Uma luta inglóriaDe pronto, cabe explicar o título da Coluna. Tenho escrito sobre (e contra) a “cultura” manualesca e estandardizada. É desgastante, reconheço. Para termos uma ideia, a Coluna que escrevi há duas semanas (leia aqui) perdeu em acessos para uma notícia que trata de um advogado que foi suspenso por cobrar serviços sexuais de cliente. Realmente, a “disputa” é difícil. Pronto. Eis o título justificado. A crítica do Direito goleada pela fornicação (10x0). Há que se ter perseverança. De todo modo, a Coluna de hoje é feita de e em fragmentos.
Ainda Santa MariaTalvez eu tenha sido o crítico mais frequente e contundente com relação ao mensalão. A crítica é necessária. O tempo faz com que fiquemos atentos cada vez mais ao que se diz por aí. El diablo sabe más por viejo... E o que se diz por aí tem muito “senso comum”. Demais. Por isso, minha Coluna tem o nome de Senso Incomum. Fazer crítica ao e no Direito e ao imaginário prevalecente implica “não escolher os criticados”. Do Supremo Tribunal ao escrivão do Fórum de Fortaleza. Por isso, fazer crítica não é fazê-la ad hoc.
Veja-se o artigo de um advogado que critiquei aqui, no qual o causídico, menos de 36 horas após uma tragédia em que morreram centenas de pessoas, precipitadamente “livra” as quatro pessoas que estavam com prisão decretada (agora estendida para mais 30 dias), “acusando” as autoridades, por isso, de terem praticado abuso de autoridade (sic)... Além disso, a prisão representaria a morte do Estado Democrático de Direito... “Dramático”. São notícias que causam frisson. E as redes sociais tratam de multiplicar, por vezes de forma artificial, o texto para causar impacto (sabemos que, muitas vezes, alguns artigos são inflados para servirem de estratégia defensiva).
A crítica é necessária, portanto. Depois de tantos anos na academia e no Ministério Público, aprendi a suspender meus pré-juízos. Basta ver todo o histórico de membro de Ministério Público. Posso me jactar, hoje — só para comprovar que minha crítica às precipitações do advogado não eram “corporativistas” (sic) —, de ter elaborado e ou participado das principais teses garantistas dos últimos 15 anos no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. E eu não estava na trincheira da advocacia. Sempre estive na trincheira dos direitos fundamentais.
Espanta-me a tal da “pós-modernidade”, essa “coisa” de redes, Facebook, sucessos instantâneos... Vi, agora, que já há páginas do Facebook chamadas “Força Kiko” (que é o sócio da Boate Kiss). Quer dizer: Os leitores não acham que há limites? Pois meus textos apontam sempre para os limites. Uma sociedade precisa de limites. Por isso, a importância da lei — no sentido estrito e no seu aspecto simbólico. É porque a lei não foi cumprida no seu sentido estrito é que não conseguimos sequer tirar lições da tragédia. Por isso, muitos acendem charutos na tragédia. A criação de páginas “estratégicas” como “Força Kiko” ou “Força vocalista” apenas mostra que perdemos os limites (se é que, em algum dia, já os tínhamos). Sequer as tragédias provocam (ou aguçam) a nossa capacidade de indignação... E o mais não precisa ser dito.
SigoÉ árdua a missão de criticar. Mais fácil é pegar um tema e partir dele, como se nada houvesse antes: “Saio escrevendo e... bingo!”. E descrever e, quando muito, dar uns “palpites”, algo do tipo “fiz uma tese e saquei que a Justiça está com excesso de processos e, portanto, devemos limitar o acesso dos (e aos) utentes” ou “o artigo tal da Lei tal tem um furo e os utentes podem partir por ali para conseguirem pagar menos impostos” ou, ainda, fazendo discurso sobre cadáver, dizer, de forma “contundente”, depois que alguém já tenha feito a crítica, “que a teoria do domínio do fato foi mal aplicada pelo STF”... E comemorar a “vitória”.
