatividade da norma, mas ainda não há sequer uma data prevista para o julgamento.
Direito de todos
O crime de fazer sexo com uma pessoa do mesmo sexo vai definitivamente abandonar o continente europeu. O único lugar onde relações homossexuais ainda são punidas é a República Turca do Chipre do Norte, região dentro do Chipre que se separou do resto do país, mas só teve sua autonomia reconhecida pela Turquia. Lá, o Parlamento aprovou a descriminalização do sexo gay nesta segunda-feira (27/1). Em alguns dias, a mudança deve ser sancionada pelo presidente e passa a valer.
Família planejada
O Tribunal Constitucional da Itália deve voltar a julgar as regras rígidas para a reprodução assistida no país, segundo notícia do jornal Corriere della Sera. Dessa vez, o ponto a ser discutido é a triagem de embriões, que é proibida na Itália. Por conta disso, casais com doenças genéticas não podem selecionar um embrião saudável, mas como o aborto é permitido, podem depois abortar um feto doente ou mal formado. A triagem de embriões já foi reconhecida como direito dos pais pela Corte Europeia de Direitos Humanos.
Voo barato
Se as previsões se confirmarem, o Tribunal de Justiça da União Europeia deve garantir a vida das companhias aéreas de baixo custo no continente. Essas empresas oferecem passagens aéreas por preços baixos, mas cobram por qualquer serviço extra, como despachar mala ou mesmo tomar uma água durante o voo. Na Espanha, uma legislação proibiu as companhias de cobrarem uma taxa por mala despachada. Na semana passada, um dos advogados-gerais do TJ da União Europeia disse que essa lei viola as regras do bloco econômico, já que cabe à companhia decidir se embute o valor do serviço no preço da passagem ou se cobra separadamente. O tribunal costuma seguir os pareceres dos seus advogados. Clique aqui para ler.
Ex-gays
Ônibus não é lugar para anunciar terapia para curar o homossexualismo. A Corte de Apelação da Inglaterra reconheceu, nesta segunda-feira (27/1), que a liberdade de expressão não é carta branca para transmitir mensagens ofensivas em transporte público. No ano passado, uma ONG anglicana pretendia usar os ônibus de Londres para fazer propaganda de um tratamento que ela dizia ser capaz de tornar um homossexual em heterossexual. Clique aqui para ler mais e aqui para ler a decisão em inglês.
Fora das grades
A França ganhou, na semana passada, mais um transeunte. O mais antigo prisioneiro do país foi posto em liberdade condicional na sexta-feira (24/1). Philippe El Shennawy estava preso há 38 anos por assalto a mão armada a um banco. Na época do crime — que ele nega —, Shennawy tinha pouco mais de 20 anos. Hoje, já é um homem de quase 60. Ele terá de usar uma tornozeleira eletrônica por dois anos e, se descumprir as regras da condicional, volta para atrás das grades.
Ritos religiosos
A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa se reúne nesta terça-feira (28/1) para discutir a circuncisão de meninos. Em outubro do ano passado, o Conselho aprovou uma resolução rogando o fim da mutilação sexual de meninas e pedindo aos países que estabeleçam condições médicas e sanitárias mínimas para a circuncisão de garotos. Desde então, Israel tem acusado os europeus de discriminação religiosa ao colocar as duas práticas — circuncisão e mutilação de meninas — no mesmo pacote.
 
Aline Pinheiro é correspondente da revista Consultor Jurídico na Europa.
Revista Consultor Jurídico, 28 de janeiro de 2014

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...