Duncan Kennedy foi um dos principais protagonistas do movimento de contra-cultura jurídica dos Estados Unidos, ao longo da década de 1980. Leciona na Harvard Law School. Deixa-nos, entre tantos textos, um manifesto para uma educação jurídica de feição crítica (Legal Education as Training for Hierarchy), um comentário sobre os textos clássicos de Blackstone (The Structure of Blackstone’s Commentaries), um inusitado manifesto-diálogo, escrito com Peter Gabel (Roll over Beethoven), um livro de crítica e problematização da concepção de decisões jurídicas (A Critique of Adjudication - Fin de Siècle) e um conjunto de ensaios sobre poder e políticas de identidade cultural (Sexy, Dressing etc.).
Duncan Kennedy afirmou que as faculdades de direito são locais de intensa prática política, nada obstante o fato de que se dissimulem intelectualmente despretensiosas, estéreis de ambição teórica ou de visão prática no que toca ao que a vida social deva ser[1]. O aluno de direito buscaria mobilidade social, e é raro que seus pais efetivamente desaprovem que seus filhos frequentem um curso jurídico, não importando a origem social das famílias[2].
O ambiente do curso de direito reproduziria convenções de poder, os professores são majoritariamente brancos, do sexo masculino, pretensamente corretos nas atitudes, com todos os maneirismos de classe média[3]. Para o professor de Harvard, a sala de aula de primeiro ano de uma faculdade de direito é culturalmente reacionária[4].
O curso de direito legitimaria o modelo hierárquico, promovendo a justificação para os modelos normativos que fermentam as relações de poder numa sociedade capitalista[5]. Há livro de vulgarização referente às tormentas que o primeiro ano do curso de direito provoca no aluno norte-americano, de autoria de Scott Turrow[6]. O texto de Kennedy sobre educação jurídica também circulou em forma de uma edição-panfleto, em cor vermelha[7], o que certamente guarda semelhanças com o livro vermelho da revolução cultural chinesa de Mao[8].
Sob pesada influência dos modelos historiográficos de Edward Palmer Thompson, historiador inglês de esquerda que estudara a questão agrária na Inglaterra medieval[9], a par da formação da classe operária inglesa, ativista, pacifista, Duncan Kennedy elaborou texto a propósito da estrutura dos comentários de William Blackstone. Redigidos entre 1756 a 1759, os aludidos comentários de Blackstone analisam as leis da Inglaterra, em mais de duas mil páginas, divididas em quatro volumes, dispostas em aparente lógica binária, com fragmentação em rights e wrongs[10].
Denuncia Kennedy que os comentários de Blackstone plasmavam um instrumento apologético, mistificando dominadores e dominados, convencendo-os da naturalidade, da liberdade, da racionalidade da condição do servo[11]. O método usado por Kennedy ao comentar Blackstone também nos remete ao modo estruturalista de análise, como encontrado nos trabalhos de Claude Lévi-Strauss[12].
Roll over Beethoven é texto-diálogo, altamente subversivo, a começar pelo título, que evoca nostálgico rock and roll gravado por Chuck Berry em 1956. Kennedy dá início à fala acusando Peter Gabel[13] de trair o projeto do movimento crítico do direito norte-americano ao tentar conceituá-lo[14]. Duncan Kennedy propõe um positivismo de combate, sugerindo que advogados progressistas ligados ao movimento crítico deveriam convencer juízes de que deveriam agir e de que lidavam com causas dependentes de decisões concretas[15].
Kennedy propõe atitudes prospectivas e de tal modo descaracteriza e desautoriza o niilismo que supostamente marcava o grupo. Otimista, Kennedy propunha que a luta para propiciar força liberatória no discurso político dominante poderia, em alguns casos, ser energizante[16]. O texto provocou reações ásperas, a ponto de um professor da universidade de Maryland ter reputado o excerto como um monte de lixo (a pile of crap)[17].
No livro A Critique of Adjudication, que é recente (de 1997) Duncan Kennedy reafirma o eixo temático crítico que vem desenvolvendo desde a conferência de Madison. Define o livro como um trabalho de teoria social escrito a partir de um ponto de vista de esquerda e modernista/pós-moderno[18].
Relativista, Kennedy admite que o papel do direito (the rule of law) exerce importante função nos vários modelos de governo e na ordem social de inúmeros países democráticos e capitalistas, embora não protagonizem o mesmo papel nos diferentes sistemas que menciona[19]. Toca em temas afetos ao marxismo clássico, citando o próprio filósofo de Trier, a propósito da alienação, e lembrando que há por parte das pessoas tendência à alienação dos próprios poderes[20].
Identifica as diversas tipologias atinentes à teoria da prestação jurisdicional; lembrando o binômiodedução e atividade legislativa do judiciário em Hart, a ideia robusta de julgamento enquanto atividade legislativa do judiciário em Mangabeira Unger, a concepção de dedução, coerência e percepção política pessoal em Dworkin, entre outras[21]. A própria definição de regras jurídicas (legal rules) suscita conflitos ideológicos, inseridos em sociedade ideologicamente dividida[22].
Kennedy assume a ideologia como uma universalização de interesses de grupo (universalization of group interests)[23]. E é a política que agindo como um cavalo de Tróia traduz a ideologia em regras jurídicas[24].
