quinta-feira, 29 de outubro de 2015

A morte de crianças pode ser considerada uma questão cultural?




Por Lenio Luiz Streck


Abstract: O Plenário da Câmara aprovou Projeto de Lei tratando de medidas para combater práticas tradicionais nocivas em sociedades indígenas, como o “infanticídio”, e da proteção dos direitos fundamentais de crianças, adolescentes, mulheres e idosos vulneráveis nessas comunidades. Nesta coluna tentarei demonstrar a correção do projeto aprovado.

Hoje vou mexer em um vespeiro. Entretanto, é um tema que deve ser enfrentado, em tempos de globalização de direitos humanos ou o nome que se dê para a universalização da proteção da fundamentalidade dos direitos das gentes.

Ninguém melhor que Pablo Neruda definiu os estragos feitos pelos colonizadores europeus no continente Americano: “A espada, a cruz e a fome iam dizimando a família selvagem”. As bactérias e os vírus trazidos pelas caravelas; a guerra; a imposição do cristianismo pela Igreja Católica e a desagregação estrutural das tribos geraram um enorme holocausto. E até hoje a violência continua muito presente no cotidiano das comunidades indígenas que restaram, ao serem atropeladas por grileiros, pecuaristas, madeireiras, garimpeiros e, muitas vezes, pelo próprio governo. Foi assim que a ditadura militar brasileira realizou seu projeto de ocupação do interior do território na época da construção da Transamazônica. Por trás de todas essas atividades econômicas, sempre se impôs o argumento do progresso.

Foi por esse motivo que os irmãos Villas Bôas apresentaram uma política indigenista baseada numa intensa preocupação protecionista e preservacionista. Os sertanistas sabiam que o simples contato já era suficiente para iniciar a destruição dos povos indígenas e, por isso, implantaram o Parque Indígena do Xingu para resguardar os índios da penetração cada vez maior da política de desenvolvimento econômico do Estado brasileiro. Os irmãos sabiam que a chegada de outra civilização e a ausência de uma política preservacionista acarretaria a dizimação dos povos que habitavam a região do Alto Xingu. É por isso que, ainda hoje, a indefinição do Estado brasileiro para resolver os constantes conflitos de terra, que envolvem a demarcação das terras indígenas, tem se apresentado como um problema extremamente grave em algumas regiões, como é o caso do atual conflito entre grupos indígenas e fazendeiros no interior do Mato Grosso do Sul.

É inegável que o choque entre culturas sempre produziu destruição ao longo da história. Entre os próprios povos pré-colombianos é possível comprovar essa situação. O Império Asteca chegou a reunir 11 milhões de pessoas e, por meio da guerra, realizou a devastação e o domínio sobre diversos povos vizinhos. A legitimidade dessa expansão se baseava, por exemplo, na crença de que o povo Asteca era o povo escolhido pelo deus Sol, Huitzilopochtli, e que, por isso, estava destinado a conquistar e dominar outros povos. É evidente que essa situação histórica não se apresenta como um argumento favorável à dizimação dos povos indígenas por meio de uma cultura eurocêntrica, mas apenas demonstra que o desaparecimento de algumas culturas é um movimento presente na própria história.

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro deve demarcar as terras indígenas para reduzir o impacto da violência cultural que, inevitavelmente, acaba ocorrendo sobre as diversas comunidades indígenas, também é importante se questionar quais seriam as razões para a manutenção da prática do homicídio/infanticídio entre os grupos indígenas adeptos desse comportamento.

Eis o vespeiro. Esse tema vem gerando muitas discussões devido ao Projeto de Lei 1057/2007 apresentado pelo deputado Henrique Afonso, já que tem o objetivo de coibir essa prática de eliminar crianças com deficiência ou nascidas de estupro. O projeto — por favor, não critiquem antes de lerem a íntegra do projeto aprovado na Câmara — homenageia e tem como origem o protesto de uma mãe da tribo dos suruwahas, que se rebelou contra a tradição de sua tribo e salvou a vida da filha, que seria morta por ter nascido deficiente. Sem pieguice — ou até sendo — permito-me mostrar a fotografia da menina:



Em nome de certo multiculturalismo ingênuo, alguns parlamentares e antropólogos tem se posicionado contra qualquer tipo de interferência do Estado em relação à prática desse comportamento. Alguns chegam a dizer que, se o Estado não é capaz de enfrentar as constantes violações dos direitos da criança, não deveria se envolver na questão do “infanticídio” (aqui o termo não é técnico) indígena. Genial, não? Acontece que, mesmo diante dos dados alarmantes sobre a violência contra a criança, é preciso reconhecer que esta violência só não é normalizada graças à reação cultural que existe em nossa sociedade. Os mecanismos legais de proteção à criança são resultados dessa transformação cultural. Isso deve ficar bem claro. É por isso que a maioria das pessoas se incomoda quando uma criança é vítima de maus tratos.

Obviamente, a prática do infanticídio ou homicídio indígena possui um sentido para as comunidades adeptas desse costume.[1] No entanto, a partir do momento em que a comunidade está integrada, não há motivo algum para a aceitação dessa manifestação cultural numa sociedade que tem como princípio a proteção dos direitos e garantias fundamentais da criança. Um multiculturalismo ingênuo, que naturaliza a morte de crianças (ou a ablação de mulheres na África), acaba caindo em um discurso puramente relativista e, mais tarde, encontra sérias dificuldades para apresentar argumentos consistentes em defesa dos direitos humanos. Se a morte de crianças indígenas possui um sentido cultural para as comunidades que o praticam, é importante lembrar que as execuções do Estado Islâmico, motivadas pela ortodoxia religiosa, também o possui. Mutilação de partes femininas, idem. A situação é a seguinte: ou assumimos um discurso relativista e, portanto, aceitamos a normalização dessas práticas; ou abandonamos o relativismo e, assim, assumimos a integridade e a coerência como um ponto fundamental para a defesa dos direitos humanos.

Se tudo é cultural ou se a cultura tem o condão de superar a concepção de direitos humanos constante na Constituição de um país, então teríamos que achar “natural-cultural” a descoberta de tribos que escravizam a outra. Neste caso, a escravidão seria considerada, cultural? Aliás, o projeto trata disso. E do estupro também.

No fundo, a pergunta que se põe é: a morte de crianças pode ser uma “questão cultural”?

Post scriptum: O Fator Target
Os dois magistrados que defenderam os enunciados voltaram à carga sustentando o insustentável (ler aqui). Não vou respondê-los, pela simples razão de que os comentaristas da ConJur (Gustavo Mantovan, Vítor Rios, R. G., Dartiz, Ziel F. L., Ricardo Rocha Lopes Da Costa, José Tacla, Edmilson_R, Lucas Paim, Gabriel da Silva Merlin e Claudio Melim) já o fizeram. Acrescentar o quê? Em geral, meus críticos (e não foi diferente neste caso) usam do Fator Target contra mim. Primeiro atiram a flecha e depois pintam o alvo ao redor. Bingo. Por isso é que não erram nunca. And I rest my case!


[1] A lei aprovada na Câmara visa a combater: I - infanticídio ou homicídio; II - abuso sexual, ou estupro individual ou coletivo; III - escravidão; IV - tortura, em todas as suas formas; V - abandono de vulneráveis; VI - violência doméstica.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2015, 8h00

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