quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Existe montinho artilheiro epistêmico na teoria da decisão jurídica?







A grande temática sobre a qual venho me debruçando é a teoria da decisão jurídica. Sou adepto de um tipo de tese que pretende, a partir de uma criteriologia e apostas na responsabilidade política dos juízes, controlar as decisões, diminuindo consideravelmente o grau de subjetivismo, discricionariedade, para não falar da arbitrariedade. Falo sobre isso em Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica (cinco princípios-padrões a serem obedecidos, seis hipóteses de [des]aplicação da lei, três perguntas iniciais, demais perguntas que estão no capítulo específico no JC&DJ, etc.). O rechaço de qualquer relativismo parece ser um bom início nessa caminhada. Falo de teoria da decisão e não de um agir estratégico reservado ao advogado.


Do mesmo modo que, no cotidiano, o juiz não pode chamar um copo d’agua de ônibus, igualmente não pode dizer que, onde está escrito x, leia-se y (isso independe de critérios; aqui entra a autoridade da tradição). Por isso aposto em uma criteriologia que tenha o condão de fazer certo controle dos e nos “inconscientes”, “dos e nos subjetivismos”, “da fome dos juízes que ainda não almoçaram”, etc.. Juiz tem subjetividade, óbvio (mas, atenção: pré-compreensão não é o mesmo que subjetividade, preconceitos, ideologia, vontade);[1] tem inconsciente, evidente; mas não pode dizer o que quer sobre o Direito.


Para mim, é nisso que reside o papel do “fator Julia Roberts”: constranger epistemicamente. Não podemos sufragar, em tempos de linguistic turn, teses pelas quais, ao fim e ao cabo, o Direito (só) se realiza na decisão. No fundo, isso é reforçar o privilégio cognitivo dos juízes (PCJ). Se o Direito só se realiza na decisão, só resta aos juristas voltarem para casa. E aos clientes... contratar legal coaches e personal trainers jurídicos.


E aqui chego no ponto de hoje. Esta coluna tem o intuito de fazer uma reflexão, com muito carinho e profundo respeito, para com o que disse o meu querido Alexandre Morais da Rosa na coluna No jogo processual, é importante conhecer o fator Julia Roberts (ler aqui). Transcrevo a parte mais incisiva e que vai “no rim” de minha concepção, porque inclui na decisão exatamente o que, para mim, deve ficar de fora:


“A Teoria da Tomada de Decisão precisa ser atualizada, justamente para inserir os mecanismos contingentes do contexto, do sujeito humano julgador (mapa mental e emoções), que podem mudar a decisão pelo detalhe (efeito borboleta)”.


Em um parágrafo, Morais da Rosa lança o desafio e faz a crítica da década à hermenêutica. A provocação é ótima. Isso me permite fazer um pequeno esclarecimento na perspectiva de marcar uma posição hermenêutica, para que se possa abrir um canal de discussão de posições que — como bem já disseram Aury Lopes Jr. e Claudio Melim — objetivam uma profunda democracia, só que os caminhos são distintos.


Como demarco minha posição para diferenciar dessa tese de Morais da Rosa? Vamos lá. Parece-me claro que Morais da Rosa está propugnando por uma retomada do subjetivismo para compor um quadro de análise do processo decisional. O trecho ressalta uma dimensão quase personalista, que, ao fim e ao cabo, se sobrepõe aos instrumentos “exteriores” de limitação do poder decisório. É nisso que ocorre uma bifurcação em nossos caminhos.[2] E esse retorno de Morais da Rosa ao esquema sujeito-objeto fica mais nítido ainda quando fala sobre a importância dos gestos e atitudes das testemunhas, na sua coluna Engane-me se puder: a linguagem corporal entra no jogo processual? (ler aqui). Essa volta ao paradigma da subjetividade é tão flagrante que ele chega a sugerir, ao se referir à decisão do juiz do trabalho de Porto Alegre que anulou um testemunho por causa dos seus gestos (ler aqui), que, diante disso, o advogado deveria levar isso em conta e se preparar para a próxima audiência. Se entendi bem, Morais da Rosa quis dizer: o juiz não está errado. Isso é assim mesmo. O advogado é que deve se adaptar ao “jogo”. E montar uma estratégia. Logo, processo é um jogo. Mas, permito-me indagar: esse não é um jogo antidemocrático, em que a regra é feita pelo juiz (por sua intuição/cognição)? Particularmente, para enfrentar esse juiz, eu tomaria uma medida judicial para afastá-lo por pré-julgamento e total ausência de imparcialidade (entendida comofairness). Não vai funcionar? Bom, para isso que luto. Para mudar isso. Por isso tanto lutei para colocar coerência e integridade no novo Código de Processo Civil, tirar o “livre” do convencimento e ajudei no artigo 489.