Criticar o que tem sido feito no Direito não é tarefa fácil. Escrever contra a communis opinio é “dureza”. É mais fácil seguir a correnteza do que nadar contra ela. Algo do tipo “é assim mesmo”, “nada há a fazer”, enfim, a típica falácia realista do “mito do dado”. Pré-moderno. Mas, que, paradoxalmente, possui algo de pós-moderno, pois não há (mais) fundamentos, havendo somente “graus zeros” de significação. Tudo é feito em nome de uma Realjuridik, isto é, tudo é feito em nome de uma “realidade da jurisdição”, que é pragmática, desumana, lotérica. Assim, há uma espécie de DIREX (Direito Realmente Existente).
Parece implicância minha. É que ainda acredito na ciência, no conhecimento rigoroso. Não acredito em informações. Acredito em saber e sabedoria. O Google é mais prova da picaretagem contemporânea. É o símbolo da preguiça. Do atalho. Do pragmati(ci)smo. Da malandragem. Do professor escamoteador. Daquele docente que só sabe dar aulas com powerpoint. Que quer vender facilidades. Vou retomar pela enésima vez o teste do Google com a famosa e malsinada “ponderação”, epidemia contemporânea que tomou conta da doutrina e da jurisprudência de Pindorama (não do município com esse nome no Tocantins).
Façamos (de novo) o teste: coloquem no Doutor Google “princípio da ponderação”, assim entre aspas, e, depois, “regra da ponderação”, também entre comillas. Resultado: no dia 4 de fevereiro de 2013, a ponderação como “princípio” deu 43.100 incidências; já a ponderação como “regra” deu 3.890 incidências. Bingo! É isso. Para quem aposta na vigarice do Google, verá que está cometendo um equívoco (menos a maioria dos arguidores de concursos públicos, que buscam no Google a resposta — que está errada!).
Ora, qualquer um sabe — menos aqueles que “alimentam a ferramenta Google” — que a ponderação é uma regra, resultante de um complexo processo para resolver a (ou uma) colisão de princípios, segundo o seu inventor, Robert Alexy. Já expliquei a ponderação em outras colunas e faço isso amiúde em Verdade e Consenso, para apenas falar neste. Aliás, repito aqui também uma frase que li, há dois anos, em um banheiro de Buenos Aires, que retrata bem o imaginário “manada” (Mitläufereffekt, isto é, o efeito que resulta dos que andam com a malta ou a manada) que domina a contemporaneidade: “comem mierda; mil mijones de moscas no pueden estar equivocadas”. Nota: Mil mijones quer dizer “bilhões”.
O mundo do DIREXPara completar, tomo conhecimento de que um juiz escreveu um livro sobre o “complexo” tema petição inicial, aconselhando os advogados a não escreverem parágrafos longos, porque ficam cansativos para a leitura... Diz ele que os juízes não leem petitórios com dezenas de citações. Quando leio esse tipo de livro, fico pensando se realmente vale a pena continuar. Talvez seja melhor jogar a toalha. Pedir água. Reconhecer a dramática — e patética — derrota do saber e da sabedoria para a cultura prêt-à-porter.
É evidente que não se incentiva a que o advogado faça parágrafos quilométricos. Isso seria uma estupidez. Mas isso não quer dizer que o causídico não possa explicar, amiúde, o direito de seu cliente, citando a melhor doutrina e a jurisprudência mais atualizada. Caso contrário, para que serviria a pesquisa? Por que escrever livros, se não podem ou não devem ser citados? Por que o Poder Judiciário investe grosso dinheiro público para que seus membros (e isso acontece no MP etc. — e vejam, não sou contra isso) estudem pós-graduações no exterior, para, depois, na hora da aplicação, serem os pobres advogados, que não ganham verbas públicas para estudar — obrigados a fazer suas petições em drops ou quase como se fossem tweets? E isso ainda escrito em um livro, com “conselhos” aos causídicos de terrae brasilis. Por que os juízes fazem cursos promovidos pelas respectivas Escolas (e, frise-se, isso é muito bom que ocorra), se, depois, não querem ler “petições longas”? Espero que o livro sobre a petição inicial até venda bem, afinal, torço para o sucesso pessoal e editorial do seu autor, mas que não faça escola.
