Flagrado, utilizando literalmente os “autos do processo”, o magistrado carioca que neste momento está em evidência de norte a sul do Brasil, bem revela como as nossas instituições, expostas pelos meios de informação, têm sido muito criticadas pela sociedade contemporânea.
Atitudes reprováveis isoladas, embora frequentes, comprometem a confiança que os cidadãos sempre depositaram no Poder Judiciário.
Sob o prisma jurisdicional, é certo, que a atual concepção de “processo justo” não tolera qualquer resquício de discricionariedade, até porque, longe de ser simplesmente “la bouche de la loi”, o juiz proativo de época moderna deve estar comprometido e zelar, tanto quanto possível, pela observância, assegurada aos litigantes, do devido processo legal
Não obstante, em nossa experiência jurídica, esquecendo completamente de que a celeridade deve servir às partes e não ao Estado, os tribunais, em várias situações, extrapolam as garantias processuais, passando a legislar em detrimento do direito material do litigante, como ocorre, por exemplo, no âmbito da famigerada jurisprudência defensiva.
Para salvar a semana, observo que dois importantes e recentes julgados foram estampados, na íntegra, no último boletim (n. 2.929) da operosa Associação dos Advogados de São Paulo, que bem demonstram a sensibilidade e os atributos que devem revestir, no Elogio de Calamandrei, “o talento do bom juiz”.
O primeiro deles, da 20ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 2092111-81.2014.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Alberto Gosson, desproveu o recurso com fundamento na prudência e razoabilidade. Vale a transcrição parcial da precisa ratio decidendi: “A inviolabilidade do sigilo bancário é direito de extração constitucional (CF, art. 5º, incisos XII e X), que somente admite relativização em hipóteses excepcionais arroladas pela Lei Complementar n. 105/2001 e pela jurisprudência. Em interpretação da citada lei, como regra, não se permite o afastamento do sigilo em processos cíveis, mas somente para fins de investigação criminal ou instrução processual penal... E, com a mesma orientação, precedentes do STJ e do STF... A espécie, no entanto, até mesmo por tratar de matéria cível, não se amolda a nenhuma das hipóteses previstas na Lei Complementar n. 101/2005. No mais, deve ser levado em conta o princípio da ‘menor onerosidade da execução’, do qual se pode extrair que, mesmo admitida a quebra do sigilo em processo de execução, tal medida só poderia ser adotada em último caso, como ultima ratio, de maneira absolutamente subsidiária a todas as demais ferramentas postas à disposição do juiz para propiciar a satisfação da prestação. Não bastasse, a pessoa cuja conta bancária se requer a violação não é nem mesmo devedora da exequente, não constando da nota promissória nem integrando o polo passivo do processo. Ademais, não é razoável restringir um direito fundamental de primeira geração (dimensão), com base simplesmente em suposições de conluio, desprovidas de qualquer indício de prova, entre o devedor e terceiro, para obstaculizar a execução”.
Já o outro aresto, proferido no Recurso Especial n. 1.443.992-RJ, pela 1ª Turma do STJ, cujo voto condutor é da lavra do Ministro Ari Pargendler, recentemente aposentado, enfrentou questão processual emergente do polêmico art. 285-A do CPC, ensejando o provimento do recurso.
Recorde-se que esta regra legal (reproduzida no art. 332 do novo CPC: “improcedência liminar do pedido”) autoriza o juiz a proferir sentença de improcedência do pedido, quando, no mesmo juízo, o mérito, exclusivamente de direito, já tiver sido apreciado em outra demanda. Ocorre que nem sempre se torna fácil traçar nítida distinção entre matéria de direito e matéria fato, circunstância que reclama redobrada atenção do julgador. Nesse particular, o açodamento do juiz pode ferir a garantia da ampla defesa.
Foi exatamente o que sucedeu no precedente acima mencionado, constando da fundamentação do acórdão o seguinte trecho: “O pedido inicial, qual seja o de que o recorrente deixou de receber parcelas devidas a título de ‘quintos’ e ‘décimos’, tem dois pressupostos: - um, o de que o Conselho da Justiça Federal reconheceu-lhe o direito de incorporar à sua remuneração as aludidas vantagens funcionais; e – outro, o de que algumas das respectivas parcelas deixaram de lhe ser pagas. À evidência, o juiz federal substituto não poderia ter imprimido ao procedimento a tramitação do processo sem contraditório regular. Se é verdade que, tratando-se de servidora da Justiça Federal lotada na 2ª Região, o magistrado e o tribunal a quo poderiam ter conhecimento dos fatos alegados nesse âmbito, não lhes era dado presumir o que diz respeito à Seção Judiciária do Estado do Amazonas. A falta de pagamento de parcelas atrasadas constitui, portanto, fato que precisa ser provado”.
Desse modo, a turma julgadora, por unanimidade, conheceu do recurso especial e lhe deu provimento para anular o processo desde a sentença, “dando ensejo ao contraditório regular”.
Não é preciso enfatizar que as teses desenvolvidas em ambos os julgados são da maior relevância, tanto mais quanto se tenha presente o significado dos princípios constitucionais que exornam a garantia do devido processo legal, necessariamente assecuratória da plenitude de defesa.
Viceja destarte a instrumentalidade do processo como vetor institucionalizado em prol da efetivação do direito material.
Valeu a semana!
José Rogério Cruz e Tucci é advogado, diretor e professor titular da Faculdade de Direito da USP e ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 3 de março de 2015, 10h22
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