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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Advogado tem de saber a hora de se calar no tribunal do júri






Diante de uma disputa fácil, o ser humano sente um desejo irresistível de “arrasar” o adversário, de ganhar de 7 a 1 e tornar aquela humilhação memorável. Advogados e promotores não estão imunes a essa fraqueza. Mas devem aprender a vencê-la, especialmente no tribunal do júri, onde as palavras mais sábias, em alguns momentos, são “sem perguntas, meritíssimo”.

A sabedoria, muitas vezes, está em saber se calar, em vez de falar demais na ânsia de buscar a glória. É o que diz o advogado e professor de Direito Elliott Wilcox, editor do TrialTheather. Isso fica evidente na inquirição de testemunhas, seja direta ou indireta, quando o caso já está praticamente resolvido, mas o advogado quer desfrutar ao máximo um sucesso inesperado.

Ele dá o exemplo de um caso, que já soa como folclórico, de um advogado que defendia um suposto traficante de heroína, em que o fator mais favorável à defesa era a inexperiência do promotor, com menos de seis meses de carreira.

A promotoria alegou, no processo, que Desmond Llewellyn Witherspoon fazia parte de uma “conspiração” para vender 500 gramas de heroína. A defesa pretendia sustentar que a participação dele na tal “conspiração” era muito pequena. Ele teria falado apenas com uma pessoa, que era um “informante confidencial” — o informante que estava, então, no banco das testemunhas.

Durante a inquirição direta de sua única testemunha, o promotor pergunta: “Desmond Llewellyn Witherspoon estava presente nas negociações?” Para a surpresa de todos, a testemunha responde: “Acho que não”. Abalado com a resposta, o inexperiente promotor esboça um “sem mais perguntas” e se senta.

A palavra é passada para o advogado. Com um pouco mais de sabedoria, o advogado teria dito “sem perguntas, meritíssimo”. E o produto do julgamento teria sido melhor do que a encomenda. Mas o advogado não se contentou em ganhar por 1 a 0. Levantou-se e encarou solenemente à testemunha:

“Você disse ao promotor que você não acha que Desmond Llewellyn Witherspoon estava presente nas negociações...”.

“Correto. Eu não acho que ele estava”, respondeu a testemunha.

“E Desmond Llewellyn Witherspoon não armou as negociações para vender 500 gramas de heroína... ou armou?, perguntou o advogado.

“Eu acho que não”, respondeu mais uma vez a testemunha.

“Você fica repetindo que acha que não. Mas você poderia esclarecer para todos nós... [e apontando para seu cliente] se o homem sentado naquela mesa tem alguma coisa a ver com as negociações para a venda de heroína?”, perguntou o advogado em alto tom.

Resposta: “Oh, ele? Pookie? Sim, Pookie foi o cara que armou toda a negociação. Ele me chamou, negociou os preços, falou sobre a qualidade da heroína, me disse que podia me assegurar uma quantidade ilimitada da droga, porque ele matou uns concorrentes na Colômbia e tinha em sua folha de pagamentos vários agentes de fronteira”.

E continuou: “Pelo que entendi, ele tem uma grande região sob seu controle e poderia trazer tanta heroína quanto eu quisesse. Sim, Pookie é o chefão de toda a organização. Mas aquele nome que vocês mencionaram, Desmond... Witherspoon, eu nunca ouvi. Ele nunca me disse seu nome verdadeiro. Todo mundo o chama de Pookie”.

Casos como esse ocorrem com maior frequência na inquirição cruzada, depois que a testemunha da acusação já tenha declarado algo que favoreceu a defesa, diz Wilcox. Ele imaginou a seguinte situação, depois que a testemunha já dissera ao promotor que “não ouviu nada”.

Em vez de se calar, o advogado se levanta, se dirige solenemente à testemunha, e pergunta:

“Então, você não ouviu nada”.

“Nada”, diz a testemunha.

“Você tem certeza disso”, pergunta o advogado.

“Sim”, responde a testemunha.

“Então, você tem certeza de que não ouviu nada, nada mesmo, de forma alguma”, pergunta o advogado, esfregando as mãos em regozijo.

“Nada... a não ser por uma vez que... [Wilcox pede aos leitores para imaginar o tamanho do desastre que se sucedeu].

Se for para inquirir a testemunha da acusação, depois que ela já “entregou” o caso de mão beijada à defesa, pelo menos faça perguntas diferentes, que não envolvam o risco de a testemunha desmentir o que já afirmou ou que lhe dê uma oportunidade de explicar os fatos de uma maneira desfavorável, aconselha Wilcox.



João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.



Revista Consultor Jurídico, 30 de novembro de 2015, 10h19

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Caso Fifa, mesmo que comprovado, não pode ser considerado crime no Brasil






No dia 27 de maio, sete dirigentes da Fifa foram presos na Suíça a pedido das autoridades dos Estados Unidos. Todos eles acusados de corrupção. Segundo a investigação conjunta do departamento de Justiça dos Estados Unidos, do FBI e do Internal Revenue Service (IRS) pelo menos duas gerações de dirigentes de futebol usaram suas posições para solicitar subornos de empresas esportivas por trocas de direitos comerciais sobre torneios. Pelo menos US$150 milhões foram usados nas transações investigadas.Ministro José Eduardo Cardozo, diz que PF vai investigar envolvimento de brasileiros no esquema.
Agência Brasil

Entre os presos estão o ex-presidente da CBF José Maria Marin e outros dois brasileiros: José Hawilla, dono da empresa de marketing esportivo Traffic, e José Margulies, dirigente da empresa Valente Corp. and Somerton. Diante das denúncias em série e devido ao envolvimento de brasileiros, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmou que a Polícia Federal brasileira, junto com o Ministério Público Federal, vão abrir uma investigação.

No entanto, aqui no Brasil não será possível a condenação dos envolvidos pelo crime de corrupção. Isso porque, segundo advogados, não há na legislação brasileira a tipificação do crime de corrupção entre entes privados, como é o caso da Confederação Brasileira de Futebol e a Fifa.

"O crime de corrupção, segundo está previsto em nossa legislação, está relacionado ao exercício de funções públicas. Portanto, os agentes da CBF não podem ser enquadrados", explica Conrado Almeida Corrêa Gontijo, do Corrêa Gontijo Advogados. O criminalista já havia levantado essa questão em artigo publicado na revista Consultor Jurídico, no qual explica detalhadamente a fragilidade do ordenamento jurídico brasileiro.

Ele explica que, de acordo com as atuais leis, não há o crime de corrupção entre entes privados. Sendo assim, ele explica que na hipótese de uma rede de tv pagar propina para uma entidade para ter direito de transmissão de determinado evento não é crime.Falta de legislação prevendo corrupção entre entidades privadas é duramente criticada por Lenio Streck.
Reprodução

O jurista e advogado Lenio Luiz Streck, do Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados, corrobora: "Marin deveria ter ficado por aqui e Blatter [presidente da Fifa] deve urgentemente vir para Pindorama e se candidatar à presidência da CBF! E Ricardo Teixeira [presidente da CBF] sabe o caminho das pedras. Sabe que ficando por aqui , com pequenas idas a algum paraíso fiscal e ficará livre. Veja: até o cara do Paraguai foi preso. A im(p)unidade brasileira está desmoralizada. Perdemos por W.O.!"

Os advogados alertam, no entanto, que é possível que as empresas sejam condenadas caso a investigação da Polícia Federal e do Ministério Público encontre outras ilicitudes especificadas na legislação.

O próprio ministro da Justiça fez essa ressalva ao anunciar as investigações. “Só podemos investigar delitos que sejam tipificados pela legislação brasileira. Se, no caso houver, e é bem provável que tenha, delitos configurados perante a legislação brasileira, a PF abrirá os inquéritos e fará as investigações rigorosas”, explicou Cardozo.

O delegado de Polícia Federal Luiz Eduardo Navajas explica que mesmo que as investigações encontrem transações financeiras sob uma aparente legalidade é possível investigar para buscar provas de que houve lavagem de dinheiro.

"Caso uma investigação comprove que valores enviados ao exterior retornem ao Brasil mesmo que sob aparente legalidade, nada impede sua apuração. De fato, a Lei 9.613/98, ao ser alterada pela Lei 12.683/2012 deixou de vincular a origem dos valores aos delitos arrolados como numerus clausus em seu artigo 1º, os quais agora não mais existem. Logo, a ocultação de valores obtidos em qualquer infração penal prevista em nossa legislação configura a Lavagem de Dinheiro".

Avanço na legislação
Na opinião do advogado Leonardo Neri Candido de Azevedo, coordenador da área civil e especialista em direito desportivo do Rayes & Fagundes Advogados Associados, o caso Fifa reflete uma questão importante e fundamental para o desenvolvimento do esporte no Brasil: a necessidade de um avanço na regulamentação para o devido controle social das organizações esportivas, adequando-se a estrutura jurídica dessas entidades, que, por sua vez, passaram por drástica transformação nas últimas décadas. “A modernização se faz necessária, haja vista que o negócio virou algo multibilionário, trazendo consigo peculiaridades que não são mais devidamente representadas pelos preceitos legais de uma associação. As entidades esportivas, atualmente, gerenciam um patrimônio da coletividade, sem o devido controle, por falta de evolução da legislação que remonta uma estrutura construída nos tempos ditatoriais”, comenta.

