terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Diatribes ao Código de Processo Civil de 2015 (segunda parte)






Retomo análise sobre algumas questões societárias fixadas no novo Código de Processo Civil, iniciada na última coluna.

9. O CPC/2015 cuidou de regular, como visto, a indevidamente denominadaação de dissolução parcial de sociedade, mas nada dispôs a respeito da ação de dissolução de sociedade propriamente dita, isto é, da destinada à dissolução completa (total). Essa omissão é gravíssima, visto que esse código revogou as disposições que se continham no CPC/1939 (arts. 655 a 674), mantidas em vigor pelo CPC/1973 (art. 1.218, inc. VII)[1]

10. Nesses dispositivos era previsto um procedimento expedito, necessário para evitar que a sociedade permanecesse no mercado, se dissolvida estivesse ou se dissolvida devesse estar. Refiro-me aqui à necessária distinção entre a dissolução de pleno direito e a dissolução contenciosa.

No regime do Código de 1939, essa distinção era nítida: a primeira era decidida por ação declaratória que se limitava a um pronunciamento judicial asseverando estar dissolvida a sociedade pela ocorrência da causa prevista na lei (art. 656, § 1º); a outra era decretada por sentença de natureza constitutiva, uma vez feita a prova de que a situação fática exigida tinha ocorrido, o que demandava um rito próprio que culminava numa audiência de instrução e julgamento, a não ser que as alegações do requerente restassem desde logo comprovadas (art. 656, § 2º).

O Código Civil, em boa hora, dispensou a ação declaratória para as causas de dissolução ipso jure, ao estabelecer em seu art. 1.036, parágrafo único, que, “dissolvida de pleno direito a sociedade, pode o sócio requerer, desde logo, a liquidação judicial.” Essa é a única disposição que continuará a viger, após a entrada em vigor do CPC/2015.[2]

11. Como consequência, a ação de dissolução contenciosa de sociedade ficará submetida ao procedimento comum (CPC/2015, art. 1.046, § 3º). Isso significa que, ao receber a inicial, o juiz designará “audiência de conciliação ou mediação, com antecedência mínima de 30 dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 dias de antecedência” (art. 334), para só então, frustrada a composição amigável, fluir o prazo de 15 (quinze) dias conferidos à defesa (art. 335, inc. I).

O juiz só proferirá sentença se não houver provas a produzir ou ocorrer a revelia (art. 355), visto que, do contrário, terá de sanear o processo e, se não houver prejudiciais, designar nova audiência – esta, de instrução e julgamento (art. 357 e incisos). Não é preciso prosseguir para se ter certeza de que o procedimento comum é totalmente inadequado para tal ação.

12. É caso de se sustentar que a omissão quanto ao regramento da dissolução total leva à aplicação das disposições atinentes à dissolução parcial? Uma interpretação construtiva, visando a evitar a espera de uma audiência de conciliação, totalmente inadequada, permite ao intérprete, a meu ver, invocar a aplicação do art. 601 do CPC/2015, de forma que, proposta a ação dissolutória, a sociedade e os sócios seriam citados para, em 15 dias, concordar com o pedido ou apresentar contestação. Em razão disso, incidiria o disposto no art. 603, segundo o qual, “havendo manifestação expressa e unânime com a dissolução, o juiz a decretará, passando-se imediatamente à fase de liquidação” (caput); contestado o pedido, só então passaria a ser observado o procedimento comum (§ 2º). 

Tal solução, contudo, abre portas para uma inevitável polêmica, porque afasta o cumprimento do que está expressamente disposto no já referido art. 1.046, § 3º. De mais a mais, exige o consentimento unânime, o que não acontece com facilidade em sociedades com vários sócios. Afora a insustentável exigência da presença de todos os sócios e da sociedade na relação processual, acima já criticada, melhor seria que o legislador de 2015 mantivesse hígida a previsão do Código de 1939, que determinava, quanto à dissolução de pleno direito, a oitiva dos interessados em 48 horas e, ato contínuo, a prolação da sentença.