Ainda. Um advogado me escreve e relata que assistiu a uma exibição prática da “katchanga real”. Em uma sessão de um dos TRFs, o relator condenara o Estado por danos morais coletivos em razão do rompimento de uma barragem. Eis que, então, surge o fato inusitado: um dos desembargadores votou contra a condenação, apresentando a seguinte justificativa (e somente isto!): sei que está lá na lei, mas não entra em minha cabeça o dano moral coletivo. E votou contra a tese do relator. Ainda bem que o resultado ficou em 2 a 1. Ele ficou vencido. E se a “tese” vencesse?
Por que pode piorar?
Há algum tempo, escrevi sobre o concurso da Defensoria Pública do Paraná. Colocaram filosofia, sociologia e hermenêutica no programa. Alvíssaras, pensei. Mas a prova que tratou de temas de filosofia (e hermenêutica) não foi “legal”. Na Coluna As Vinhas da Ira do Direito ou “quando o réu não se ajuda” (ler aqui), falei da adaptação darwiniana que a dogmática jurídica fez e faz em casos como o da introdução de temas “alienígenas” (filosofia e hermenêutica, por exemplo) nos concursos públicos. Referi-me à pergunta “se a filosofia torna livre no Defensor o seu ‘Ser’...”. Em outra questão indagaram sobre Baumann e Bourdieu (não sei qual é a relação entre eles, mas, enfim...).
Nesse mesmo concurso, há uma questão que indagava sobre a interpretação do Direito, da passagem da reprodução de sentidos para a produção (atribuição de sentidos). O que impressionou é que, dado o espaço de apenas 25 linhas para a resposta, a banca queria que o candidato respondesse mais ou menos o que constou no “espelho da prova”, que reproduzo, literis:
1. Explicação quanto à mudança de paradigma e ruptura na interpretação — filosofia da consciência para filosofia da linguagem.
1.1 Correntes Filosóficas: Racionalismo / Empirismo / Fenomenologia / Realismo / Filosofia da linguagem
1.2 Explicação quanto as efeitos/influência dessa ou alguma dessas correntes na hermenêutica jurídica
2. Apresentação das implicações na interpretação e aplicação do direito.
2.1 Correntes hermenêuticas: Hermenêutica filosófica; principais concepções; Hermenêutica Epistemológica; Efeitos na interpretação do Direito.
2.2 Efeitos da Hermenêutica quanto à noção de interpretação, já que não se busca reconstituir o efeito da norma, mas dar sentido ao texto a partir da pré-compreensão, da história de cada intérprete.
3 Citar exemplo:
— art. 1.511 CC — Noção de comunhão plena de vida
— Direitos e garantias fundamentais art. 5º, CF.
— Art. 212 CPP — Perguntas serão formuladas diretamente à testemunha
— Verificar cada caso. Explicitar a norma jurídica e os efeitos da interpretação.
Mais não é necessário dizer. Impossível responder a essa complexidade em apenas 25 linhas. Para escrever em tão curto espaço, o candidato deveria ter lido, por exemplo, todo o Hermenêutica Jurídica e(m) Crise e alguns textos esparsos. Ainda outra literatura. O que provavelmente não ajudaria é a leitura de um resumo qualquer. O único ponto a favor da questão é que ela é “antirresumo”. Isso reconheço.
Tudo bem que tenhamos que mudar os concursos. Mas há que se ter cuidado para não “espantar o freguês”. Filosofia do Direito não é “capa de sentido”. E nem Sociologia é isso. Não basta “colar” conceitos. Essa questão sobre o “Ser” do Defensor (sic) coloca em risco algo novo. Isso dá munição àqueles que se colocam contrariamente à introdução da filosofia nos concursos. Só por isso estou falando nesse assunto.
Por tudo isso, muito cuidado com essas coisas. Sei que é difícil. Mas a Teoria das Ações de Pontes também é. E como!
Quem lê maus livros...O que esses fragmentos têm em comum? Simples: Há um fio condutor que os une. A instantaneidade do click para exercer a curiosidade sobre o advogado fornicador, o sucesso relâmpago de um artigo histriônico que dá “os pêsames ao Direito Penal” no entremeio de uma tragédia, a utilização do Facebook para construir realidades, os conselhos para que não escrevamos textos longos, a não fundamentação de decisões a partir de frases de efeito do tipo “não entra na minha cabeça que...” e os concursos públicos que correm o risco de, ao tentarem fazer um turning point, piorarem a situação — nisso tudo está presente o efeito “grau zero de sentido”. Não há tradição, não há história. Atribuo os sentidos como quero, como o personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho. O sucesso dependerá do efeito manada (Mitläufereffekt).
