segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O mundo do Direito tem seus Aldrovandos Cantagalos de Monteiro Lobato



EMBARGOS CULTURAIS



Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy


Aldrovando Cantagalo é curioso exemplo da galeria de personagens de Monteiro Lobato. De um modo muito singular, Aldrovando é o mote literário com o qual o escritor paulista também criticou o formalismo e a mediocridade dourada daqueles que pouco ligam para o conteúdo e para as ideias, mas que insistem, com volúpia, na pureza das formas. São os amantes da crase certa, do hífen bem colocado, das mesóclises e das outras óclises. Aldrovando Cantagalo é o caricato gramático putativo do conto “O Colocador de Pronomes”.

Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, São Paulo, em 18 de abril de 1882. Por imposição do avô, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1900. O desinteresse de Monteiro Lobato pelo curso de Direito era total. Parece que Lobato admirou apenas um professor, Pedro Lessa, que lecionava Filosofia do Direito.

Literato até a medula, Lobato bacharelou-se pelas Arcadas, foi promotor, atuou como advogado. Em inúmeras passagens a desilusão de Monteiro Lobato para com o Direito, a Justiça, a profissão do homem de leis, é de todo evidente. Monteiro Lobato também simboliza o livro, foi dos maiores defensores do mercado editorial brasileiro. Escreveu, editou, traduziu. Sempre com um livro debaixo do braço, continuamente lendo, e escrevendo, Lobato nos conta que lia maquinalmente, delirantemente.

A rebeldia e o ceticismo marcaram firmemente suas oposições. Lobato tinha mesmo de ser contra o jurídico e contra todo o tipo de formalidades, afinal ele era mesmo um oposicionista de tudo que tem gosto oficial. Inclusive a ortodoxia dos gramáticos de muitas regras e poucas ideias não fora por ele poupada. É do que trato neste pequeno excerto.

No conto “O colocador de pronomes” essa posição é bem definida. É a estória de Aldrovando Cantagalo. Os pais de Aldrovando, inventou Lobato, se casaram por causa de um problema com o pronome “lhe”. Isto é, quando o pai de Aldrovando pediu ao avô do personagem uma das filhas em casamento, um uso equivocado do pronome fez com que o pai de Aldrovando se visse constrangido a se casar com a irmã que não queria. O problema estava na beleza, era uma questão de atração estética, ainda que sem a percepção moral e histórica de Jacó, entre Lia e Raquel, por quem por sete anos trabalhou para Labão, como se lê na passagem veterotestamentária.

Um problema estético e platônico que se resolveu negativamente nos planos da gramática, dos pronomes, retos, oblíquos (combinados ou não), reflexivos, de preposições justapostas, que não alcançam problemas de sintaxe e de estilo, e muito menos da órbita dos negócios práticos ou dos estímulos do amor. A mãe de Aldrovando caiu nos braços do pai, por um esbalho pronominal: o “lhe” no pedido de casamento teve como resultado a irmã mais próxima, em detrimento da irmã verdadeiramente desejada. Assim, pelo menos, foi o que decidiu o pai das moças. Nesse caso, não valeu a parêmia “Caesar non super grammaticos”, vale dizer, não se respeitou a suprema lei que nos dá conta de que mais vale a gramática do que a autoridade do chefe. O chefe aqui colocou os pronomes onde bem entendia. Acrescentou-se mais uma norma à regra fundamental das línguas, que é a lei do menor esforço.

Aldrovando viveu marcado com o problema do pronome, até porque um pronome mal colocado selou um casamento, e talvez por esse fato é que freudianamente passou a vida corrigindo erros de gramática, todas as horas, em todos os lugares, em relação a todas as placas e sinais de rua e de lojas, e quanto a tudo e a todos que ouvia. Antes de morrer pretendia deixar uma gramática definitiva, explicando todos os problemas da língua, com o que todos as questões sérias do idioma (e da vida) estariam enfrentadas e resolvidas. Aldrovando salvaria o mundo das impropriedades da língua escrita e falada. Cumpria uma missão. Dedicou sua vida à boa colocação dos pronomes e crases e acentos e desinências.