De todo modo, tal procedimento não faz sentido quando se trata de pedido de autodissolução, feito pela sociedade. Se a sociedade, em deliberação majoritária, decide dissolver-se por ocorrência de causa que considera consumada (CC, arts. 1.071, VI, e 1.076, I; Lei 6.404/1976, art. 136, X), não cabe aos sócios, vencidos na deliberação, buscar obter do Poder Judiciário o reconhecimento ou a proteção de um direito que não têm. 

Por outro lado, não se deve confundir aquilo que o CPC/2015 confunde. É preciso ter em conta que se está a lidar com dois institutos que não se identificam, ou seja, a dissolução e a liquidação. A dissolução é o momento, como a morte; a liquidação é a situação jurídica que se estabelece após a dissolução englobando o processo ou o conjunto de atos destinados a pôr fim ao patrimônio social e a extinguir a pessoa jurídica que pela sociedade era constituída. 

E aí se vê a impossibilidade de aplicação dos dispositivos do CPC/2015 que tratam da denominada “fase” de liquidação da sentença de dissolução parcial à liquidação da sentença de dissolução total. As situações são profundamente distintas. A ação dissolução total visa à cessação da atividade social com extinção da sociedade e, bem assim, de todos os seus direitos e obrigações, ao passo que a ação de dissolução parcial – melhor dizendo, a ação de liquidação da quota do sócio que se desliga da sociedade – tem por escopo, exclusivamente, retirar do patrimônio social a fatia a que tem direito esse sócio, com a manutenção do restante desse patrimônio na atividade social da sociedade, que continuará a agir com e por seus demais sócios. 

Assim, na dissolução (total) não há avaliação alguma nem necessidade de nomeação de perito para apurar haveres por não se buscar a determinação do valor da quota de participação de nenhum dos sócios; nela é designado um liquidante (isto é, um administrador) para ultimar as negociações pendentes, realizar todo o ativo, pagar o passivo e distribuir as sobras aos sócios. Nesse propósito, dá-se a liquidação total do patrimônio social. Consequentemente, não há fundo de comércio a considerar, valor de intangíveis etc.; tudo se resolve com a realização do ativo (isto é, com a conversão em dinheiro de contado dos bens, móveis, imóveis, corpóreos e incorpóreos), que é o modo próprio de determinação de todos os preços, a não ser que os sócios, reunidos, tomem deliberação diversa. 

Esse escopo não se viabiliza pela aplicação das disposições dos arts. 602-609 do CPC/2015, que objetivam conferir ao sócio o valor daquilo que corresponder à parcela do patrimônio social que lhe cabe. Tal valor é determinado mediante verificação das contas e avaliação dos componentes do ativo, quando houver, para ser pago ao sócio, sem que a sociedade necessite de um administrador (liquidante) para ultimar os negócios pendentes, que, em regra, não sofrem solução de continuidade. 

13. À falta de qualquer norma que ampare um processo de dissolução e liquidação total da sociedade, o magistrado deve orientar-se pelas disposições do Código de 1939? Isso, infelizmente, não é possível, visto que não é dado ao intérprete restaurar lei revogada. Também não se revela factível a aplicação dos dispositivos da Lei Falimentar sobre a realização do ativo e pagamento do passivo, dado seu caráter cogente com regras destinadas à satisfação dos direitos de terceiros (credores), cujos interesses são antagônicos aos da sociedade e de seus sócios.

A única solução, a meu ver, está em serem observadas as normas sobre liquidação extrajudicial contidas no Código Civil. Aliás, nesse Código contém-se a previsão de que, ocorrendo uma causa de dissolução (total), segue-se a liquidação extrajudicial ou judicial – esta última com a realização de assembleias presididas pelo juiz (art. 1.112), observado o que a respeito dispõe a lei processual (art. 1.111).

Como, a partir de 2016, não haverá lei processual a respeito, a solução será seguir as regras do Código Civil, com a designação do liquidante, consoante dispuser o contrato social, ou por eleição dos sócios (art. 1.038) para dar cumprimento aos seus deveres (art. 1.103). Além de concluir as negociações pendentes, o liquidante converte todos os bens em dinheiro, paga os credores da sociedade e procede ao rateio das sobras, independentemente de interferência judicial, uma vez que esta, como no Código de 1939, é bastante restrita.

