Circula nas redes — vi no Facebook do Aury Lopes Jr. — uma decisão de um juiz de direito —apaguei o seu nome a Comarca, porque o que interesse é o fenômeno e não a pessoa — em que ele decreta a prisão preventiva em um formulário padrão, em que as alternativas de “fundamentação” (as aspas indicam ironia, ok?) são os dizeres do artigo 312 do CPP. Ei-la:
E ele tascou um X nas alternativas garantia da ordem publica e assegurar a aplicação da lei penal. Simples assim. Não há referência a um caso concreto específico. Há um formulário que fala de um tipo de crime. Incrível. Trata-se da ontoteologização do direito. O juiz achou o que os filósofos procuram há dois mil anos: o “ser em geral”. A substância de todos os crimes. A essência da prisão preventiva. Sabendo-se a essência, sabe-se tudo. Trata-se de algo como se passa na Novela do Curioso Impertinente, de Cervantes, em que o personagem Anselmo procura a essência de fidelidade.
Quando li essa decisão fiquei pensando em fugir para as montanhas. Pindorama é assim. Quando se cava um buraco e se chega lá embaixo, o que encontramos? Marque um X na alternativa “uma pá” para cavar mais fundo. E acertou. Pergunto-me: o que está acontecendo com o Direito em terrae brasilis? A estandardização e a literatura prêt-à-porter, prêt-à-parler e prêt-à-penser levou os juristas a esse patamar? Tenho a certeza que sim. Minhas perguntas são retóricas.
O que vale a liberdade de uma pessoa? Pode ela ser perdida por prisão preventiva marcada por um X, sem qualquer fundamentação ou referência ao fato concreto, como se fosse um quiz show? Juízes não tem responsabilidade política? Então a aplicação da lei virou isso? Aliás, agora me dou conta de que não faltou inspiração ao juiz. Na Polícia Civil em vários Estados já existe o mesmo tipo de formulário para pedir as medidas protetivas da Lei Maria da Penha! Na Justiça do Trabalho a maioria dos pedidos também é apresentada em formulários. E se a ideia pega, poderíamos transformar tudo em formulário. O promotor marca um X no artigo violado! Para que descrever conduta típica? Para que fundamentar a decisão? Assim a justiça fica mais rápida alguns dirão, como se esse fosse o objetivo do Estado Democrático de Direito! Sim, sei que a decisão essa é de 2011. Não importa. Nem sei se esse procedimento era praxe. De todo modo, não está “prescrito” o episódio. O que importa, aqui, é discutir o simbólico. Com ele — o simbólico — podemos capturar o imaginário de determinados juristas.
Essa nem o leitor que se assina Prætor e que critica todas as minhas colunas poderá defender (aliás, fico imaginando às quintas-feiras de manhã: Prætor levanta tremendo, emocionado... abre a ConJur e tasca seu comentário, em uma espécie de gozo fundamental; sem o Prætor, Senso Incomum não seria o que é!). E não sou só eu que penso assim! Registre-se o comentário bem-humorado do comentarista Alexandre Carvalho Simões (Advogado Autônomo - Criminal) na coluna do dia 19/03 (Abstraindo, é claro, o encaminhamento que dá ao meu segundo modelo de juiz):
“Praetor me fez lembrar de um versículo da bíblia: Saulo, Saulo porque me persegues? Todo mundo sabe que Saulo se tornou Paulo e que Paulo foi o maior apóstolo de Cristo. Assim será o Praetor, o maior apóstolo de Lenio Streck. Dizem que amor e ódio andam de mãos dadas... [...]”.
Destarte, se haverá a conversão do nosso Prætor, não sei. Mas pela fama que já alcança nosso interlocutor, esperamos a edição de um “(des)compreender direito: comentários críticos à coluna senso incomum”. Talvez me force à tréplica, com um “Verdade e Implicância”.
Sigo. E para dizer que é despiciendo falar mais sobre essa “decisão” (Novamente entre aspas. Lembrem-se, decisão não é escolha que se resolve marcando X!). O que quero começar, agora, é uma nova cruzada. No NCPC conseguimos — lembrem-se que sofro de LEER — tirar o livre convencimento (emenda minha), introduzir a obrigação de decisão por coerência e integridade (artigo 926 por sugestão minha também) e o dever de fundamentação detalhada, como os leitores sabem muito bem, bastando, para tanto, ver as edições anteriores da ConJur para tomar conhecimento da luta que tivemos (este escriba, Dierle, Fredie, Alexandre Camara, Alexandre Morais da Rosa, André Karam, Georges Abboud, Eduardo Arruda Alvim, Rafael Tomas de Oliveira, entre outros).
