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quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O Direito e três tipos de amor: o que isso tem a ver com subjetivismo?




Por Lenio Luiz Streck


Em tempos de excesso de informações, sempre é difícil alcançar a atenção dos leitores de um site jurídico. Notícia cobre notícia. Para ganhar a atenção necessária para uma discussão aprofundada, talvez tenhamos que usar um truque, como na anedota sobre as reuniões do antigo partido comunista da URSS: O clube de uma cidade do interior anunciou uma palestra sobre o tema: "O Povo e o Partido estão unidos". Não apareceu ninguém. Uma semana mais tarde foi anunciada a conferência "3 tipos de Amor". O salão superlotou. “— Existem três tipos de amor”, começou o orador. “— O primeiro tipo é o amor patológico. Isto é ruim, e sobre este tema nem vale a pena falar. O segundo tipo é o amor normal. Este, todos conhecem e portanto, também não vamos nos alongar neste assunto. Resta ainda o terceiro — o mais elevado tipo de amor — o amor do povo pelo partido. E é sobre isto que vamos discorrer mais detalhadamente”.[1] Como na anedota, poderia dizer que temos três tipos de amor e o mais elevado tipo é o da relação direito-moral e os problemas decorrentes do protagonismo judicial. “E é sobre isso que vou falar com mais detalhes”, poderia dizer.

Com efeito. Quando leio um texto ou uma declaração ou um voto do ministro Luís Roberto Barroso (não me acostumo com a retirada do Luís) fico com a convicção de que os franceses pós-revolução estavam certos em proibir os juízes de interpretar. Também fico pensando como os positivistas exclusivos estão corretos ao separarem direito e moral, embora considere problemático o modo como o positivismo lida com a aplicação. De todo modo, são coisas que vêm à mente de todos os juristas quando se deparam com o ativismo judicial praticado e exacerbado no Brasil. É evidente que não sou um exegeta. Também não sou um positivista pós-hartiano, embora respeite profundamente o modo como um autor como Joseph Raz coloca a questão da autoridade do direito (reivindicação de autoridade). Essas questões já foram discutidas por mim aqui e aqui na ConJur. Neste espaço, venho denunciando os prejuízos causados pelo protagonismo judicial (ou do realismo à brasileira). O ex-ministro Eros Grau fez um duro texto no jornal O Globo — Juízes que fazem suas próprias leis — acerca dessa matéria.

Por que estou voltando a esse assunto? Com certeza, não é por implicância. É por um dever cívico-epistêmico. Juízes têm responsabilidade política, não no sentido vulgar, mas no sentido de accountability. Juízes devem julgar por princípio e não por moral ou política ou por análise econômica. Não é a sua função. É o Direito que deve filtrar a subjetividade, a moral, os desejos políticos e as idiossincrasias dos juízes e membros do MP. E não o contrário. Se a moral (o subjetivismo lato sensu ou o particularismo subjetivista, como bem diz Lorenz Puntel) pode corrigir o direito, então já não te (re)mos direito. Teremos uma coisa que já não é ela mesma, mas outra bem diferente: a substituição das leis e da CF pela convicção pessoal do magistrado.

Essa questão fica bem clara quando lemos a recente declaração do ministro Barroso publicada pelo portal Jota: mesmo produzindo desgastes, “a gente tem que empurrar a história e fazer aquilo que acha certo”. Já aqui eu pediria vista dos autos, para perguntar: Por qual razão o país tem de depender daquilo que o ministro acha, pessoalmente, certo? Também o ministro repetiu a sua tese de que o STF é a vanguarda iluminista (sic): “Além de o Brasil estar vivendo este momento relativamente convulsionado, o próprio Supremo vive um momento complexo, não pela decisão da semana passada [que manteve Renan Calheiros na presidência do Senado], mas o STF tem um papel importante no Brasil, que é um pouco de fazer avançar alguns determinados processos sociais, eu diria até fazer avançar com algumas doses de iluminismo em domínios onde ele ainda não chegou. E é difícil”. (Grifei).

Disse, ainda: “Não importa se as pessoas não gostam do aumento da subjetividade na atuação do Poder judiciário. Ela é inevitável. Há uma nova realidade que expande esse papel do Judiciário.” (grifo meu)

Como assim — “o STF empurrar a história”? Como assim “STF — vanguarda iluminista”? Como assim — “a subjetividade é inevitável”? Do que está falando o ministro? Não deve ser de uma decisão judicial em uma demo-cracia. Ora, a subjetividade é inevitável porque não somos alfaces. Mas isso é obvio. Não creio que alguém acredite que o juiz seja neutro. Os franceses já sabiam disso e justamente por isso proibiram os juízes de interpretar.

Esse é o nó do Direito. O que fazer com os juízos morais? O que fazer com a subjetividade? De minha parte, de tudo que tenho já escrito sobre isso, basta que acreditemos em alguns filósofos que até são mais radicais do que eu quando falam do subjetivismo. Afinal, livre convencimento e subjetivismo são irmãos gêmeos. Por exemplo, o francês J.F. Mattéi, com seu La barbarie intérieure, explica, melhor do que eu, o problema do solipsismo e do subjetivismo. Sim, porque, no fundo, o que sustenta as teses da expressiva maioria dos juristas é, ainda, a filosofia da consciência. Basta ver como ainda se defende o livre convencimento. Afinal, o livre convencimento é o quê, senão o suprassumo do subjetivismo? O solipsismo bajula o nosso narcisismo. Onde Barroso diz “a subjetividade é inevitável”, basta substituir por “decido conforme penso, decido conforme minha consciência, etc”. Isso faz com que a consciência individual filtre o Direito. Logo, o Direito já não é Direito.

O problema principal que envolve a aplicação do Direito no Brasil reside na/nessa tirania do subjetivismo. A ditadura do sujeito da modernidade nos diz que é no interior do homem (no subjetivismo) que reside o perigo (Gadamer, Bloch, Arend, Horkheimer, Adorno, Mattéi, Puntel, Stein e tantos outros). Para esses filósofos, o subjetivismo é despótico. Nesse sentido, vale lembrar Eduardo Luft,[2] que é contundente ao denunciar as aporias de uma pretensa facilidade de se transpor da filosofia da consciência para a intersubjetividade, como se pudesse conciliar “o melhor dos dois mundos”. E arremata: Ainda somos reféns das figurações idealistas, sendo a transição da teoria da consciência para a Filosofia da Linguagem apenas o ruflar das asas da mesma mosca, na mesma garrafa.

Há, finalmente, ainda outra advertência que se impõe: o subjetivismo no Direito age desse modo autoritário (uma espécie de certeza-de-si-do-pensamento-pensante) porque está escorado em uma institucionalidade, falando de um determinado lugar (o lugar da fala, em que quem possui o skeptron pode falar, em uma alegoria com o que se passa na Ilíada ou com a posse da concha, no livro The Lord of Flies). Uma vez inserido em uma cotidianidade — para além desse lugar e sem os atributos desse poder de fala — o sujeito se perde no entremeio de outras institucionalidades.

Afinal, se tudo é subjetivismo ou se “decido conforme penso o que seja certo”, por qual razão, fora do tribunal, não é dito que um ônibus é uma bicicleta? Portanto, minha alusão, aqui, é fundamentalmente ao solipsismo judicial. Ele é assim porque não sofre, da doutrina e da sociedade, os necessários constrangimentos epistêmicos. Entretanto, no cotidiano, não age desse modo. Nem pode. Caso contrário, entraria em choque com a primeira pessoa que encontrasse na rua, que não o reconhecesse ou não reconhecesse na sua autoridade (a sua posse do Skeptron fora da institucionalidade). De um modo mais simples, pode-se dizer que, se nos autos do processo (e no fórum ou no Supremo Tribunal) o juiz troca o significado dos significantes, todavia no seu cotidiano não pode agir do mesmo modo. Por exemplo, na discussão com o açougueiro acerca do que é uma picanha, o juiz não pode trocar o “nome das coisas”. Nem “decidir” que a maminha é uma picanha. Isso só vale no fórum. E nisso reside o busílis da questão. Pensemos, com esta metáfora, a relação da Constituição e seu sentido...

Por consequência, o solipsismo judicial (jurídico-interpretativo) só acontece em uma dada institucionalidade, em que existe uma baixa democracia. Procurando ser mais claro ainda: Gadamer diz que, se queres compreender um texto — e texto são eventos, fenômenos — deves deixar que o texto te diga algo. Isto quer dizer que não devemos ignorar esse grau mínimo de objetividade. É o que chamo de mínimo “que é”. Nesse sentido, a realidade constrange. A estrutura, a intersubjetividade, a tradição, enfim, essa linguagem pública constrange a todos nós cotidianamente para evitar que saiamos por aí fazendo coisas solipsistas. Não se pode trocar o nome das coisas. Não se pode “assujeitar” as coisas. O solipsismo judicial se coloca na contramão desses constrangimentos cotidianos, do mundo vivido. No Direito, em face do lugar da fala e da autoridade do juiz, ele pensa que pode — e, ao fim e ao cabo, assim o faz — assujeitar os sentidos dos textos e dos fatos. Observe-se o grau “da coisa”: por vezes, nem a Constituição constrange o aplicador (juiz ou tribunal). Por isso o lema hermenêutico: deixemos que os textos nos digam algo. Deixemos que a Constituição dê o seu recado. Ela é linguagem pública. Que deveria constranger epistemicamente o seu destinatário, o juiz.

Sigo, para dizer — voltando ao ponto central da coluna — que o interessante é que onde impera o subjetivismo, não há coerência. No caso do ministro, é fácil demonstrar isso. Ao mesmo tempo em que ele diz tudo isso que reproduzi acima e decide a questão do aborto (veja-se de novo a crítica de Eros Grau acima referida e o que escrevemos na semana passada), para negar medida cautelar contra a PEC 55 o ministro Barroso diz:

“O Congresso Nacional, funcionando como poder constituinte reformador, é a instância própria para os debates públicos acerca das escolhas políticas a serem feitas pelo Estado e pela sociedade brasileira, e que envolvam mudanças do texto constitucional. Salvo hipóteses extremas, não deve o Judiciário coibir a discussão de qualquer matéria de interesse nacional”.(grifei)

Ora, em uma democracia, é a lei que trata de escolhas políticas e não o Judiciário. Vejamos. No caso do senador Ivo Cassol, o ministro disse que seguia a Constituição: "Acho que a condenação criminal, pelo menos acima de um determinado grau de gravidade do delito, deveria ter essa consequência automática. Mas a Constituição diz o contrário. O dia que a Constituição for o que os intérpretes quiserem independentemente do texto, nós vamos cair numa situação muito perigosa" (aqui). Na época, elogiei e disse: Bingo, ministro! Só que, dias depois, ele mesmo decidiu que, diante de uma decisão da Câmara que não cassara o deputado Donadon, o STF tinha que cassar o parlamentar, contra exatamente aquilo que ele mesmo havia dito dias antes. Na ocasião, Rodrigo Haidar chamou o caso de jabuticaba jurídica.