O especialista também sugere a criação de modelos incriminadores que sancionem os pactos ilícitos firmados entre particulares que resultem na apreensão dos corruptos em território nacional, sem a necessidade da comprovação do enquadramento das condutas às normas internacionais. “Além disso, é essencial ao desenvolvimento simultâneo da legislação penal privada, que coexista um modelo jurídico esportivo transparente com a realidade do esporte de hoje em dia. Ou seja, as associações esportivas não vivem mais de contribuições de seus filiados, bem como é imprescindível que recaiam sobre os dirigentes o ônus de suas ações”.

As mudanças na lei para incluir a corrupção entre empresas crime está na pauta da Congresso Nacional. O projeto de reforma do Código Penal, elaborado por uma comissão de juristas, prevê o crime. 

Pela proposta da comissão, a conduta reprimida será a seguinte: "exigir, solicitar, aceitar ou receber vantagem indevida, como representante de empresa ou instituição privada, para favorecer a si ou a terceiros, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de vantagem indevida para favorecer a si ou a terceiro, a fim de realizar ou omitir ato inerente a suas atribuições.”

Um parágrafo estabelece que nas mesmas penas incorre quem oferece, promete, entrega ou paga — direta ou indiretamente — vantagem indevida, ao representante da empresa ou instituição privada. Não é essencial para a caracterização da conduta que haja prejuízo à empresa.Caio Rocha, presidente do STJD, aponta que caso Fifa pode configurar alguma infração ética ou regulamentar.

Direito desportivo
O caso de pagamento de propina para dirigentes de entidades do futebol também não está previsto nas leis desportivas. De acordo comCaio César Vieira Rocha, presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, não há previsão para esta conduta específica. No entanto, ele aponta que, em tese, "o caso pode configurar alguma infração ética (agir contra a ética desportiva) ou regulamentar (agir contra disposição legal, regulamentar ou estatutária)".

Caio Rocha registra que "tudo isso ainda dependeria de ação da Procuradoria e da devida comprovação". Além disso, deve-se observar a cada caso se a Justiça Desportiva tem competência para julgar.

Especialista em Direito Desportivo, o advogado Mauricio Corrêa da Veiga, do Corrêa da Veiga Advogados, aponta também que o Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003) coíbe o estelionato desportivo, sendo esse considerado como fraude de resultado de competição esportiva. Nesse caso a pena é de reclusão de 2 a 6 anos.

"Particularmente, tendo em vista a ausência de uma previsão penal específica, entendo que este artigo pode ser aplicado, caso a 'corrupção' seja praticada no Brasil", afirma.

Como exemplo ele cita a hipótese de um dirigente desportivo (que não servidor público) que recebe dinheiro para favorecer determinada cidade para sediar evento desportivo. "Particularmente, entendo que ele está enquadrado no crime de estelionato desportivo, pois indiretamente tal conduta poderá adulterar resultado de partida ou competição (artigo 41-C e 41-E da Lei 10.671/03)", diz.



Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 5 de junho de 2015, 10h48

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Presidente do TST abre audiência pública sobre terceirização no Senado


O presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Barros Levenhagen, participou nesta segunda-feira (13) de audiência pública interativa promovida pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal para debater as novas regras de terceirização de mão de obra. Convidado pelo senador Paulo Paim (PT-RS), o ministro afirmou que, enquanto estiver em vigor, a Súmula 331 continuará a ser aplicada pelo TST. O Projeto de Lei 4.330/2004, que teve o texto-base aprovado na semana passada pela Câmara dos Deputados, será analisado agora pelo Senado.

Jurisprudência

Ao abrir sua exposição, o presidente do TST afirmou ser "equivocada" a ideia de que a Justiça do Trabalho seja protecionista. "Nós aplicamos uma legislação que tenta equilibrar forças dando superioridade jurídica ao trabalhador diante da superioridade econômica da empresa", explicou. "Hoje, a Constituição Federal privilegia os acordos coletivos porque, por mais que possa tentar dirimir as controvérsias, a Justiça do Trabalho não seria tão eficaz quanto os próprios envolvidos para chegar a uma solução boa para todos".

Ressaltando que não falava como presidente do Tribunal, e sim como cidadão e magistrado, Levenhagen fez um histórico do fenômeno da terceirização, lembrando que essa modalidade de contratação surgiu nos Estados Unidos e na Inglaterra no bojo do Consenso de Washington, durante os governos Margareth Thatcher e Ronald Reagan, "uma época de sobrevalorização do capital". A prática foi adotada pelo Brasil "sem grandes discussões" também num período de maior exacerbação do capitalismo. "Empresas surgiram do dia para a noite, contratando trabalhadores pouco qualificados que não tinham as mesmas vantagens dos empregados diretos, configurando uma situação de rematada injustiça", afirmou.

Foi nesse contexto de "terceirização predatória" que, na ausência de legislação específica, o TST começou a construir sua jurisprudência sobre a matéria. Em 1993, o Tribunal editou a Súmula 256, revogada em 2003, substituída pela Súmula 331.

Levenhagen definiu como equivocada a ideia de que o TST teria legislado o tema. Ele citou os artigos 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) e 126 do Código de Processo Civil (CPC) para explicar que o juiz não pode deixar de decidir alegando lacuna na lei, e, nesses casos, deve recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. "Com uma quantidade enorme de processos decorrentes da terceirização, o Tribunal tinha de se posicionar", afirmou.

O posicionamento adotado foi sendo aperfeiçoado ao longo dos anos, com as mudanças introduzidas na Súmula 331. A última alteração é de 2011, com a introdução dos itens V e VI, que tratam da responsabilidade da Administração Pública e da abrangência da responsabilidade subsidiária do contratante.

Equilíbrio

Levenhagen afirmou que confia no Parlamento brasileiro, como pilar da democracia, para encontrar o equilíbrio na regulamentação. "O Senado Federal tem de verificar para que não haja precarização", afirmou. "Não consigo entender que a garantia da produtividade implique subtrair direitos dos trabalhadores".

O ministro observou que o inciso IV do artigo 1º da Constituição Federal coloca os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa no mesmo patamar como fundamentos da República. "Não se pode pensar num Brasil grande, com melhor distribuição de renda, sem a garantia da dignidade do trabalhador, da mesma forma que não se pode pensar no empregado sem valorizar a empresa", afirmou, lembrando que o TST "age com dureza contra o mau empregador para garantir o emprego".

Com relação à análise do PL 4.330 Levenhagen assinalou que o Senado, como casa revisora, pode ter um debate "menos acalorado" sobre o tema. "É da essência do Senado acalmar tensões, e tenho certeza de que vai olhar com bastante atenção para o tema, evitando a precarização excessiva", afirmou.

Entre os possíveis aperfeiçoamentos, o ministro admite que se estabeleça um percentual máximo para a contratação de terceirizados e mecanismos para garantir a isonomia entre empregados efetivos e prestadores de serviços, como a observância das convenções coletivas de trabalho da categoria principal do tomador de serviços.

Agradecimento

O presidente do TST agradeceu aos Senadores pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2010, que altera o artigo 92 da Constituição Federal para explicitar o TST como órgão do Poder Judiciário. A proposta, aprovada em segunda votação pelo Plenário do Senado em março, segue agora para a Câmara dos Deputados.

(Carmem Feijó. Foto: Fellipe Sampaio)

Fonte: TST

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Inconveniências que pedem resposta da Justiça




Há situações que podem deixar alguém embaraçado: uma piada desconfortável, um gesto grosseiro, um comentário impertinente... Algumas delas, entretanto, extrapolam os limites das chateações cotidianas tão comuns nas relações sociais e passam a requerer uma reparação. São os casos de constrangimento moral, os episódios humilhantes diante dos quais, muitas vezes, nem a ação da Justiça parece trazer conforto.

O banco de jurisprudência do STJ reúne milhares de casos sobre constrangimento moral, que vão desde falsos registros em cadastros de devedores, passando por notícias inconvenientes em jornais e revistas, até humilhações em bancos e lojas. Aos magistrados cabe a tarefa de dizer se há ou não exagero nas alegações, se houve mesmo exposição ao ridículo ou se tudo não passou de simples aborrecimento e, quando for o caso, de avaliar criteriosamente o montante da indenização.

Salário inexplicável

Em 2009, o STJ julgou um caso em que o estado do Rio Grande do Sul foi obrigado a pagar indenização por ter vazado lista com os 200 maiores salários pagos a servidores. Detalhe: contudo, a lista trazia erro. O dano foi agravado pela publicação da lista em uma reportagem jornalística que apresentou o nome do servidor e seu salário corretamente, mas lhe atribuiu um cargo que jamais exerceu, fazendo a remuneração parecer desproporcional.

