Por Marcos de Vasconcellos
Apartheid, em africâner, significa “separação”. Desde a década de 1940, no entanto, a palavra ganhou, aos olhos do mundo, um novo sentido, que expõe como a questão racial pode ser usada como pretexto para um grupo ser subjugado socialmente e politicamente. Foi em 1948 que a África do Sul oficializou a política de segregação racial, com a chegada do Novo Partido Nacional (NNP) ao poder. O apartheid se baseava na falsa premissa de que bastava separar brancos de um lado e negros do outro para eliminar a violência inter racial. Nesse sentido, proibiu-se , por exemplo o casamento entre negros e brancos. Outras restrições aos negros, como as de votar e de adquirir terras em grande parte do país, mostraram que o objetivo real da segregação era proteger a minoria branca e oprimir a maioria negra.
Foi desse cenário que emergiu Nelson Mandela, líder político que passou 27 anos preso por se rebelar contra o apartheid e que, posteriormente, presidiu a África do Sul e ganhou o prêmio Nobel da Paz. Solucionar um conflito desse porte não é tarefa para um homem apenas (mesmo que seja Mandela) e a abordagem da questão não pode ser simplesmente a afirmação do óbvio, de que pessoas não podem ter menos direitos por conta da cor da sua pele.
Coube ao professor Don Edward Beck, da Universidade do Texas, identificar que as questões da África do Sul nunca foram sobre raça, mas sobre sistemas de valores. Ele assessorou diretamente Mandela no trabalho de união do país dividido, tendo viajado mais de 60 vezes para a África com esta finalidade. O próprio Beck conta que havia publicado alguns artigos sobre o apartheid quando recebeu a ligação de Mandela, recém saído da prisão, dizendo “eu li o que você escreveu sobre o meu povo e quero que você venha me ajudar a melhorar as coisas por aqui”.
Com carreira como consultor organizacional e geopolítico para diferentes governos (Beck se diz amigo do também texano George W. Bush, ex-presidente dos EUA), o professor busca compreender em profundidade os diferentes valores de indivíduos e grupos. Hoje, ele repete o mantra ao comentar a questão palestina: “Não se trata de religião, mas de sistemas de valores”.
Segundo a teoria de Beck, denominada Spiral Dynamics Integral (Integral da Dinâmica em Espiral) — desenvolvida a partir do trabalho do professor Clare W. Graves —, a partir do momento em que os sistemas de valores são mapeados, é possível compreender a forma pela qual as pessoas se relacionam consigo mesmas e com os outros, facilitando processos de conexão.
Marcello Rodante, advogado brasileiro e estudioso do trabalho de Don Beck resume: “Os sistemas de valores funcionam como filtros, como estruturas de pensamento, como matrizes de comportamento. Cada um dos sistemas mapeados representa um determinado modelo existencial e cada modelo possui suas características e limites”. Ele esclarece que diferentes pessoas necessitarão receber diferentes abordagens, para obter diferentes resultados, diante de um determinado conflito, para que a solução mais adequada seja alcançada.
Rodante foi um dos responsáveis por trazer Beck ao Brasil em agosto deste ano, para dar um curso sobre soluções de conflitos para advogados especializados em mediação. Foi durante sua estadia que Beck concedeu entrevista exclusiva à revista eletrônica Consultor Jurídico, à beira da piscina do hotel que o hospedava, em Higienópolis, em São Paulo.
Ao comentar a situação brasileira, o professor texano explica que a dimensão geográfica e as diferenças sociais do país tornam ainda mais necessário buscar novos modelos de organização, em vez de simplesmente tentar encaixar pessoas que estão em sistemas de valores diferentes em um mesmo modelo. “Você jamais poderá mudar as coisas lutando contra a realidade existente. Para mudar algo construa um novo modelo que torne o modelo existente obsoleto”, diz sua obra.
O problema destas diferenças deságua no Judiciário, conta. Por isso, a Justiça deve estar a par desta visão, que transita entre a sociologia, a psicologia e a comunicação. Ao comentar o Direito Penal do Inimigo, que tem se mostrado forte no país, e cria uma categoria de “inimigos do Estado”, para quem os direitos são relativizados, Beck é categórico: “É preciso aprender a amenizar o espaço entre os grupos e reduzir o egocentrismo envolvido nesses conflitos, de forma que a sociedade emerja disso de um jeito mais pacífico e em um modelo mais positivo”.