Qual dos dois ministros devemos seguir? Esse é o problema. Temos vários judiciários. Cada juiz acaba sendo “um judiciário”. Não temos um STF. São onze supremos. E sabem por que isso é um problema? Simples: se o magistrado decide a partir de si mesmo, haverá o dia em que a letra da lei é tudo... e haverá o dia em que a letra da lei é... nada. Isso não nos deve surpreender, porque subjetivismo é assim mesmo. Nada nos protege contra o subjetivismo. Nossa tendência é responder moralmente. Só que um juiz deve suspender seus desejos, suas opiniões, sua subjetividade. Em uma frase: subjetivismo é pensar que nada vindo de fora (de si) pode impor limites ao intérprete. Ora, a lei e a Constituição (mais a doutrina e a jurisprudência) são essas coisas “de fora”. Em face disso, pergunto: quando os juristas irão perceber que, quando vamos ao Judiciário, buscamos uma resposta daquilo que está do lado de fora do juiz e não do que está dentro? Mariflor Rivero, no livro Diálogo y Alteridad, pergunta: como podemos dar conta de um significado se este foi produzido subjetivamente e está mediado pela subjetividade do intérprete?

Penso que não há mais muito a dizer. Com todas as vênias cabíveis à espécie, tenho o dever cívico-acadêmico-epistêmico de apontar as contradições dos discursos jurídicos, presentes fortemente nos tribunais superiores e nas instâncias judiciárias do país. No caso, o ministro Luís Roberto Barroso representa, simbolicamente, o imaginário jurídico brasileiro predominante (inclusive a doutrina incentiva isso, nas salas de aula, nos livros, etc). Falta muita coisa ainda para a nossa doutrina chegar ao patamar crítico que detecte isso que hoje está destruindo o direito. Quando mais precisamos do direito, ele já não está.

Bom, como diz no início da coluna, existem três tipos de... O leitor pode ajudar. Colunas complexas não dão plateia. E o clube fica vazio. Por isso o título foi chamativo. Se o leitor chegou até aqui, alvíssaras!


[1] Não resisto em fazer também uma anedota: A metáfora não tem nenhuma relação com o comunismo. Não tem nada a ver com “partido é bom”, “partido é ruim”. Também não tem nada a ver com sexo. Nem com amor. É só uma metáfora para explicar que por vezes... Bom, digo isso porque sempre aparecem interpretações... Tempos difíceis.


[2] Luft, Eduardo. Duas questões pendentes no Idealismo Alemão. In: Nythamar de Oliveira;Draiton Gonzaga de Souza. (Org.). Hermenêutica e Filosofia Primeira. Ijuí: Unijuí, 2006. pp. 69-75.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 2016, 8h00

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Por que, contra a lei, juíza acha que pode autorizar revista coletiva?




Por Lenio Luiz Streck


Os leitores entenderão as razões pelas quais a juíza — do título da coluna — acha que pode mais do que a lei. Ao trabalho. O jusfilósofo alemão Mathias Jestaedt, um destacado positivista, escreveu um texto que poderia ter sido escrito para o Brasil. Chama-se Verfassungsgericht Positivismus. Die Ohnmacht des verfassung gesetzgebers im verfassungsgerichtlichen Jurisdiktionsstaat.[1] (Positivismo do Tribunal Constitucional. A impotência do legislador constituinte ante a jurisdição constitucional do Estado). Na verdade, se substituirmos no texto a referência ao Bundesvesfassunsgericht por Supremo Tribunal Federal pouco mudaria, com a diferença de que ao menos o tribunal alemão usou (e usa) uma certa coerência na sua atuação realista, a começar pelo fato de que, já de início, disse a que veio, epitetando a Lei Fundamental de Ordem Concreta de Valores — objektive Wertordnung.

Pronto. Dei spoiler. É exatamente disso que fala o jurista alemão. Ele mostra — numa denúncia mais filosófica que aquela famosa de Ingeborg Maus (sobre o Tribunal Constitucional como superego da nação) — que o tribunal incorporou uma tese segundo a qual o Direito se forma apenas ex post, isto é, não há Direito anterior à decisão judicial. Nesse tipo de jurisprudencialismo, diz o professor, o juiz cria o Direito para o caso concreto sem estar vinculado a nada antes dele. Jestaedt diz ainda que esse atuar é uma forma de realismo jurídico.[2] Empirismo. Correta a crítica, que pode ser estendida ao trabalho do Supremo Tribunal Federal do Brasil e também ao que os tribunais fazem cotidianamente (o que é isto — a construção de enunciados?). O que Jestaedt [3] quer dizer é que o tribunal põe novo direito. Logo, constrói um fato social. Que vale. Daí o título do texto, autoexplicativo, denunciando a impotência do Estado diante da transformação do TC em legislador. Qual seria a diferença do que denuncia Jestaedt daquilo que fez o STF em ações como as ADCs 43 e 44 ou quando um ministro diz que a suprema corte é a vanguarda iluminista da nação? Ou quando um tribunal, contra o Código Civil, concede metade da herança para a amante? Ou quando os tribunais dizem que “aqui o CPC é só cumprido em parte”?

No Brasil não é só o tribunal constitucional (no caso, o STF) que “põe o direito”. Todo o “sistema judiciário” pratica esse realismo (ou essa espécie de realismo tupiniquim) tão bem denunciado por Jestaedt no que pertine ao tribunal constitucional alemão. Já não temos mais Direito legislado. Temos uma Ohnmacht (impotência) diante do Judiciário. Já não temos Constituição. O que temos é o que os juízes e tribunais pensam, de forma pessoal, subjetiva e solipsista, sobre o direito. Popper chama a isso de “racionalidade teológica”.

Listo, por amostragem, algumas atividades realistas-jurisprudencialistas [4]: 1) Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região diz que perdoa advogados por “defenderem seus clientes” — uma apreciação moral que mostra como a advocacia é vista por eles, os juízes (sem paráfrase de Calamandrei) — o resultado disso pode ser visto no voto em que nega habeas corpus; 2) O STF tolhe o direito de greve dos servidores públicos sem considerar a diferença entre greve legal e ilegal; 3) O STF fragiliza a presunção da inocência contra expresso texto de lei e da Constituição (e metade da comunidade jurídica acha “bom”); 4) O Judiciário, com a benção do STJ e STF, decide não cumprir o artigo 212 do CPP, sem fazer jurisdição constitucional; 5) Uma chacina de 111 presos feita pela polícia é "legítima defesa" para parte do Tribunal de Justiça de São Paulo (um voto está baseado não na lei, mas na consciência do julgador); 6) O TJ-SP autoriza o uso de balas de borracha contra manifestantes — a população virou inimiga do Estado?; 7) Em Brasília, um juiz da infância e juventude utiliza métodos de tortura para expulsar adolescentes de uma escola; e parcela importante dos juristas brasileiros — e dos leitores da ConJur — acha “legal” isso (até a revista Veja criticou o ato do juiz, mostrando que nem o Senado americano aprova o uso desses instrumentos); 8) “Medida excepcional” da Justiça autoriza a polícia a fazer buscas e apreensões coletivas em favela no Rio de Janeiro contra expresso texto legal e constitucional; 9) Um TRF decide uma representação contra um juiz invocando “jurisprudência de exceção” (empirismo jurídico na veia); 10) O CPC não é cumprido nem mesmo pelos tribunais superiores, que, para muitos juristas, deveriam logo ser ungidos à condição de tribunais de precedentes; 11) doutrinadores adeptos do realismo incentivam as práticas jurisprudencialistas, cindindo texto e norma e colocando o ato judicial como um ato de vontade (repristinando Kelsen) — eficiente combustível para a jurisprudencialização; 12) Em plena democracia e no ano da graça de 2016, pesquisa mostra que todos os tribunais estaduais (e alguns federais) continuam invertendo o ônus da prova em crimes como furto e tráfico de entorpecentes e ainda usam a verdade real; 13) uma juíza eleitoral da Bahia diz: não tenho provas, mas eu sei que foi ele... e cassa um prefeito — e o TRE baiano confirma a decisão; 14) a LC 64 permite que se use intuições e presunções para cassar mandatos populares; 15) corre solta, lépida e fagueira a tese de que existe o in dubio pro societate — não leram Oresteia, de Ésquilo (não é esquilo); 16) as grandes “ideias” das salas de aula que forma(ra)m um milhão de advogados são: “princípios são valores” e o juiz boca da lei morreu e agora-é-a-vez-do-juiz-dos- princípios (e dá-lhe princípios como um que recebi hoje por e-mail: princípio da primazia do acertamento — quem teria “bolado” isso?; 17) chegamos ao ponto de o STJ ter de dizer que desemprego não é motivo para decretar preventiva (tem juiz e tribunal dizendo o contrário). Paro por aqui. Por total desnecessidade. Cada um que faça a sua lista.

Escrevendo a coluna, lembrei da prisão do Garotinho e a divulgação — absolutamente ilegal (mais um caso de realismo tupiniquim) das escutas entre advogado e cliente. Quem decretou a prisão e autorizou as escutas e as divulgou não é filho de chocadeira. Estudou em algum lugar. Resultado: isso que está aí. O lema hoje é: Os fins justificam os meios. Decido... e só depois justifico (o que nem é fundamento). Minha pergunta: porque não decretam logo a dispensa da defesa? Matem os advogados.

O juiz que decretou a prisão de Garotinho usou a Bíblia como fundamento. Bom, fora a Bíblia, não havia mesmo fundamento. Só um milagre para justificar a prisão. E só um banho de descarrego epistêmico para salvar esse tipo de decisão e esse tipo de procedimento, que, aliás, quase matou Garotinho, não fosse a corajosa decisão da ministra Luciana Lóssio. Eis a solução: proponho “banhos de descarregos epistêmicos”. Nos anos 90, quem foi meu aluno lembra das “sessões” que eu fazia para retirar “os encosto” (sem esse) que travavam a vida dos pobres estudantes por intermédio da velha cultura prê-à-porter de então, hoje darwinianamente rediviva como “direito simplificado, facilitado, mastigado, resumido, resumidinho”, etc. Sai que esse corpo não te pertence...

O caso Garotinho é empirismo jurídico. Juiz põe o direito (como bem lhe aprouver). Põe fato (social). Ilegitimamente. Mas vale. Quem o segurará? E mesmo que o corrijam (quando sair esta coluna, já podem tê-lo feito), o estrago já está feito. Ao mesmo tempo, quantas prisões preventivas são/foram decretadas nesse imenso Brasil mediante argumentos absolutamente pessoais, subjetivistas, morais, políticos, etc? Tudo serve de fundamento: menos o direito. Que já não existe.

Tenho dito todos os dias que direito não é moral. Não é política. Em qualquer situação. Sou um ortodoxo. Direito não pode ser corrigido por argumentos morais. Pergunto: o que aconteceu? Onde foi que erramos? Já não temos Direito. Temos interpretações. Meras interpretações. Puro relativismo. Só há narrativas sobre o direito. Vivemos um não-cognitivismo ético. Ceticismos. A narrativa do poder. De quem decide. Direito foi substituído por juízos morais e políticos. Logo, o Direito já não é o que foi produzido pelo legislador. Ele é o que os juízos morais e políticos dizem que ele é. Daí o jurisprudencialismo (realista). Há um “novo” direito. A propósito: Já notaram como os livros de Direito não comentam as leis e, sim, somente o que os tribunais dizem sobre as leis? Não se deram conta? O professor pensa que está no common law e discute, em vez de leis, aquilo que os tribunais disseram. Verifiquem. A jurisprudencialização venceu. É a prova de que o que Jestaedt disse sobre o tribunal constitucional alemão se aplica por aqui, claro, com as diferenças de culturas. E do nível do pudor. E da responsabilidade dos juízes do tribunal constitucional. Por aqui, qualquer coisa é motivo: até a Bíblia. E a opinião pessoal. Como disse o desembargador de TJ-SP: penso que os policiais que mataram 111 devem ser absolvidos... baseado em minha consciência. Bingo. Eis o Brasil.

