quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

DIREITOS HUMANOS NO DIÁLOGO ENTRE OS CAMPOS DE CONHECIMENTO

Os artigos deste número da Revista Katálysis enfocam o tema dos direitos humanos a partir de diferentes quadros teóricos, o que constitui uma riqueza e contribui para eliminar de antemão muitas objeções hoje vigentes em relação à problemática em questão. Isto porque os diferentes quadros nos oferecem óticas diferenciadas, e não, necessariamente, excludentes, de abordar o tema. O que, certamente, irá contribuir para a percepção de que a maioria das objeções levantadas provém do fato de não se levar em consideração a ótica em que a problemática é tratada e, sobretudo, da não consideração de que, a partir de sua estruturação interna, os diversos quadros teóricos podem dar na abordagem da questão.
Numa perspectiva mais genérica, pode-se dizer que é muito diferente, de um lado, considerar a problemática dos direitos humanos dentro do quadro teórico das ciências sociais, que analisam as condições da vida humana nos contextos específicos das sociedades contemporâneas, e de outro, procurar trabalhar esta problemática no contexto de uma teoria da realidade em seu todo, portanto, no contexto de uma teoria filosófica.
A abordagem em distintas óticas pode contribuir para mostrar como estas podem ser complementares, mesmo guardando seus níveis teóricos diferenciados para a consideração de um tema que se transformou numa das questões centrais do mundo em que vivemos, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista de sua efetivação nos diversos níveis e dimensões da vida humana, pessoal e coletiva.
Um dos problemas básicos que emergem no debate contemporâneo sobre os direitos humanos, e que têm grandes consequências para sua compreensão, é a concepção de ser humano, normalmente implícita, presente nos debates e determinante para a compreensão e a avaliação do que se pretende dizer quando se fala de direitos humanos.
Um elemento decisivo para uma compreensão adequada dos direitos humanos, enquanto "exigências morais" (direitos pré-positivos) que se radicam na constituição ontológica do ser humano e se distinguem dos "direitos positivados" (direitos positivos), é o fato de que o ser humano, ser corporal-espiritual, como indivíduo, constitui-se como um ser situado numa forma específica de configuração do conjunto de seus relacionamentos com os outros indivíduos e com a natureza da qual ele faz parte. Esta estruturação marca e condiciona as diversas dimensões de suas vidas individuais. Mesmo como um ser, em princípio capaz de transcendência a qualquer configuração de seu ser, ele não existe para além de qualquer estruturação sócio-histórica. Desta forma, a compreensão do ser humano como um ser essencialmente aberto à alteridade e histórico implica em compreender a vida humana como um processo de condicionamento recíproco entre indivíduos e estruturas da vida social.
Assim, a conquista efetiva de seu ser passa pela forma de configuração destas relações na medida em que delas depende, se os mundos históricos por ele construídos constituem-se, ou não, como espaços de possibilitação do reconhecimento dos seres humanos enquanto sujeitos, seres corporal-espirituais chamados à liberdade.
A tese fundamental neste contexto é que o indivíduo só pode efetivar-se através da mediação de um mundo de instituições que assegura o espaço de liberdade: é no espaço de mundos de seres livres e iguais que ele se realiza como tal. Por esta razão, é decisiva a forma de estruturação dos mundos intersubjetivos para a efetivação dos direitos humanos que são constitutivamente sempre individuais e sociais. O debate atual sobre os direitos humanos precisa, por isto, partir de um questionamento básico que se situa no quadro teórico específico das ciências: como se configura nosso mundo histórico hoje e que lugar têm aí os direitos humanos?
Em sua dinâmica atual, o capital conquistou para si um espaço de ação para além do espaço dos estados nacionais, constituindo uma economia global através de uma onda de desregulamentações, fusões e privatizações, reestruturação empresarial e produtiva. Fomentou a expansão das empresas transnacionais, estruturadas a partir de seus interesses corporativos que se subtraem cada vez mais ao controle dos estados nacionais e pagam cada vez menos impostos em seus países de origem. Aumentaram a produção e a riqueza mundiais, com distribuição desigual de seus resultados, já que privilegia elites hegemônicas, marcadas por um produtivismo consumista ilimitado, e degrada os ecossistemas, desperdiçando matéria-prima e energia, destruindo a biodiversidade, exaurindo os solos e as águas, realidades que hoje já ameaçam obstruir todo o sistema.
A globalização transformou profundamente nos últimos 20 anos a organização econômica, as relações sociais, os modelos de vida e cultura, os Estados e a política, e acelerou enormemente as mudanças e a geração de novos paradigmas. Recorre-se hoje à lógica da globalização para legitimar o desmantelamento das instituições de proteção social e de controle de mercados, do exercício do papel equilibrador do Estado e da proteção dos direitos dos cidadãos, já que as instituições políticas dispõem de pouca margem de manobra frente aos mecanismos dominadores do mercado, de modo especial frente aos organismos financeiros internacionais.
O resultado deste processo escancara a violação dos direitos elementares do ser humano, gerando: pobreza, miséria, dependência econômica, ditadura política, opressão policial, sequestro, tortura, exílio, assassinato. Acontece com clareza aquilo que Franz Hinkelammert (El sujeto y la ley: El retorno del sujeto reprimido. Heredia: EUNA, 2003, p. 79) chamou de "inversão dos direitos humanos", onde "a história moderna dos direitos humanos é a história de sua inversão, a qual, transforma a violação dos direitos humanos em imperativo categórico da ação política."