Cabe aos sócios, também por deliberação em assembleia e segundo suas conveniências, determinar rateios por antecipação da partilha à media em que se apurem os haveres sociais. Ao juiz é conferida a função de presidir as assembleias, dirimir o empate e, ao cabo, julgar as contas do liquidante. Podem existir ocasionalmente outras intervenções judiciais, como, por exemplo, a relativa à destituição do liquidante (art. 1.038, § 1º, inc. II).

A função do magistrado na dissolução é a de declarar dissolvida a sociedade na presença de causa dissolutória ipso jure ou de decretá-la, mediante instrução, na ocorrência das demais causas. Não é de se imprimir à liquidação da sociedade foros de procedimento contencioso, mas de dar liberdade aos sócios para definir seus rumos e problemas, validar as deliberações que tomarem em reunião ou assembleia e, para ser breve, tomar as contas do encarregado de realizá-la ao final. 

Penhora de quotas de sócio

14. Outro problema bastante grave está na regulação da penhora de quotasde sócio de uma sociedade por quem é seu credor. Ao invés de determinar que as quotas sejam avaliadas e levadas a leilão, como qualquer outro bem do devedor, o CPC/2015 faz malabarismos despropositados, uns afrontando o próprio sistema processual, outros criando obstáculos quase intransponíveis para o credor, e abre espaço para novas demandas judiciais, que poderiam ter sido evitadas. 

De fato, uma vez realizada a penhora de quotas sociais, referido Código determina que a sociedade, em prazo não superior a três meses, apresente balanço especial, na forma da lei, destinado à fixação do valor da quota ou quotas penhoradas e as oferte aos demais sócios, com observância do que dispuser o contrato social acerca do direito de preferência; se os sócios, a tanto intimados por via da sociedade (arts. 799, inc. VII e 876§ 7º), não se interessarem pela aquisição ou a sociedade não as puder adquirir, esta fica obrigada a depositar em juízo o valor apurado, em dinheiro (art. 861 e §§ 1º e 2º).

Se a sociedade não puder ou não quiser promover a liquidação da quota do sócio devedor, o juiz, a pedido dela ou do credor exequente, pode nomear “administrador” para tal fim, o qual tem de apresentar a forma de liquidação para aprovação judicial. O prazo de três meses antes referido pode ser ampliado pelo juiz da execução se o pagamento das quotas superar o valor do saldo de lucros e reservas, exceto a legal, ou colocar em risco a estabilidade financeira da sociedade (§ 4º). Também é prevista a possibilidade de ser determinado o leilão judicial das quotas, caso não haja interesse dos demais sócios e da sociedade em adquiri-las e a liquidação seja excessivamente onerosa (§ 5º). 

Essas disposições revelam-se despropositadas por criarem, no seio do processo de execução, um procedimento formal e complicado para o credor satisfazer seu crédito, o qual poderia ser perfeitamente evitado. Efetivamente, penhoradas quotas sociais, a sociedade fica obrigada a proceder a uma prévia apuração de haveres (determinação do valor da quota); sujeita-se, além disso, a uma eventual administração judicial e aos ônus daí decorrentes e, ainda, a oferecer aos demais sócios as quotas do devedor, que a ela não pertencem e assim por diante. Esses são alguns dos comandos incompreensíveis e estranhos aos princípios processuais.

A isso acresce nada ser previsto a respeito do procedimento a ser observado pela sociedade para concretizar essas determinações. E a apuração pela sociedade do valor das quotas de seu sócio, tirante a mais que provável parcialidade, irá possibilitar ao sócio e ao seu credor o direito de impugná-la, porque, embora não prevista a hipótese, incide o preceito constitucional que assegura a qualquer cidadão pedir proteção judicial contra qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito e, bem assim, o que confere a todos o amplo direito de defesa (CF, art. 5º, inc. XXXV e LV).