Temos hoje uma Constituição e suas garantias — odiada pela metade dos juristas (canibais, porque devoram o seu próprio objeto de trabalho) — substituída por um direito posto pelo Judiciário. É o que Dworkin dizia sobre o poder discricionário: é Direito feito de forma retroativa. Direito intersticial. Que, na democracia, é absolutamente danoso.

Post scriptum 1: Incrível (ou crível) a violação do sigilo profissional do conselheiro federal Jonas Cavalheiro, do Rio de Janeiro. O juiz, além de grampear conversa entre advogado e cliente, faz vazar estas informações de forma ilegal. E sai no Fantástico. Virou moda no Brasil. Não existe mais a lei 9.296. Só existe aquilo que o Judiciário disse que a referida lei é. Jestaedt tem razão. Que espetáculo, não? E a comunidade jurídica se queda silente. Incrível como o Brasil se transformou em um país de pequenos-reacionários (não explicarei o que isso significa — alguns saberão). Que donas de casa, jornalistas e jornaleiros se pronunciem como torcedores, é até aceitável. Mas em um país de um milhão de advogados, o fato de termos deixado que se instalasse uma juristocracia é algo que desafia amplos estudos. O que farão esses advogados se o Direito já não é Direito e, sim, um “novo” Direito feito “realisticamente”, graças à troca de fonte social? Vão dirigir táxis? Trabalhar de balconista? Ao que vejo, esses estudos denunciando todo esse estado d’arte não serão feitos por nossos programas de pós-graduação, hoje mais preocupados em discutir teoria normativa da política no âmbito do direito do que, efetivamente, teoria do direito. Ficamos bons em discutir livre apreciação da prova e livre convencimento. O livro mais vendido de processo civil de edição de 2016 diz que o juiz apreciará livremente a prova, sem qualquer elemento que vincule o seu convencimento a priori, porque vige no Brasil, segundo os autores, o sistema da livre valoração motivada. Ou seja, no fundo eles poderiam ter dito: “o CPC não vale nada”. O que vale é o que é dito na decisão judicial. Bingo.

No processo penal, a maior parte dos juristas críticos (nem falo dos demais) se deram conta há apenas cinco ou seis anos daquilo que este escriba já denunciara há mais de vinte anos: a de que o problema da falta de democracia no Judiciário e MP decorre-do-protagonismo. E a raiz não é dogmática. Não é “processual”. É, sim, filosófica. É o sujeito da modernidade (ainda há livros que dizem que sentença vem de sentire). Mas, lamentavelmente, parece que nossos juristas acham que isso é não tem nada a ver com a dogmática jurídica. A primeira vez que encontrei Warat foi em uma aula em 1983 (parcela enorme desse um milhão de advogados não havia nascido ou era bebê de colo). Ele atacava a dogmática jurídica formalista de então. Dogmática formalista... Pois sim. Mas, dizia Warat, pitando um cigarro sem tragar: necesitamos de la dogmática. Pero... la dogmática sigue al segundo piso del edificio kelseniano; por lo cual los jueces deciden como quieren; así, la dogmática destruirá cualquier derecho existente y válido. Y por qué? Porque la dogmática, por la falta de una transición democrática [especialmente na américa latina], es como un escorpión que engancha un paseo en la espalda de un sapo; en el cruce del río, lo mata. Un gran escorpión realista. Grande Warat. Se ele visse a “dogmática da valoração ou dogmática realista” de hoje, que é posta como oposição à velha dogmática formalista, aí, sim, teria tido um ataque de “nervios”.

De todo modo, parece que tudo está virando discurso de eficiência e de exceção. Fins justificam os meios. Novas vanguardas se formam. “Novo” Direito instersticial. Com isso, a doutrina perde importância. Afinal, o Direito é que o Judiciário diz que é. Consequentemente, na medida em que o que os advogados dizem já não tem importância, assim como aquilo que a doutrina — aquela que não se dobra ou fica fazendo glosas jurisprudenciais — diz também não tem serventia, somente há uma coisa a fazer. Dick, o açougueiro da peça Henrique VI, tinha a sugestão: kill all the lawyers. Matem todos os advogados. Eles atrapalham. E Jack Cade responde: Pretendo fazer isso e mais...

Post scriptum 2: Daqui há 201 anos, arqueólogos rasparão o palimpsesto da Constituição. Isso acima tinha de ser dito. Um Estado Constitucional só tem sentido se o texto constitucional que o institui estiver minimamente preservado. Se deixarmos que o texto seja substituído por outro produzido (posto) pelo Judiciário, então teremos que ficar torcendo para que o substituto seja melhor que o originário. Mas, quem garante? O Brasil já demonstrou que a substituição não tem sido boa. Daqui há 201 anos, quando a Constituição brasileira tiver a idade que a Constituição americana tem hoje (229 anos), os arqueólogos estarão tirando camadas e camadas de poluição semântica do texto constitucional. Como em um palimpsesto, irão raspar, raspar (pararão para ler interpretações que nada tem a ver com a própria CF), rasparão mais e mais, até que, finalmente, chegam ao texto. Ficarão pasmos e dirão: “— agora sabemos porque, no conto machadiano a Sereníssima República, a palavra Nebraska se transformou em Caneca.”

Por isso, proponho que voltemos a estudar... Direito. E respeitemos... o Direito. E que nos acostumemos a dizer que onde está escrito “presunção”... leiamos... ”presunção”. E não odiemos sinonímias. Elas são desejáveis na democracia. Norma é diferente de texto. Viva. Sabemos disso. Mas, por favor, norma (atribuição de sentido) não é texto novo. Mas não é, mesmo. E, finalmente, não tenhamos vergonha de estudar Direito. Sejamos ortodoxos. Salvemos o Direito. Se que ele ainda existe.


1 In: Nomos und Ethos. Hommage an Josef Isensee zum 65. Geburtstag von seinen Schülern. Mit Frontispiz (Schriften zum Öffentlichen Recht; SÖR 886) Gebundene Ausgabe – 2002, Dincker & Humblott, Berlin, 2002, pp. 183-228.


2 A crítica de Jestaedt denuncia o ponto central das mazelas de um atuar realista de um Tribunal. Não vou discutir, aqui, a apreciação dele acerca do jurisprudencialismo (que não se confunde com o que fala Castanheira Neves) como uma forma de positivismo (a partir do que diz Jestaedt, decisões como as do Min. Barroso – ADCs 43-44 e tantas outras - não seriam propriamente “pós-positivistas”). Mas essa é uma longuíssima discussão e não há condições de fazê-la neste curto espaço. Veja-se que um positivista como Michel Tropper chega a dizer que Kelsen, no plano da decisão (ato de vontade), equipara-se ao realismo. O que importa é que, quando o STF decide, por exemplo, sem considerar o mínimo de constrangimento que o texto constitucional gera (ou deveria gerar) no intérprete, o que está fazendo senão uma forma de realismo jurídico? São exemplificativos os casos pelos quais para o Supremo Tribunal não há direito ex ante a sua própria decisão (essa é, aliás, a crítica que Jestaedt faz ao TC alemão). Essa circunstância se repete em todo o sistema jurídico brasileiro. Pelo que se vê por aqui, não há norma jurídica antes da decisão do caso concreto. No entanto, nos Estados Unidos ou na Escandinávia, o realismo jurídico – com todos os seus problemas – sabia do impacto das decisões judiciais e os problemas de um Judiciário que decide sem limites. Por isso Holmes advertia sobre o dever de moderação dos magistrados, sob pena de aumentar a instabilidade social, como bem lembram Eugenio Fachini Neto e Ana Paula Tremarin Wedy, no texto Sociological jurisprudence e o realismo jurídico: a filosofia jurídico norte-americana na primeira metade do século XX. Revista da Ajuris, v. 43, n. 160, 2016. p. 100). No Brasil, contrariamente, sentimos na pele essa herança empirista. O nosso realismo não tem precedentes (se me entendem a ironia!).


3 Apenas uma objeção. Ainda que correta a crítica de Jestaedt ao modelo jurisprudencialista que ele considera uma forma de positivismo, o professor alemão atribui esse tipo de atividade jurídica à hermenêutica e à doutrina de Friedrich Müller. Jestaedt acerta na acusação ao jurisprudencialismo, mas erra na atribuição da culpa.


4 José Bolzan de Morais chama a esse fenômeno de A Jurisprudencialização da Constiuição. A Construção Jurisdicional do Estado Democrático de Direito – II (In: José Luis Bolzan de Morais; Lenio Luiz Streck. (Org.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Livraria do Advogado, 2009, v. 1, p. 41-52).


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 24 de novembro de 2016, 8h00

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

As coisas estão tão misturadas... Cada um deve saber o seu lugar!




Por Lenio Luiz Streck


Escrevi há vinte anos [1] (sobre o uso de elevadores em Pindorama e outros temas típicos de nossa sociedade patrimonialista):

“A maior parte da sociedade passa a acreditar que existe uma ordem de verdade, na qual cada um tem o seu “lugar (de)marcado”. [2] Vejamos a complexidade do problema da formação do Brasil. Em muitos pontos há concordância dos pesquisadores. Segundo Antonio Houaiss e Roberto Amaral (Modernidade no Brasil: conciliação ou ruptura), o pressuposto é aceito de forma geral: 1) um território precioso, 2) flora, fauna e clima esplêndidos, 3) um autoctonato de fácil superação, 4) uma consolidação linguística quase miraculosa, 5) a gestação de uma cultura popular e ágrafa rica e emocionante, 6) uma expansão demográfica rara, pela multiplicação, pela miscigenação tolerante e pela democracia empírica convivial. Eliminando os pontos positivos, restam, ao cabo dos cinco séculos de operação Brasil, os enigmas: a dívida social crescente — fome, ensino miserável, ausência de terra (guardada como “poupança”) para os aptos a trabalhá-la, trabalho no campo preferentemente para a exportação, a importação preferentemente para gáudio dos exportadores. As chamadas elites brasileiras, bem pensadas, parecem ter tido, excelente ou sobre-excelentemente, o mais puro sentido de autodefesa e sobrevivência: 1) aos trancos e barrancos, embora souberam reter para si o máximo dos bens materiais; 2) souberam harmonizar-se com os donos do mundo; conseguiram manter “seu” povo admiravelmente manietado, pela escravidão, pelo genocídio, pela ignorância, pela superstição — já que a terra lhes foi compensatóriamente tão generosa, que raros foram os Palmares e os Canudos e os Caldeirões em que criaram, embora efêmeras, suas pátrias de eleição possível.

É nesse contexto que cada um “assume” o “seu” lugar. E estes compõem a maioria. Essa maioria, porém, não se dá conta de que essa “ordem”, esse “cada-um-tem-o-seu-lugar” engendra a verdadeira violência simbólica (Bourdieu; tb Katz e Kahn) da ordem social, bem para além de todas as correlações de forças que não são mais do que a sua configuração movente e indiferente na consciência moral e política.

