E o Cego de Paris pode esperar mais um pouco...
A coluna da semana passada deveria ser a continuidade do Cego de Paris, tratando da desmi(s)tificação do “princípio” da verdade real. Contingencialmente, exsurgiu a coluna sobre a PEC 37. Mas, agora, de novo, a continuação do Cego de Paris vai ter de aguardar. Andei navegando pela internet nesses dias (inclusive na ConJur) e vi que os néscios estão se multiplicando. Por isso, a coluna de hoje é sobre eles: os néscios, sua história, sua natureza jurídica etc. O título poderia ser “Por uma epistemologia dos néscios”.
Afinal, já dizia o Marques de Maricá: “não admira que os néscios se julguem muito sabedores, eles que têm vantagem de desconhecer que ignoram”. Leiamos de novo: “...eles que têm vantagem de desconhecer que ignoram”. Está no título!
Origem e natureza jurídica
Os néscios já estavam listados para embarcarem na Nau dos Insensatos, o best seller pré-moderno de Sebastian Brant, que foi traduzido para 40 línguas. No entremeio de toda aquela gente, lá estavam eles: os néscios. No Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, havia, ao que consta, lugares reservados a eles, os néscios. Um capítulo secreto, descoberto há pouco em escavações, mostra que Cervantes se irritava com os néscios. Antes da modernidade, ficavam em volta dos castelos, chateando tanto os senhores feudais quanto os burgueses em ascensão. Voltaire, no seu O Ingênuo, chamava-os de linóstolos e pastóforos.
Atravessaram os séculos e, com o advento da computação e das redes sociais, finalmente saíram da toca. Perderam sua timidez. E passaram a se manifestar. E com um subterfúgio: os sites permitem que eles, os néscios, façam suas inscrições com codinomes. E eles se esbaldam, escondidos em epítetos e nicknames, como “pretor”, “Adamastor”, “A. P. deuta”, “olhador”, “justiceiro”, “hercúleo”, “jupiteriano” etc. E, como o corsário, escondidos atrás de codinome, ficam afundando e atirando... Nota: nem todo mundo que usa codinome é néscio, mas quase todos os néscio usam codinome!
Sua natureza jurídica é a ficção. Eles existem e não existem. Não leem nada que tenha profundidade maior do que os calcanhares de uma formiga. Normalmente, não escreveram na vida mais do que um fonograma (e seus [minúsculos] textos na internet, é claro). Odeiam metáforas, metonímias, ironias. Sarcasmos, nem falar. Gostam de “pegar” as coisas “ao pé da letra” (embora não saibam que letra não tem pé!) Há que se explicar a um néscio, sempre, o “sentido da ironia”. Aliás, eles não sabem o que é a dobra da linguagem. Néscios não fazem a “barra” entre significante e significado. Dizem até que Saussure, perturbado pelos néscios, quase desistiu de trabalhar a ideia do signo e as quatro caraterísticas que havia desenvolvido.
O néscio é fã de resumos e resumo de resumos no Direito. Folhas plastificadas com pequenos conceitos e conceitos pequenos: eis o alimento principal do néscio. Dizem que adoram tuitar (a maioria), porque seu raciocínio nem chega aos 140 caracteres. Cansam quando chegam ao centésimo clique. Outra nota: é óbvio que nem todo mundo que usa Twitter é néscio, mas todo néscio adora tuitar. Néscios odeiam literatura. E quando alguém aprofunda e fala coisas como “epistemologia”, consideram-se ofendidos. Para eles, o mundo é como as Ideias de Canário, de Machado de Assis: uma gaiola pendurada em um brechó. “O resto tudo é mentira e ilusão”, como diz o falante canário ao Senhor Macedo, que o descobriu.
Os néscios também só conseguem falar sobre algo depois que a coisificam. Isto é, transformam palavras em coisas. É como se a dobra da linguagem fosse uma verdadeira e concreta dobradura, como em uma roupa ou uma folha de papel. Para eles, sempre há uma essência. Coisa julgada, para um “bom” néscio, é uma senhora rechonchuda. E litisconsorte ativo é um rapaz alto, com gel no cabelo. Já o litisconsorte passivo... Para decorar conteúdos de livros resumidos, néscios usam de “truques”, com palavras chave, como democracia é “dopelopá” (Do povo, Pelo povo, Para o povo). Ou o conceito de crime como “tipancul” (fato Típico, Antijurídico e Culpável). Que profundidade, não? A internet é fabulosa. Como falei em outra coluna, parafraseando uma canção de 1936 feita para criticar o comportamento dos franceses, “tout va très bien dans le monde juridique”.
Natureza filosófica
O que os filósofos diriam dos néscios? Como responderiam, por exemplo, à pergunta “por que um néscio somente perde a timidez escondido nas redes sociais”? Por que a internet é o locusprivilegiado dos néscios?
Parmênides: tudo permanece (inclusive os néscios).
Platão: os néscios fazem parte do mundo sensível. Jamais alcançarão o suprassensível. Por isso, para eles, as sombras são a realidade. Não sairão jamais da caverna.
Gorgias de Leôncio, o sofista mais famoso: um néscio é incognoscível e, se for cognoscível, é impossível contar para o vizinho.