Explico, no pequeno espaço da coluna, as razões pelas quais essa questão dos “mecanismos contingentes” (o aleatório), as emoções do sujeito-julgador, etc. é vista de outro modo pela hermenêutica. Heidegger e Gadamer levam o pensamento para uma dimensão na qual não se tenha como ponto de partida a subjetividade assujeitadora do mundo. A propalada contingência decisional está assentada nos elementos volitivos do agente decisor. É o velho problema que ocupa os filósofos desde o medievo: afinal, a Razão controla a vontade ou, ao contrário, a Razão está sempre assujeitada pela vontade? A hermenêutica (fenomenologia hermenêutica e a CHD dela derivada) que ir além desse dualismo, buscando colocar o problema retratado para além (ou fora) do sujeito, num espaço em que os projetos de sentido são controlados pela linguagem. Não se mata o sujeito da relação de objetos, como bem já explicou tantas vezes Ernildo Stein. Mas nos obrigamos a retirar essa subjetividade que assujeita os objetos. Como afirma Gadamer, na modernidade emerge uma espécie de “cegueira da vontade” (“diabolia da vontade”, nas palavras de Heidegger). É preciso se contrapor a essa “compulsividade” da vontade, sempre sujeita às contingências. E isso se faz em uma abertura com a linguagem pública, intersubjetiva, em um mundo que não é meu, é sempre compartilhado.[3] Ou seja, trazendo isso para a decisão jurídica, em vez de nos perdemos no universo particularista das vontades individuais e emoções do sujeito julgador, deve(ría)mos investir na prospecção e descrição fenomenológica do sentido publicamente compartilhado e que deve(ria) sustentar/legitimar as decisões judiciais.


Voltando para o belo, sedutor e erudito — como é do seu feitio — texto de Morais da Rosa: o paradoxo está no fato de que, se ele tem razão — pode ter, mas espero que não tenha — não haverá propriamente uma teoria da tomada da decisão. De que modo posso teorizar algo se o imponderável (fazendo uma alegoria com o futebol, uma espécie de montinho artilheiro epistêmico) pode mudar a decisão? Morais da Rosa diz que a decisão exige um certo jogo. Mas, permito-me indagar: mas algo há de sustentar o jogo que, por sua vez, sempre tem regras, pois não?


Como “teorizar” os gestos, o detalhe ou o efeito do efeito borboleta, que pode ser um tropeço em uma pedra que o juiz deu pela manhã ou qualquer outra coisa? Lembro-me que, quando menino — meu pai era uma fera — fui encarregado por minha irmã para pedir a ele para que a deixasse ir ao baile no salão da vila. Com meu jeito brincalhão e fazendo os pedidos no estilo de narração de futebol, por vezes obtinha sucesso. Lembro que, no momento em que havia terminado a narração (usava o “abrem-se as cortinas” do Fiori Giuliotti), meu pai, que estava carregando uma tábua em direção ao estábulo, tropeçou violentamente em uma pedra. E, em vez de dar a permissão à minha irmã, deu-me um tabefe. Sim, contingencias. Efeito borboleta.[4] Só que meu pai não era juiz. Nem havia regras ou Constituição que lhe pudessem constranger a agir de modo correto. E não havia, para mim e minha irmã, uma corregedoria ou instância recursal. Não havia um duty, um dever, que impusesse ao meu pai agir de outro modo” — meu pai não tinha esse dever — ao contrário dos juízes, que detém responsabilidade política e que, portanto, have a duty to, ou seja, têm o dever de aplicar o Direito corretamente. Por isso, minha insistência em uma teoria da decisão com “objetividades hermenêuticas” (texto-evento, tradição, etc.) que consigam amarrar “as emoções” do sujeito-julgador. Afinal, o esquema sujeito-objeto já foi superado. Ou não?


