Imagine que você, na condição de defensor público, se depare com um assistido acusado de praticar o crime de lesão corporal contra um homossexual, dizendo que somente agrediu a vítima porque ela passou por ele com “trajes inadequados” e insinuou um flerte, razão pela qual teria agido em defesa da própria honra. Se o exemplo lhe parece um pouco distante, imagine uma situação frequente na Defensoria Pública: o assistido, pronunciado e submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri por ter matado a sua mulher, alega que praticou o crime para defender a própria honra, pois teria encontrado a vítima lhe traindo com um vizinho.
O defensor público, diante desses casos hipotéticos apresentados, poderia sustentar em favor do assistido a tese da legítima defesa da honra? Se a resposta for positiva, questiona-se: ao proceder dessa forma, não estará o defensor público assumindo a esquizofrênica[1] postura de promover os direitos humanos sustentando teses que reproduzem e aprofundam violações a direitos humanos? Se a resposta àquela pergunta for negativa, questiona-se: é possível estabelecer um “controle ético ou ideológico do argumento”? Sendo mais claro: o defensor público pode ser proibido de sustentar alguma tese? Vejamos.
Antes de prosseguir, tenhamos em conta que o assunto não é apenas polêmico na prática, mas também complicado no plano teórico, envolvendo, inclusive, um confronto entre objetivos da Defensoria Pública: de um lado, a primazia da dignidade da pessoa humana e a prevalência e efetividade dos direitos humanos (artigo 3º-A, I e III[2]), que certamente exigem da Defensoria uma atuação comprometida com os direitos humanos; e de outro, a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (artigo 3º-A, IV), que reclamam uma atuação comprometida com os interesses do assistido. O mesmo confronto se verifica entre funções institucionais da Defensoria, havendo, de um lado, a função de promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico (artigo 4º, III) e, de outro, a função de promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados (artigo 4º, X).
Não simpatizo com a ideia de censurar ou de proibir que o defensor público sustente determinada tese em favor de seu assistido. A liberdade de argumento é indissociável de uma defesa criminal efetiva. Assim, qualquer espécie de controle ético ou ideológico sobre a atuação do defensor público deve ficar no plano da recomendação, e não no da proibição, e isso porque, embora existam algumas teses que reproduzam concepções contrárias aos direitos humanos, a possibilidade de limitar o discurso defensivo — em questões de gênero, por exemplo — pode encontrar terreno fértil no Brasil e ser ampliada para outros temas menos sensíveis, numa tentativa de convergir a defesa criminal com valores comunitários morais ou éticos.
Se o controle ético ou ideológico da defesa criminal não pode impedir a sustentação de determinado argumento, tal conclusão não veicula, porém, uma obrigação de o defensor público necessariamente encampar a fala do acusado, já que nem sempre haverá uma vinculação entre as defesas técnica e pessoal no processo penal, sendo o defensor e o acusado, conforme adverte Claus Roxin, reciprocamente autônomos[3]. Por isso, deparando-se o defensor público com o requerimento de algum assistido para que sustente determinada tese contrária aos direitos humanos (a legítima defesa da honra em casos de feminicídio, por exemplo), entendo que o defensor poderá se valer de sua prerrogativa de deixar de patrocinar a ação (no que se insere também a defesa) por considerá-la manifestamente incabível ou inconveniente aos interesses da parte (artigos 44, XII, 89, XII, e 128, XII, da LC 80/94).
A Constituição Federal incumbiu à Defensoria Pública a promoção dos direitos humanos (artigo 134, caput), de modo que é possível extrair dessa função, segundo a lição de Renata Tavares da Costa, “uma obrigação positiva, ou seja, de assegurar o efetivo acesso de gozo de tais direitos, bem como uma posição negativa, qual seja, de abster-se de determinadas atitudes que aprofundem a violação destes direitos”[4]. Pode ser que, em algumas ocasiões, a efetividade da defesa criminal esteja condicionada justamente a um discurso contemporâneo e inteligente que conduza, por exemplo, um caso de violência de gênero a partir da diminuição da culpabilidade do acusado diante de sua formação moral num ambiente discriminatório, e não a partir de uma sugestionada culpa da vítima[5].
A Defensoria é responsável pela construção de sua história e, mais do que isso, pela consolidação de sua identidade. Pode ser apenas (mais) uma instituição no cenário jurídico do país, e assim contribuir para a manutenção do status quo, mas pode, também, representar o novo, abrir o armário das ideias eticamente comprometidas com os direitos humanos e colocar na gaveta tudo aquilo que produziu e que ainda produz discriminação, dor e sofrimento.
[1] A expressão é de Renata Tavares da Costa: “Isso, em hipótese alguma, pode significar uma limitação de atuação no campo da defesa, que deve ser amplo, mas efetivamente no reconhecimento de que esta defesa deve ser ética e feita dentro dos parâmetros institucionais previstos na Constituição. Ou seja, o defensor não pode ter a esquizofrênica posição de promover os direitos humanos e, ao mesmo tempo, sustentar teses que sustentem tais violações de direitos” (Os direitos humanos como limite ético na defesa dos acusados de feminicídio no Tribunal do Júri. In: XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Livro de teses e práticas exitosas. Curitiba, 2015, p. 207).
[2] Esse e os demais dispositivos citados no parágrafo são da LC 80/94.
[3] ROXIN, Claus. Pasado, presente y futuro del Derecho Procesal Penal. Sante Fé: Rubinzal-Culzoni, 2007, p. 58. No mesmo sentido, afirma Fernandes que “(...) o defensor é independente não só do tribunal e do Ministério Público, mas também do seu próprio cliente” (FERNANDES, Fernando. O Processo Penal como Instrumento de Política Criminal. Coimbra: Almedina, 2001, p. 368).
[4] Os direitos humanos como limite ético na defesa dos acusados de feminicídio no Tribunal do Júri. In: XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Livro de teses e práticas exitosas. Curitiba, 2015, p. 207.
[5] Mais uma vez cito o instigante trabalho de Renata Tavares da Costa, apresentado com muito entusiasmo no XII Congresso Nacional de Defensores Públicos, em que ela desenvolve a tese do homem como “vítima cultural”: “E aqui reside o grande argumento para os Defensores que no júri estão para a defesa daqueles que perpetraram a violência extrema contra a mulher: se essa violência é resultado de séculos de discriminação, é justo ou proporcional imputá-la somente ao sujeito que está sentado no banco dos réus? (...) Neste sentido é que o argumento da legítima defesa da honra nos casos do feminicídio no Tribunal de Júri deve ser substituído pelo argumento da cultura de discriminação produzida numa série de omissões estatais que fazem o agressor uma espécie de vítima cultural” (Os direitos humanos como limite ético na defesa dos acusados de feminicídio no Tribunal do Júri. In: XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Livro de teses e práticas exitosas. Curitiba, 2015, p. 207).
Caio Paiva é defensor público federal, especialista em ciências criminais, professor e coordenador do Curso CEI. É autor do livro “Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro” e coautor de “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”.
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Revista Consultor Jurídico, 5 de janeiro de 2016, 8h05
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