O sistema cultural engendra exatamente um imaginário no qual, principalmente através dos meios de comunicação de massa, faz-se uma amálgama do que não é amalgamável. Por isso, por exemplo, é possível — e observe-se a relevância dessa questão no plano simbólico — que o país mantenha impunemente um apartheid em elevadores sociais e de serviço, o que legitima o preconceito social!

Não causa espanto, assim, em nossa “pós-modernidade” midiática, que, a exemplo de tantas pessoas, uma famosa atriz e modelo da Rede Globo justifique o apartheid nos elevadores de forma bastante solene: “As coisas estão tão misturadas, confusas, na sociedade moderna. Algumas coisas, da tradição, devem ser preservadas. É importante haver hierarquia”. Já uma promoter [3] paulista assídua frequentadora das colunas sociais, não “nos deixa esquecer” que “... cada um deve ter o seu espaço. Não é uma questão de discriminação, mas de respeito”. Ou seja, para elas — e para quantos mais (!?) — a patuleia deve (continuar a) “saber-o-seu-lugar”... [4]

Discursos deste quilate não podem (e não devem) nos surpreender, até porque nada mais são do que reproduções do que ocorre cotidianamente ao nosso redor, reforçados pelos estereótipos produzidos pela mídia em larga escala. Daí que, usando como pano de fundo essa discussão, Contardo Calegaris[5] procura explicar a atitude e o discurso das classes médias e médio-superiores brasileiras acerca desta problemática:

“No Brasil, talvez por ele ter sido e talvez por ser ainda o maior sistema escravagista do mundo ocidental, a modernização aconteceu pela metade. (...) As classes médias brasileiras não abriram as portas do poder sobre as coisas para metade da população do país. (...) Foi por tradição ou por gosto atávico escravocrata”.

Por isso, diz Callegaris, tanta violência no Brasil: o ladrão brasileiro não está só pedindo posse de mais coisas. Quer mais! Quer os corpos...![6] São eles que (os corpos) “é bom possuir”. E (de forma irônica) Callegaris acrescenta: “a violência (na sociedade) já reverte se os elevadores de serviço forem suprimidos”.

A “aceitação” da exclusão social é cotidianamente reforçada/justificada pelos meios de comunicação. Veja-se, a propósito — e a crítica foi magnificamente feita pelo jornalista Vinícius Torres Freire em matéria intitulada “Carro grande e senzala” —,[7] comercial veiculado em rede nacional de televisão, para lançamento de um certo automóvel “classe A”, onde um casal branco e bem vestido escorrega pelo piso ensaboado de uma garagem, em direção ao carro apregoado. Três faxineiros, morenos e miúdos como quase todo o povo, fazem pilhéria dos ricos à beira do tombo. Mas o casal classe “A” chega ao carro “A” e sai zunindo da garagem escorregadia — o carro é estável, é o que se vende. Os faxineiros ficam para trás com cara de besta. Um deles escorrega e cai feito um pateta. Em outro anúncio, novamente aparece a dualidade “elite branca e elegante” versus “plebe rude e ignara”: desta vez um engravatado regateia com um mendigo flanelinha a lavagem do mesmo carro “classe A”. Condescende com riso senhorial da esperteza do pedinte, que quer “dez real”, pois o carro aquele é grande por dentro. Como bem complementa Torres Freire, os aludidos anúncios reproduzem um clichê clássico do imaginário subdesenvolvido, onde os pobres são espertos, sensuais e marotos...:

“O Brasil jamais foi uma república de fato, ex-escravos continuaram pobres, pobres não têm direitos e são demais. O comercial de carro ‘A’ não os fará mais pobres, mas a naturalidade inconsciente com que mofa da patuleia é um sintoma. ‘Os nativos estão inquietos’, eles assaltam, mas são uma classe de gente diferente, que ficou para trás naturalmente, ridícula como um escravo ou um primitivo pateta”.

Outro exemplo interessante é de um anúncio publicitário (premiado) que conseguiu transformar a exploração em “glamour” (ou consegue “justificar” a (semi)escravidão dos “velhos e bons tempos”). O cenário era uma antiga fazenda de café. Os personagens são dois recém-casados, que, ao acordarem, se encaminham ao café da manhã. Entrementes, a câmera mostra os empregados da Fazenda se encaminhando para a plantação, com ferramentas rudimentares (típicas “daqueles (bons) tempos”). Enquanto os campesinos se afastam, o casal senta-se à mesa, ornada com toalha rendada e com xícaras de fino porcelanato comprado em Aveiro. A cena culminante é o café sendo servido, fumegante, denso, saboroso (quase “ontológico”)... e uma voz em off anunciando: Café Pindorama Casagrande [8]: a volta dos bons tempos! Ou “Os bons Tempos estão de volta”. Faltou apenas uma frase: bons tempos para quem, cara pálida?

Tudo isto se encaixa, pois, em uma espécie de razão cínica brasileira. Invertendo a famosa frase de Marx dita em o Capital: “Sie wissen das nicht, aber sie tun es”, que significa “disso eles não sabem, mas o fazem”, Peter Sloterdijk nos ajuda a explicar a fórmula dessa razão cínica traduzida no comportamento de nossas classes dirigentes: “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo”.[9] Nossas classes dirigentes e o establishment jurídico sabem o que está ocorrendo, mas continuam a fazer as mesmas coisas que historicamente vêm fazendo. Não nos damos conta das questões mais prosaicas que nos rodeiam e que permeiam o nosso imaginário”. Tinha mais coisas. Escritas até antes de 20 anos. Mas, deixa prá lá. Não quero cansar os leitores que não gostam de ler textos longos. Sinais da “pós-modernidade” (aliás, para saber o que é pós-modernidade, assistam esse filme de um minuto — vejam o que é “o outro”).

Pronto. Tenho que acrescentar algo 20 anos depois? Eis a explicação para o episódio em que o advogado de São Paulo foi algemado no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) por ter “entrado por engano” no elevador que não era de sua “laia”. Ele não sabia o seu lugar. Chamemos a atriz e a promoter paulista.

Post Scriptum : muitos dizem que sou profeta do Direito. Calvo Gonzales diz que acertei que o realismo jurídico tomaria conta do Brasil (ler aqui). Pois também acertei a questão dos precedentes... e até a coisa dos elevadores. Do apartheid de elevadores. Sociais. De serviço. Privativos. Não privativos. Eu falei que isso não teria fim. Bingo.

E eu não poderia deixar de me manifestar sobre o episódio do TRT-2. É um dever cívico.

Enfim, Millor estava certo: o Brasil tem um imenso passado pelo frente!


1 A primeira vez que escrevi sobre os elevadores foi logo após a eleição de Erundina. Ela se elegeu em 1989. Depois disso, transportei isso para o Hermenêutica Juridica e(m( Crise. Também está no Tribunal do Júri, Símbolos e Rituais (esgotado de há muito). Como o Hermenêutica tem mais de 11 edições e reimpressões, fui agregando novos elementos. Mas o cerne é a questão do apartheid social (e profissional) Podem ver que o comentário do Callegaris é de exatos 20 anos atrás.
2 Exemplo disso é a “PEC das domésticas” que causa um mal-estar pela quebra das expectativas e da violação do arquétipo. Algo não estaria no lugar. No lugar de sempre. No lugar-comum. Ou seja, alguém, a partir da PEC, poderá “não mais saber o seu lugar”...! Ver: ”A PEC das Domésticas e a saudade dos "bons tempos, op. cit. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso-incomum-pec-domesticas-saudade-bons-tempos.
3 Promoters são as pessoas que fazem festas para as elites cheirosas que só usam perfumes oxítonos. A palavra deve ser pronunciada com afetação e uma dose de frescura. O segundo “o” deve ser dito fazendo ar de bocó: “ôôter”.
4 Cf.”A PEC das Domésticas e a saudade dos "bons tempos". Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso-incomum-pec-domesticas-saudade-bons-tempos.
5 Cf. Calegaris, Contardo. A praga escravagista brasileira. In: Folha de São Paulo, Caderno Mais, p. 5. 22.09.1996.
6 Para se ter uma ideia, o tráfico de entorpecentes no Brasil emprega mais que a Petrobras. Somente no Rio de Janeiro, o tráfico emprega 16.000 pessoas, arrecadando 400 milhões de dólares/ano (que é o que arrecada o setor têxtil no Rio de Janeiro). Cf. Folha de São Paulo de 28 nov 2010, Caderno C, p.4.
7 Cfe. Freire, Vinícius Torres. “Carro grande e senzala”. In: Folha de São Paulo. 17.01.2000.
8 Preservo o nome original do café.
9 Ver, para isso, Sloterdijk, Peter. Kritik der zynischen Vernunft. Frankfurt, 1983.



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 17 de novembro de 2016, 8h00

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Precedentes? Decisão de 4 linhas do STF contém três violações ao CPC





10 de novembro de 2016, 8h00

Por Lenio Luiz Streck


De novo: O que são precedentes? É possível que, no Brasil, precedentes sejam teses e que, no common law, sejam outra coisa? Afinal, teses e precedentes são a mesma coisa? E as súmulas? Elas também são precedentes? Na coluna da última semana (veja aqui), diante do recente texto do ministro Roberto Barroso e Patrícia Mello, propusemos (Georges Abboud e eu) que se fizesse um colóquio — e não um solilóquio — a respeito do tema, na medida em que a proposta de transformação dos tribunais superiores em “cortes de teses” parece ser, no mínimo, açodada, para não dizer inconstitucional. Também não é “a saída” continuar sustentando que “teses” feitas pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça sejam apelidadas de “precedentes”. Nossas premissas: o CPC não institui um sistema de precedentes; súmulas não são precedentes; teses também não; não somos commonlistas; não temos nada a ver com o common law. Mas se alguém invocar o common law, tem de assumir alguns ônus...! Ó que não dá é querer o melhor dos dois mundos sem “os custos da fundamentação”.

Eis que, nesta semana, enquanto Abboud e eu escrevíamos a coluna mostrando tim tim por tim tim a diferença entre os diversos institutos (sumulas, precedentes, teses, etc), deparo-me com recentíssima decisão do próprio ministro Barroso, que revela uma outra face do problema relativo à utilização irrefletida dos “precedentes” no direito brasileiro. Na medida em que teses, súmulas, decisões vinculantes e outras categorias são habitualmente equiparadas a “precedentes” pelos tribunais superiores, assumindo, com esse status, um selo de “obrigatoriedade” que “independe do seu conteúdo”, essas figuras torna(ra)m-se verdadeiros mantras cuja função é desonerar o órgão julgador do dever fundamental de fundamentação das decisões. Dito de outro modo, “precedentes” tornam-se álibis para facilitar o trabalho de juízes e tribunais, eximindo-os de fundamentar suas decisões. Tudo se transforma em “efetividade quantitativa”. Às favas a efetividade qualitativa.