Age-se em nome dos direitos humanos contra a pessoa humana o que normalmente vem acoplado à criminalização dos defensores dos direitos humanos que desmascaram a hipocrisia.
Há grandes massas de indivíduos que são os perdedores deste processo e há completa ausência de uma autoridade global efetiva para enfrentar as questões que emergem desta nova situação.
No contexto atual do mercado total, os direitos humanos, fundados na liberdade, são vistos como distorções, pois tudo se reduz ao indivíduo e à sua competência, o que tem conduzido a uma perda acentuada do sentido da coisa pública, do bem comum. O que rege a vida social é a "lei da selva", do "cada um por si", do "levar vantagem em tudo". Cabe ao indivíduo prover a sua vida e as suas necessidades. Daí porque acima dos direitos do ser pessoal, agora desqualificados como privilégios, se põem os "direitos" do grande capital.
A política macroeconômica opta por empreendimentos que levam à exclusão progressiva e à flexibilização do mercado de trabalho em favor da grande empresa. Uma vez que o objetivo básico é submeter a vida social em sua totalidade às leis do mercado, tudo é avaliado de acordo com sua funcionalidade, ou não, ao mercado livre.
Estas experiências dolorosas de degradação da vida humana abriram a muitos um horizonte que lhes permitiu aceder a uma nova consciência da significação dos direitos humanos na vida humana.
Numa outra perspectiva, uma das respostas, talvez desesperada, a esta situação que se apresenta em nosso contexto é o terrorismo que levanta a pretensão de uma legitimação ética; o terror emerge aqui como a resposta dos povos ou grupos oprimidos à arrogância dos poderosos, como penalidade justificada em virtude de sua petulância e crueldade.
A história humana, examinada do ponto de vista normativo (portanto, no nível da reflexão ética, da filosofia da política e do direito), revela-se como o espaço de luta pela efetivação da dignidade específica do ser humano enquanto ser pessoal dotado de corporeidade, inteligência, vontade e liberdade. Isto significa a efetivação de direitos e, como tarefa histórica, implica o enfrentamento de todo tipo de desigualdade e servidão, possibilidades constantes na vida humana, e produz a negação de seu caráter de sujeito e sua redução a objeto, em diferentes formas.
A humanização, portanto, é algo construído, conquistado, o que pressupõe sujeitos ativos e conscientes de sua dignidade que se efetiva em direitos. Enquanto tais, estes sujeitos se fazem autores de seu próprio desenvolvimento, que passa pelo reconhecimento mútuo, o qual por sua vez se faz através da mediação de instituições, que regulam a convivência entre os seres humanos e suas relações com a natureza no sentido de superar todo tipo de instrumentalização e opressão.
Nesta perspectiva, manifesta-se que a igualdade básica dos seres humanos é, antes de tudo, uma igualdade de direitos, por conseguinte normativa, cuja efetivação na história humana pressupõe o estabelecimento de "instituições universalistas" que possam garantir a criação do espaço do reconhecimento universal, o que se traduz em democracia radical e justiça socioeconômica.
Mais do que nunca, neste contexto, os direitos do ser humano, enquanto direitos essenciais, pré-positivos, devem constituir o alicerce de uma convivência racional; e, já que eles são a decorrência da liberdade, isto significa dizer que a liberdade deve ser o fundamento da ordem social.
Desta forma, a efetivação dos direitos humanos significa a garantia de uma vida humana verdadeiramente sustentável e digna. Consequentemente, o poder e o mercado não podem constituir o valor supremo e os controladores incontestáveis da vida humana, mas, antes, só têm sentido na medida em que se submetem aos direitos essenciais do ser humano e se põem a seu serviço, portanto, a serviço da justiça.
A norma decisiva do direito pré-positivo objetivo é precisamente que os direitos subjetivos dos portadores de direito devem ser protegidos com coerção.
Isto significa efetivar a razão como a instância que rege a existência social, na qual os seres humanos conduzem suas vidas a partir de princípios da justiça e se reconhecem reciprocamente como membros de uma entidade de seres livres e iguais.
Toda ação de indivíduos ou estruturas de instituições que entrem em contradição com estas exigências básicas do ser humano devem ser rejeitadas a partir da "medida" de referência que são os direitos humanos.
Por outro lado, um direito moral precisa também garantir a segurança jurídica e, enquanto tal, exige um "Estado de Direito", capaz de unir justiça e segurança legal e, portanto, de reconhecer e garantir a efetivação dos direitos fundamentais do ser humano. São estes direitos que possibilitam a efetivação do ser humano como ser livre, e o Estado só pode ser considerado um Estado de direito quando ele mesmo se submete a estes direitos. Assim, o Estado não constitui a fonte da vida coletiva, mas é um instrumento criado pela sociedade em função da efetivação dos direitos que decorrem da dignidade do ser humano. É a efetivação dos direitos humanos que tornará possível configurar a vida humana de tal forma que ninguém seja excluído de sua dignidade.
Manfredo Araújo de Oliveira, Fortaleza, julho 2011.

Manfredo Araújo de Oliveira manfredo.oliveira@uol.com.brDoutorado em Filosofia pelo Universität München
Ludwig Maximilian, Alemanha
Professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC)

UFC - Centro de Humanidades Departamento de Filosofia
Avenida da Universidade, 2995
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CEP: 60020-181


Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-49802011000200001&lang=pt

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