Por Rodrigo Daniel Silva
O Conselho Nacional de Justiça completou 10 anos de criação em 2015. Neste período, buscou uniformizar o funcionamento do Judiciário, levantou — pela primeira vez — dados sobre o funcionamento da Justiça, criou metas para juízes e tribunais e exerceu o controle do cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados. No noticiário, costuma ser mais lembrado pela última parte, com as condenações de juízes acusados das mais diversas perversidades, como vender sentenças ou atuar em favor de amigos. O fato de a atuação do órgão ser destacada por isso incomoda o juiz federal e ex-conselheiro do CNJ Saulo José Casali Bahia.
Ele afirma que a criação do CNJ “abriu a caixa-preta que cercava alguns órgãos do Judiciário”. O atual presidente do órgão, ministro Ricardo Lewandowski concorda. Segundo Lewandowski, o órgão deu passos largos em direção à criação de políticas institucionais de planejamento estratégico do Judiciário e não deve se dedicar a questões individuais, apenas a discussões que digam respeito ao aperfeiçoamento da máquina judicial como um todo.
A gestão de Lewandowski tem sido criticada pela criação de dois conselhos consultivos: um formado por integrantes do colégio que reúne presidentes dos tribunais de Justiça, e outro composto por representantes de entidades de magistrados.
Saulo Casali, que encerrou o mandato de conselheiro no final de agosto, aponta que o CNJ tem quatro desafios para superar. Segundo ele, o órgão precisa garantir a transparência de todas as ações no Judiciário, especialmente, no tocante à remuneração de magistrados e servidores. Além disso, deve ampliar a implantação do Processo Judicial Eletrônico (PJe), priorizar o primeiro grau de jurisdição e, por fim, dinamizar o funcionamento interno do Conselho, através de recursos tecnológicos.
No entendimento dele, não é verdade que o CNJ tem um viés punitivo. O magistrado destaca que em 10 anos, o órgão aplicou penas disciplinares a 70 magistrados, sendo 44 aposentadorias compulsórias, sete disponibilidades, 11 censuras, cinco remoções compulsórias e quatro advertências. Este número “efetivamente pequeno”, para ele, “não é de espantar”. “Devemos lembrar que a competência do CNJ ocorre ao lado do controle censório exercido pelas corregedorias de cada tribunal, que também promove as respectivas apurações. Então, não diria que exista algum problema em relação a isso”, pontuou.
Magistrado há 25 anos, Casali faz questão de ressaltar que é preciso afastar os argumentos de quebra de autonomia de tribunais e de existência de limites ao controle. “Essas alegações visam esconder ou dificultar o controle feito pelo CNJ em prol da melhor prestação jurisdicional. São teses que devem ser afastadas, porque todos devem obediência a Constituição e aos seus princípios”, afirmou.
Saulo Casali é juiz federal na Bahia e integra a Câmara Regional do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Salvador. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, ele leciona na Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor avalia sua experiência no Conselho?
Saulo Casali — Foi uma experiência muito rica exercer o mandato de conselheiro por dois anos. O Conselho é um órgão nacional e a sua atividade se espalha por todos os ramos do Judiciário. Em uma vara federal, além de estarmos atuando em feitos judiciais, temos causas limitadas geograficamente pela sua competência. A perspectiva no CNJ é ampliada. O conselheiro se defronta com distintas realidades do Judiciário de todo o país e tem a oportunidade de colaborar nas soluções que aprimoram a prestação judicial no Brasil. É uma experiência única e marcante na vida de um conselheiro, venha ele de qualquer categoria — do Judiciário, do Ministério Público ou da advocacia. O Conselho tem uma importância muito grande para a gestão estratégica e administrativa e na definição de metas dos tribunais. É isso que ocorre na maior parte do tempo e dos casos submetidos ao CNJ.
ConJur — O senhor concorda com a crítica de que Conselho tem um viés punitivo?
Saulo Casali — Muitos acham indevidamente que o CNJ tem um viés punitivo acentuado, quando isso não é verdade. Nos 10 anos de funcionamento, o Conselho aplicou penas disciplinares em 70 magistrados. É um número muito pequeno, porque já há uma atividade censória dos próprios tribunais. A atividade censória do CNJ é complementar. É importante dizer que não se pode retirar do Conselho o controle administrativo de constitucionalidade, porque em muitas situações os tribunais estão infringindo a Constituição, aplicando normas próprias ou locais contrárias ao texto constitucional. Se a função constitucional do CNJ é efetivamente de controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário, não se pode retirar do CNJ a possibilidade de determinar o cumprimento da Constituição aos tribunais que a descumprem.