Os ministros afirmaram na ocasião que a sociedade tem o direito de conhecer o salário dos servidores, pois é uma forma de controle necessária no Estado Democrático de Direito. Todavia, há a responsabilidade civil do estado pela imprecisão dos dados divulgados. No caso, os dados foram veiculados incorretamente na imprensa por conta do erro estatal e expôs a pessoa ao ridículo ao apresentar um suposto operador de VT como detentor de um dos maiores salários da administração (REsp 718.210).

Outro caso de constrangimento julgado pelo STJ envolveu um contínuo que, em novembro de 2009, foi expulso de um vagão exclusivo para mulheres no metrô do Rio de Janeiro. Ele alega que entrou distraído no vagão, quando um guarda o retirou bruscamente pelo braço, rasgando sua camisa, e depois o levou para uma sala onde teria sido intimidado verbalmente por seguranças da empresa.

A companhia responsável pela locomotiva foi condenada a pagar R$ 15 mil de reparação. Os magistrados consideraram que o contínuo deveria ter sido convidado a deixar o vagão antes de qualquer outra atitude por parte da segurança, mas, com base no que foi relatado nos autos, entenderam que houve uma situação de exposição ao ridículo (AREsp 385.125).

Fora do normal

Em algumas decisões, o STJ estabeleceu que deve ser tida como humilhante qualquer situação que fuja à normalidade e que seja capaz de interferir no estado psicológico do indivíduo a ponto de lhe causar aflição, angústia ou desequilíbrio em seu bem-estar. Para o tribunal, não há humilhação quando se constata que não houve tratamento abusivo (REsp 658.975).

Ao analisar o caso de uma pessoa que reclamava do aborrecimento sofrido diante do mau funcionamento da porta giratória de um banco, o ministro Castro Filho (já aposentado) explicou que o dano pode resultar do constrangimento acarretado não pela situação em si, mas por seus desdobramentos (REsp 551.840).

Para conseguir entrar na agência, o cidadão precisou fazer várias tentativas, ao longo das quais foi retirando todos os pertences que contivessem partes metálicas, até mesmo cintos e botas, situação que se prolongou por mais de 20 minutos.

O ministro concluiu que o pagamento da indenização era devido não pelo mau funcionamento da porta giratória, mas pela maneira como os prepostos do banco agiram diante da situação. Para ele, a conduta dos empregados ou da instituição frente a um problema desses pode minorar seus efeitos ou agravá-los.

Castro Filho considerou que a existência de porta com detector de metais nas agências é necessária para a segurança de todos, e isso às vezes causa aborrecimentos para os clientes. Mas, segundo o ministro, dependendo de como o pessoal do banco conduza a situação, o que seria um simples contratempo pode se converter em fonte de vergonha e humilhação, capaz de justificar indenização.

Em processo julgado em 2005, os ministros reconheceram o dano sofrido no Rio Grande do Sul por um consumidor quando o alarme antifurto soou no momento em que ele deixava o estabelecimento comercial. Nenhum dos empregados da loja percebeu de imediato que a etiqueta de segurança não fora destacada por equívoco do caixa. O consumidor ficou por algum tempo envolvido em uma situação de estresse na frente de outras pessoas, o que configurou direito a indenização (REsp 552.381).

Diploma demorado

O constrangimento pode resultar da demora na expedição de um diploma de curso superior, por exemplo. A Terceira Turma, ao analisar um desses casos, entendeu que a demora de mais de dois anos para a instituição de ensino expedir o diploma é fato grave, apto a gerar indenização por danos morais.

Os responsáveis pela escola não alertaram os alunos acerca da impossibilidade de registro do diploma quando da conclusão do curso. Os ministros consideraram que a demora expôs o aluno ao ridículo, especialmente porque ele concluiu a faculdade, mas não pôde exercer sua profissão (REsp 631.204).

Uma situação que comumente causa constrangimentos é a cobrança de dívida, especialmente quando feita em locais públicos e na presença de outras pessoas. O artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) não permite cobranças em que o devedor seja exposto ao ridículo nem que ele seja submetido a situações vexatórias (REsp 412.560).

Em caso julgado em 2010, a Terceira Turma condenou um banco a pagar R$ 50 mil a uma aposentada como indenização por cobrança indevida e pela injusta inclusão de seu nome na Serasa.

A aposentada havia comprado um aparelho de videocassete em 12 parcelas. Embora informasse já ter pago a dívida completamente, continuava a receber correspondência de cobrança.

O auge do constrangimento ocorreu quando tentou tomar um empréstimo para custear despesas do casamento da filha, porém não conseguiu o financiamento porque estava na condição de devedora inadimplente. Ela ingressou na Justiça e ganhou o direito à reparação.

Fofoca social

Um famoso ator de TV ajuizou ação de indenização contra a revista Quem Acontece por ter publicado foto em que ele aparecia beijando uma mulher desconhecida, fato que, segundo disse, teria provocado consequências para sua família e abalado seu casamento (REsp 1.082.878).

Ao não conhecer do recurso interposto pela revista, a ministra Nancy Andrighi considerou que o ator, por ser figura pública, tem o direito de imagem mais restrito do que outras pessoas, e assumiu o risco de ter sua fotografia publicada.

A foto foi tirada em local público – um estacionamento próximo do restaurante onde o ator esteve – e retratava uma situação que realmente aconteceu. A ministra afirmou que, em certas profissões, a divulgação de fofocas pode até beneficiar o artista, contribuindo para a ideia de glamour que ronda tais carreiras.

Mesmo com essas considerações, ficou mantida a indenização de R$ 5 mil imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A primeira instância havia fixado indenização de R$ 40 mil.

Casamentos

Ainda na área de fofocas sociais, a Terceira Turma entendeu que a Editora Caras deveria pagar indenização por dano moral e material ao atleta Álvaro Affonso Miranda Neto, mais conhecido como o cavaleiro Doda, por reproduzir sem autorização fotos de seu casamento com a jovem Athina Onassis, ocorrido em 2005 (REsp 1.461.352).

Os ministros não conheceram do recurso da editora contra a condenação fixada pela Justiça de São Paulo, que entendeu que a revista Caras ultrapassou em muito os limites da liberdade de informação.

A chamada de capa da revista dizia “Cavaleiro que ainda recebe mesada do pai, de 45 mil reais, casa-se com a jovem mais rica do mundo”. A Justiça paulista considerou a manchete depreciativa, pois induzia o leitor a pensar que Doda, embora renomado atleta, seria um mero aproveitador que vivia à custa do pai e passaria a desfrutar da riqueza da esposa.

A indenização por danos materiais pela reprodução não autorizada das fotos foi fixada em R$ 30 mil. A reparação dos danos morais causados pela manchete considerada depreciativa à honra do atleta ficou em R$ 50 mil.

Já em um caso envolvendo não famosos, em 2008, os ministros reconheceram a necessidade de reparação a uma mulher que teve publicada por jornal do Rio Grande do Norte uma foto em que aparecia ao lado de homem apresentado como seu noivo (REsp 1.053.534). A notícia era que se casariam, mas na verdade não era ela a noiva. A mulher estava, sim, de casamento marcado, mas com outra pessoa. O STJ restabeleceu o valor da sentença, que fixou a indenização em R$ 30 mil.
fONTE: stj

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Em decisão, Suprema Corte dos EUA exige simplicidade nas petições







As recentes discussões na comunidade jurídica americana sobre a linguagem das petições chegaram à Suprema Corte dos EUA. Em decisão unânime, em um “processo disciplinar extraordinário”, os ministros advertiram advogados e procuradores que atuam na corte: as petições devem ser redigidas em plain terms — que significa linguagem clara, direta e objetiva.

Em dezembro de 2014, a Suprema Corte abriu um processo disciplinar extraordinário contra o advogado Howard Shipley, da banca Foley & Lardner, por apresentar à corte uma petição, em um caso de patente, repleta de juridiquês, jargões técnicos, abreviaturas e tipografia incomum”. Pior que isso, por permitir que o cliente participasse ativamente da redação da petição e colocasse nela seu próprio nome.

A corte deu um prazo de 40 dias para o advogado se defender, explicando aos ministros por que não deveriam lhe aplicar uma sanção. O escritório de Shipley contratou, para defendê-lo, o advogado e ex-procurador-geral Paul Clement, considerado, nos EUA, o “redator jurídico mais claro do planeta”.

Clement reconheceu que a petição tinha uma redação nada ortodoxa, mas que isso se deve a um cliente difícil, que “insistiu em manter o controle primário” de seu conteúdo. E que, de qualquer forma, ela refletiu de forma clara e fiel a visão do cliente.