Leia a entrevista:
ConJur — Gostaria de começar com o senhor explicando um pouquinho do seu trabalho neste momento.
Don Beck — Essa não é a minha primeira viagem ao Brasil. Já estive aqui umas sete ou oito vezes. Sou fascinado pela cultura. Primeiramente, notei todas as pontes e como elas são necessárias por aqui. É uma cultura de “bridging” (de ligação, de união).
ConJur — Pontes como a Rio-Niterói?
Don Beck — Sim. Eu vim o caminho inteiro do aeroporto para cá contando o número de pontes. Cada uma delas é única. Para mim, isso é uma metáfora para a mistura de pessoas. Desde os portugueses até os imigrantes de outros países, essa mistura deles aqui e os nativos... É uma mistura única. O que faz do Brasil tão único é essa mistura. Aqui existe uma oportunidade única de estabelecer um modelo global.
ConJur — Como é esse modelo?
Don Beck — Um dinâmico processo enquanto sistema vivo, porque são organismos, não é algo estático. Isso acontece muito rápido. Cada vez mais há pessoas que não se enquadram no modelo anterior. Tem os outsiders, os refugiados... Se não formos cuidadosos o suficiente, podemos perturbar o equilíbrio entre as culturas que fazem do Brasil o que ele é. Especialmente no que diz respeito às taxas de criminalidade.
ConJur — Nós temos taxas de criminalidade muito altas. Como isso influencia sua visão do modelo brasileiro?
Don Beck — Nós tínhamos um índice muito alto de criminalidade na África do Sul, porque muitas pessoas eram desses grupos que não se enquadram. Elas tinham expectativas muito altas e a sociedade não era capaz de corresponder a elas, no sentido de prover trabalhos decentes e casas decentes, por exemplo. Uma sociedade que está sob esse tipo de estresse produz pessoas que não se encaixam mais como costumavam, pessoas excluídas. Nesta situação, a ansiedade é grande, o estresse é alto. Isso se torna notável no sistema Judiciário, na parte criminal. É nele que os conflitos aparecem. Ser capaz de diminuir esses conflitos é, certamente, uma questão do futuro. O Brasil está numa posição muito mais favorável a isso, porque há uma vastidão de terra e céu para abraçar as pessoas. Vocês podem esperar uma imigração em massa para o Brasil. Vai acontecer. E o país precisa se preparar para isso.
ConJur — Como o senhor explica essa previsão?
Don Beck — Na globalização, as barreiras nacionais já não são mais tão importantes. O Brasil tem fácil acesso a matérias primas e potencial ilimitado para produção de diversos produtos (como já fazem com a cana-de-açúcar). Os seus únicos inimigos naturais são os argentinos (risos).
ConJur — E qual é o papel da Justiça neste passo que estamos dando agora?
Don Beck — Justiça se define com uma série de princípios aos quais as pessoas estão atreladas e uma lista de consequências para o caso de as pessoas não seguirem tais princípios. A Justiça decide quem vai para a prisão ou não. Eu moro no Texas, onde há um complexo gigante de prisões privadas que, assim como os hotéis, precisam de pessoas para encher as celas. Ou seja, precisa de um Judiciário que gere um fluxo de pessoas enclausuradas. O que aconteceu no nosso sistema prisional privado é que temos muitos leitos para preencher. Então as companhias fazem pressão nos legisladores sobre quem vai para a prisão. Nós temos toda uma geração de jovens negros enclausurados, que não se casam, não aprendem um ofício e dificilmente terão filhos legítimos, porque estão presos. Isso apesar dos esforços do presidente [Barack] Obama para libertar pessoas que não apresentam uma ameaça séria.
ConJur — Juntando a questão das pessoas que não se enquadram ao sistema à questão penitenciária, qual é a sua opinião sobre o presídio de Guantánamo?
Don Beck — Desde que os EUA reconheceram Cuba — e Cuba quer aquela terra de volta —, Obama prometeu que mandaria todo mundo para fora de Guantánamo. Mas o que vamos fazer com esses prisioneiros? Guantánamo é um bom lugar — como prisão —, eles comem bem, podem rezar, mas são uma ameaça. Então não podemos simplesmente enviá-los para uma comunidade local, que não consegue lidar com eles. São terroristas e esse é um problema real.
ConJur —Como pode o Judiciário agir para mudar esse problema que é visto como um problema social.