É uma discussão muito recorrente, e o entendimento majoritário da doutrina, da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal e dentro do próprio do CNJ, é o de que esse controle administrativo da constitucionalidade pode ocorrer. Também não se pode retirar de modo algum do Conselho a competência concorrente em termos disciplinares, já que, em muitas situações, o tribunal visivelmente pode estar se omitindo ou atuando de modo que possa gerar impunidade em relação aos malfeitos de magistrados. Nestes casos, o Conselho deve agir para garantir a apuração e a investigação adequada.
ConJur — O que significa o fato de, em 10 anos, o CNJ ter punido 70 magistrados de um universo de mais de 15 mil?
Saulo Casali — Hoje, existem no Brasil cerca de 16 mil magistrados, e a grande maioria é dedicada e séria no exercício da sua atividade. Não é de espantar que exista um número efetivamente pequeno de magistrados que apresentam um desvio de correção no exercício das funções. Devemos lembrar que a competência do CNJ ocorre ao lado do controle censório exercido pelas corregedorias de cada tribunal, que também promove as respectivas apurações. Então, não diria que exista algum problema em relação a isso.
ConJur — Os processos disciplinares contra magistrados devem correr sob segredo de Justiça?
Saulo Casali — Em determinada fase do processo, caberia sim o segredo de Justiça. A partir do momento que o processo é instaurado, não deve haver, salvo em casos excepcionais.
ConJur — Há diferenças entre julgar um cidadão comum e um colega juiz?
Saulo Casali - Fundamentalmente, não. Nos dois casos estamos diante de situações onde houve violação à lei ou aos princípios da administração pública.
ConJur — Quais são os desafios que o CNJ tem que superar atualmente?
Saulo Casali — No momento, o CNJ tem quatro grandes desafios pela frente. Primeiro, garantir a transparência de todas as ações no Judiciário, especialmente, no tocante à remuneração de magistrados e servidores. Hoje não existe muita clareza por parte de vários tribunais na informação quanto ao que efetivamente é pago. É necessário que as verbas sejam indicadas com as respectivas bases legais, e o CNJ deve exercer um efetivo controle sobre isso. Segundo, o Conselho deve garantir a implantação nacional do Processo Judicial Eletrônico, levando-o a todos os segmentos do Judiciário. Talvez, esse seja um dos projetos de governo de maior envergadura no mundo, envolvendo o Judiciário, pelas dimensões existentes. Hoje, tramitam 95 milhões de processos no Judiciário brasileiro.
E aí entram em cena mais dois outros desafios que o CNJ vai ter que enfrentar. Um relacionado à priorização do primeiro grau. Em muitos tribunais, os recursos materiais e humanos são concentrados no segundo grau, quando a demanda é maior no primeiro. E se aguarda que o plenário do CNJ possa deliberar sobre essa matéria, concluindo a aprovação da resolução que determina a distribuição equitativa de recursos materiais e humanos.
Por fim, o desafio do Conselho é tornar seu funcionamento mais dinâmico. Hoje, a pauta está acumulada e é necessária a adoção de meios eletrônicos de votação. Os recursos tecnológicos já existentes devem ser usados para acelerar o julgamento e evitar o acúmulo de processos. O CNJ deve julgar os casos que lhe são submetidos com celeridade, observando as prioridades e a ordem cronológica de ajuizamento da questão.
ConJur — Na época da criação do CNJ, os juízes se mostraram resistentes à ideia de um órgão para controlar externamente os tribunais de Justiça. Foi uma decisão acertada implantar o Conselho?
Saulo Casali — Bastante acertada e necessária. Somente o Conselho Nacional de Justiça conseguiu romper as barreiras que existiam em alguns tribunais com relação a privilégios indevidos. O CNJ permitiu a homogeneização de procedimentos e também a quebra do espírito corporativista. Até o advento do órgão, os tribunais, especialmente os estaduais, agiam na mais completa autonomia e a usavam muitas vezes mal, já que não havia nenhum conselho sobre eles. A previsão constitucional de criação do CNJ representou uma limitação evidente à autonomia desses tribunais, que frequentemente buscam diminuir a ação do Conselho, alegando uma autonomia que foi retirada com a Emenda Constitucional 45. Essa autonomia não mais existe como antes. Além disso, o CNJ foi responsável pela criação de normas comuns a todo o Poder Judiciário. A magistratura finalmente passou a ser entendida como nacional. A obra do CNJ nesses 10 anos foi de grande importância para a população brasileira quando se combateu o nepotismo no Judiciário, se definiu regras relacionadas ao teto na magistratura, quando se previu regras uniformes em relação ao concurso público e também se editou normas sobre obras no Judiciário. A atividade do CNJ foi bastante significativa porque buscou aprimorar o Judiciário para o cidadão brasileiro.