O homus eletronicus, o homus googlizado, enfim, esse elemento que atravessa as barreiras da comunicação e torna tudo instantâneo, líquido, efêmero, atópico e acrônico, comporta-se como se estivesse em um estado de natureza. Só que, agora, esse estado de natureza é virtual. Ficções se tornam reais e a realidade se torna ficção. Da noite para o dia, o Facebook “produz” realidades. Um click e boom... Surgem novos juristas, novos escritores. Celebridades. E, assim, constroem-se “coisas”. Que, logo depois, são utilizados como “algo dado”. Só que o “dado” não passa de uma construção ficcional. Assim se constroem os “sensos comuns”. Trazer algo para o senso comum é uma “vitória” (de pirro, é verdade; mas, nestes tempos, até que haja a desmitificação, é). As estratégias para construir identidades de pessoas, perfis etc., fazem parte desse novo elemento (a)histórico.
Graças a isso, e uso esse exemplo em seu simbolismo na perspectiva de universalização, uma notícia sobre a fornicação de um advogado assume tanta relevância. Provavelmente, com o tempo, para evitar o fracasso editorial, terei que encurtar as colunas. Aliás, já começo hoje. Textos longos são pouco lidos. Petições longas não são lidas, se seguirmos a “denúncia” do magistrado autor do livro sobre petição inicial. É isso.
E assim seguimos. Das espetacularizações sobre tragédias às derrotas cotidianas que o conhecimento rigoroso sofre diante da massificação “pós-moderna” (sem que saiba bem o que seja isso, repito sempre). Este é o desafio. Quantos quererão continuar na luta? Quantos aguentarão o “tranco” do “isso é assim mesmo”, da Realpolitik e da Realjuridik?
Mas também não basta fazer qualquer coisa. Não há espaço para “meia sola”. Informação não é saber. E saber não é sabedoria, como dizia T. S. Eliot. Como bem dizia Mark Twain, “Aquele que lê maus livros não leva vantagem sobre aquele que não lê livro nenhum.” Só isso. Sem implicância. Sem chatice. Mesmo perdendo em ibope para a notícia sobre os 35 truques para fazer sucessos na profissão. A propósito: será que funcionam?
O cansaço começa a pegar.
Ainda Santa MariaTalvez eu tenha sido o crítico mais frequente e contundente com relação ao mensalão. A crítica é necessária. O tempo faz com que fiquemos atentos cada vez mais ao que se diz por aí. El diablo sabe más por viejo... E o que se diz por aí tem muito “senso comum”. Demais. Por isso, minha Coluna tem o nome de Senso Incomum. Fazer crítica ao e no Direito e ao imaginário prevalecente implica “não escolher os criticados”. Do Supremo Tribunal ao escrivão do Fórum de Fortaleza. Por isso, fazer crítica não é fazê-la ad hoc.
Veja-se o artigo de um advogado que critiquei aqui, no qual o causídico, menos de 36 horas após uma tragédia em que morreram centenas de pessoas, precipitadamente “livra” as quatro pessoas que estavam com prisão decretada (agora estendida para mais 30 dias), “acusando” as autoridades, por isso, de terem praticado abuso de autoridade (sic)... Além disso, a prisão representaria a morte do Estado Democrático de Direito... “Dramático”. São notícias que causam frisson. E as redes sociais tratam de multiplicar, por vezes de forma artificial, o texto para causar impacto (sabemos que, muitas vezes, alguns artigos são inflados para servirem de estratégia defensiva).
A crítica é necessária, portanto. Depois de tantos anos na academia e no Ministério Público, aprendi a suspender meus pré-juízos. Basta ver todo o histórico de membro de Ministério Público. Posso me jactar, hoje — só para comprovar que minha crítica às precipitações do advogado não eram “corporativistas” (sic) —, de ter elaborado e ou participado das principais teses garantistas dos últimos 15 anos no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. E eu não estava na trincheira da advocacia. Sempre estive na trincheira dos direitos fundamentais.