Don Beck — Obviamente, há muitos conflitos no sistema em relação à maturação dos jovens pobres e negros, por conta de famílias destruídas, por causa da ausência do pai, do impacto das gangues, e, certamente, também por causa de drogas. Então o desenvolvimento normal desses jovens não acontece. Não existe esse problema, por exemplo, com a população negra da África do Sul, pois os negros de lá não foram escravos e ainda têm ciência da própria tribo. O que aconteceu no Brasil é que os escravos foram separados de sua terra natal, ficando longe da influência de suas tribos, tudo ficou fragmentado. Faltam princípios organizados. É uma coisa que existia com o Mandela, que agia como uma espécie de chefe de tribo. Mas uma população se torna caótica se é jogada nas ruas sem qualquer tipo de estrutura ou tradições que os deixe em conformidade com as leis e que os faça ter uma vida significante. Existe um ditado que diz: “É preciso todo um vilarejo para se criar uma criança”. É isso mesmo. Mas também precisamos de trabalhos disponíveis. Então, o sistema precisa criar vantagens em impostos, por exemplo, e incentivos para criar oferta de trabalhos mais braçais para esses jovens. Porque senão eles não são empregáveis.
ConJur — Como é possível recriar esse laço histórico perdido?
Don Beck — Um jovem em Chicago se junta a uma tribo porque ele quer ser amado. E por ser amado ele vai ter funções. Isso dá estabilidade à vida deles. As gangues são, então, substitutas das tribos. Certamente, pode haver um crescimento da influência de times esportivos, por exemplo. Mas no final das contas, o que eles precisam é de emprego, porque é isso que gera receita. Então precisamos de um plano muito maior. Eu estava numa convenção de finanças no Caribe na qual se discutiu a possibilidade de trabalhos em tecnologia para os palestinos. Só que eles não querem isso. Querem fábricas de cimento, que é trabalho braçal. Porque isso dá a eles um trabalho estável, das 8h às 5h, porque eles não precisam passar pelos postos de checagem israelenses, por exemplo. Aí podem vender muito concreto no Oriente Médio, que é um mercado grande. Então a decisão foi de não levar a Cisco, mas fábricas de cimento. Isso é um exemplo de como adaptar as oportunidades comerciais em comunidades para absorver os trabalhos para os tipos de pessoas que precisam deles. É simplesmente um exemplo do que precisa ser feito.
ConJur — Em seu trabalho, o senhor fala de espirais de desenvolvimento, tanto pessoal quanto coletivo. A questão dos jovens é importante nisso.
Don Beck — O que eu fui capaz de identificar com os anos de pesquisa pesada é que há estágios de desenvolvimento. Isso é o que segue nosso programa da juventude. A ideia principal é encontrar jeitos naturais de desenvolvimento dentro da mente. Estruturas necessárias para lidar com as complexidades do mundo. Fizemos uma cobertura disso durante muitos anos em projetos ao redor do mundo. E foi assim que eu consegui trabalhar na África do Sul. Os problemas da África do Sul nunca foram sobre raça. São sobre sistema de valores.
ConJur — Até o apartheid?
Don Beck — Sim. Da mesma forma que os problemas no Oriente Médio não são por causa da religião.
ConJur — Israel tem sido acusado de promover uma espécie de apartheid no século 21. Essa é a uma palvra apropriada para o que ele vem fazendo?
Don Beck — Apartheid é a palavra africana para “segregação”. Foi o que aconteceu quando os europeus chegaram a Cape Town, em 1652. Eles trouxeram suas armas e sua Bíblia. Sua entrada numa sociedade de tribos não foi boa. Todos os problemas raciais — dos quais o apartheid foi uma manifestação — foram por conta de diferentes níveis de desenvolvimento ao redor do mundo, não eram todos iguais. Por isso, não é um sistema racial. Ainda assim, as condições de vida e os códigos genéticos, por exemplo, ajudam no jeito como as sociedades se densolvem. Sociedade não é um sistema permanente, é uma adaptação evolutiva das condições de vida.
ConJur — O problema na África não foi raça. Na Oriente Médio, não é religião. O problema no Brasil também é uma questão de valores? E como entendê-los e ajustá-los?
Don Beck — Eu vejo os mesmo padrões na África e Oriente Médio, lugares onde o sistema de valores é o problema. Eles continuam a criar problemas e bagunça. Muita gente, muita oportunidade, muita complacência.
ConJur — O senhor acredita que possamos ter uma Constituição global?