Vejamos, então, a decisão proferida pelo ministro Barroso no julgamento do agravo em recurso extraordinário 992.299, oriundo de um processo que tramitou perante o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em que se discutia o direito à indenização por danos morais e materiais decorrente da perda de mandato eletivo e da cassação de direitos políticos com base no Ato Institucional 5. O pedido do autor foi julgado procedente em primeiro e segundo grau de jurisdição, tendo a União Federal interposto recurso extraordinário, ao qual, na origem, negou-se seguimento. Contra essa decisão, a União Federal interpôs agravo, o qual também não mereceu trânsito por parte do Supremo Tribunal Federal, conforma a seguinte decisão, prolatada pelo ministro Barroso:

Trata-se de agravo cujo objeto é decisão que negou seguimento ao recurso extraordinário. A decisão agravada está correta e alinhada aos precedentes firmados por esta Corte.

Diante do exposto, com base no art. 21, § 1º, do RI/STF, nego seguimento ao recurso.

Publique-se.

Brasília, 15 de setembro de 2016.
Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO - Relator

Qual é o problema da decisão? Certamente que meu objetivo não é adentrar no mérito da questão abordada no recurso extraordinário da União Federal e no seu agravo. O que preocupa é a falta de fundamentação na decisão que negou seguimento ao agravo. Preocupa-me o conjunto de ilegalidades. Sequer é possível saber a matéria versada no recurso, pois o ministro Barroso limitou-se a dizer que a decisão agravada estaria correta e alinhada aos precedentes firmados pelo Supremo. Porém, quais são esses precedentes? Por que a decisão está correta? A menção aos “precedentes” da corte, que sequer são referidos na decisão, supre as exigências do §1º do artigo 489 do Código de Processo Civil Brasileiro?

Uma das principais conquistas do atual Código de Processo Civil brasileiro foi especificar aquilo que já era consagrado na Constituição em seu artigo 93, IX, ou seja, o dever de fundamentação das decisões judiciais. O mérito da legislação processual, no ponto, é estabelecer quando uma decisão judicial não será fundamentada, atacando, com isso, situações que se repetem na prática jurídica brasileira ao arrepio da Constituição.

Com efeito, pelo menos, três dessas situações em que uma decisão não se considera fundamentada podem ser encontradas na decisão de Barroso, quais sejam, “invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão” (artigo 489, §1º, III), “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador” (artigo 489, §1º, IV) e “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” (artigo 489, §1º, VI). Três violações em uma decisão de três/quatro linhas.

Não há dúvida que a decisão do ministro Barroso se baseou em “motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão”, não enfrentou os argumentos deduzidos pela União Federal no seu recurso e, estando assentada em “precedente” veio a identificá-lo. Veja-se, já de pronto, o fetiche do precedente. Veja-se o tamanho da ficção que é o precedente à brasileira.

Ainda poderiam ser feitas outras objeções à decisão de Barroso. Com base em Michelle Taruffo, autor que constantemente é lembrado pelos precedentalistas brasileiros, pode-se dizer que a exigência constitucional da fundamentação das decisões judiciais também cumpre uma função extraprocessual, na medida em que possibilita o controle do exercício do Poder Judiciário fora do contexto processual, por parte do povo e da opinião pública em geral, tudo dentro de uma concepção democrática do poder[1]. Note-se que nem isso é possível diante da decisão do ministro Barroso, que sequer permite que aqueles que venham a consultá-la no site do Supremo possam saber do que ela trata.

Nisso tudo transparece o problema de substituir a lei e a Constituição por “precedentes” de maneira irrefletida: o precedente acaba servindo para tudo e, ao mesmo tempo, não significada nada! Com base em supostos precedentes a Corte Suprema desonera-se de fundamentar suas decisões e, com facilidade, cria-se uma barreira para o conhecimento de qualquer recurso que venha a impugnar suas próprias decisões.

Isso não significa que devemos deixar de lado a discussão a respeito dos “precedentes” no direito brasileiro. Porém, isso deve ser levado à sério, e não apenas uma ferramenta para facilitar o trabalho de tribunais e impedir o conhecimento de recursos. Então, de que vale a utilização de conceitos do common law, como é o caso do overruling se o sistema de filtros recursais, aliados à falta de fundamentação das decisões que versam sobre a admissibilidade dos recursos para os tribunais superiores impedem o exercício do direito ao contraditório como direito de influência?

Conforme lembrei na tretralogia sobre os precedentes publicada aqui na ConJur (Ver as quatro colunas Senso Incomum sobre o assunto: um, dois, três e quatro), com base na doutrina de Dierle Nunes, estamos diante do fenômeno que o processualista mineiro chamou de Einzatzgruppen (grupos de extermínio) de recursos no STF, cujo objetivo é justamente não admitir recursos. O problema é que essas decisões, do modo como são lançadas — e a decisão do ministro Barroso é um forte exemplo disso — acabam gerando diversos outros recursos. Trata-se de uma falsa efetividade, de uma efetividade quantitativa que deixa de lado a qualidade das decisões. Que efetividade é essa que multiplica os problemas?

Já falei que mesmo o genuíno precedente não pode ser considerado critério máximo para justificar o raciocínio judicial (ver aqui) e, agora, precisamos acrescentar que precedente não é um álibi para desonerar o julgador de fundamentar suas decisões. Corremos o risco de chamar tudo de precedente — repita-se, teses e ratio decidendi não são a mesma coisa — e, pior ainda, com isso desrespeitar o dever de fundamentação das decisões em favor da bandeira da efetividade (quantitativa) acima de tudo... a decisão do ministro Barroso é um sintoma disso. Urge, portanto, que a comunidade jurídica passe a questionar até onde iremos com essa transformação das cortes supremas em cortes de teses!

Numa palavra: Acredito que nem mesmo os mais ferrenhos defensores dos “precedentes obrigatórios” no Brasil aceitem essa banalização dos precedentes pelo Judiciário brasileiro. É importante repetir que os mecanismos vinculantes do artigo 927 do CPC e as “teses” que o Supremo vem lançado ao final dos seus julgamentos como defende Barroso não são precedentes.

Há tantos assuntos para falar... Mas tinha o dever cívico-epistêmico de trazer essa decisão que simboliza dramaticamente o que se está fazendo no judiciário em nome de efetividades quantitativas. Essa é a função da doutrina, como tenho dito. O silêncio eloquente de setores da doutrina é que reforçam decisões como essa. Assim ocorreu no decorrer destes 28 anos. Começaram a dizer que princípios eram (são) valores (apostando na moral contra o direito), reforçaram o livre convencimento, aplaudiram o ativismo... Ou seja: o que mais se fez foi teoria normativa da política e o que menos se fez foi teoria do direito. Com isso, o direito foi sendo fragilizado, exaurido.

Meu receio (e isso está à nossa porta) é que, quando precisarmos mesmo do direito, ele já não estará. Porque foi predado. Na verdade, por ser pré-dado, acabou sendo predado. Por isso, continuo propugnando por um grau de ortodoxia. Salvemos, pois, o direito.


1 TARUFFO, Michelle. La motivazine della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975, p. 237.

*Texto alterado às 14h34 desta quinta-feira (10/11) para correção. O número do agravo é 992.299 e não 992.229.





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Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 10 de novembro de 2016, 8h00

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O solilóquio epistêmico do ministro Roberto Barroso sobre precedentes


Por Lenio Luiz Streck e Georges Abboud


Recentemente, o ministro Roberto Barroso publicou, em coautoria com Patrícia Perrone Campos Mello, artigo intitulado “Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro”. No referido trabalho, há diversas inconsistências teóricas e sincretismos que denunciamos, tanto no nosso livro O que é isto – O Precedente Judicial e as Súmulas Vinculantes[1] quanto nos Comentários ao Código de Processo Civil.[2]

Em síntese, o ministro Barroso e Mello fazem uma apologia aos mecanismos vinculatórios do Direito brasileiro, sem praticamente enfrentar nenhum argumento de quem se opõe ao tema tal qual ele é apresentado no Brasil. Aliás, o artigo não dialoga. Seguindo certo tipo de modelo de doutrina brasileira, ignora a história institucional acerca do fenômeno. Ora, dezenas de juristas têm posição contrária. Mas Barroso e Mello preferem o solilóquio epistêmico. Basicamente, o artigo incorre nos dois chavões tradicionais: 1) o CPC-2015 aproxima o Brasil do common law; e 2) os provimentos do artigo 927 são considerados de forma simplificada como “precedente”. Deveriam ter lido o caso Marbury v. Madison, de mais de 200 anos atrás. Uma lei ordinária não pode alterar a competência e função dos tribunais prevista originalmente na Constituição. Interessante é que eles afirmam que o CPC nos aproxima do common law, mas não querem o compromisso (ônus) do common law. Só a parte boa.

Não fosse por outro argumento, este nosso texto poderia ser resumir ao seguinte: se a tese de Barroso e Mello está baseada no conceito de que o sistema brasileiro se aproximou do common law, então eles mesmos não poderiam dizer que os provimentos do artigo 927 são precedentes. A contradição é flagrante. Por quê? Porque precedentes do common law não admitem, nem de longe, isso que querem estabelecer aqui no Brasil. Por uma razão simples: precedentes do common law não-são-feitos-para-resolver-casos-futuros; precedentes não nascem precedentes; sua aplicação posterior é contingencial. Simples assim.

Mas, por amor ao debate, vamos aprofundar as demais contradições do texto de Barroso e Mello. As conclusões, por serem carreadas por ministro do STF, evidenciam a importância dos alertas que constantemente lançamos em nossos escritos sobre o tema (diversos outros autores têm demonstrado preocupação com essa simplificada transposição que que querem fazer do common law para os mecanismos vinculatórios brasileiros, e.g. Dierle Nunes, Alexandre Bahia, Marcelo Cattoni, Flávio Quinaud, Nelson Nery Jr., Cassio Scarpinella Bueno, José Miguel Garcia Medina, Maurício Ramires, Júlio Rossi, Marcos Cavalcanti, Eduardo Fonseca, Lucio Delfino, Francisco Borges Motta e tantos outros). O fetiche pelo precedente é tamanho que toda decisão judicial, para Barroso e Mello, é precedente. Incrível. Se isso é verdade, como tratar uma súmula vinculante? De todo modo, para os autores, o precedente se dividiria em três: persuasivo, que vincula apenas as partes; com eficácia normativa forte, que deve obrigatoriamente ser observado; e o intermediário, que seria uma categoria residual. Sinceramente, perguntamos: qual a relevância de afirmar que tudo é precedente? Permitimo-nos até a fazer uma ironia respeitosa: De que modo o Direito brasileiro sobreviveu até hoje sem a categoria, por exemplo, do precedente que vincula apenas as partes?

De forma resumida, Barroso e Mello glorificam a nova “era precedentalistas” pretensamente trazida pelo CPC-2015, para, em seguida, passar a tratar todos os provimentos vinculantes do artigo 927 como “precedentes”. Aqui já se inicia o sincretismo: decisões de IRDR, RE/REsp repetitivos são equiparadas a decisões de controle abstrato de constitucionalidade que, por sua vez, são equiparados às súmulas simples e vinculantes. Com a devida vênia, esse equívoco é imperdoável. Ou seja, tudo vira precedente, como se todos esses provimentos – por se tornarem de observância obrigatória por lei – já virariam assim precedentes do common law do dia para noite. Aliás, trata-se de retrocesso doutrinário. A própria súmula vinculante, em seu início, era frequentemente equiparada ao precedente. Essa errônea equiparação foi objeto de nossa constante crítica (pelo menos desde 1993), depois de muita confusão, a maior parcela da doutrina, fundamentada principalmente, nos textos de Castanheira Neves sobre assentos começou a efetivar a devida distinção. Agora devemos retroceder? Novamente equiparar precedente a súmula e ao julgamento de questões repetitivas?