Santo Agostinho: toma [algum livro] e lê (a frase é autoexplicativa).
Guilherme de Ockham: não há néscios universais; apenas néscios singulares;
Maquiavel: atrás de um néscio sempre surge outro. Não deixe nenhum perto de você.
Heidegger: faz parte do modo próprio de ser no mundo o néscio ser assim; há uma pré-compreensão que funciona como um “adiantamento de sentido”: o sentido de quem é néscio sempre chega antes.
Descartes: néscios não possuem cogito, por isso, não existem.
Kant: não existe um néscio em si.
Hegel: Deutschland ist kein Staat mehr (a Alemanha não é mais um Estado, disse Hegel [de verdade] apavorado com o número de néscios na Alemanha).
Wittgenstein (do Tractatus): se os limites da linguagem são os limites do mundo, néscios possuem apenas um “mundinho”.[1]
Marx: néscios são o lúmpen; não falo deles; com eles não há revolução.
Gadamer: sempre sobra algo no ato de interpretar, mas o néscio deixa passar tudo.
Dworkin: a raposa sabe muitas coisas, o ouriço sabe uma grande coisa, mas o néscio não sabe nenhuma coisa.
E há uma frase famosa atribuída a Martin Luther King: não me preocupa o barulho feito pelos néscios; o que me inquieta é o silêncio dos não-néscios (dos anti-néscios).
Em tempo
Antes que me “acusem” (e néscios adoram fazer isso) de “instrumentalizar a filosofia”, ressalto que vários destes filósofos realmente discutiram sobre (e com) os néscios nos seus escritos. O filósofo que dá origem ao pensamento ocidental, Heráclito, em diversas histórias a seu respeito, desprezava os néscios que não entendiam que um filósofo também realiza atividades mundanas, como brincar com crianças ou se aquecer em frente a uma lareira nos dias de frio, dizendo preferir que eles cuidem da polis a cuidar da vida dele.
Platão, por exemplo, já disse que a opinião pública (e os néscios adoram opinar sobre tudo, mas apenas repetindo o que já diz o senso comum) nem de perto se assemelha à doxa alethe, a opinião verdadeira.
Marx também leva a cabo a questão do néscio. Para ele, existe a categoria do Lumpenproletariat, um estrato da classe trabalhadora que não alcançará a consciência de classe e que não colaborará (ou atrapalhará) para a realização do projeto de construção de uma sociedade sem classes.
Søren Kierkegaard é outro que passou anos escrevendo sobre os néscios, o público-alvo do Cristianismo, do modo como ele se apresentava na Dinamarca em sua época.
Friedrich Nietzsche dedica seu Assim Falava Zaratustra ao néscios (um livro para todos, os néscios, e para ninguém, aqueles que já superaram esta condição), os burros de carga alienados pelos valores da sociedade do fim do século XIX e presos no eterno retorno.
Por fim, cabe ainda nessa lista exemplificativa da “história epocal do néscio”, Martin Heidegger, que dedica longas passagens ao das Man, o homem inautêntico, que vive das e para as coisas mundanas e esquece do essencial: o pensar, em especial o pensar filosófico.
Contemporaneamente, os néscios vêm assumindo lugar de destaque em outros campos. Estão na música, por exemplo, fazendo videoclipes em estrebaria (como no caso daquele sujeito da Coreia do Sul, cujo videoclipe é o mais acessado do mundo, o que mostra, empiricamente, que a “nesciedade” é um vírus transmitido pelas redes sociais). Também se iluminam com sertanejo universitário (ou algo do gênero ou espécie). Frases idiotas — e portanto, absolutamente efêmeras — são transformados em hits, como “Luiza não veio do Canadá” (ou algo tão néscio quanto). Notícias bizarras ocupam o espaço na mente do néscio de forma privilegiada. Por isso, qualquer notícia sobre um advogado que queria fornicar com suas clientes é hit. No Direito, adoram “a simplicidade do simples”, como dizer que “alheio é tudo aquilo que não é meu”... O professor néscio (ou aprendiz de néscio) chega na sala de aula e diz: “paremos com essa coisa de filosofia ou teoria; agora vocês vão aprender Direito... e tira da mochila um livro de resumos para concursos”. Os jargões preferidos dos néscios são: “chega de filosofar”; “o mundo deve ser descomplicado”; “parem com essa discussão inútil: vamos ser práticos”...!
Só que o problema da prática é que ela tem a capacidade de anestesiar, de naturalizar, de embrutecer. Como diz Heidegger, não há nada mais distante de nós, na cotidianidade, do que nossos óculos.[2] O néscio fica preso na cotidianidade, no dia a dia, perde o referencial crítico e se torna presa fácil para o reducionismo e a simplificação. Desde já, advertimos que toda solução simples para questões complexas é um engodo. E toda postura de se contentar com respostas prontas, argumentos de autoridade e reducionismos revela falta de senso crítico. Um existência autêntica é feita de esforço, leitura e abertura. A suspensão dos prejuízos (no sentido gadameriano de conceitos prévios sobre algo) é o que possibilita a ampliação de horizontes. Viver com autenticidade requer reflexão.