Espanta-me a tal da “pós-modernidade”, essa “coisa” de redes, Facebook, sucessos instantâneos... Vi, agora, que já há páginas do Facebook chamadas “Força Kiko” (que é o sócio da Boate Kiss). Quer dizer: Os leitores não acham que há limites? Pois meus textos apontam sempre para os limites. Uma sociedade precisa de limites. Por isso, a importância da lei — no sentido estrito e no seu aspecto simbólico. É porque a lei não foi cumprida no seu sentido estrito é que não conseguimos sequer tirar lições da tragédia. Por isso, muitos acendem charutos na tragédia. A criação de páginas “estratégicas” como “Força Kiko” ou “Força vocalista” apenas mostra que perdemos os limites (se é que, em algum dia, já os tínhamos). Sequer as tragédias provocam (ou aguçam) a nossa capacidade de indignação... E o mais não precisa ser dito.
SigoÉ árdua a missão de criticar. Mais fácil é pegar um tema e partir dele, como se nada houvesse antes: “Saio escrevendo e... bingo!”. E descrever e, quando muito, dar uns “palpites”, algo do tipo “fiz uma tese e saquei que a Justiça está com excesso de processos e, portanto, devemos limitar o acesso dos (e aos) utentes” ou “o artigo tal da Lei tal tem um furo e os utentes podem partir por ali para conseguirem pagar menos impostos” ou, ainda, fazendo discurso sobre cadáver, dizer, de forma “contundente”, depois que alguém já tenha feito a crítica, “que a teoria do domínio do fato foi mal aplicada pelo STF”... E comemorar a “vitória”.
Criticar o que tem sido feito no Direito não é tarefa fácil. Escrever contra a communis opinio é “dureza”. É mais fácil seguir a correnteza do que nadar contra ela. Algo do tipo “é assim mesmo”, “nada há a fazer”, enfim, a típica falácia realista do “mito do dado”. Pré-moderno. Mas, que, paradoxalmente, possui algo de pós-moderno, pois não há (mais) fundamentos, havendo somente “graus zeros” de significação. Tudo é feito em nome de uma Realjuridik, isto é, tudo é feito em nome de uma “realidade da jurisdição”, que é pragmática, desumana, lotérica. Assim, há uma espécie de DIREX (Direito Realmente Existente).
Parece implicância minha. É que ainda acredito na ciência, no conhecimento rigoroso. Não acredito em informações. Acredito em saber e sabedoria. O Google é mais prova da picaretagem contemporânea. É o símbolo da preguiça. Do atalho. Do pragmati(ci)smo. Da malandragem. Do professor escamoteador. Daquele docente que só sabe dar aulas com powerpoint. Que quer vender facilidades. Vou retomar pela enésima vez o teste do Google com a famosa e malsinada “ponderação”, epidemia contemporânea que tomou conta da doutrina e da jurisprudência de Pindorama (não do município com esse nome no Tocantins).
Façamos (de novo) o teste: coloquem no Doutor Google “princípio da ponderação”, assim entre aspas, e, depois, “regra da ponderação”, também entre comillas. Resultado: no dia 4 de fevereiro de 2013, a ponderação como “princípio” deu 43.100 incidências; já a ponderação como “regra” deu 3.890 incidências. Bingo! É isso. Para quem aposta na vigarice do Google, verá que está cometendo um equívoco (menos a maioria dos arguidores de concursos públicos, que buscam no Google a resposta — que está errada!).
Ora, qualquer um sabe — menos aqueles que “alimentam a ferramenta Google” — que a ponderação é uma regra, resultante de um complexo processo para resolver a (ou uma) colisão de princípios, segundo o seu inventor, Robert Alexy. Já expliquei a ponderação em outras colunas e faço isso amiúde em Verdade e Consenso, para apenas falar neste. Aliás, repito aqui também uma frase que li, há dois anos, em um banheiro de Buenos Aires, que retrata bem o imaginário “manada” (Mitläufereffekt, isto é, o efeito que resulta dos que andam com a malta ou a manada) que domina a contemporaneidade: “comem mierda; mil mijones de moscas no pueden estar equivocadas”. Nota: Mil mijones quer dizer “bilhões”.