Além disso, foi necessário conciliar, tanto quanto possível, as demandas conflitantes da lealdade que o advogado deve ao cliente e de seu dever perante as regras da corte. Acrescentou que o produto final seria bem diferente, se o cliente fosse uma pessoa mais respeitadora. Argumentos à parte, os ministros da Suprema Corte também respeitam Clement. E em uma breve decisão, os ministros fizeram uma advertência válida para todos os advogados.

“A resposta foi apresentada e a ordem para se defender, de 8 de dezembro de 2014, fica extinta. Entretanto, todos os advogados que atuam na corte ficam advertidos que devem cumprir as exigências da Regra 14.3 da Suprema Corte, segundo as quais as petições de certiorari (de remessa dos autos) devem ser redigidas em linguagem clara, direta e objetiva. E essa responsabilidade não pode ser delegada ao cliente”.

A chefe da Suprema Corte, Lisa Blatt, disse ao Legal Times: “É sempre bom se lembrar de que é melhor contar sua história com simplicidade. Todos os advogados, promotores e procuradores devem obedecer a regra de ouro: faça de conta que você é o juiz, quando estiver redigindo uma petição”.

Agitação
Muitos advogados se disseram chocados com o fato de Shipley deixar o cliente escrever a petição. E pelo fato da Suprema Corte fazer a recomendação, não solicitada, aos advogados em geral, renovando a discussão perene sobre alguns advogados que escrevem petição densas, pomposas e recheadas de juridiquês.

“Quase todos os advogados me dizem que redigir em linguagem clara, direta e objetiva faz mais sentido, disse ao Legal Times o advogado e jornalista Hank Wallace, que ensina redação em plain language em seminários para advogados e outros profissionais. “Porém, alguns de seus chefes ou mesmo o cliente podem achar a petição fraca, sem dignidade. Ou eles não acham isso, mas seu oponente no tribunal pode considerar a petição fraca, sem dignidade”.

“Porém, se uma petição for muito vaga e sem fundamentos, o juiz irá cobrar isso do redator. No entanto, a redação em linguagem clara, direta e objetiva é um seguro contra constrangimento”, afirmou.

Para o presidente da Legal Writing Pro, Ross Guberman, não será fácil para os advogados mudarem a marcha. “Há um mito predominante de que os advogados escrevem petições complicadas de propósito e que poderiam mudar isso se quisessem. Porém, é realmente muito difícil para o redator jurídico escrever apenas sentenças simples e claras, a não ser que tenham uma forma de pensar muito clara e uma capacidade de edição impecável”.

“A Suprema Corte dificilmente pratica o que ela prega. Essa regra que exige redação em linguagem clara, direta e objetiva é uma simplificação exagerada que os próprios ministros não cumprem em suas decisões”, ele disse. Guberman é o autor do livro Ponto feito: Como escrever à semelhança dos melhores advogados da nação, lançado em 2014, e do livro Ponto aceito: Como escrever à semelhança dos melhores juízes do mundo, a ser lançado este ano.

Ele adverte, no entanto, que os advogados não podem assumir que todos os juízes, desembargadores e ministros estão familiarizados com todas as tecnicalidades de todos os campos do Direito, muitos menos daquelas específicas da área de atuação do cliente. Na verdade, o processo pode cair nas mesas de juízes generalistas que terão muita dificuldade de entender um texto tecnicamente complexo.

O presidente do comitê executivo da Sidley Austin, Carter Phillips, disse aoLegal Times que advogados novos costumam pensar, erradamente, que o juiz entende ou se importa com a questão proposta na petição mais do que realmente ele realmente entende ou se importa ou, ainda, que tem tempo para se dedicar a ela. “Os advogados experientes sabem como é importante “traduzir materiais ou ideias complexas em algo que é realmente fácil de entender, se a redação for em linguagem clara, direta e objetiva".
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João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.



Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2015, 11h19

terça-feira, 10 de março de 2015

Justiça não é sinônimo de justiçamento




[Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo desta segunda-feira (9/3) com o título Prende e solta]

O título deste artigo revela autoria única. Quem prende e solta é o Estado-juiz, gerando toda sorte de perplexidade, de decepção para os cidadãos em geral. A ordem natural direciona a apurar para, selada a culpa, prender, em execução da pena privativa da liberdade de ir e vir.

Esse enfoque decorre da presunção do que normalmente ocorre; mais do que isso, do princípio constitucional da não culpabilidade: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

A impossibilidade de voltar-se ao estado de fato anterior exclui a denominada execução provisória da pena. A liberdade perdida, ante postura precoce, temporã, açodada, foge ao campo da devolução. Há, pois, de admitir-se uma premissa: o acusado, até então simples acusado, deve responder ao processo-crime em liberdade, assim permanecendo sob os holofotes da persecução penal, o que não é pouco em termos de reputação perante a sociedade.

A Constituição Federal, de forma indireta, contém mitigação a esse princípio, ao versar não só que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, como também que ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

A prisão temporária é exceção, e mais ainda o é a preventiva. Presente o princípio da não culpabilidade, o legislador veio a afastar, como título da prisão provisória, até mesmo, o flagrante. Fê-lo mediante lei de 2011, estabelecendo a necessidade, se for o caso, de conversão em preventiva, uma vez não sendo oportuna e satisfatória a adoção, no caso concreto, de uma das medidas acauteladoras nela previstas.

Mas por que a população carcerária provisória chegou a patamar praticamente igual ao da definitiva, levando o Conselho Nacional de Justiça, na gestão do ministro Gilmar Mendes, a realizar um verdadeiro mutirão de soltura?

As razões mostram-se muitas. São potencializados — em inversão de valores, em abandono de princípios, da máxima segundo a qual, em direito, o meio justifica o fim, mas não este, aquele — aspectos neutros, de subjetivismo maior, sobressaindo o critério de plantão e, com isso, grassando a incerteza, a intranquilidade, a insegurança.

Em visão míope — e de bem-intencionados, nesta quadra estranha, o Brasil está cheio —, passou a vingar não o império da lei, mas a óptica do combate, sem freios, dos desvios de conduta, da corrupção, da delinquência de todo gênero.

A prisão preventiva talvez amenize consciências ante a morosidade da Justiça, dando-se uma esperança vã aos cidadãos, como se fosse panaceia perante esse mal maior que é a impunidade. A exceção virou regra, implementando-se, com automaticidade e, portanto, à margem da regência legal, esse ato de constrição maior que é a prisão.

As decisões nesse campo carecem de fundamentação, desaguando na concessão de ordem em habeas corpus. Por vezes, potencializa-se a imputação e, em capacidade intuitiva, presume-se que, solto, o investigado voltará a delinquir. Que se apure, viabilizando-se, à exaustão, o direito de defesa, para então, depois de incontroversa a culpa, limitar-se a liberdade, bem suplantado apenas pela própria vida.

Não é demasia lembrar Machado de Assis — a melhor forma de ver o chicote é tendo o cabo à mão. Justiça não é sinônimo de justiçamento. A sociedade não convive com o atropelo a normas reinantes. O desejável e buscado avanço social pressupõe o respeito irrestrito ao arcabouço normativo. É esse o preço a ser pago "e é módico, estando ao alcance de todos" por viver-se em um Estado Democrático de Direito.


Marco Aurélio Mello é ministro do Supremo Tribunal Federal.



Revista Consultor Jurídico, 9 de março de 2015, 11h32

Juíza aos 28 anos, miss-DF diz que sofreu preconceito por ser modelo





“Ainda há preconceito de que modelo não é inteligente, mas eu sempre fui boa aluna. As pessoas ficam surpresas ao saber que uma modelo-miss passou em vários concursos e hoje é juíza federal”. Assim, Alessandra Baldini narra um pouco do preconceito que teve de superar até se tornar juíza federal, aos 28 anos. Para ela, sua conquista é uma quebra de paridgma.

Antes de ser aprovada na magistratura, Alessandra foi modelo e miss Distrito Federal. Devido à carreira de modelo, que a fez interromper os estudos por duas vezes, ela disse que sofreu preconceito desde que começou a cursar Direito. “Na época da faculdade houve preconceito. A maioria das pessoas não acreditava que eu pudesse ser uma boa aluna, já que era modelo”, disse a juíza ao portal G1.

Para ela, a experiência com o mundo das misses poderá contribuir com sua atual carreira. "Aprendi a lidar com situações adversas — concorrência, fracasso etc — desde nova, em razão da competitividade do meio da moda. Independentemente da idade da modelo, os problemas advindos da carreira são de 'gente grande'", diz.

Segundo Alessandra, a vontade de se tornar juíza veio do contato com magistrados na faculdade. Além disso, ela manteve contato com a carreira quando advogou e, depois, quando foi analista do Supremo Tribunal Federal. Ao todo, ela foi aprovada em seis concursos públicos, entre eles para analista do Superior Tribunal de Justiça, defensora pública e procuradora do Banco Central.

Agora ela conta que não pretende fazer mais concursos, pois chegou aonde queria. Segundo a jovem, agora é iniciar a carreira com dedicação total. “Essa nova fase demandará não apenas o conhecimento jurídico adquirido ao longo dos anos, mas também maturidade e sensibilidade para lidar com conflitos concretos", diz.