Isso tudo deveria ser eliminado para, desde logo, incidir o preceito contido no § 5º do mencionado art. 861. Tal previsão normativa, porém, conquanto seja a única adequada, só tem lugar quando se frustrar o procedimento de liquidação ali regulado. É que, prevista a possibilidade de constrição judicial das quotas sociais, tem-se a apreensão de bens concretos e atuais do devedor, as quais, como quaisquer outros, podem sujeitar-se à avaliação e ser leiloados, sem necessidade alguma do tratamento diferenciado, para resolver plenamente a execução.

Efetivamente, levadas a leilão as quotas do sócio devedor, os demais sócios e a sociedade (atendidas as condicionantes legais) teriam possibilidade de licitar e de ter assegurada, nessa oportunidade, a preferência de aquisição, se prevista no contrato social. Não exercida a preferência ou, na ausência de previsão legal ou contratual a respeito, sendo as quotas arrematadas por terceiro estranho ao quadro social, a ele seriam transferidos, desde logo, os direitos patrimoniais por elas representados (não os pessoais, intransmissíveis por esse meio) e a execução restaria encerrada. Assim, a apuração de haveres só apareceria se o arrematante não quisesse ser ou não fosse admitido como sócio.

O legislador bem poderia ter adotado a orientação introduzida pela reforma de 2004 no Código Civil italiano que, disciplinando o procedimento na penhora de quotas, estabeleceu que a determinação judicial de venda das quotas penhoradas deve ser comunicada à sociedade e que, quando referidas quotas forem adjudicadas, a sociedade pode obstá-la apresentando outro adquirente que ofereça o mesmo preço nos dez dias subsequentes (art. 2.471).

15. Ainda nessa matéria há a condicionante de a sociedade só poder adquirir as quotas penhoradas de seu sócio com recursos que não impliquem redução do seu capital social, utilizando-se de reservas disponíveis (CPC/2015, art. 861, § 1º). Mais adiante, tratando da dilação do prazo para pagamento das quotas, o § 4º desse mesmo artigo, admite-a se o montante desse pagamento “superar o valor do saldo dos lucros ou reservas, exceto a legal, e sem diminuição do capital social ou por doação”. 

A primeira observação é de que a sociedade não precisa dar satisfação a ninguém que não seja sócio quanto aos recursos que utilizará para adquirir as quotas do sócio devedor. Trata-se de matéria interna corporis que só aos sócios é dado impugnar. O que pode impedir uma sociedade de fazer um empréstimo bancário para comprar quotas, se não dispuser de recursos (lucros ou reservas) para fazê-lo, desde que seja essa a solução que lhe convenha adotar? 

A segunda observação é quanto à doação. A oração, destacada acima entre aspas, é incompreensível. Percebe-se que foi cópia fiel de parte da regra contida no art. 30, § 1º, letra “b”, da Lei das S. A., colada no texto do art. 861, § 4º, inc. I, do CPC 2015, sem a percepção de que não guarda sentido algum com o que ali é previsto. 

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).



[1] O Código de 1939 havia seguido a orientação prevalecente de sua época, segundo a qual dissolução e liquidação eram um só fenômeno. A respeito, TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE, que considerava inútil o conceito de dissolução, preferindo eliminá-lo no anteprojeto do Dec.-lei 2.627/1940, para determinar, simplesmente, as causas pelas quais a sociedade entrava em liquidação (Sociedade por ações. 2ª. ed., v. 3, n. 713, p. 113-14. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1959).


[2] Como o art. 1.036, parágrafo único do Código Civil dispensou a ação declaratória de dissolução para as causas de dissolução de pleno direito, entendo que ele revogou o § 1º do art. 656 do CPC/1939; consequentemente, o CPC/2015, ao revogar o de 1973 e as disposições do CPC/1939 que seu art. 1.218 mantivera em vigor, não apanhou a regra do mencionado art. 656, § 1º, por já estar revogada.

Alfredo de Assis Gonçalves Neto é advogado e professor titular aposentado de Direito Comercial da Universidade Federal do Paraná.



Revista Consultor Jurídico, 25 de janeiro de 2016, 8h04

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