Conforme já demonstramos em nossos comentários ao CPC (op.cit), diferenciar súmula do genuíno precedente e do julgamento de causas repetitivas não se faz para afirmar qual é melhor que o outro. Pelo contrário, essa diferenciação deve ser feita porque efetivamente são institutos jurídicos diferentes que comportam operacionalização distinta. Não é porque assim queremos. É porque é assim. Não nos esqueçamos, o próprio Código diferencia os institutos. Simples assim.

Após fazer essa equiparação sincrética dos provimentos, o texto de Barroso e Mello passa a expor a necessidade de compreensão do que é dicta, ratio decidendi e holding. Nesse ponto, são tratadas algumas exposições do Direito alienígena acerca desses institutos. Aqui já fica uma dúvida: se súmula é a mesma coisa que um precedente, o que é holding e o que é dicta em uma súmula? Eis a questão. Mais: uma “tese” (dessas que o STF e o STJ fazem) é “precedente”?

Voltando à temática, o artigo expõe: “A ratio decidendi ou a tese é uma descrição do entendimento jurídico que serviu de base à decisão. (...)Nos Estados Unidos, embora as decisões da Suprema Corte contenham um syllabus, a providência de explicitação da tese jurídica do julgamento é menos necessária. Isto porque o modelo de decisão naquele país é deliberativo: os justices se reúnem reservadamente, in conference, e produzem uma decisão unânime ou majoritária” (op.cit, p. 22/23).

Não nos parece adequado simplesmente equiparar ratio decidendi a uma tese jurídica repetitiva presente em RE e REsp. E nem equiparar precedente a qualquer tese jurídica que o STF e o STJ façam. Não sabem que a genuína ratio decidendi vai se estabelecendo e aclarando com o devir interpretativo em função dos futuros casos em que o “genuíno” precedente passa a ser replicado? Não sabem que a ratio decidendi não é imposta pelo tribunal superior prolator da decisão? Não sabem que ela se estrutura pelo trabalho dos causídicos e das instâncias inferiores? Ou alguém imagina o justice Marshall finalizando o voto e escrevendo: doravante, está criado o controle difuso de constitucionalidade?

Vamos exemplificar: O parágrafo 11 do artigo 1.035 estabelece, claramente, que deve ser fixada a tese no acórdão, porque estamos diante de julgamento de causas repetitivas. Ou seja, a decisão do STF e STJ nesse caso será o parâmetro normativo redutor de complexidade de uma litigiosidade repetitiva. Não se trata de uma aplicação de precedente no estilo common law em que há uma criação de complexidade para se investigar o que efetivamente é ratio decidendi para orientar causa futuras. Não nos parece adequado a afirmação de que no common law, os tribunais superiores definam o que é a ratio decidendi e a compilam em um enunciado abstrato de tese para aplicação das instâncias inferiores. É equivocado dizer isso.

Do mesmo modo, também incorre em sincretismo a afirmação de que teria havido a necessidade de ressurgirmos com a teoria da eficácia vinculante dos motivos determinantes das decisões do controle abstrato de constitucionalidade. Trata-se de tese doutrinária iniciada na Alemanha, local em que ela sofre severas críticas e diminuída aplicação.[3] De todo modo, isso nada tem a ver com o genuíno precedente. E nem com o precedente à brasileira.[4]

Por fim, denunciamos novamente o caráter realista (no sentido do realismo abrasileirado, tipo “de-qualquer-modo-o-Direito-é-mesmo-aquilo-que-o-Judiciario-diz-que-é-e-a-maior-parte-da-doutrina-concordará) da forma como é apresentada a vinculação brasileira. Em nenhum escrito nosso afirmamos que devem ser ignoradas as formas como decidem os tribunais superiores. Aliás, um dos autores (Streck[5]) já há mais de 20 anos diz que as súmulas jamais foram um mal em si, porque súmulas, como os precedentes, são sempre textos e textos são interpretáveis. Todavia, quando o STF/STJ pode emitir decisões de observância obrigatória e fixar teses em abstrato (coisa que só acontece por aqui)[6] – que no entendimento dos autores – seriam a materialização da ratio decidendi, em verdade, não estamos falando de sistema de precedentes para valer. Na realidade, com isso, camuflamos nosso padrão vinculatório sui generis.

Conforme nossos comentários ao artigo 926 do CPC, a integridade impõe um compromisso de todo julgador com a cadeia decisória em que ele está inserto. O que estamos dizendo claramente é que existe campo para se teorizar e argumentar de forma similar ao precedente do common law, todavia, afirmar que inauguramos uma nova era precedentalista ou que todos os dispositivos do artigo 927 são precedentes “porque sim”, no mínimo isso é sincretismo teórico. Daí a importância de se garantir uma interpretação conforme a Constituição do artigo 927 sustentada minimamente em duas premissas que não abandonamos: 1) todo provimento vinculante do artigo 927 comporta interpretação e não se aplica por mero silogismo; 2) precedente genuíno não se equipara a julgamento de litigiosidade repetitiva, e os tribunais superiores não podem fixar teses equiparando-se a legisladores, sendo que a fixação da tese é consequência direta dos casos concretos devidamente julgados em amplo contraditório e com a fiel observância do inciso IX do artigo 93 da CF e do parágrafo 1º do artigo 489 do CPC.

Assim, consideramos que a leitura do CPC feita por Barroso e Mello não é adequada, porque desrespeita a Constituição. Isto porque lei ordinária não pode alterar o exercício da jurisdição (em relação à própria lei, por exemplo). Sim, pois se o CPC-2015 tiver alterado a relação entre lei e jurisdição, criando precedentes vinculantes, o novo CPC não seria inconstitucional? Estamos convictos que, valendo as regras do jogo democrático-constitucional, não é possível que uma lei ordinária introduza um sistema de precedentes vinculantes sem violar o modelo constitucional do processo adotado pela Constituição.

Em termos teóricos, repetimos que não há dúvida de que, por trás da tese de que o CPC teria adotado um sistema de precedentes vinculantes está o realismo jurídico (modulado ao Brasil). Nesse sentido, chamamos à colação um positivista como Frederick Schauer, que, apesar de analítico, está muito mais próximo de nossas afirmações que das de Barroso e os demais defensores da tese aqui criticada. Selecionamos duas partes que julgamos fundamentais: o que é semelhante para fins de aplicação de precedente é algo controvertido e que o precedente tem pedigree histórico.


"Initially, the principle that like cases should be decided a like would seem to make an unassailable argument for precedent. But the difficulty of denying that like cases should be decided alike is precisely the problem. The statement is so broad as to be almost meaningless. The hard question is what we mean by 'alike.'".[7]

Schauer está dizendo que é uma obviedade em favor dos precedentes argumentar que um caso semelhante deve ser julgado igual o outro. E que isso é praticamente irrelevante na defesa do precedente. O que efetivamente interessa é definir o que são casos semelhantes. O conceito de o que é efetivamente semelhante é algo altamente controvertido. Ou seja, há uma dimensão interpretativa na aplicação do precedente que não pode ser ignorada. Não basta afirmarmos que casos iguais devem ser decididos de forma igual. Isso é meramente performático. A lei também é igual para todos e deve ser aplicada de forma igual para casos semelhantes. Ainda para ficarmos na expressão do Schauer, o precedente tem um pedigree histórico (historical pedigree,) que não pode ser ignorado em sua aplicação.[8]

Portanto, de qualquer lado que se olhe, da hermenêutica ou do positivismo jurídico (normativo), a tese sustentada por Barroso e Mello não se sustenta. Isto não quer dizer que não precisemos, urgentemente, definir o que queremos no Brasil. Afinal, temos que responder a seguinte pergunta:


Queremos que o STJ e STF façam teses abstratas e coloquem o rótulo de “precedente” ou queremos que, de fato, tenhamos um sistema que respeite a coerência e a integridade do direito, em que a palavra “precedente” seja diferenciada de súmula e de tese oriunda de recurso repetitivo e assunção de competência?

Claro que, para que tenhamos coerência e respeitemos a integridade, cada caso deve influenciar e dele temos de retirar um principio que ilumine e seja seguido pelos demais tribunais e juízes. Isso é elementar. Cada instituto com suas peculiaridades: uma súmula tem seu DNA; ela não é precedente; uma tese de IRRD e AC tem sua holding vinculatória; um caso julgado gera um precedente para casos análogos. Mas o que não se pode admitir é que os tribunais passem a legislar, fazendo um rearranjo institucional. O que não podemos admitir é que os tribunais “façam” precedentes com o fito de antecipar as respostas dos casos futuros. Não é disso que trata o CPC-2015.

Ou seja, não pode(re)mos aceitar que tudo o que está, basicamente, nos artigos 926 e 927 seja colocado no mesmo saco e se diga: eis aqui o “sistema de precedentes”, quando, por exemplo, uma súmula tem uma cadeia de precedentes que a formam. Logo, se súmula não é precedente, é porque nem tudo é precedente. E muito menos se pode admitir que o STF e o STJ façam “teses” batizando-as com o nome de “precedentes”. Precedente não é ementa, não é súmula e nem mesmo mero enunciado em abstrato. E ainda por cima se diga que “isso é assim porque no common law é feito desse modo”. A boa doutrina não há de permitir isso.

Tudo isso para dizer que, respeitando a posição do ministro Barroso e de quem assim pense, queremos apenas que sejam respeitadas as opiniões em contrário. E que haja diálogo e não imposição. Não é o fato de o autor deter a autoridade - em um país em que a doutrina tem receio de contrariar as autoridades - que possamos dizer, como que a imitar o velho adágio do positivismo moderno de que autorictas non veritas facit legis (é a autoridade e não a verdade que faz a lei) que agora temos Auctoritate Summi Court est – non veritas - quod dicatur quod "precedent" (é a autoridade da suprema corte que faz o precedente e não a sua verdade). Resta saber se o texto de Barroso, porque escrito por um ministro da Suprema Corte, foi feito para dialogar ou é magister dixit.

De nossa parte, insistimos na tese de que não existe esse “sistema de precedentes” do qual falam. E, sim, estamos dispostos ao diálogo. Não cremos que a doutrina brasileira, em um pais de um milhão de advogados e milhares de pessoas escrevendo livros, possa se quedar submissa às imposições contrárias à própria lei. Desafiamos a que seja demonstrado em que lugar do CPC está posto o tal sistema de precedentes vinculantes. E em que lugar está legitimado que os tribunais superiores possam elaborar teses em abstrato, com efeito vinculatório. O que queremos dizer, também, é que a doutrina não pode se tornar caudatária de teses ou conceitos que levem o apelido de “precedente”. Isso seria de uma violência simbólica ímpar. Isso seria enterrar a tradição de que quem faz a lei é o parlamento. E seria institucionalizar um nefasto realismo jurídico à brasileira.

Numa palavra final: não queremos fazer um solilóquio sobre esse importantíssimo assunto que pode mudar a história do direito no Brasil. Por isso, propomos aos autores (e aos demais doutrinadores), o contrário: um colóquio. Na verdade, um diálogo. Em que não haja respostas antes das perguntas.