ConJur — No voto em que o Supremo garantiu ao CNJ autonomia para investigar os juízes, o ministro relator Gilmar Mendes disse que até pedras sabiam que as corregedorias não funcionavam quando se tratava de investigar os próprios pares. Houve uma mudança nessa realidade ou as corregedorias ainda não investigam como deveriam?
Saulo Casali — As corregedorias hoje são submetidas ao Conselho. Elas funcionam muito melhor do que antes. Nós devemos ter muito cuidado e afastar os argumentos de quebra de autonomia de tribunais e de existência de limites ao controle, porque essas alegações visam esconder ou dificultar o controle feito pelo CNJ em prol da melhor prestação jurisdicional. São teses que devem ser afastadas, porque todos devem obediência à Constituição e aos seus princípios.
ConJur — O que o senhor propõe para melhorar a atuação dessas corregedorias estaduais?
Saulo Casali — A adoção de medidas de gestão estratégica e a percepção de que os processos disciplinares não podem dormitar indefinidamente. As corregedorias devem cumprir a sua função institucional. O CNJ tem se aproximado das corregedorias com o objetivo de implantar essa visão de melhoria de serviços e isso tem rendido frutos hoje em dia.
ConJur — Como avalia a implantação do PJe no país?
Saulo Casali — Houve muita resistência em relação à implantação do processo judicial eletrônico, porque o CNJ encontrou tribunais que já haviam contratado sistemas privados e caríssimos. No caso da Bahia, havia um sistema que a mera manutenção custava cerca de R$ 1 milhão por mês. O PJe é um sistema gratuito e tem várias vantagens. A crítica que a Ordem dos Advogados do Brasil dirigiu ao PJe de que não haveria condições técnicas de implantação é vazia, porque o PJe é implantando onde os requisitos são atendidos.
ConJur — Alguns magistrados reclamam que gastam mais tempo resolvendo atividades burocráticas do que com tempo processual. Como solucionar este problema?
Saulo Casali — Há um certo exagero nisso. Mas algum tempo se perde com a gestão judiciária. A solução, a meu ver, é a automatização dessas rotinas. A adoção de um sistema processual único será muito importante, porque vai permitir que a rotina seja automatizada e as soluções que antes tinham que ser prestadas de forma autônoma passam a ser prestadas automaticamente. Acredito que com a implantação efetiva do processo judicial eletrônico no país desaparecerá a necessidade da prestação de informação autônoma individual por parte do magistrado, já que todos os dados serão colhidos diretamente e automaticamente do sistema.
ConJur — A competência do CNJ deveria ser ampliada?
Saulo Casali — Me parece que o legislador, em 2004, ao atribuir ao CNJ o controle administrativo e financeiro do órgão do Judiciário, já deu um escopo bastante amplo ao Conselho. O que não se pode é essa competência ser restringida. A proposta da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que foi recentemente submetida aos ministros do Supremo Tribunal Federal por sua presidência, prevê indevidamente uma limitação a essa competência e contraria o texto da Constituição Federal. Por exemplo, não se pode excluir a Justiça Eleitoral do controle por parte do CNJ quando se tratar de matéria que não diga respeito exclusivamente às eleições. Não faz sentido essa restrição. Não se pode prever, como fez essa proposta da Loman, que o CNJ não edite atos normativos de caráter geral. Não se pode submeter previamente as deliberações do CNJ aos tribunais e somente permitir que as normas sejam editadas se forem da vontade deles. Não se pode também condicionar a pauta do Conselho à vontade de tribunais ou de associações de qualquer natureza. Então, tudo isso deve ser evitado. Afinal de contas, o Conselho tem uma missão constitucional a cumprir.
ConJur — Essas propostas que visam limitar a atuação do CNJ são inconstitucionais?
Saulo Casali — A Constituição Federal, quando especificou a competência do CNJ, não admitiu as restrições que algumas propostas pretendem realizar.
ConJur — A estipulação de metas pelo CNJ não diminui a qualidade do trabalho do juiz?
Saulo Casali — Metas só podem ser consideradas inconvenientes quando forem inexequíveis. A princípio, não se pode criticar uma meta, por exemplo, que preveja que os processos mais antigos sejam julgados com prioridade. Essa meta não é indevida.