Já idoso, Aldrovando recebeu do editor os originais desse livro maravilhoso (e necessário) para corrigir; para seu desespero, verificou que todos os acentos estavam trocados, os pronomes equivocados e toda a ortografia não passava de um interminável engano, por descuido do corretor. O esforço todo resultara em nada. O susto e a desilusão apressaram seu fim.

A ironia de Lobato pode ser apreendida com a nota que ele acrescentou ao conto, na primeira edição. Apresentou o espólio do falecido Aldrovando, no qual havia numerosos originais, obras inéditas, de importância superlativa. Havia um estudo sobre o acento circunflexo, em três volumes. Aldrovando deixou um importantíssimo estudo sobre a vírgula no hebraico, que chegava a cinco volumes. Deixou também um valioso texto sobre a psicologia do til, em apenas dez volumes. Lobato registrou igualmente que Aldrovando deixou um estudo valioso sobre a crase, vazado em dez volumes. Muita cultura, muita erudição. Segundo Monteiro Lobato essa obra toda, importantíssima, pesava, “ por junto, 4 arrobas, que renderam, vendidos a 3 tostões o quilo, 18 mil réis. ”

Lobato recriminava o excesso de forma e o niilismo do conteúdo. Ao leitor, informou que não sabia do que Aldrovando morreu, e também não importava ao caso. Para Lobato, o que importava era proclamar aos “quatro ventos que com Aldrovando pereceu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes”, encomendando “paz à sua alma”.

O Aldrovando Cantagalo do Direito seria talvez o perseguidor de prescrições, o obcecado com decadências, o colecionador de naturezas jurídicas (inclusive o tópico problema da natureza jurídica do cadáver), o classificador incansável dos tipos de Constituições e de bens fungíveis e infungíveis que há, o farejador das dissemelhanças entre decisões constitutivas e declaratórias, entre normas de forma e de fundo, entre efeitos ex-tunc e ex-nunc, entre condições resolutivas, potestativas e suspensivas, erros substanciais, reais e obstativos, nulidades e anulabilidades, a par do relevantíssimo problema das exceções, especialmente de pré-executividade em matéria fiscal, no sentido de que seriam enfrentadas por recursos de apelação ou por agravos.

O Aldrovando Cantagalo do Direito viveria no nosso conturbado “imaginário dos juristas”, cujo cotidiano que vivemos é marcado por um paradoxo, substancialmente contraditório, no qual uma ideologia conservadora reafirmaria a harmonia no mundo, num contexto de contradições que seriam absolutamente periféricas, como alertado por Roberto de Aguiar, no mais lúcido texto de crítica de ideologia jurídica até hoje escrito[1].

O Aldrovando Cantagalo do Direito seria talvez o organizador de algumas questões de concurso, que ele mesmo corrigiria, cujos recursos julgaria e sobre cujas vidas decidiria, ou seria quem sabe algum causídico embalado no rubi, sempre contribuindo para a produção de tantos e quantos e muitos outros Aldrovandos Cantagalos que há, e que perambulam pelos fóruns, repartições e cátedras da vida, escolhendo quem vai para a cadeia, dando a cada um o que é seu, redigindo manifestos e pareceres e petições, ensinando os poucos autores estrangeiros que leu (e menos ainda os que compreendeu), dizendo que faculdades são boas ou não, e fazendo justiça, ainda que caia o mundo.



[1] Conferir, Roberto A. R. de Aguiar, O Imaginário dos Juristas, in Amilton B. de Carvalho (org.), Revista de Direito Alternativo, São Paulo: Acadêmica, 1993, pp. 18-27.


Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).



Revista Consultor Jurídico, 17 de janeiro de 2016, 8h00

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