O mundo do DIREXPara completar, tomo conhecimento de que um juiz escreveu um livro sobre o “complexo” tema petição inicial, aconselhando os advogados a não escreverem parágrafos longos, porque ficam cansativos para a leitura... Diz ele que os juízes não leem petitórios com dezenas de citações. Quando leio esse tipo de livro, fico pensando se realmente vale a pena continuar. Talvez seja melhor jogar a toalha. Pedir água. Reconhecer a dramática — e patética — derrota do saber e da sabedoria para a cultura prêt-à-porter.
É evidente que não se incentiva a que o advogado faça parágrafos quilométricos. Isso seria uma estupidez. Mas isso não quer dizer que o causídico não possa explicar, amiúde, o direito de seu cliente, citando a melhor doutrina e a jurisprudência mais atualizada. Caso contrário, para que serviria a pesquisa? Por que escrever livros, se não podem ou não devem ser citados? Por que o Poder Judiciário investe grosso dinheiro público para que seus membros (e isso acontece no MP etc. — e vejam, não sou contra isso) estudem pós-graduações no exterior, para, depois, na hora da aplicação, serem os pobres advogados, que não ganham verbas públicas para estudar — obrigados a fazer suas petições em drops ou quase como se fossem tweets? E isso ainda escrito em um livro, com “conselhos” aos causídicos de terrae brasilis. Por que os juízes fazem cursos promovidos pelas respectivas Escolas (e, frise-se, isso é muito bom que ocorra), se, depois, não querem ler “petições longas”? Espero que o livro sobre a petição inicial até venda bem, afinal, torço para o sucesso pessoal e editorial do seu autor, mas que não faça escola.
Ainda. Um advogado me escreve e relata que assistiu a uma exibição prática da “katchanga real”. Em uma sessão de um dos TRFs, o relator condenara o Estado por danos morais coletivos em razão do rompimento de uma barragem. Eis que, então, surge o fato inusitado: um dos desembargadores votou contra a condenação, apresentando a seguinte justificativa (e somente isto!): sei que está lá na lei, mas não entra em minha cabeça o dano moral coletivo. E votou contra a tese do relator. Ainda bem que o resultado ficou em 2 a 1. Ele ficou vencido. E se a “tese” vencesse?
Por que pode piorar?
Há algum tempo, escrevi sobre o concurso da Defensoria Pública do Paraná. Colocaram filosofia, sociologia e hermenêutica no programa. Alvíssaras, pensei. Mas a prova que tratou de temas de filosofia (e hermenêutica) não foi “legal”. Na Coluna As Vinhas da Ira do Direito ou “quando o réu não se ajuda” (ler aqui), falei da adaptação darwiniana que a dogmática jurídica fez e faz em casos como o da introdução de temas “alienígenas” (filosofia e hermenêutica, por exemplo) nos concursos públicos. Referi-me à pergunta “se a filosofia torna livre no Defensor o seu ‘Ser’...”. Em outra questão indagaram sobre Baumann e Bourdieu (não sei qual é a relação entre eles, mas, enfim...).
Nesse mesmo concurso, há uma questão que indagava sobre a interpretação do Direito, da passagem da reprodução de sentidos para a produção (atribuição de sentidos). O que impressionou é que, dado o espaço de apenas 25 linhas para a resposta, a banca queria que o candidato respondesse mais ou menos o que constou no “espelho da prova”, que reproduzo, literis:
1. Explicação quanto à mudança de paradigma e ruptura na interpretação — filosofia da consciência para filosofia da linguagem.
1.1 Correntes Filosóficas: Racionalismo / Empirismo / Fenomenologia / Realismo / Filosofia da linguagem
1.2 Explicação quanto as efeitos/influência dessa ou alguma dessas correntes na hermenêutica jurídica
2. Apresentação das implicações na interpretação e aplicação do direito.
2.1 Correntes hermenêuticas: Hermenêutica filosófica; principais concepções; Hermenêutica Epistemológica; Efeitos na interpretação do Direito.
2.2 Efeitos da Hermenêutica quanto à noção de interpretação, já que não se busca reconstituir o efeito da norma, mas dar sentido ao texto a partir da pré-compreensão, da história de cada intérprete.
3 Citar exemplo:
— art. 1.511 CC — Noção de comunhão plena de vida
— Direitos e garantias fundamentais art. 5º, CF.