Veritas, non auctoritas!





[1] Livraria do Advogado, 3ª. Ed.


[2] Saraiva, 2016.


[3] Cf. Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, cit., n. 3.20.5, p. 249 et seq.


[4] Ver as quatro colunas Senso Incomum sobre o assunto: um, dois, três e quatro.


[5] Como se diria em Portugal, “desculpa lá”, mas calha registrar que Lenio Streck nunca foi contra precedente em si. Streck é o maior defensor da ideia de integridade e não é contra precedente, desde que devidamente aplicado. Aliás, no Brasil poucos juristas tem a coragem de dizer que juízes não tem discricionariedade para decidir. E quem capitaneou a retirada da palavra “livre” do art. 371 e foi o responsável foi introduzir o art. 926 foi Streck.

Do mesmo modo, Georges Abboud em seus livros trata da importância de se respeitar a cadeia decisória, por exemplo, um dos sete requisitos mínimos para construção da resposta correta é a identificação dos provimentos judiciais que tratam da questão jurídica a ser dirimida. Cf. Discricionariedade Administrativa e Judicial, SP: RT, 2014, p. 473. A questão é mais desenvolvida no Processo Constitucional Brasileiro, op. cit., p. 756 et seq.


[6] Aqui, uma notícia: as teses “em abstrato” feitas pelo STF e STJ são similares às diretivas normativas dos Tribunais da antiga União Soviética, da corte de cassação cubana e da Suprema Corte da Rússia. “Nossas” teses, a par dessa similitude, não encontram similares (a não ser nas diretivas normativas da URSS, etc). Esse assunto, aliás, será pauta de outro Senso Incomum. Temos de desmi(s)tificar essas teses equivocadas que parecem já fazer “ninhos epistêmicos” em terrae brasilis.


[7] SCHAUER, Precedent. Stanford Law Review, vol. 39, n. 3, fev. 1987. p. 596.


[8] Cf. SCHAUER, op.cit., p. 571.






Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.


Georges Abboud é doutor em Direito pela PUC-SP. Professor da FADISP. Advogado sócio do escritório Nery Advogados. Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 3 de novembro de 2016, 8h00

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Crítica às teses que defendem o sistema de precedentes - Parte II





29 de setembro de 2016, 8h00

Por Lenio Luiz Streck


Na primeira parte (ler aqui), estabeleci as bases da discussão acerca da pretensão de parcela da doutrina em institucionalizar um sistema de precedentes no Brasil. Demonstrei as bases das teses pelas quais o judiciário se transformará (ou se transformaria) em um sistema em que os tribunais superiores (Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal) se transformariam em cortes de precedentes ou vértice, segundo fez constar, inclusive, o ministro Edson Fachin em voto no RE 655.265. De minha parte, apoio qualquer ideia que dê coerência e integridade ao Direito[1] (afinal, fui o protagonista da emenda que alterou o artigo 926 do CPC). Entretanto, preocupa-me a transformação do STJ e STF em cortes de vértice, conforme explicitarei.

Falei do acórdão do RE 655.265, no qual o STF fez constar que o artigo 926 introduziu uma vinculação ao estilo stare decisis; o STF disse também que o CPC estabeleceu um sistema de precedentes vinculantes e que a corte de vértice está vinculada aos próprios precedentes e, ao final, estabelece uma “tese” com pretensão generalizante (ver crítica minha e de Bruno Torrano aqui). Afinal: qual é a relação de um stare decisis com um sistema de precedentes à brasileira e a elaboração de “teses” vinculantes? O precedente é a tese? A tese é o precedente? Insisto em dizer que no common law isso não ocorre e não é assim. Mais: no common law, precedentes não são construídos para, a partir de teses, vincular julgamentos futuros.[2] Problema: se o Direito é o que o Judiciário, por suas cortes de vértice, disser que é, a quem reclamar? Caberia à doutrina contestar. Só que parcela da doutrina concorda com (ess)a precedentalização do Direito e com a mudança do papel de nossos tribunais superiores, o que, se ocorrer, dar-se-á ao arrepio de nosso arranjo constitucional — inclusive porque somente a Constituição pode estabelecer competências para os poderes, bastando lembrar que o famoso caso “Marbury vs. Madison” (1803) versou justamente sobre isso.

E este é um pressuposto ineliminável: a Constituição e o modo como ela estabelece o funcionamento de nossos tribunais. Taruffo, inclusive, em um texto recente, afirma ser uma tarefa de notável dificuldade desenvolver um discurso homogêneo e generalíssimo sobre o papel destas cortes em razão das diferenças de competência, estrutura, de composição e de modalidades de funcionamento que cada um possui.[3] Por exemplo, se na Suprema Corte o certiorari é um “pretexto”,[4] em face da autorização normativa de juízos discricionários de admissibilidade (Rule 10 das Rules of the Supreme Court), apesar de que isto não é utilizado para julgar e formar teses por lá, no Brasil os recursos extraordinários são impugnações para o julgamento de “causas” (artigos 102 e 105, CR/88) e nunca poderão ser interpretados como uma autorização de formar teses como comandos gerais e abstratos para resolução de casos repetitivos. Nunca é demais lembrar que não há entre nós a figura do “recurso só no interesse da lei”. Ademais, se não bastasse a diversidade de estruturas normativas e institucionais, a história e racionalidade decisória da Suprema Corte é completamente diversa de nossos tribunais superiores. Em seu novo livro sobre a invocação de precedentes estrangeiros pelos juízes nacionais, embora defenda o papel virtuoso da comunicação de entendimentos judiciais, Maurício Ramires faz notar que um dos perigos do entusiasmo desmedido com as experiências estrangeiras é justamente o da sua descontextualização pela falta de familiaridade com os outros sistemas judiciais.[5]

E, por fim, Taruffo afirma que “o precedente não tem uma eficácia formalmente vinculante nem sequer na Inglaterra e muito menos nos Estados Unidos. Com maior razão — e independentemente da eventualidade que se considere a jurisprudência como fonte do direito — deve excluir-se que o precedente tenha eficácia vinculante nos sistemas de civil law”. E complementa Taruffo: “Qualquer intenção de atribuir tal eficácia ao precedente está então destituída de fundamento: se poderá falar só de força do precedente entendendo que esta possa ser maior ou menor segundo os casos, de modo que se terá um precedente forte quando possua a capacidade de determinar efetivamente a decisão de casos sucessivos, e um precedente débil quando os juízes sucessivos tendam a não lhe reconhecer um grau relevante de influência sobre suas decisões.”.

Ou seja, o próprio Taruffo reconhece o caráter argumentativo da aplicação de precedentes e a impossibilidade de fechamento como se permitiria mediante algumas respeitáveis leituras por aqui.[6] E, para não esquecer: o CPC fala que juízes e tribunais “observarão”. Não há a palavra “vinculação”.

Voltando ao debate que iniciei na última semana, também falei que dois professores (Hermes Zanetti e Carlos Pereira artigo) defenderam que o judiciário venha a legislar, nos termos do CPC. Quando disse que os ilustres professores Zaneti (autor do importante livro O valor vinculante dos precedentes) e Pereira estariam “cobrando” que o Judiciário “legisle”, talvez eu não tenha sido suficientemente claro no sentido da minha crítica. Esclareço, então. Compreendo que os referidos autores estejam preocupados em dizer justamente o contrário, isto é, que as funções do legislador e do judiciário são distintas. Porém, sem que eles percebam, acabam atribuindo ao judiciário um papel de criar “normas gerais e concretas” com aptidão e conformar situações futuras de maneira vinculante como se lei fossem. Minha discordância com Zanetti reside justamente na ideia de que decisões vinculantes possam ser catalogadas, indistintamente, como normas gerais para o futuro e como precedentes, fazendo com que a jurisprudência possa, como ele diz, ser alçada à condição de fonte primária do direito junto à legislação. Por isso, indago: como podem ser fonte primária se visam, sob a ótica especialmente de Zanetti, justamente reduzir o grau de “equivocidade” [7] ou de “textura aberta” da lei — justamente o ponto de partida para que sejam criados os denominados “precedentes”? Não haveria aí uma contradição? E esses “precedentes” passariam a ocupar o mesmo lugar e patamar da lei no ordenamento jurídico, mesmo que equivocados? Como assim? Então, alguém deve dar a última palavra e essa “decisão interpretativa” acabaria valendo mais que a própria lei? E, fundamentalmente: por que é que um texto (um precedente) geraria menos “problemas” interpretativos que outro texto (uma lei)? Além disso, no final do artigo, Zaneti e Pereira assumem a posição realista (como também fazem alguns dos seguidores desta proposta).[8] De todo modo, parabenizo Zanetti e Pereira pelo diálogo e preocupação com este tema.

Aliás, fora do realismo jurídico (moderado ou não), torna-se difícil (ou impossível) sustentar esse tipo de tese. Isso no plano da teoria do direito, é claro. Mas aí é que está o problema. E por que? Porque tudo está a indicar que as teses precedentalistas não constituem teoria do direito e, sim, apenas teoria política. O que os autores fazem é uma tentativa de rearranjo institucional. Preocupam-se com “quem deve decidir” e não com o “como se deve decidir”. Até porque não há qualquer novidade em dizer que o positivismo clássico está superado, que as palavras da lei são plurívocas, que texto jurídico e norma são coisas diferentes, etc. É uma tese normativa de teoria política acerca de quem deve decidir e porque essas decisões valem por sua autoridade e não pelo seu conteúdo. Nesse sentido, há uma aproximação com o convencionalismo, porque, ao que se vê, o precedente integra a convenção. Posto o precedente, ele vale. Está na convenção (é apenas nesse ponto em que aparece um resquício de teoria jurídica na tese precedentalista).

Ou seja, o que fica claro — e parece ser um ponto central das teses precedentalistas — é que as cortes de vértice elaboram o material normativo básico e dentro dessa moldura (por assim dizer) escolhe a norma mais justa dentre os sentidos permitidos pelos precedentes. Ou seja, ao que se pode entender, o conceito de interpretação fica restrito, como forma de criação e atribuição de sentido, às cortes de vértice. Parece haver uma intencionalidade, com propósitos distintos do agente político que ocupa o vértice em relação àqueles que estão abaixo: um cria material normativo novo, fixando uma dentre as possíveis interpretações possíveis do material jurídico básico; os demais (do andar de baixo) adotam o precedente (o ponto final de alguma controvérsia interpretativa) como já integrante desse material normativo básico, explorando seus novos sentidos possíveis, com uma dupla missão: manter a unidade do direito e fazer “justiça”, dentro das balizas normativas. Presente, aí, a tese da convencionalidade.

Como explicamos Torrano e eu no artigo já referido retro, com isso corremos sério risco de arruinar o Estado do Direito pela institucionalização jurisprudencial de um realismo jurídico “à brasileira”, dedicado a proclamar a verdade de proposições jurídicas pela mera referência ao fato de terem sido proferidas por órgãos do Poder Judiciário (“O direito é aquilo que os Tribunais dizem que o direito é”), e não à luz de normas jurídicas previamente elaboradas pelo Poder Legislativo.