Por isso, uma teoria da decisão deve procurar criar condições de previsibilidade. Garantir que uma coisa simples do direito seja cumprido: as regras do jogo (ah, como isso está faltando atualmente, pois não?). Deve procurar criar condições para que o direito seja aplicado de forma equânime. E que, mesmo que o juiz esteja “p” da vida com o mundo, tenha brigado com sua mulher, ele tem de suspender isso tudo e decidir de acordo com as regras. Decisão não é escolha, como muito bem diz Heinrich Rombach, conforme explico detalhadamente nos Comentários ao artigo 489 do CPC (Comentários ao Código de Processo Civil, no prelo, Saraiva, 2016).


Isto porque o Direito não está à disposição do julgador. O jurisdicionado não pode ficar à mercê justamente das contingências, do tropeço na pedra, da “sede de ser justiceiro” ou da vontade de ser um “juiz Magnaud”. Não há sorte ou azar nisso, como no filme Match Point, de Wooddy Allen. Ora, se alguém vai arrogante para a audiência e com a camisa para fora da calça, isso significa que é culpado? Ou que é inocente? Diz o estimado Morais da Rosa que “sabemos, todavia, a diferença entre um sorriso sincero e um falso/forçado”. Desculpem, mas eu não sei, até porque, pergunto, quais seriam os critérios de diferenciação? De novo: se o processo é um jogo e você precisa estar preparado para isso, uma coisa é certa: não é de Direito que se trata. Técnicas de valoração probatória podem ser úteis, mas não são teoria da decisão, convenhamos. Talvez Morais da Rosa e eu tenhamos apenas que acertar os termos de diferenciação daquilo que ambos queremos.


É evidente que todos os dias acontece esse tipo de fenômeno do qual fala Morais da Rosa (a decisão do juiz do trabalho de Porto Alegre é um bom exemplo). Só que isso está fora do Direito. Por exemplo, se você passa a perna e engana um juiz, isso é uma coisa que pode ocorrer e, como resultado, você “ganha a causa”. Mas “ganhou” fora das regras do jogo (já que se quer usar a palavra “jogo”). Ora, o Direito deve servir justamente para que isso não aconteça. O Direito não pode ser compatível com algo que se não possa prever e escape de uma racionalidade (chamemo-la de discursiva, comunicativa, hermenêutica, etc.).


O irônico nessa história de gestos, atitudes corporais, etc., é que mesmo eles são sintomas que exigem interpretação. Não há ontologia que permita acessar a uma “essência dessas coisas”. Ainda que esses comportamentos e atitudes pudessem contar para efeito da decisão, eles mesmos não estão à disposição do juiz. Se são sintomas, expressam uma "linguagem corporal" que, como tal, remetem-se a uma vivência ou experiência intersubjetivamente compartilhada sem a qual seriam completamente destituídos de sentido. Em outras palavras, nada disso é meramente subjetivo e o juiz não tem acesso privilegiado à "verdade corporal". Afinal, quer o juiz dizer "a" verdade dos corpos dos outros? Como diz R. Palmer: quando o subjetivismo se coloca na base da situação interpretativa, o que é interpretado senão uma objetificação?


Proponho, pois, a partir da CHD, contestar isso com elementos exógenos, já que sobre os endógenos não tenho controle. Se no futebol existe o montinho artilheiro como contingência ou “o imponderável”, a solução é passar uma máquina roçadeira para reduzir a sua incidência. A questão é saber se podemos admitir que, no Direito, na hora de decidir, a decisão possa ser produto de um montinho epistêmico contingente.


Em síntese: teoria jurídica, como diz Dworkin, é teoria normativa, prescritiva de critérios para a decisão. E estes critérios devem estar radicados em boas justificativas para o uso da coerção oficial. Não me bastadescrever o fenômeno; quero é fornecer critérios para que se decida corretamente. Boa parte do debate Hart v. Dworkin, como sabem, gira em torno desta discussão.[5] O que me interessa investigar é: sob quais condições as pessoas adquirem direitos e obrigações genuínas, a serem reconhecidos diretamente numa demanda judicial?