Deve haver algo...
Sem dúvida, deve haver algo que faça com que esse imaginário “prêt-à-porter” faça tanto sucesso no Brasil. Muita gente já tentou explicar essa fragmentação “pós-moderna”. Há pouco escrevi aqui sobre isso, trazendo o que dissera o escritor russo O.V. Vainshtein, em 1993, numa mesa redonda sobre pós-modernismo e cultura: “sob o signo de pós-modernismo pode-se não apenas ver performances e poesia escrita, como também fazer panquecas, vestir roupas extravagantes, fazer sexo e brigar, além de arrolar como predecessor qualquer autor que se queira o panteão da cultura mundial, de Marquês de Sade a Santo Agostinho. (...) O que importa para o pós-modernismo não é a profundidade nem a intensidade, mas o deslizar sobre a superfície, o optar entre vários significados.”
Como se explica que, quando alguém faz um texto sobre determinado assunto e o conteúdo seja um pouco acima da média de compreensão, parcela considerável dos internautas (ou “ignorautas”) fique irritada? Que fenômeno é esse? Isso leva quem escreve à exaustão. Ao limite. Por que alguém vai escrever textos sofisticados? Para receber “piadinhas idiotas” de néscios (não) identificados?
Nessa mesma linha, outras coisas aparecem mais claras. Como se explica que os concursos sejamquiz shows? Como se explica o sucesso dos raciocínios pequeno-gnosiológicos de uma parte dos internautas? Quando um diz uma bobagem, o outro, ao invés de lhe fazer uma censura epistêmica, o elogia. Quando se critica o imaginário jurídico, aparece um contingente para dizer “isso é assim mesmo”; “o que vale é a prática”; “não adianta sofisticar” (por isso, repito aqui um jargão que inventei há mais de 15 anos, quando isso tudo estava no nascedouro: parcela considerável da literatura jurídica utilizada hoje nas salas de aula – lato sensu – deveria ter uma tarja como as que encontramos nas carteiras de cigarro, com os dizeres “o uso constante desse material fará mal a sua saúde mental”, tendo no verso da carteira uma foto de um “usuário” com cara de néscio, dizendo “usei e fiquei assim”!).
Como sobrevivem — e aqui utilizo o exemplo no plano simbólico — coisas como alguém tentando explicar o direito de propriedade por intermédio de algo como uma reza para uma determinada santa, a partir das iniciais, onde: C = Complexo; A = Absoluto; P = Perpétuo e assim por diante... Isso é implicância minha? Pergunto: e então? E eu conclamo: Indignemo-nos! Urgentemente! Ou estoquemos comida. Muita!
Enfim, que mania é essa de dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa e receber aplausos e congratulações por isso?! Que praga é essa de que “tudo é relativo”? Que ausência de responsabilidade é essa que aplaudimos, esquecendo-nos da corresponsabilidade que teremos quando tudo já estiver perdido defronte a tais práticas?!
De como Machado já sabia disso tudo...
O grande Machado de Assis, nosso Flaubert, antecipou em mais de 100 anos o que hoje acontece nas redes sociais e com o “encantamento nescial” (sim, os néscios seduzem pela nesciedade que lhes é inerente). Quando ele escreveu a Teoria do Medalhão, teve a grande epifania que explica, hoje, magnificamente, o processo de forma de um néscio. Na verdade, o conto de Machado é uma “epistemologia do néscio”. Querem ver? Conto o conto, rapidamente, sem aumentar um ponto (no livro Compreender Direito – RT, 2013, a teoria está mais bem desenvolvida), apenas substituo a palavra “medalhão” por “néscio”.
Um pai, no aniversário de 21 anos de seu filho, explica-lhe a teoria pela qual este poderia se dar bem vida afora. Para o pai, o filho tinha os requisitos para ser um “néscio”: “tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim”.
E o pai continua. Observemos uma das máximas da teoria: “longe de inventar um Tratado Científico da Criação de Carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar.... É bem fácil, útil e proveitoso...”.
Outro conselho importante do pai para o filho-candidato-a-néscio (medalhão): “Deves reduzir o intelecto à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum... O vocabulário deve ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim... Eis a receita do sucesso” (aqui me parece estar o cerne da epistemologia do néscio!).
Ao final do diálogo com o filho Janjão (candidato a néscio), o pai arremata: “Rumina bem o que eu te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Maquiavel”.
Este é, pois, o meu tributo aos néscios. E, como dizia o Barão do Itararé: “diga-me com quem andas e verei se posso sair contigo.”
[1] Outro trecho da obra de Wittgenstein, também do Tractatus, bem aplicável aos néscios, é a proposição 7, vulgarmente conhecida como “Em boca fechada não entra mosca”. Uma pena que eles não costumam ler Wittgenstein.
[2] “Para quem, por exemplo, usa óculos, estes estão tão perto segundo a distância, já que os ‘tem no próprio nariz’, pois como instrumento de emprego estão no mundo-ambiente mais longe do que uma figura exposta na parede da frente.” (HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução Fausto Castilho. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 313, página 107 do original).
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 23 de maio de 2013
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