[Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo desta segunda-feira (9/3) com o título Prende e solta]
O título deste artigo revela autoria única. Quem prende e solta é o Estado-juiz, gerando toda sorte de perplexidade, de decepção para os cidadãos em geral. A ordem natural direciona a apurar para, selada a culpa, prender, em execução da pena privativa da liberdade de ir e vir.
Esse enfoque decorre da presunção do que normalmente ocorre; mais do que isso, do princípio constitucional da não culpabilidade: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
A impossibilidade de voltar-se ao estado de fato anterior exclui a denominada execução provisória da pena. A liberdade perdida, ante postura precoce, temporã, açodada, foge ao campo da devolução. Há, pois, de admitir-se uma premissa: o acusado, até então simples acusado, deve responder ao processo-crime em liberdade, assim permanecendo sob os holofotes da persecução penal, o que não é pouco em termos de reputação perante a sociedade.
A Constituição Federal, de forma indireta, contém mitigação a esse princípio, ao versar não só que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, como também que ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.
A prisão temporária é exceção, e mais ainda o é a preventiva. Presente o princípio da não culpabilidade, o legislador veio a afastar, como título da prisão provisória, até mesmo, o flagrante. Fê-lo mediante lei de 2011, estabelecendo a necessidade, se for o caso, de conversão em preventiva, uma vez não sendo oportuna e satisfatória a adoção, no caso concreto, de uma das medidas acauteladoras nela previstas.
Mas por que a população carcerária provisória chegou a patamar praticamente igual ao da definitiva, levando o Conselho Nacional de Justiça, na gestão do ministro Gilmar Mendes, a realizar um verdadeiro mutirão de soltura?
As razões mostram-se muitas. São potencializados — em inversão de valores, em abandono de princípios, da máxima segundo a qual, em direito, o meio justifica o fim, mas não este, aquele — aspectos neutros, de subjetivismo maior, sobressaindo o critério de plantão e, com isso, grassando a incerteza, a intranquilidade, a insegurança.
Em visão míope — e de bem-intencionados, nesta quadra estranha, o Brasil está cheio —, passou a vingar não o império da lei, mas a óptica do combate, sem freios, dos desvios de conduta, da corrupção, da delinquência de todo gênero.
A prisão preventiva talvez amenize consciências ante a morosidade da Justiça, dando-se uma esperança vã aos cidadãos, como se fosse panaceia perante esse mal maior que é a impunidade. A exceção virou regra, implementando-se, com automaticidade e, portanto, à margem da regência legal, esse ato de constrição maior que é a prisão.
As decisões nesse campo carecem de fundamentação, desaguando na concessão de ordem em habeas corpus. Por vezes, potencializa-se a imputação e, em capacidade intuitiva, presume-se que, solto, o investigado voltará a delinquir. Que se apure, viabilizando-se, à exaustão, o direito de defesa, para então, depois de incontroversa a culpa, limitar-se a liberdade, bem suplantado apenas pela própria vida.
Não é demasia lembrar Machado de Assis — a melhor forma de ver o chicote é tendo o cabo à mão. Justiça não é sinônimo de justiçamento. A sociedade não convive com o atropelo a normas reinantes. O desejável e buscado avanço social pressupõe o respeito irrestrito ao arcabouço normativo. É esse o preço a ser pago "e é módico, estando ao alcance de todos" por viver-se em um Estado Democrático de Direito.
Marco Aurélio Mello é ministro do Supremo Tribunal Federal.
Revista Consultor Jurídico, 9 de março de 2015, 11h32
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