Por isso, penso ser arriscado defender um papel tão amplo — e poderoso — para as cortes superiores sem antes se ocupar de uma teoria da decisão jurídica, dos mecanismos de controle, públicos, intersubjetivos e da qualidade dessas decisões. Se a corte vai “normar”, parece-me ser sempre útil invocar, para demarcar as diferenças entre juiz e legislador, a distinção entre os argumentos de principio (obrigatórios para os primeiros) e argumentos de politica (no caso da tese dos precedentalistas, permitidos aos segundos). Nesse sentido, se for assim, que pelo menos esta norma (precedente) seja gerada por principio e não por um ato de vontade (Kelsen é quem diz que o juiz faz um ato de vontade — e não quero crer que alguém queira dar razão à Kelsen nesta quadra do tempo).

Agora, chegamos na sequência. De pronto, quero dizer que não estou tratando de precedentes como decisões que já nascem com aptidão de vincular para o futuro e que sejam espécies de "normas gerais" ou "razões generalizantes". Sei que nem todos os autores equiparam "precedentes" às súmulas e IRDR. Marinoni, Mitidiero e Arenhart, por exemplo, dizem que não são iguais. Porém, buscam definir o que é um precedente...e acabam chegando em algo muito parecido ao que dizem que não é precedente. De todo modo, o debate também serve para esclarecer estas dúvidas.

Daí minha cautela no ponto, para reconhecer, por óbvio, que Marinoni, Mitidiero e Arenhart sempre falaram que os precedentes são diferentes da SV e do IRDR. A meu favor, afirmo que não afirmei isso. Tenho que claro — e isso parece também estar pacifico para os autores — que precedentes são diferentes da SV e teses de IRDR.

Satisfeito, vejo que minha coluna gerou polêmica. Alguns afirmaram que eu não teria compreendido o ponto. Ou os pontos. Sendo assim, proponho aos defensores de um sistema de precedentes a partir de Cortes de Vértice e coisas do gênero, uma despoluição semântica do que estamos falando para clarear a discussão. Eis as premissas nas quais estou baseado:

1) O que temos no CPC não é uma “commonlização”; nem de longe se pode afirmar isso;

2) Os provimentos elencados no artigo 927 não são todos precedentes (e, lógico, precedentes não no sentido genuíno do common law). Nesse sentido, súmula não é precedente (nem no Brasil, nem seria no common law), julgamento de questões repetitivas, igualmente;

3) Todo precedente e provimento que deve ser observado (veja-se a palavra “observado”) são interpretáveis, ou seja, nunca são a norma decisória do caso concreto e nem podem ser vistos como o “ponto de chegada”,[9] sendo um principium argumentativo; precedente também é um texto, provimento é um texto, súmula é um texto;

4) Precedente não tem hierarquia em relação à lei;

5) Julgar precedente não é sinônimo de julgamento de tese; há que ficar clara a diferença entre precedente e tese; não podem ser a mesma coisa;

6) MacCormick só fala de precedente genuíno do common law (por óbvio, lá não tem sumula e não tem IRDR); também temos que estar de acordo que Schauer não trata de súmulas, não imagina IRDR e fala de precedentes no sentido do common law; também temos que estar de acordo que Taruffo também fala de precedentes e as citações acima esclarecem a extrema cautela com que esse autor fala desse tema;

7) Por último, uma questão teórica fundamental: penso que hoje em dia — com o avanço da teoria do direito — já podemos estar de acordo que o positivismo clássico (o que Mitidiero, por exemplo, chama de formalismo de matriz cognitivista[10]) está superado. E que não necessitamos fazer esforços e gastar preciosas energias para superar algo que Kelsen já havia suplantado. Sim, pode parecer estranho, mas Kelsen é um positivista pós-exegético. Portanto, creio que podemos estar de acordo, a partir de Hart — este pelo lado do positivismo (inclusivo) — e por Müller — este pelo lado do pós-positivismo — que já não há qualquer novidade em falar da e na superação do formalismo (ou exegetismo) ou equiparação texto-norma (nem preciso falar dos demais autores pós-hartianos, vivos e mortos). Se nos colocarmos de acordo com isso, ficará mais fácil falarmos em precedentes, teses, texto, norma, teoria da interpretação e conceitos afins (ou de uma teoria normativa de teoria política). Por fim, o cerne desta questão é: o que fazer neste ambiente de indeterminação gerado pelo pós-exegetismo? Tentando dar conta deste estado de coisas estão argumentativistas, interpretativistas, hermeneutas, positivistas de vários matizes, analíticos, dentre outros. A pergunta que surge é: seriam os precedentes suficientes para contornar esta realidade ou seria mesmo um retorno — ou a concessão fatalista — a um positivismo fático (jurisprudencialista)?

Preocupo-me com isso desde a década de 90. Georges Abboud, mais jovem, escreveu comigo o livro O que é isto — o precedente judicial e as súmulas vinculantes? (Livraria do Advogado, 3ª. Ed), já nos últimos 4 anos. É disso que estou falando. Portanto, por amor ao debate, quem estiver de acordo com estas premissas pode se aliar e passar a debater para encontrarmos, juntos, soluções. Mas, por outro lado, se não estivermos de acordo, deixemos claro que não estamos falando da mesma coisa. Embora isso não impeça que debatamos. Todos apreenderemos.

Digo isto porque há muita poluição semântica nesse tema. Por exemplo, tenho lido na vasta doutrina a disposição no país, coisas como: súmula é a ratio do precedente; Súmula é precedente; os provimentos enumerados no artigo 927 são todos precedentes — dando-se a entender que não haveria distinção conceitual entre eles. Temos de clarear isso. Parcela considerável dos meus críticos diz que estamos em face de um sistema de precedentes (conceito até agora que figura como performático [veja aqui artigo meu com Georges Abboud]). Já li também que a lei é sempre indeterminada e que, quando se estabelece o precedente (ou uma tese, como consta no RE 655.265), eliminar-se-ia (á) a discricionariedade. Só que essa posição não explica como se estabelece o precedente. Também não está explicado porque o precedente é/seria melhor do que a lei. Afinal, o que muda da lei para o precedente? Precedente não é texto? Ou precedente é um texto pré-interpretado? Ele já contém previamente as hipóteses de aplicação? Eis aí um ponto que tratarei com paciência e amiúde na sequência. Conclamo aos que concordam e aos que não concordam comigo para um tour de force e que possamos esclarecer esses conceitos. A doutrina é que sairá vencedora. Superando aguilhões semânticos.

Tenho que encerrar esta coluna. Espaço findou. Continua na semana que vem.


1 A integridade é entendida a luz de Ronald Dworkin: um prin cí pio legis la ti vo, que pede aos legis la do res que ten tem tor nar o con jun to de leis moral men te coe ren te, e um prin cí pio juris di cio nal, que deman da que a lei, tanto quan to pos sí vel, seja vista como coe ren te nesse sen ti do. A integridade exige que os juí zes construam seus argu men tos de forma inte gra da ao con jun to do Direi to, constituindo uma garan tia con tra arbi tra rie da des inter pre ta ti vas; colo ca efe ti vos freios, por meio des sa comu ni da des de princípios, às ati tu des solip sis tas-volun ta ris tas. A integridade é antitética a qualquer forma de voluntarismo, ativismo e discricionariedade. Ou seja: por mais que o julgador desgoste de determinada solução legislativa e da interpretação possível que dela se faça, não pode ele quebrar a integridade do Direito, estabelecendo um “grau zero de sentido”, como que, fosse o Direito uma novela, matar o personagem principal, como se isso — a morte do personagem — não fosse condição para a construção do capítulo seguinte. Portanto, ao contrário do que dizem alguns precedentalistas, Dworkin não autoriza uma correção moral do direito (aliás, nesse sentido tem isso em comum com Joseph Raz). Mas isto nem de longe possibilita o enquadramento de Dworkin como um “cognitivista” (formalista) como, equivocadamente, afirma Guastini. Cf. GUASTINI, Riccardo. Intepretare e argomentare. Milano: Dott. A. Giuffré Editore, 2011. p. 409. Na verdade, Dworkin é, sim, um cognitivista, mas jamais no sentido que Guastini (para falar só dele) entende. O cognitivismo de Dworkin é no sentido da meta-ética. Ou seja, antitético ao conceito descritivista (ato de conhecimento) referido por Guastini. Veja-se como a teoria do direito faz a diferença, clareando os conceitos.


2 Importante: Lá, precedentes são “principium” e, não, “telos” da discussão. Cf. RE, Edward D. Stare Decisis. Revista dos Tribunais, a. 83, v. 702, p. 7-13, abr. 1994; CASTANHEIRA NEVES, A. O instituto dos "'assentos" e a função jurídica dos supremos tribunais. Coimbra: Coimbra Editora, 1983. p. 62. Não esqueçamos que Castanheira Neves travou uma batalha similar a esta que travamos por aqui: ele derrotou o instituto dos assentos, espécie de súmulas portuguesas.


3 TARUFFO, Michele. Las funciones de las cortes supremas. In. TARUFFO, M. et al. La mision de los tribunales supremos. Madrid: Marcial Pons, 2016. p. 231.


4 Cit. p. 238-239.


5 Ramires, Maurício. Diálogo Judicial Internacional – O Uso da Jurisprudência Estrangeira pela Justiça Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 253.


6 Na mesma obra, Mitidiero afirma, em perspectiva realista (p. 99), que atuação da “Corte Suprema” se dirige ao futuro(p. 95) sendo uma “corte de interpretação do direito e não uma corte de controle das decisões”(p. 107) que “se autogoverna”(?!)(p. 111). Pondera ainda que "tendo a interpretação da corte suprema valor em si mesma (?!?), sendo o móvel que legitima sua existência e outorga sua função (?!?!) um eventual dissenso em sua observância por seus membros e por outros órgãos jurisdicionais é encarado como um fato grave, uma falta de respeito e como um ato de rebeldia ante sua autoridade, que deve ser evitado e, sendo o caso, prontamente eliminado pelo sistema jurídico e pela sua própria atuação." – destacamos. Ainda no referido texto afirma que: “A cultura jurídica subjacente a este modelo encara com naturalidade o fato que a última palavra acerca do significado do direito seja confiada à corte suprema." Mitidiero, D. Dos modelos de cortes de vertice- cortes superiores y cortes supremas. In. TARUFFO, M. et al. La mision de los tribunales supremos. p. 108 e 103.


7 Mesma tese de Mitidiero, D. cit. p. 98 e 113.


8 MITIDIERO, D. cit. p. 99.


9 MITIDIERO, D. cit. p. 108.


10 Demonstrarei em coluna próxima que, nesse caso, ao menos no plano do que diz Mitidiero no livro Dos modelos de cortes de vértice op.cit., sua percepção sobre a relação positivismo (formalismo)-cognitivismo difere daquela trabalhada contemporaneamente a partir da meta-ética. Ademais, o conceito de cognitivismo combatido por Mitidiero se aproxima do ato de conhecimento, puramente epistêmico, que já estava em Kelsen, na sua TPD. Kelsen justamente critica a jurisprudência dos conceitos por esta limitar o raciocínio judicial a um ato meramente intelectivo. Diferentemente, para Kelsen o juiz faz um ato de vontade, o que denota um não-cognitivismo. Neste caso, resta a pergunta: o papel do juiz em Kelsen seria o mesmo que Mitidiero prega para o papel do juiz hoje?



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 29 de setembro de 2016, 8h00

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