— Art. 212 CPP — Perguntas serão formuladas diretamente à testemunha
— Verificar cada caso. Explicitar a norma jurídica e os efeitos da interpretação.
Mais não é necessário dizer. Impossível responder a essa complexidade em apenas 25 linhas. Para escrever em tão curto espaço, o candidato deveria ter lido, por exemplo, todo o Hermenêutica Jurídica e(m) Crise e alguns textos esparsos. Ainda outra literatura. O que provavelmente não ajudaria é a leitura de um resumo qualquer. O único ponto a favor da questão é que ela é “antirresumo”. Isso reconheço.
Tudo bem que tenhamos que mudar os concursos. Mas há que se ter cuidado para não “espantar o freguês”. Filosofia do Direito não é “capa de sentido”. E nem Sociologia é isso. Não basta “colar” conceitos. Essa questão sobre o “Ser” do Defensor (sic) coloca em risco algo novo. Isso dá munição àqueles que se colocam contrariamente à introdução da filosofia nos concursos. Só por isso estou falando nesse assunto.
Por tudo isso, muito cuidado com essas coisas. Sei que é difícil. Mas a Teoria das Ações de Pontes também é. E como!
Quem lê maus livros...O que esses fragmentos têm em comum? Simples: Há um fio condutor que os une. A instantaneidade do click para exercer a curiosidade sobre o advogado fornicador, o sucesso relâmpago de um artigo histriônico que dá “os pêsames ao Direito Penal” no entremeio de uma tragédia, a utilização do Facebook para construir realidades, os conselhos para que não escrevamos textos longos, a não fundamentação de decisões a partir de frases de efeito do tipo “não entra na minha cabeça que...” e os concursos públicos que correm o risco de, ao tentarem fazer um turning point, piorarem a situação — nisso tudo está presente o efeito “grau zero de sentido”. Não há tradição, não há história. Atribuo os sentidos como quero, como o personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho. O sucesso dependerá do efeito manada (Mitläufereffekt).
O homus eletronicus, o homus googlizado, enfim, esse elemento que atravessa as barreiras da comunicação e torna tudo instantâneo, líquido, efêmero, atópico e acrônico, comporta-se como se estivesse em um estado de natureza. Só que, agora, esse estado de natureza é virtual. Ficções se tornam reais e a realidade se torna ficção. Da noite para o dia, o Facebook “produz” realidades. Um click e boom... Surgem novos juristas, novos escritores. Celebridades. E, assim, constroem-se “coisas”. Que, logo depois, são utilizados como “algo dado”. Só que o “dado” não passa de uma construção ficcional. Assim se constroem os “sensos comuns”. Trazer algo para o senso comum é uma “vitória” (de pirro, é verdade; mas, nestes tempos, até que haja a desmitificação, é). As estratégias para construir identidades de pessoas, perfis etc., fazem parte desse novo elemento (a)histórico.
Graças a isso, e uso esse exemplo em seu simbolismo na perspectiva de universalização, uma notícia sobre a fornicação de um advogado assume tanta relevância. Provavelmente, com o tempo, para evitar o fracasso editorial, terei que encurtar as colunas. Aliás, já começo hoje. Textos longos são pouco lidos. Petições longas não são lidas, se seguirmos a “denúncia” do magistrado autor do livro sobre petição inicial. É isso.
E assim seguimos. Das espetacularizações sobre tragédias às derrotas cotidianas que o conhecimento rigoroso sofre diante da massificação “pós-moderna” (sem que saiba bem o que seja isso, repito sempre). Este é o desafio. Quantos quererão continuar na luta? Quantos aguentarão o “tranco” do “isso é assim mesmo”, da Realpolitik e da Realjuridik?
Mas também não basta fazer qualquer coisa. Não há espaço para “meia sola”. Informação não é saber. E saber não é sabedoria, como dizia T. S. Eliot. Como bem dizia Mark Twain, “Aquele que lê maus livros não leva vantagem sobre aquele que não lê livro nenhum.” Só isso. Sem implicância. Sem chatice. Mesmo perdendo em ibope para a notícia sobre os 35 truques para fazer sucessos na profissão. A propósito: será que funcionam?
O cansaço começa a pegar.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 7 de fevereiro de 2013
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