Don Beck — Ainda não. No futuro certamente. Mas até mesmo a Organização das Nações Unidas agora é uma entidade muito fraca. A gente vai ter que esperar um tempo, porque ainda há muitos grupos em diferentes estágios de desenvolvimento.
ConJur — Essa ideia de uma constituição global não é uma ideia de uma sociedade centrada no ser humano? Não partiria daí criar uma mesma lista de valores para a comunidade mundial?
Don Beck — São os mesmo valores. Mas uma sociedade é constituída por tipos de pessoas diferentes e em estágios diferentes de desenvolvimento. O olhar mais humano é uma chance de reconhecer essas diferenças e amenizar os conflitos entre eles.
Conjur — A ideia do Direito Penal do Inimigo, que cria uma relação de “nós contra eles”, é um ponto muito importante na atual conjuntura do Direito brasileiro.
Don Beck — É preciso aprender a amenizar o espaço entre os grupos e reduzir o egocentrismo envolvido nesses conflitos, de forma que a sociedade emerja disso de um jeito mais pacífico e em um modelo mais positivo. É o que fizemos na África do Sul. Apesar de muitos acharem que teríamos uma nova guerra, não tivemos.
ConJur — Nós temos visto no Brasil a aprovação de punições maiores para crimes específicos, como se isso fosse determinante para a redução da criminalidade. A punição é, em si, uma solução?
Don Beck — Há sempre jeitos de punir alguém. Muitas vezes o isolamento é o último recurso. Mas sou inclinado a acreditar que, baseados em estudos de DNA e em dimensões biológicas do cérebro, podemos começar a identificar o desequilíbrio químico em algumas pessoas. Estudos que provam isso no campo da Neurologia.
ConJur — Esse pensamento biológico sobre a criminalidade não é um retrocesso?
Don Beck — Há diferentes tipos de dinâmicas e muitas são provocadas quimicamente. Há novas técnicas para lidar com casos radicais. Eu pesquiso a família, a comunidade local e os problemas sociais para chegar a essa conclusão.
ConJur — Os tribunais internacionais deveriam ter mais poder?
Don Beck — Todos os países têm prioridades em valore internos. Americanos são pessoas peculiares. Nós não gostamos de nos submeter às regras de ninguém mais. Mas eu acho que é preciso haver cortes internacionais.
ConJur — Como as decisões dessas cortes podem ser cumpridas ou reforçadas?
Don Beck — É preciso ter mais casos. Eu passei um tempo trabalhando na Sérvia, e muitas daquelas pessoas não temiam as consequências dos tribunais internacionais. Acho que é preciso haver alguns resultados, para que os tribunais sejam notados e entrem no radar mundial.
ConJur — Por que o senhor veio se reunir com advogados no Brasil?
Don Beck — Eu venho de uma família de advogados, então sou muito sensível a habilidades pragmáticas. Tive muito prazer em trabalhar com profissionais da área no Brasil. A maioria entre 30 e 40 anos de idade, com um jeito moderno de pensar, sem tanta “raiva”, sem aquele ponto de vista que imagina o outro lado como um inimigo. Nós temos um conjunto de condições mais colaborativas na Justiça hoje, todo mundo fala sobre isso. É um sinal de que os profissionais estão tendo um senso melhor e diferente de mediação. Tenho um bom amigo em Los Angeles que trabalha com divórcio de forma diferente. É um divórcio consciente em vez de um modelo imposto.
ConJur — Nelson Mandela foi preso como terrorista e foi solto majoritariamente por opinião pública. Como podemos lutar contra os terroristas sem sermos preconceituosos?
Don Beck — Ele era um caso único. Eu costumava falar com os policiais da cadeia antes de ele ser solto. E eles falavam que ele era o ser humano mais incrível que eles já tinham conhecido. Eu escrevi no jornal na África do Sul como o país poderia mudar com ele. E quando ele saiu da prisão, me ligou perguntando o que eu estava fazendo e se eu queria ajudá-lo. Ele controlava seu próprio caminho. Sabia, por exemplo, que era melhor não ser solto em um determinado momento porque era perigoso para ele.
ConJur — Não conseguimos pensar nele como terrorista...
Don Beck — Ele não era. Ele era um advogado. Mas a África do Sul classificou todo mundo como terrorista. Com certeza eu também era considerado um. O problema era a falta de habilidade para entender as diferenças entre os africanos e os europeus. Nos EUA, houve uma guerra civil por causa da dificuldade em entender as diferenças entre brancos e negros, entre o Norte e o Sul.
Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 18 de outubro de 2015, 8h25
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