ConJur — O CNJ é formado por 15 conselheiros oriundos de diversos órgãos. O que pensa sobre esta composição?
Saulo Casali — O número é um pouco elevado, dificultando as deliberações plenárias. Mas, o legislador fez a opção pela diversidade, o que tem sido muito salutar para o funcionamento do órgão, já que diferentes perspectivas enriquecem as discussões no plenário e permitem a adoção de soluções melhores. Acho que não se deve diminuir o número de conselheiros. É o preço que se deve pagar para garantir a diversidade.
ConJur — O tempo de mandato hoje é de dois anos. Deveria ser ampliado?
Saulo Casali — Hoje é de dois anos, podendo ser renovado por mais dois. É um tempo de mandato curto. O ideal é que fosse, como em alguns países da Europa, mais longo. Já que na prática não ocorre renovação de mandato de conselheiros oriundos da magistratura. Não houve nenhuma renovação dos conselheiros vindos da magistratura desde a criação do CNJ. O ideal é que fosse um período de três a quatro anos de mandato sem renovação.
ConJur — O afastamento dos ex-presidentes do Tribunal de Justiça da Bahia, os desembargadores Telma Britto e Mario Alberto Hirs, mostrou a crise do Judiciário baiano para o país. O CNJ deve afastar o magistrado quando há suspeita de corrupção?
Saulo Casali — Esse tema não pode ser respondido de maneira genérica sem analisar cada caso concreto. É necessário que se avalie o tipo de prática realizada pelo magistrado e o tipo de risco a administração pública existente. Quando há um afastamento, é porque o CNJ, na ocasião, entendeu presente esse risco.
ConJur — A Loman precisa de uma reforma?
Saulo Casali — Sim. Essa atualização é absolutamente necessária. Não há dúvida de que o texto precisa ser revisto. Mas não se pode fazer a revisão para dar voz àqueles que pretendem restringir ou esvaziar o CNJ ou recriar uma autonomia para os tribunais que já não existe como antes. E nem dar vazão ao corporativismo exagerado.
ConJur — Neste ano, o Conselho aprovou cota de 20% para negros em concursos para o Judiciário. O que achou dessa decisão?
Saulo Casali — O Conselho implementou no Judiciário o que já existia em relação ao Executivo. Já existia uma legislação que criava essa ação afirmativa no Executivo. Ações afirmativas são políticas que devem ser continuadamente revistas, já que perpassam por situações fáticas que se transformam com o tempo. Neste momento, entendeu-se como pertinente a aprovação de uma cota e neste percentual. Eu votei a favor do ato normativo que aprovou as cotas para concursos da magistratura, mas acho que é uma medida provisória e que deverá merecer um aperfeiçoamento futuro.
ConJur — O Supremo validou a norma que cria audiências de custódia. Os juízes conseguirão atender à demanda?
Saulo Casali — Existem dificuldades materiais que já foram levantadas em alguns lugares, e o desafio deve encontrar respostas na utilização de meios tecnológicos que já estão disponíveis. A tecnologia permite vencer a distância e superar os inconvenientes de uma custódia por tempo excessivo.
ConJur — O senhor foi a favor da PEC da Bengala?
Saulo Casali — Nós tentamos, no plenário do Conselho Nacional de Justiça, pautar uma nota técnica contrária a PEC da Bengala. Mas não foi possível na atual gestão a inclusão em pauta desta matéria. Um grupo de conselheiros no qual eu me incluía não entendia ser benéfica ou conveniente adoção do aumento de idade para aposentadoria. O ideal em relação ao Supremo seria a composição diversificada como em cortes constitucionais na Europa, onde os cargos são ocupados por mandatos entre nove e doze anos. Lá se tem uma formação mista a fim de permitir um funcionamento heterogêneo e independente.
ConJur — As associações de magistrados têm defendido a eleição direta para Mesa Diretora de tribunais. O senhor concorda com essa proposta?
Saulo Casali — É uma proposta polêmica, porque há aspectos positivos e negativos. Positivo porque permite a expressão da vontade da maioria, e negativo porque candidaturas com viés corporativo podem ser incentivadas. De modo que, talvez, não se possa chegar a nenhuma conclusão definitiva já que tudo depende basicamente da consciência dos eleitores.
ConJur — Os tribunais brasileiros são democráticos internamente?
Saulo Casali — Os tribunais decidem por maioria. A presunção é de que a decisão foi tomada democraticamente considerando o corpo de integrantes do tribunal.
Rodrigo Daniel Silva é jornalista.
Revista Consultor Jurídico, 4 de outubro de 2015, 6h38
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