terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
POR UMA POLÍTICA PÚBLICA NACIONAL DE ACESSO À JUSTIÇA
Por Virgínia Feix
RESUMO
O ARTIGO defende a criação de uma política pública nacional de acesso à justiça pela parceria Estado e sociedade civil, visando a enfrentar o déficit de cidadania resultante da falta de informação e de consciência da condição de sujeitos de direitos pela maior parte da população. A proposta busca superar as limitações decorrentes de três características do Estado liberal que contribuíram para o não reconhecimento da diversidade social, que é condição necessária para implementação dos direitos humanos de todos(a) por um Estado ético: a igualdade formal, a democracia representativa fundada na regra da maioria e a dicotomia entre o Direito Público e Privado.
ABSTRACT
This article supports the formulation of a national public policy for the access to justice based on the state and civil society partnership, aiming to face the existent citizenship deficit related to the lack of information and consciousness of the entitlement of rights by the majority of our population. The proposal's objective is to overcome the limitations resulted of three institutions of the liberal state that influenced on avoiding the recognition of social diversity, which is a necessary condition for the implementation of everyone's rights by an ethic state: the formal equality, the representative democracy based at the majority rule and the dichotomy between public and private law.
DIANTE DA INEGÁVEL exclusão de grande parte da população brasileira à garantia de direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, fica claro de que não basta uma reforma na estrutura do Estado e do Poder Judiciário e que, se quisermos atingir além da estrutura do sistema de administração de justiça, deveremos compreender o sistema legal a partir de três pilares de sustentação: o conteúdo do Direito, a estrutura do Direito e a cultura do Direito, o que só será possível num sistema em que o Direito não seja monopólio do Estado.
Consideramos que a resistente superação do Estado liberal e a conseqüente passagem para um Estado ético1depende de uma nova concepção de sua relação com a sociedade. Esta relação tem na idéia da democracia deliberativa e na participação da sociedade civil, na construção e aplicação do Direito, suas principais aliadas, já que a idéia de crise de legitimidade do Estado liberal e sua incapacidade de reconhecer a diversidade social e cultural foi fortemente influenciada pela limitação da democracia representativa. Nesse sentido, a instituição de uma política pública nacional de acesso à justiça com a criação da figura do Agente Comunitário de Justiça, através da parceria Estado e sociedade civil, será um eficiente mecanismo de enfrentamento do déficit de cidadania existente em nosso país, porque capaz de enfrentar as nefastas conseqüências em relação à implementação dos direitos humanos de todos(as), produzidas pelas características do Estado liberal:
Primeiro pela promoção da especificação dos sujeitos de direitos. As ONGs são importantes instrumentos de mediação entre a sociedade civil e o Estado, possibilitando a inserção da pluralidade dos interesses sociais na ação Estatal, funcionando como representações das diversas noções de bem existentes na sociedade, condição necessária para a deliberação coletiva sobre o sentido de bem comum. Característica que não é possível aos partidos políticos que, pela própria natureza, elaboram projetos globais para a sociedade. Isto ocorre de acordo com um correspondente pressuposto teórico de que a atuação das ONGs promove o processo de especificação do sujeito de direitos e a superação da limitação do princípio da igualdade formal, bem como a desconstrução do mito de que todos são iguais perante a lei, quando novos direitos são nominados, novos mecanismos de implementação e garantia são estabelecidos e novos sujeitos de direitos são formalmente reconhecidos na cena política. Esta situação se dá em ações de advocacy no plano do conteúdo do Direito quando as ONGs participam na elaboração de propostas de novas leis ou alterações de leis já existentes, no planos nacional e internacional.
Segundo, pela promoção da participação social na formulação e aplicação do Direito. As ONGs como agentes na cena política e como importantes instrumentos de mediação entre a sociedade civil e o Estado ajudam a corrigir as limitações da democracia representativa e a promover maior participação da sociedade na formulação e implementação das leis e políticas públicas destinadas a garantir direitos, combatendo o déficit de cidadania e promovendo a justiça social. Esta afirmação funda-se na idéia de que as ONGs, ao serem protagonistas do processo de criação e aplicação do Direito, enfrentam a limitação da regra da maioria e a concepção normativista do Direito, constituindo-se em importante fator na construção da legitimidade do Estado Democrático de Direito. A nosso ver, a crise da legitimidade racional que resultaria, ao menos em parte, da utilização da regra da maioria, tem na ação das ONGs um importante canal de superação. Essa superação ocorre quando a atuação desses agentes sociais desafia a lógica da vontade da maioria, voluntarista, expressa a cada quatro anos, sobrepondo a lógica da deliberação2, racionalista, construída e reformulada no cotidiano das relações entre o Estado e a sociedade. Relações estas que ocorrem nos diversos espaços públicos e mecanismos de participação que acabam por afirmar uma visão institucionalista do Direito, em detrimento da concepção normativista. Esta situação se dá pela ações de advocacy no plano da estrutura do Direito, quando as ONGs participam dos conselhos, fóruns, comissões parlamentares, ou conferências que formulam políticas publicas; ou quando propõem Ações Judiciais individuais ou coletivas no plano nacional e internacional, buscando na própria aplicação do Direito os meios para avançar no reconhecimento de direitos e seus titulares.