Revista Consultor Jurídico, 9 de março de 2015, 16h39

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Não há justificativa legal para que se criem barreiras ao humor






“...a importância, para o homem e a sociedade, de que se garanta plena liberdade à natureza humana para se expandir em inumeráveis e conflitantes direções”[i]

J.S. Mill

Ano passado, em um debate sobre liberdade de expressão, para o qual fui honrosamente convidado, em determinado momento perguntaram-me se havia de existir limites para o humor. Efetivamente se questões religiosas, étnicas, bem como opções sexuais seriam os limites intransponíveis para o exercício do riso, a ponto de qualquer assunto desse chamado núcleo duro constituir uma ilegalidade.

Recentemente dois episódios colocaram o assunto novamente em destaque. O primeiro evento foi o atentado ao jornal francês Charlie Hebdo, que havia publicado em suas páginas caricaturas de Maomé; e o segundo, acontecido em terras nacionais, trata-se da veiculação, pelo grupo de humor — interessantíssimo, e conhecido de todos — Porta dos Fundos, de sátira das passagens bíblicas relacionadas ao nascimento e crucificação de Cristo.

Se adotarmos o conceito de que o humor é qualquer mensagem cuja intenção é a de provocar o riso ou um sorriso, entenderemos que através de filmes, do teatro, da música, da literatura, dos jornais, das revistas, dos programas radiofônicos, da internet e da televisão faz-se humor.

Segundo registros, o humor foi estudado pela primeira vez na Antiguidade, talvez com Aristóteles. Cícero também é fonte do vocabulário romano de humor[ii]. Não há como esquecermos dos chamados bobos da corte, que, entre os séculos XIV e XVI, tinham como objetivo fazer rir reis e rainhas da monarquia. Pelo humor, os “bobos” estavam até autorizados a criticar o comportamento da monarquia. Mais recentemente, pelo século XVI e XVII, o dramaturgo Willian Shakespeare produziu inúmeras obras que tinha o humor como forma de expor suas observações.

Percebe-se, portanto, que o humor sempre fez parte do caminho da humanidade.

Shakespeare talvez seja um bom exemplo para partirmos para a análise dos limites do humor, tendo em vista que suas obras, ainda que na roupagem do humor, tinham como finalidade muito mais do que provocar o riso. As obras do referido dramaturgo impunham uma reflexão dos conflitos da humanidade, das crises de amor, de comportamento e de preconceitos sociais.

Lendo as obras de Shakespeare, ou mesmo estudando as funções do bobo da corte, é que podemos entender melhor a finalidade do humor, admitindo que o riso talvez não seja a principal finalidade da obra, mas sim apenas um brinde, um algo a mais, em que o tema central sejam a verossimilhança dos fatos retratados, a permitirem uma reflexão, uma crítica.

"Humorismo não é apenas uma forma de fazer rir. Isto pode ser chamado de comicidade ou qualquer outro termo equivalente. O humor é uma visão crítica do mundo e o riso, efeito colateral pela descoberta inesperada da verdade que ele revela", asseverou o então ministro Carlos Ayres Brito no julgamento da ADI 4.451.

O humor, além de evidentemente ser marcado pela descontração, vale-se do exagero, da hipérbole, do óbvio, do absurdo como premissa para qualquer análise a respeito da possibilidade de se impor limites a esse tipo de comunicação.

Nos anos 80, no auge do grupo Os Trapalhões, a troça que mais se fazia era a de brincar com a etnia do personagem Mussum, com a característica do personagem negro e que gostava de tomar um “mé”. Também Zacarias era um personagem central da graça, em razão de suas características físicas, como também fora Didi, um personagem que encarnava o nordestino por vezes inocente e outras tantas perspicaz, tal qual em Macunaíma. Todos que assistiam ao programa tinham como premissa para as suas interpretações, mesmo que inconscientes, que se tratava de graça, de humor, cujas palavras expressadas pelos personagens não podiam ser interpretadas literalmente.

Em tempos mais presentes, podemos citar a frase de Danilo Gentili postada na internet, em que, diante da possibilidade de o bairro de Higienópolis receber uma estação de metrô e dos moradores desse antigo e tradicional local terem se manifestado contrariamente à linha metroviária, o humorista assim escreveu: "entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz", em clara referência ao campo de concentração nazista e por conta de o bairro concentrar inúmeros descendentes de judeus.

Em nenhuma dessas passagens percebe-se a vilania da ofensa como propósito da graça. Este é ponto central para, a nosso ver, afastar o policiamento que se faz a respeito do humor, buscando-se defender que determinados assuntos não podem ser objeto dessa forma de manifestação do pensamento.

Lembrando do que falamos no primeiro artigo desta coluna, o legislador constituinte deixou bastante claro a impossibilidade de intervenção estatal no exercício da manifestação de pensamento (artigo 5º, inciso IX e artigo 220, parágrafo 1º da CF). E nesse sentido não há justificativa legal para que se criem barreiras ao humor, mesmo para os assuntos duros como etnia, sexualidade, política e religião.

Daí porque acertada a decisão da justiça paulista que determinou o arquivamento do procedimento instaurado contra o grupo Porta dos Fundos, que satirizava o nascimento e crucificação de Cristo. Como também temos de lamentar a agressão ao jornal francês, por conta das charges de Maomé estampadas em seu periódico, pois elas, de bom ou mau gosto, representam uma forma de exercício da palavra, uma manifestação da democracia.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.451, assim se manifestou a respeito do humor:

“O humor presta serviço à Democracia. Com seu modo elegante ou um tanto agressivo, fino ou mais explícito, direto ou por ironia, ele consegue escancarar os conflitos sociais, políticos e culturais de uma forma não violenta, mas reflexiva. E reflexiva da melhor maneira, através do sorriso.”

Nesse sentido, Bobbio[iii] e Alexis de Tocqueville[iv] há muito sustentam que a democracia pressupõe o exercício do juízo crítico pelos cidadãos, de modo que privar a sociedade de separar a hipérbole da realidade é negar ao país uma maior democratização.

Há uma confusão estabelecida para se defender a condenação do mau humor como se ato ilícito fosse, muito possivelmente por conta de uma interpretação canhestra dos que defendem o politicamente correto. Na passagem do humorista Danilo Gentili, acima citada, em que faz alusão a Auschwitz, como nas caricaturas de Maomé feitas pelo jornal francês, ou ainda a brincadeira feita pelo Porta dos Fundos, podemos condenar o mau gosto, a desnecessidade dessa abordagem ou a forma dessa abordagem, mas em hipótese alguma concordamos que se trata, por si só, de violação às normas jurídicas. Como faço questão de sustentar, mau gosto não é ilícito.

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça analisou demanda que discutia a prática de humor e assim se manifestou:

“...a respeito do ‘nível’ do humor praticado pelo periódico – apontado como ‘chulo’ – não é tema a ser debatido pelo Judiciário, uma vez que não cabe a este órgão estender-se em análises críticas sobre o talento dos humoristas envolvidos; (...) Não cabe ao STJ, portanto, dizer se o humor é ‘inteligente’ ou ‘popular’. Tal classificação é, de per si, odiosa, porquanto discrimina a atividade humorística não com base nela mesma, mas em função do público que a consome, levando a crer que todos os produtos culturais destinados à parcela menos culta da população são, necessariamente, pejorativos, vulgares, abjetos, se analisados por pessoas de formação intelectual ‘superior’ – e, só por isso, já dariam ensejo à compensação moral quando envolvessem uma dessas pessoas...”[v]

Não se quer dizer, contudo, que o humor é uma excludente de ilicitude, de modo a permitir que o uso da palavra na forma de humor não possa resvalar numa ilegalidade. Dependendo das circunstâncias, poderá haver ofensa ou qualquer outra violação a direitos. Mas toda interpretação nas questões que envolvem o humor devem ser por demais elásticas, na medida em que é da essência da "caricatura, da sátira e da farsa operarem mediante deformações hiperbólicas da realidade, residindo nesse exagero ou distanciamento dramático em relação ao real, que pode ser tanto dos eventos históricos-sociais, como das pessoas ou das coisas o fator específico da identidade dessas formas de criação artística e da sua comicidade mesma, cujas manifestações, neste caso, constituem o elemento alegórico de uma crítica severa, mas justa, inspirada por motivo de grande valor social" (Cesar Peluso, ADI 4.451).

A elasticidade para a interpretação do humor deve levar em consideração as pessoas, os fatos e as circunstâncias objeto da graça. Da mesma forma que para uma crítica jornalística em que os atores da vida pública devem tolerar mais as notícias, o mesmo deve acontecer para o humor.

Nos tempos atuais há, sem dúvida alguma, uma suscetibilidade exagerada, em que uma crítica ou uma sátira mais cáustica provocam toda sorte de intolerância, como a que motivou o deputado Marco Feliciano a representar o site Porta dos Fundos por conta da esquete intitulada Especial de Natal, bem como contribuiu — além evidentemente de um radicalismo religioso —, para o atentado ao jornal francês Charlie Hebdo.

É fácil defender a liberdade de expressão, a Democracia, quando temos de apenas concordar com o direito que entendemos como certo. Na medida em que somos objeto dessa liberdade, agimos como tiranos contra a nossa própria conquista. Como escreveu o articulista da Folha de S. Paulo, Contardo Caligaris, "a liberdade do vizinho (sobretudo se ele for muito diferente de mim) é sempre a melhor garantia da minha própria liberdade."



[i] Mill, John Stuart. A liberdade: Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000


[ii] Conf. Bremmer, Jan e Roodengurg, Herman. Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000, p. p. 17


[iii] Bobbio, Norberto. O futuro da democracia;


[iv] Tocqueville, Alexis de. La Democracia en América


[v] RESP 736.015


Alexandre Fidalgo é advogado e sócio do escritório Espallargas Gonzalez Sampaio Fidalgo Advogados.



Revista Consultor Jurídico, 25 de fevereiro de 2015, 8h23

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? O modelo alemão





A classe dos professores mandarins
A figura do imperador do Sacro Império Romano Germânico sempre foi envolta em uma áurea de simpatia popular, ao menos em sua dimensão mítica. O exemplo mais perfeito do soberano “desejado das gentes” é do Frederico Barba-Ruiva (1122-1190), que morreu afogado ao tentar atravessar o rio Sèlef, na região da atual Turquia, quando comandava a Terceira Cruzada, cujo objetivo era retomar Jerusalém das mãos de Saladino. Seu desaparecimento, aliado ao fato de não terem encontrado seu corpo, alimentou lendas muito parecidas com as que até hoje cercam D. Sebastião em Portugal. Frederico tentou centralizar o poder em pleno feudalismo, combatendo os poderes da aristocracia local, no que era visto pelo povo como alguém capaz de controlar os abusos da nobreza sobre os camponeses e habitantes dos burgos.

No Segundo Reich, nascido após as guerras prussianas contra a Dinamarca (Guerra dos Ducados do Elba), a Áustria e a França, o mito do “bom imperador” ressurge com força, especialmente em um cenário marcado pela conservação de enormes poderes pelos reis, príncipes e duques da Alemanha recém-unificada em 1870. Essa rivalidade entre o imperador e a fidalguia regional foi muito bem explorada pelos soberanos da nova Alemanha. Entre os camponeses e a crescente classe operária, o poder central era um anteparo contra os excessos dos representantes do poder local, que, por estar próximo e visível, é sempre mais odioso do que aquel’outro, mais distante e por isso mesmo com menor capacidade de controle. Um exemplo da impopularidade dessa aristocracia rural está no belíssimo filme A fita branca, de 2009, dirigido por Michael Haneke.

Para auxiliá-lo a administrar o estado alemão, sem ficar refém da aristocracia, que já dominava o Exército e a carreira diplomática, após 1870, os imperadores firmaram uma aliança informal com uma classe antiga, mas que só a partir do século XVIII começou a ganhar consciência de seu próprio poder. Tratava-se dos acadêmicos, dos professores universitários, ou, como prefere Franz K. Ringer, dos “intelectuais mandarins”. Ringer formulou a interessante hipótese de que os soberanos do Segundo Reich incentivaram a ocupação de postos relevantes na burocracia estatal pelos professores, aproveitando-se de seus conhecimentos superiores e de seu senso de superioridade moral (quase religiosa naqueles tempos de cientificismo extremo), a fim de criar uma nova aristocracia do mérito.

Como bem assinalou Martônio Mont’Alverne Barreto Lima, a hipótese de Ringer já havia sido proposta em relação à burocracia imperial brasileira em artigo de Eul-So Pang e Ronald Seckinger.[1] Como afirmado na coluna que abriu esta série (clique aqui para ler), nossas ligações com as tradições imperiais de origem austro-alemã são mais profundas do que se imagina.

Alguns efeitos dessa política de Estado da monarquia alemã oitocentista foram logo sentidos. A qualificação de Herr Professor Doktor ganhou contornos de um autêntico título de nobreza e tornou-se praticamente uma partícula do nome civil de seus titulares, que figurava em cartões de visita, placas nas universidades e até em lápides e obituários publicados nos jornais. Esse processo ganhou tal dimensão que, segundo Franz K. Ringer, o recebimento dos títulos de Adel (fidalgo) e Ritter (cavaleiro), da baixa nobreza, que conferiam o direito ao uso da partícula von (de), não mais despertava o interesse dos “acadêmicos mandarins”, salvo notórias exceções como Otto Gierke, que recebeu o título de nobreza na década de 1900 e passou a ostentá-lo em suas publicações como Otto von Gierke.

Mesmo com a queda da Casa de Hohenzollern, a consciência de classe e a ocupação de papeis relevantes na sociedade alemã persistiu na República de Weimar. Os “acadêmicos mandarins”, desse modo referidos em alusão aomandarinato, a classe burocrática do velho Império da China, continuaram prestigiados, embora a crise de 1920-1930 haja comprometido sua condição remuneratória. Enfraquecidos economicamente, com a chegada no nazismo, muitos jovens professores assistentes agiram como alpinistas sociais e usaram da ideologia política (sociais democratas e monarquistas) ou étnica (judeus) dos catedráticos para derrubá-los e ocupar suas cadeiras nas universidades. Muitos dos demitidos nunca mais voltaram à universidade.

Com o pós-guerra, a universidade alemã foi reconstruída, seguindo-se os padrões de excelência do passado. Os professores, embora não mais possam ser considerados como uma classe de mandarins, dada a ampliação da elite econômica, política e cultural na Alemanha, são ainda hoje um grupo especial na sociedade alemã. Pode-se arriscar a dizer que não exista um país no mundo onde os catedráticos sejam tão bem remunerados, respeitados e valorizados quanto na Alemanha. O cargo de professor catedrático tem um prestígio equivalente ao de senador da República. O título de Herr Professor Doktor ainda possui o brilho de uma partícula nobiliárquica e a sociedade lhes reconhece uma preeminência nos negócios públicos sem par em muitas nações desenvolvidas.

Um símbolo dessa condição notável está nos 105 prêmios Nobel que a Alemanha recebeu, o que a coloca em terceiro lugar no ranking das nações agraciadas, perdendo apenas para os Estados Unidos da América (352), por razões óbvias, e para o Reino Unido (120), durante muito tempo a sede do “império onde o sol nunca se põe”. Considerando-se que a Alemanha foi arrasada duas vezes no século XX, não deixa de ser um número impressionante.

Em uma série de colunas sobre ensino jurídico, não se poderia ignorar essas particularidades da Alemanha, o país que será estudado hoje. Vamos agora examinar um pouco sobre a carreira docente alemã, com evidente ênfase no Direito, embora muitos dados sejam intercambiáveis para outras áreas.

É importante conhecer as características do modelo alemão sob 3 aspectos: a) o docente; b) a universidade e c) a formação discente. 

A docência jurídica na Alemanha
Na Alemanha, diferentemente do que se dá no Brasil, a palavra professor é exclusiva do ocupante do cargo equivalente brasileiro a “professor titular”. O professor alemão é o catedrático e somente este. Nesse sentido, os professores assistentes, adjuntos e associados (títulos brasileiros inferiores ao de titular) não correspondem tecnicamente às expressões alemãsrichtiger Professor, Vollprofessor, Ordentlicher Professor. No plano de carreiras alemão, esses docentes são qualificados por letras, que correspondem a sua remuneração. O catedrático é o professor C4, embora raramente se encontre nessa classe os professores C3. É condição prévia para a obtenção desse cargo ter o candidato prestado o exame de habilitação, com a defesa de uma tese (Habilitationsschrif), o trabalho mais importante na carreira de um docente, que anteriormente já deve ter sido aprovado no doutorado (Promotion).

Abaixo de catedrático, há uma série de posições acadêmicas, como a deMitarbeiter, Assitent, Privatdozent, Referent ou ainda außerplanmäßiger Professor. O professor catedrático, à semelhança do modelo brasileiro pré-reforma educacional dos anos 1970, é um polo em torno do qual se associam pesquisadores mais jovens, assistentes de docência, estagiários em números inimagináveis para os padrões brasileiros.

A escolha dos candidatos à cátedra (Lehrstuhl, literalmente “cadeira de lente”) dá-se por meio de uma seleção pública composta de etapas como entrevista, análise de currículo e uma exposição, que pode ser uma palestra ou uma aula, com base em texto escrito para esse fim. Evidentemente, é pré-requisito ter o candidato a Habilitation. As bancas funcionam como autênticos “comitês de busca”, elegendo para as vagas um perfil de professor ideal, cujas características o escolhido deve preencher. Para um brasileiro, esse sistema seria chocante pelo elevado grau de subjetividade e pessoalidade da seleção. Há, no entanto, uma série de contrapesos: não se pode ser professor na instituição que foi a alma mater do candidato, o que impõe uma severa exogenia e faz com que se oxigenem as composições dos corpos docentes. A figura do Doktorvater (orientador) é muito relevante para o futuro da carreira do candidato à docência. 