Agora será a vez do Código de Processo Penal. Não me parece razoável que o novo CPP que está sendo gestado no Congresso preveja o poder de livre apreciação da prova. Eis a luta. Também do CPP teremos que expungir essa anomalia a-paradigmática. E teremos que colocar no CPP o dever de fundamentação, com a obrigação de, além de coerência e integridade, o juiz enfrentar todas as teses levantadas pelas partes. Já pensaram se aplicássemos a obrigação de coerência e integridade para o caso do juiz em liça?
Isso tudo para evitar que decisões como a do referido magistrado se repitam. Sabemos que hoje todos os tribunais dos Estados da nossa federação condenam acusados de furto, estelionato e trafico de entorpecentes lançando mão da inversão do ônus da prova. Isso jamais aconteceria se tivéssemos um CPP similar ao NCPC.
Na verdade, faço uma penitência: não precisaríamos colocar nada disso nos códigos se cumpríssemos a Constituição. O dever de fundamentação na Europa é um direito inalienável. É um direito humano fundamental. Aqui virou mercadoria de quiz show. Aqui virou caricatura. Sim, porque inverter o ônus da prova é retroceder séculos no direito. É retornar às ordálias. Você é culpado até provar o contrário. Ou seja, pegue este ferro quente na mão. Se não lhe queimar, é inocente. Bingo. Binguíssimo.
A etapa II da guerra contra o solipsismo! O novo CPP!
Por tudo isso, inicio hoje a etapa II da guerra contra o solipsismo em Pindorama. No início, minha luta era olhada de soslaio. Ah, lá vem o Lenio Streck falando contra o solipsismo. Que palavra seria essa? Alguns riam. Pois é: a palavra solipsista vem do alemão Selbsüchtiger, que quer dizer “viciado em si mesmo”. Sim, a realidade para o sujeito solipsista existe só a partir do ele, viciado em si, pensa. Eis o dilema do jurista contemporâneo. No século XIX, no positivismo clássico, o jurista era viciado na lei (a lei era tudo; previa todas as hipóteses de aplicação). Era o século da razão, em que o direito pretendeu aprisionar a complexidade social em leis (França), conceitos (Alemanha) e precedentes (Inglaterra). Bingo. Saltamos para o século da vontade. Só que nunca conseguimos controlar essa vontade. E viramos viciados em nós mesmos. De um vício passamos a outro. Quase pior. É como saltar do personagem Angelo I para o Angelo II, da peça Medida por Medida, de Shakespeare. Solipsismo é algo como crack gnosiológico. Basta experimentar uma vez e não larga mais. Eis o que aconteceu no direito.
Daí a nossa luta. Daí a minha cruzada. As inscrições estão abertas para cerrarmos fileiras nessa batalha. Se antes se olhava de soslaio minha luta, agora já começam a murmurar pelos quatro cantos. Oiço cousas como “poxa: de fato o NCPC tirou fora a palavra livre na questão do convencimento”. “— Então se o legislador tirou...é porque de fato quis”! E eu acrescento: É porque entendeu que, de fato, como defendo há muito tempo, o livre convencimento não se dá bem com a nossa Constituição. E a obrigação de coerência e integridade complementa essa alteração paradigmática.
Vai depender de nós. Da doutrina. Que, insisto mais uma vez, está na hora de voltar a doutrinar. Parar de ficar caudatária de decisões tribunalícias. A doutrina deve constranger os tribunais a decidir corretamente, e não o contrário, ou seja, doutrinar com base nas decisões proferidas. Temos de implementar o NCPC. E lutar para alterar o projeto do CPP. Sim. Lá está. Eu vi. Em pleno século XXI, até agora o legislador está mantendo o poder de livre apreciação da prova. E, o pior: com advogados participando da Comissão de redação do NCPP. Será que eles não sabem o que é sentir na carne o poder da livre apreciação? Hein? Será que eles imaginam uma sentença como a comentada nesta coluna? Cartas para a coluna.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 26 de março de 2015, 8h00
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