Terceiro, pela promoção de uma concepção sistemática do Direito que supere a dicotomia entre o Direito Público e o Privado. As ONGs, ao fazer uso político do Direito para o desenvolvimento de sua missão, promovem a superação da rígida dicotomia entre o Direito Público e o Privado, contribuindo para a afirmação de uma concepção pluralista, não normativista e sistemática do Direito. Nesta nova cultura, não existe o reino da política representado pelo Estado de um lado, e o reino da economia representado pelo mercado de outro. As ONGs, ao disputarem diferentes concepções de bem existentes na sociedade, utilizam politicamente o Direito concebendo-o como um sistema dinâmico e aberto, composto por princípios, regras e valores axiologicamente hierarquizados, com vistas a promover os objetivos justificadores do Estado Democrático de Direito (Freitas, 2002). Esta situação é promovida no plano da cultura do Direito, quando as ONGs utilizam-se de processos educacionais para sensibilização de diferentes públicos através de seminários, cursos, oficinas, feiras, publicações especializadas e, principalmente, da mídia como instrumento de divulgação e promoção de valores e diferentes concepções de Direito, por elas representados.
Resumindo, destes três pontos de vista, as ONGs constituem-se em agentes de mediação entre a sociedade e o Estado, ao contribuir para:
• a definição e positivação de direitos (atuação no plano do conteúdo do Direito);
• a garantia e efetivação de direitos (atuação no plano da estrutura do Direito);
• o reconhecimento dos direitos (atuação no plano da cultura do Direito), promovendo legitimidade na ação estatal e justiça social e política.
A Themis, as Promotoras Legais Populares e o Agente Comunitário de Justiça
Durante dez anos a Themis vem desenvolvendo o programa de formação de Promotoras Legais Populares (PLPs), já reconhecido nacional e internacionalmente, que se constitui numa política pública não estatal de acesso à justiça pelas mulheres oriundas das camadas populares. Sendo a Themis uma ONG feminista, as promotoras são capacitadas para atuar em questões que envolvem a defesa, a promoção e a prevenção de violação dos direitos das mulheres nas comunidades. Em Porto Alegre, foram capacitadas cerca de 250 mulheres, e no Estado do Rio Grande do Sul, através de parceria com outras onze entidades, com atuação em outros quatorze municípios, foi implantada a Rede Estadual de Justiça e Gênero que capacitou mais de oitocentos PLPs, desde 2002. Em outras duas multiplicações nacionais da metodologia de capacitação legal, 1999 e 2003, a Themis treinou trinta entidades de todas as regiões do país, que, segundo se tem notícia, capacitaram aproximadamente mil pessoas.
Depois de capacitadas, as PLPs passam a atuar voluntariamente em suas comunidades, organizadas no SIM (Serviço de Informação à Mulher), cuja sede se localiza junto a algum órgão ou serviço público ou comunitário (escolas, postos de saúde, Brigada Militar, Centros Administrativos Regionais da Prefeitura, associações de bairro etc.). Suas atividades expressam uma concepção de proteção integral dos direitos humanos, como tem sido proposto no projeto de Sistema Nacional de Direitos Humanos, apresentado pelo Movimento Nacional de direitos Humanos (MNDH). Na defesa, as promotoras atuam em plantões semanais, onde oferecem informações sobre direitos e questões básicas de cidadania, como documentação e encaminhamento para os serviços disponíveis da rede pública e privada. Na perspectiva da prevenção de novas violações, as PLPs desenvolvem ações de educação comunitária em parceria com escolas, postos de saúde, igrejas e conselhos tutelares ou realizam campanhas e feiras para esclarecimentos sobre temas como violência doméstica, direitos sexuais e reprodutivos/planejamento familiar, entre outros. Quanto à perspectiva da promoção, as PLPs desenvolvem ações de representação do projeto em defesa dos direitos das mulheres, nas diversas instâncias e através dos diversos mecanismos de participação social e política existentes.
A proposta de uma política pública de Agentes Comunitários de Justiça pretende superar o ideal moderno de um Estado neutro em termos de projeto de vida boa para a sociedade, pela promoção do processo de especificação do sujeito de direitos calcada na participação social, ou seja, no pluralismo social como condição de reconhecimento do pluralismo jurídico.
Nesse sentido, nossa proposta é a de que outras organizações defensoras de direitos humanos de outros segmentos como homossexuais, crianças e adolescentes, negros e índios, portadores de deficiência, portadores de HIV, meio ambiente, entre outros, venham a ser treinadas em metodologia de capacitação legal, como a desenvolvida e sistematizada pela Themis. O objetivo é que sejam sensibilizadas para entender a dimensão do uso político do Direito para transformação da sociedade (a partir do conceito de advocacy3 e dos três componentes do sistema legal: conteúdo, estrutura e cultura do Direito) e venham a capacitar seus próprios Agentes Comunitários(as) de Justiça. Os agentes serão capacitados para atuarem na base da sociedade contra o déficit de cidadania e proteção integral dos direitos humanos em atividades de defesa, prevenção e promoção que estimulem a consciência do direito a ter direitos, bem como a visibilidade, o encaminhamento e a reparação das violações, inclusive junto aos sistemas regional e internacional de proteção aos Direitos Humanos. As organizações da sociedade civil que capacitarão seus agentes para atuar na defesa, promoção e prevenção de violação de direitos, na perspectiva da implementação e da garantia de direitos de todos(as), funcionarão como esferas distributivas de justiça4, a partir da disputa de valores e interesses que representam.