Existem, ainda, contratações de professores catedráticos entre instituições. Universidades menores ou menos prestigiadas oferecem condições especiais para atrair catedráticos de outras instituições, como, por exemplo, auxílio-moradia, transporte ferroviário e bônus remuneratórios, à moda do que se dá nos Estados Unidos. Não necessariamente o catedrático precisa residir na cidade-sede da instituição. É comum haver professores com duplo domicílio ou mesmo exercendo atividades de pesquisador em um local e docente em outro.

Um número também surpreendente: na Alemanha há, em termos aproximados, 950 catedráticos em cursos jurídicos.[2] Martônio Mont’Alverne Barreto Lima e Marcelo D. Varella, em estudo de enorme impacto sobre a revalidação de títulos estrangeiros no Brasil, reforçam esses números: “A gigantesca Universidade Livre de Berlin possui 50 professores; a Universidade de Bremen tem 15 professores; a de Frankfurt/M. possui 28 professores; a de Munique, 31; e a de Münster, 30. Ocorre que em cada uma destas o número de assistentes científicos, Lehrbeauftragter, Privatdozenten,Professor in Vertretung e de pesquisadores com atividades em centros de pesquisa vinculados à área de Direito ou em atividade conjunta com outras áreas (...), faz com que o reduzido número de professores, somado a esta força de trabalho de boa qualidade, porém não amadurecida, seja triplicado”.[3]

Essa quantidade tão reduzida de professores catedráticos, considerando-se os padrões brasileiros, é ainda mais eloquente quando comparada ao número de alunos: aproximadamente 100 mil discentes. E também ao número de faculdades de Direito: 43 escolas, sendo apenas três privadas, com sede em Hambugo, Wiesbaden e Lüneburg. Um detalhe: essas instituições privadas são pequenas e tentam seguir um caminho de excelência educacional. Exemplo disso é a Bucerius Law School, de Hamburgo, fundada em 2000, com orçamento anual de 16,8 milhões de euros em 2014, que possui menos de 600 estudantes de graduação, com 15 professores em dedicação exclusiva e 30 em tempo parcial, além de assistentes e visitantes. A Bucerius foi uma criação do político e jornalista

Gerd Bucerius (1906-1995), fundador do jornal Die Zeit, que foi juiz nos anos 1930 e lutou contra os nazistas, além de defender judeus. A ideia de Bucerius era criar um think tank e uma escola jurídica de qualidade, para o que deixou expressivos recursos em legado para essa finalidade.

O leitor deve-se indagar neste momento como podem tão poucos catedráticos exerceram o magistério para tantos alunos e em tão poucas instituições? A pergunta é mais do que oportuna e ela se justifica por uma aparente contradição decorrente de haver poucos professores, muitos alunos e poucas faculdades.

Não se quer avançar na estrutura das instituições e na formação discente, do que se cuidará na próxima semana. Logo, a resposta será parcial. Mas, vamos a ela.

Primeiramente, é necessário referir que o número tão pequeno de catedráticos implica a possibilidade do Estado alemão pagar boas remunerações para esses docentes, ao menos seguindo-se o padrão do serviço público e, em termos comparativos, com certas atividades do mercado privado. Segundo dados do CIHE - Center for International Higher Education, [4] no topo da carreira docente, a Alemanha paga o equivalente a 6.377 dólares norte-americanos. Na Europa, está abaixo do Reino Unido (US$ 8.369), Holanda (US$ 7.123), dois países com custo de vida mais elevado que o alemão. A Itália surpreende com o valor de 9.118 dólares norte-americanos, o mais alto padrão em solo europeu, perdendo apenas para o Canadá, quem melhor paga os catedráticos no mundo, com remuneração de U$9.485. O Brasil paga U$4.500 a seus professores titulares em final de carreira, o que implica uma diferença de 104 dólares a menos do que o padrão japonês. Esses dados variam muito se forem tomados pela média do início, do meio e do final da carreira. Nessa hipótese, a média brasileira seria de 3.179 dólares. Como, para esta coluna, importa somente os valores pagos aos catedráticos, o quantum médio é desconsiderado.

Em segundo lugar, deve-se ter em mente que o professor catedrático alemão não possui um regime de aulas sequenciais como se dá no Brasil. Ele profere a Vorlesung, uma espécie de aula magna, em períodos específicos (semanais ou quinzenais), para auditórios lotados com 100, 200 a 400. Em muitos casos, as aulas ocorrem em pavimentos diferentes, com uma parte da turma assistindo a Vorlesung por meio de telões, às quais também comparecem os alunos do Magister, um curso de pós-graduação, de variável natureza, conforme a universidade que o ofereça, equiparável, na maior parte dos casos, a uma especialização ou, mais raramente, a um mestrado. Posteriormente, os alunos reúnem-se com os assistentes e vão fazer estudos de casos, fortemente baseados no método subsuntivo e na exegese do Código Civil, nas disciplinas de Direito Civil.

Finalmente, há uma maior liberdade no comparecimento dessas aulas e no modo como os alunos se relacionam com a universidade e com as avaliações internas, do que se cuidará na próxima coluna.

Inserção jurídico-política do professor de Direito na Alemanha
A forte tradição de “acadêmicos mandarins”, embora relativamente transformada após 1949, não poderia deixar de repercutir nos dias de hoje. Os professores de Direito não se isolam em suas cátedras e não são mal vistos quando deixam a universidade para atuar politicamente ou em órgãos públicos. É muito comum a participação dos catedráticos de Direito no processo legislativo, por meio de oferta de projetos de lei ou pela crítica sistemática (e impiedosa) ao trabalho parlamentar, quando não são os próprios professores que se candidatam a cargos públicos ou assumem a chefia de ministérios, agências, autarquias e afins.

É igualmente vulgar a indicação de professores para cargos nos tribunais regionais ou superiores, quando não ao próprio Tribunal Constitucional Federal. Como bem destacou Tilman Quarch, em seu artigo Introdução à Hermenêutica do Direito Alemão: Der Gutachtenstil, publicado no volume 1 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, a relação entre professores e juízes é de complementariedade e de enorme respeito pelo trabalho de lecionar e de julgar, a despeito das críticas ácidas dos docentes a muitas decisões das cortes alemãs.

Existe ainda uma forte tradição de clivagem ideológica entre os professores de Direito. Os dois grandes partidos políticos – a União Democrática Cristã e o Partido Social Democrata – possuem fundações, à semelhança do que ocorre no Brasil, que financiam pesadamente estudantes e pesquisadores, além de publicações de teses (que são pagas pelos autores) e outros projetos acadêmicos, diferentemente do que se dá no Brasil. Desde cedo é possível identificar a orientação ideológica de muitos docentes, o que se reflete nas universidades. Em larga medida, isso não afeta a independência científica, porque não há uma apropriação “partidária” das instituições em níveis que comprometam sua independência. 

Conclusões parciais e algumas comparações: é um sistema ideal? 
O modelo de docência universitária alemão, particularmente a jurídica, tem enormes méritos. A remuneração é boa, mas não é a maior da Europa. Os catedráticos possuem condições de trabalho e de pesquisa muito superiores a seus congêneres europeus e ainda podem ser “disputados” em um saudável processo de concorrência entre as instituições, que só encontra paralelo equiparável nos Estados Unidos. A seleção é mais dinâmica e focada nas necessidades da instituição e não somente em aspectos formais que muitas vezes não selecionam os melhores candidatos. A existência de um grande número de assistentes, adjuntos e associados em volta do catedrático permite-lhe realizar pesquisas de maior qualidade, concentrar seu tempo para preparar aulas de melhor nível, ao passo em que também lhe dá o reconhecimento social invulgar em termos contemporâneos. A representação social do professor é superiormente interessante na Alemanha.

A despeito de suas grandes qualidades, o modelo alemão, no que se refere à docência, também possui problemas e alguns deles têm sido objeto de críticas por parte de setores da sociedade. As mais graves, como se verá, dizem respeito ao modo como os estudantes são avaliados.

Limitando-se o problema aos professores, existem algumas censuras veladas ao método de seleção, que abriria muito espaço para o peso do orientador do candidato. É também crescente a discussão sobre as relações entre oDoktorvater (orientador) e os doutorandos. O número de denúncias de plágio cresceu muito e isso causou espécie na sociedade alemã. Foi muito divulgado o escândalo envolvendo a tese de doutorado de Karl-Theodor Freiherr von und zu Guttenberg, então ministro da Defesa do governo Merkel, acusado de plágio no trabalho que apresentou à Universidade de Bayreuth, sob orientação de Peter Häberle. O barão Guttenberg, ou barão Googleberg, como se tornou jocosamente conhecido, era cotado para o cargo de chanceler federal e um nome muito popular na Alemanha. Jovem, carismático, bem sucedido como ministro e com impecáveis credenciais familiares: seus antepassados militaram ativamente contra Hitler e envolveram-se na Operação Valquíria. Sua reputação foi abaixo com o plágio, o que simboliza o valor de um título acadêmico na Alemanha.