Poder-se-á alegar que essa “questão da análise de gestos, sorrisos com o canto da boca, etc.” deve ser feita mesmo a partir do PCJ, porque, afinal, é ele quem está vendo tudo. Neste caso, o juiz usaria a psicologia cognitiva ou qualquer outra teoria behaviorista. Mas, na hora da sentença, “funcionará” a intersubjetividade? Haveria, assim, dois juízes: o que usa a psicologia cognitiva, com o aproveitamento de esquemas mentais, efeito borboleta, etc. e o que elabora a decisão? Bem, não creio nisso. Essa cisão (bipolaridade) é impossível. Não há essa figura que, a um tempo é subjetivista na audiência e, ao depois, transforma-se em intersubjetivo na elaboração da decisão propriamente dita. Não é possível ter uma padrão confiável sobre o comportamento gestual, etc., de uma pessoa em dado ambiente, pela simples razão de que não é possível teorizar ou criar padrões sobre essa imponderabilidade do comportamento humano. Mas sobre o que diz a jurisprudência e a lei, sim, podemos teorizar. Sobre o imponderável e o efeito borboleta, não.


Claro que isso que acabei de dizer vem de um lugar de fala: a hermenêutica. E ela, como diz Gadamer, não quer ter a última palavra. Nem pode. O papel das teorias em geral (teorias da argumentação, teorias sistêmicas, discursivas em geral) e da inovadora tese desenvolvida por Morais da Rosa é de suma importância. Todos queremos aprimorar a democracia. E queremos mais justiça. Os caminhos para lá chegar é que são diferentes.


Só uma coisa a mais: se tudo o que Morais da Rosa falou está certo, como vamos explicar nossa contundente crítica à condenação de Meursault, em oEstrangeiro de Camus? Ele foi condenado... porque não chorou no enterro da mãe.


Post scriptum. Quase esqueci: como vamos explicar nossas críticas ao clássico sentença vem de sentire? Teremos que dar razão a quem diz isso? Afinal, interpretar gestos, piscadelas e esfregação de mãos não põe à prova um-juiz-que-sente?[6] Leiamos o que diz Morais da Rosa:


“pois basta um único sinal, certa arrogância, risinho de canto de boca, roupa fora do contexto, postura, contato visual, para que tenhamos um julgamento sobre o sujeito, naquilo que a psicologia cognitiva denomina de heurística e vieses, com os quais diminuímos a carga de trabalho mental e manejamos melhor o dia a dia. São atalhos mentais pelos quais o complexo processo de decisão é facilitado”.


Tenho apenas uma pergunta sobre isso: Quem deu esse poder ao juiz?




[1] Em Verdade e Consenso deixo isso bem claro, mormente na crítica à Daniel Sarmento, que, em uma crítica a mim, confundiu os conceitos.




[2] Para registro: 1. Não ignoro a importância da Psicologia Cognitiva e seus estudos; 2. Não ignoro que o corpo fala; 3. O que questiono é a transposição para o direito, cuja pretensão é regular condutas, preservar liberdades e impor regras que sejam aplicadas de forma equânime; 4. Sim, sei que advogado faz um agir estratégico; sua defesa deve ser feita levando em conta milhares de variáveis, nem mesmo importando se seu cliente tem ou não razão (lembremos do filme The Bridge of Spies - ver aqui); 5. Ocorre que uma teoria da decisão não trata do agir estratégico das partes; trata, sim, do agir por princípio e com responsabilidade política do juiz.




[3] GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva: Heidegger em retrospectiva. Vol. I Tradução de Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 37.




[4] Vejam o problema do efeito borboleta: vamos supor que meu pai tenha desviado seu caminho porque uma galinha atravessou e, assim, não tropeçou. Assim, em vez de me dar um tabefe, deixou minha irmã ir ao baile. Ela conheceu uma pessoa que não o meu cunhado e com ele se casou. Com isso, não saio do meio do mato e não vou morar com ela na cidade. E não continuo meus estudos. Não faço faculdade de Direito, mestrado, doutorado, etc e nem tenho esta coluna no ConJur. Neste caso, o paradoxo: eu não estaria escrevendo este texto e nem teria conhecido pessoas tão queridas como Alexandre Morais da Rosa e tantos outros Amigos por esse mundão de Deus. Ou escrevi esta Coluna justamente por causa do efeito borboleta? Quem vai saber...




[5] Aqui remeto o leitor à excelente tese de doutorado (UNISINOS) de Francisco José Borges Motta. Ronald Dworkin e a decisão jurídica, que está no prelo pela Juspodivm. 




[6] Sem entrar na discussão da tradução e do sentido correto da palavra “sentire”.



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.






Revista Consultor Jurídico, 18 de fevereiro de 2016, 8h00

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