A proposta de desenho institucional da referida política pública ainda é incipiente e está sendo formulada por uma comissão nacional formada por entidades das cinco regiões do país (Themis/RS; União de Mulheres de São Paulo/SP; Coletivo de Mulheres Negras/MS, Centro da Mulher 8 de Março/PE e Rede Acreana de Mulheres e Homens/AC) e tem na figura do Agente Comunitário de Saúde sua maior inspiração. Entretanto, avança em relação àquela política pública que funciona na base do Sistema Único de Saúde, porque não reproduz o modelo dicotômico do Estado liberal, reconhecendo o papel das ONGs na formulação e co-gestão de políticas públicas. Entendemos que deva ser uma política pública do Estado (através dos Poderes Executivo e Judiciário) em parceria com a sociedade civil, que receberá recursos financeiros para formação, contratação e coordenação do trabalho dos(as) agentes, de modo a enfrentar os verdadeiros problemas da administração de justiça em nosso país, não identificados no projeto e discussão sobre a Reforma do Judiciário. Não descartamos a possibilidade de que os recursos financeiros possam ser originados de parcerias com a iniciativa privada, tendo em vista a crescente conscientização de seu papel e responsabilidade social quanto ao financiamento de uma nova concepção de desenvolvimento, cujo eixo venha a ser o ser humano, e não simplesmente o crescimento econômico.
A ousadia da proposta encontra-se na exigência de um novo olhar sobre o ser humano e sobre o Estado, a partir de uma concepção de Direito capaz de fundamentar e promover este em razão daquele. A perspectiva é a da superação do individualismo e do paradigma dicotômico liberal Estado/política/público e sociedade/economia/privado, ainda impregnado em nossos corações e mentes, apesar de já estarmos sob a égide de um novo modelo, instituído a partir da Constituição de 1988.
A perspectiva é entender o novo papel de cooperação entre cada um dos atores, públicos e privados, nesta nova ordem. A Constituição, como é sabido, ao descrever os objetivos da república brasileira, o faz utilizando disposições normativas cheias de verbos no infinitivo "construir uma sociedade mais justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades, promover o bem de todos sem preconceitos e discriminação", oferecendo a exata dimensão de um processo permanente de construção e da inegável e obrigatória participação das instituições do Estado, da sociedade e do mercado, em cooperação, para se chegar aos sonhados resultados.
Notas
1 A expressão Estado ético é utilizada no sentido hegeliano, que o concebe como instituição reguladora das relações sociais que se propõe a administrar as diferenças e as várias concepções de bem existentes na sociedade. Sobre o Estado ético ver Thadeu Weber em Ética e Filosofia Política - Hegel e o Formalismo Kantiano, Porto Alegre, Epicurs, 1999. [ Links ]
2 Sobre democracia deliberativa e a conseqüente visão institucionalista do Direito, ver Luis Fernando Barzotto emA Democracia na Constituição, São Leopoldo, Unisinos, 2003. [ Links ]
3 Utilizamos a expressão advocacy para não confundir com "advocacia" em português, definido como um processo de natureza política, de iniciativa da sociedade civil que tem por objetivo a transformação da realidade social pela solução de um determinado problema, através de medidas jurídicas e políticas. A esta expressão associamos também a idéia de uso político do Direito. Sobre o conceito de advocacy ver Margaret Schuler em Women's Human Rights: Step by Step.
4 A justiça não paira acima das instituições sociais concretas. Os bens sociais que são matéria de justiça distributiva (dinheiro, honras, cargos etc.) possuem significados sociais que determinam seus princípios de distribuição. Sobre o papel das diferentes esferas de distribuição de justiça ver Michael Walzer em Spheres of Justice: A Defense of Pluralism and Equality, New Jersey, Basics Books, 1993. [ Links ]
Texto recebido e aceito para publicação em 14 de julho de 2004.
Virgínia Feix é advogada, especialista em Sociologia Jurídica e Direitos Humanos pela Unisinos (1997), mestre em Direito pela PUC-RS (2004) e coordenadora executiva da Themis - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, desde 1999.
Texto extraído da dissertação de Mestrado da autora A contribuição das ONGs para implementação dos direitos humanos, promoção de justiça social e aprofundamento da democracia, apresentada no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da PUC-RS, 2004.
Disponível em: FEIX, Virgínia. Por uma política pública nacional de acesso à Justiça. Estud. av. [online]. 2004, vol.18, n.51, pp. 219-224. ISSN 0103-4014.
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