A remuneração dos pesquisadores e assistentes é considerada baixa e seus vínculos são precários. Eles firmam contratos temporários, que são renovados a depender de seu desempenho e das verbas para se manter o grupo vinculado ao catedrático.

A transposição do modelo de docência alemã para o Brasil implicaria se rever a quase inexistência de estrutura de carreira real nas universidades brasileiras. À exceção de alguns departamentos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, são poucas as escolas jurídicas que ainda dão posição de preeminência aos professores titulares. Ademais, na prática, não seria sustentável a atual divisão entre professores catedráticos (na acepção alemã) e os não catedráticos. Outra incompatibilidade está na administração de equipes de docência e pesquisa, o que, com nossas regras de estabilidade, é praticamente inviável. Para não se recordar da hipótese de migração por “concorrência” entre instituições.

Elogiar ou se inspirar no modelo de docência alemã é muito interessante. Mas, não se pode perder de vista que os regimes jurídicos únicos são fortes obstáculos a transposição do exemplo da Alemanha. Embora se possa ficar com a seguinte reflexão: não teriam sido esses regimes jurídicos, como o instituído pela Lei 8.112/1990, uma reação natural aos desmandos e ao descontrole, ao compadrio e à pessoalidade patrimonialista da Administração brasileira?

Na próxima coluna, a formação docente e, se houver espaço, o currículo e o método de ensino alemães.

***

Agradeço imensamente à leitura e às contribuições de Tilman Quarch, Jan Peter Schmidt e a Martônio Mont’Alverne Barreto Lima. 



[1] Comparatives Studies in Society and History, v. 14, n.2, 1972, pp. 215-244. Cambridge Univ. Press, London. (Agradeço a Martônio Mont’Alverne Barreto Lima pela referência).


[2] Parte dos dados quantitativos (informações não oficiais) foi extraída deste site: http://www.lto.de/jura/studium/uni/augsburg/. Acesso em 2-2-2015.


[3] P.156



Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.



Revista Consultor Jurídico, 4 de fevereiro de 2015, 10h53

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Colocar escritório em "nuvem" pode reduzir investimentos


Colocar escritório em "nuvem" pode reduzir investimentos



Quais ferramentas e aplicações um escritório jurídico pode utilizar — desde sua fundação, pequeno e com poucos sócios, até se transformar em uma corporação com centenas de pessoas ligadas ao seu cotidiano?

Dois conceitos precisam ser antes apresentados: 1) computação em nuvem (cloud computing) e 2)Software como um serviço (SaaS).

A nuvem já é um termo comum em nosso dia a dia, designando que um programa ou aplicação é acessado pela rede mundial de computadores, por meio de uma interface cujo processamento computacional está se realizando, essencialmente, em outra máquina que não seu computador. Os arquivos em uso não estão “salvos” em seu computador e, sim, em algum centro de dados (data center), o qual, provavelmente, nem fisicamente está instalado em nosso país.

Para além das questões jurídicas que desta situação derivam — como as ligadas ao Marco Civil da Internet e às responsabilidades consequentes — o intuito aqui é verificar como isso funciona e como pode ser útil ao operador jurídico.

A grande vantagem da nuvem é a possibilidade de se reduzir o investimento para uso de ferramentas atualizadas, além do aumento da segurança conferida aos dados armazenados. Menor investimento porque não será necessário adquirir servidores próprios para sua organização; maior segurança porque o investimento individual em proteção, possivelmente, será menor do que o feito por um centro unificado mundial de computadores. Claro que estas afirmações são relativas ao valor de sua informação mas, regra geral, seria mais fácil um cracker (hacker do mal) atacar e invadir seu sistema do que o da Microsoft, do Google ou do seu banco.

O segundo conceito listado é o de software como um serviço. “Antigamente”, era comum adquirirmos uma licença perpétua de um editor de texto (por exemplo o MS Word); a cada nova versão lançada, adquiria-se um upgrade. Nesse modelo, um Microsoft Office Professional 2013 (com Outlook, Word,Excel, Access e Publisher) custa hoje, em média, R$ 1,5 mil. 

Ocorre que, hoje, diversas empresas fabricantes de programas para computadores, como a própria Microsoft e a Adobe com seu Photoshop, oferecem seus softwares como um serviço, ou seja, os alugam para que sejam utilizados por demanda. Neste modelo o mesmo pacote Office listado acima custa em média US$ 20 por mês, ao qual é agregada a uma série de funcionalidades que serão comentadas mais à frente.

A junção dos conceitos Cloud e SaaS desloca a concentração de investimento — dos programas, máquinas e equipe de suporte em tecnologia para o acesso à internet com estabilidade e velocidade. O link do escritório — aqui em visão abrangente, englobando a acepção privada da advocacia e a pública do gabinete ou da vara — precisa ter uma boa configuração, fibra ótica de preferência e com redundância — ou seja, dois provedores se possível. O acesso à internet deve permitir que todos na organização acessem vídeos ao mesmo tempo, por exemplo. Estar na nuvem é poder fazer download e upload em velocidades que não deixem ninguém desesperado para quebrar o computador. Uma boa largura de banda (medida de acesso à rede) não é um luxo e, sim, uma necessidade.

Passando para o campo empírico, como exemplo de uma plataforma baseada na nuvem com a disponibilidade de serviços cita-se o Microsoft Office 365. Na tela abaixo está apresentada a interface do usuário para as ferramentas disponíveis como base. As licenças de toda a suíte de escritório do Office podem ser instaladas em cinco computadores diferentes por usuário, inclusive em sua residência. A integração com dispositivos móveis já foi assunto de uma de nossas colunas.


Os planos de assinatura contemplam diversas funcionalidades. A central de controle, representada na figura abaixo, gerencia boa parte da tecnologia disponível para o escritório.


Duas aplicações se destacam nessa central: o Exchange e o SharePoint. OExchange é o programa servidor de correio eletrônico e trabalho em grupo, no qual se unifica o gerenciamento integrado de e-mails, agendas e tarefas de toda a organização. Já o SharePoint é o programa que gerencia o conteúdo produzido, contemplando a definição de pastas para armazenamento dos arquivos, a criação de sites de trabalho em equipe e ferramentas como murais e linhas de tempo de tarefas em projetos.

O Office 365 permite que todos os arquivos e sites de colaboração sejam localizados por uma única ferramenta de busca. Cada arquivo ou site poderá ser visualizado e localizado apenas por quem tem acesso a ele, podendo ser definidas senhas e perfis de acesso para cada um deles.

As utilidades e funcionalidades desses programas levou a Microsoft a criar configurações especificas para a área jurídica. O sistema Matter Center, referente ao logotipo ao lado, provê um pacote desenhado para escritórios, especialmente no tocante ao espaço para armazenamento, gestão eletrônica de documentos e trabalho em conjunto na construção de peças processuais e outros textos. Alguns escritórios early adopters (que são os primeiros a adotarem tecnologias novas) no Brasil já o estão testando.

Para não ficarmos só com um exemplo, o Google também disponibiliza toda uma plataforma com aplicações semelhantes. Com valor médio mais baixo, mas com a proporcional redução de funcionalidades, o Google Apps, representado pela figura abaixo, permite gerenciar, na nuvem, usuários, acessos a documentos, pastas e sites.


As duas plataformas apresentadas permitem que o escritório gerencie tudo isso utilizando seu próprio domínio na Internet (exemplo: www.seu_escritorio.com.br), tornando-se a central de gerenciamento até da comunicação com os clientes, por meio da qual se compartilham e recebem arquivos e se gerenciam sites com conteúdo externo, sempre utilizando a marca do escritório.

Grandes empresas utilizam uma ou outra plataforma, conforme suas conveniências e necessidades de funcionalidades específicas. O escritório pode utilizar, desde pequeno, uma solução de tecnologia que acompanhe seu crescimento, mas que não perca em nada, desde o início, para organizações maiores.

PS: Alguns leitores têm perguntado se ganho algum ‘jabá’ para descrever ferramentas aqui na coluna. Esclareço que não e que vou continuar escrevendo sobre ferramentas de tecnologia da informação úteis para os operadores jurídicos.

Marcelo Stopanovski é Diretor de Produção da i-luminas — suporte a litígios e consultor do escritório FeldensMadruga. Professor da FGV in Company com a disciplina Engenharia do Conhecimento Jurídico. É mestre em Inteligência Aplicada na Engenharia de Produção e Bacharel em Direito, ambos pela Universidade Federal de Santa Catarina.



Revista Consultor Jurídico, 1 de dezembro de 2014, 12h05

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