Um dos pontos mais elaborados do livro consiste nas abertas críticas que Duncan Kennedy fez a Ronald Dworkin, ao analisar o pensamento do juiz Hercules. Trata-se Hercules de figura metafórica engendrada por Dworkin; aparece no ensaio Hard Cases e é descrito como detentor de habilidades sobre-humanas, sabedoria, paciência e perspicácia[25].
O problema consiste em se entender concretamente os mecanismos que informam e que marcam a atividade judicial, no que toca ao trabalho artesanal do julgador, dúvida que persiste intrigando o pensamento jurídico ocidental. A problematização do fato, sem necessariamente apresentar-se soluções, é que consubstancia um ensaio discursivo, que matiza um plano de ação. Nominando o projeto de mpm (modernism/postmodernism) Duncan Kennedy antecipadamente responde aos críticos[26], insistindo que não há concepção niilista adjacente à ideia de se repensar os modelos de adjudicação (adjudication) no significado inglês da expressão, referente a protótipos de decisões judiciais.
Em 1993 Duncan Kennedy publicou ensaio sobre ações afirmativas e as projeções da questão em âmbito de academia jurídica[27]. Ações afirmativas são debatidas nas cortes americanas desde 1974 (caso DeFunnis), ganharam muita discussão em 1978 (caso Bakke)[28] e ainda hoje dividem a opinião pública dos Estados Unidos. Trata-se de reservas de cotas em universidades (por exemplo) para egressos de minorias (especialmente raciais); os prejudicados matizam as ações afirmativas com o nome de discriminações reversas. Kennedy assume que um princípio democrático geral diz-nos que as todas as pessoas devem possuir representação nas instituições que exercem poder e influência em suas vidas. Consequentemente, a diversidade cultural deve ser estimulada, e com isto se potencializa a qualidade e o valor dos estudos de direito[29].
Os estudos e a ação docente de Duncan Kennedy caracterizam seu trabalho como referencial em estudos movimento crítico nos Estados Unidos. Diferente, inovador, ousado, irreverente, Kennedy bem consubstancia atitude conceitual que insiste que direito é política.
[1] KENNEDY, Duncan. Legal Education as Training for Hierarchy, in KAIRYS, David (ed.), The Politics of Law- a Progressive Critique, p. 54. Tradução e versão livre do autor. Law schools are intensely political places despite the fact that they seem intellectually unpretentious, barren of theoretical ambition or practical vision of what social life might be.
[2] KENNEDY, Duncan. Op.cit., p. 55. Tradução e versão livre do autor. It is rare for parents to activelydisapprove of their children going to law school, whatever their origins.
[3] KENNEDY, Duncan. Op.cit., p. 56. Tradução e versão livre do autor. The teachers are overwhelmingly white, male, and deadeningly straight and middle class in manner.
[4] KENNEDY, Duncan. Op.cit., loc.cit. Tradução e versão livre do autor. The law school classroom at the beginning of the first year is culturally reactionary.
[5] KENNEDY, Duncan. Op.cit., p. 72.
[6] TUROW, Scott. One L. O título refere-se ao primeiro ano do curso de direito, onde One refere-se ao ano e L a Law, direito.
[7] MINDA, Gary. Op.cit. p. 112.
[8] GOLDMAN, Merle e FAIRBANK, John King, China, a New History, p. 383 e ss.
[9] Há tradução portuguesa de Whigs and Hunters, Senhores e Caçadores, livro que influenciara Duncan Kennedy.
[10] GOLDBERG, John C. P. Blackstone’s Commentaries on the Laws of England, in HALL, Kermit L. (ed.) The Oxford Companion to American Law, p. 67.
[11] KENNEDY, Duncan. The Structure of Blackstone’s Commentaries, in HUTCHINSON, Allan C. (ed.), Critical Legal Studies, p. 139.
[12] MINDA, Gary. Op.cit., p. 115.
[13] Pete Gabel lecionava direito na California, especificamente na New College of California Law School.
[14] KENNEDY, Duncan. Roll Over Beethoven, 36 Stanford Law Review, p. 1.
[15] KENNEDY, Duncan. Op. cit. p. 29.
[16] KENNEDY, Duncan. Op. cit.,p. 37.
[17] MINDA, Gary. Op.cit., p. 122.
[18] KENNEDY, Duncan. A Critique of Adjudication- Fin de Siècle, p. 1. Tradução e versão livre do autor. It is a work of general social theory written from a leftist and a modernist/postmodernist point of view.
[19] KENNEDY, Duncan. Op.cit., p. 13.
[20] KENNEDY, Duncan. Op.cit., p. 18.
[21] KENNEDY, Duncan. Op.cit., p. 37.
[22] KENNEDY, Duncan. Op.cit., p. 39.
[23] KENNEDY, Duncan. Op.cit., p. 41.
[24] KENNEDY, Duncan. Op.cit., p. 111.
[25] DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, p. 105. Tradução e versão livre do autor. (...) superhuman skill, learning, patience and acumen (...)
[26] KENNEDY, Duncan. Op.cit., p. 359.
[27] KENNEDY, Duncan. A Cultural Pluralist Case for Affirmative Action in Legal Academia, in KENNEDY, Duncan, Sexy, Dressing etc., p. 34 e ss.
[28] SPANN, Girardeau. The Law of Affirmative Action- Twenty- Five Years of Supreme Court Decisions on Race and Remedies, p. 15 e ss.
[29] KENNEDY, Duncan. Op.cit., p. 34.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 24 de fevereiro de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário