segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Diatribes ao Código de Processo Civil de 2015 (primeira parte)





Uma séria preocupação leva-me a apresentar aos obstinados estudiosos do Direito, de modo sucinto, algumas questões pontuais que me sobressaltam em matéria de conflitos societários, suficientes, ao que imagino, para recomendar a revisão de várias disposições do Código de Processo Civil de 2015, atualmente em período de vacatio legis.

Antes de tudo, porém, devo dizer que as observações a seguir são evidenciadas pela militância na advocacia, que revela um Código com normas inadequadas para a atualidade, alheias à prática do dia a dia, sem a qual não há como abreviar a prestação jurisdicional. Exemplo disso está na clamorosa ausência de normas para disciplinar adequadamente o processo eletrônico, quando se sabe que, nos dias atuais, urge normatizá-lo com prioridade absoluta para evitar os desencontros que tanto têm prejudicado os jurisdicionados.

Sem me aventurar em outras questões que já vêm sendo levantadas pela crítica de muitos especialistas, quero me ater aqui à matéria processual destinada à solução de algumas questões societárias. 

1. Como sabido, o Código Civil, alterando o regime anterior, não considera mais, como causas de dissolução das sociedades em geral, a morte, a retirada e a exclusão de sócios. Trata-as, acertadamente, como causas de rompimento (resolução[1]), puro e simples, do vínculo da sociedade em relação ao sócio. No entanto, o CPC/2015 passa olimpicamente por essa correção legislativa e ressuscita a dissolução (parcial) para as referidas situações, regulando-as nos artigos 599 e seguintes, sob a rubrica de Ação de Dissolução Parcial de Sociedade.

Não estou a afirmar, evidentemente, que a ação de dissolução parcial foi extirpada de nosso ordenamento. Ela continuará existindo sempre que, prevista uma causa de dissolução (total), puder ser dissolvida parcialmente a sociedade; não tem mais lugar, porém, nos casos de rompimento do vínculo societário em relação a sócio (desligamento), que ocorrem em razão de seu falecimento, retirada ou exclusão.[2][2]

Nesse capítulo do CPC/2015 alinham-se sucessivas inconsistências, tanto na impropriamente denominada dissolução parcial (destinada a solucionar as consequências do rompimento do vínculo societário em relação ao sócio falecido, retirante ou excluído), como na dissolução propriamente dita, que será objeto de análise no próximo item.

2. O artigo 600 desse Código prestes a viger prevê a possibilidade de ser pleiteada a dissolução parcial da sociedade por quem dela não participa (incisos I, II, IV e VI) e legitima a própria sociedade para o pleito dissolutório de si mesma (incisos III e V), conquanto daí não resulte dissolução alguma. Em verdade, trata-se, consoante a lei material, de caso de liquidação da quota (isto é, liquidação da participação) do sócio morto, excluído ou que se retira da sociedade, visto que a ação não visa à realização do ativo e ao pagamento do passivo sociais; destina-se, exclusivamente, a apurar e a efetuar o pagamento dos haveres de quem dela se desliga. Não se está aqui diante de uma simples questão de linguagem, mas de adequação das disposições processuais às regras contidas no Código Civil (artigo 1.031).

3. O mesmo artigo 600, em seu parágrafo único, confere legitimidade ao “cônjuge ou companheiro de sócio cujo casamento, união estável ou convivência terminou” para “requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio.” Essa disposição, por ser de direito material, jamais deveria figurar eu um código de processo. Aliás, os problemas pessoais que um sócio possa ter com seu consorte não se devem refletir no seio da sociedade de que participa, dado o risco de desestabilizar a vida social, a do antigo parceiro e a de seus demais sócios.[3]

Exatamente por isso, o Código Civil, tendo presentes situações desse jaez, estabeleceu regra diametralmente oposta e, evidentemente, muito mais adequada, por estar afinada com o princípio da preservação da empresa: sem contemplar companheiro ou convivente, prevê, em seu artigo 1.027, que “os herdeiros do cônjuge do sócio, ou o cônjuge que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade”. Ou seja, o cônjuge que se separa do sócio, mesmo recebendo em partilha parte da quota social que este possui na sociedade, não tem direito de se tornar sócio, nem de exercer os direitos que a lei confere ao sócio. Recebe, exclusivamente, os direitos patrimoniais contidos na parte que lhe couber em tal quota. Tal norma veio sanar o problema antes referido, de modo que o fato de ocorrer a separação judicial não afeta a posição do sócio na sociedade: o direito que seu cônjuge tiver em relação à sua quota de participação na sociedade (dela usufruindo sem ser sócio), fica mantido após a separação, nada mais nem menos. Essa previsão fica revogada por disposição que deveria, simplesmente, regular o seu exercício.

4. O artigo 601 do CPC/2015 e seu parágrafo são duas pérolas: pelo fato de ter ocorrido o rompimento do vínculo societário em relação a um sócio, a sociedade e todos os demais sócios devem figurar na relação processual; dispensa-se, porém, a citação da sociedade, se todos os sócios o forem, mas, apesar de ela não ter sido chamada para o processo, sujeita-se a seus efeitos.

Essas disposições, afastados seus defeitos técnicos, talvez pudessem ser aproveitadas numa sociedade de dois sócios, visto que a lide é composta pela pretensão de um em relação ao outro, que a ela resiste, sem que a sociedade possa ter interesse diverso. Basta aparecer um terceiro sócio que as coisas mudam. Considere-se, então, uma sociedade limitada ou anônima fechada (também sujeita a essas regras cf. artigo 599, parágrafo 2º) com inúmeros sócios – e a experiência mostra que não são poucas –, uns já mortos (cujos herdeiros não se interessaram em inventariar as quotas ou ações), outros em lugares distantes da sede social ou residindo no exterior. Atribuir aos herdeiros do sócio falecido, ao sócio excluído ou ao que se retira da sociedade o ônus de citar todos é inviabilizar o exercício do seu direito de receber seus haveres – ou, mais precisamente, seu direito de ação.

Não se argumente que, nesses casos, deveria haver a citação por edital (!), como se fosse possível citar por edital pessoas que se encontram em lugar conhecido e certo ou que já não se encontram neste mundo – isso com frontal descumprimento da regra da citação editalícia, contida nos artigos 256, parágrafo 1º, e 257 do CPC/2015. A solução, evidentemente, estaria em citar a sociedade e lhe atribuir o ônus de dar conhecimento da existência da ação aos demais sócios. É, aliás, essa a regra que foi adotada para o caso de penhora de quota social que, uma vez concretizada, determina a intimação da sociedade, esta “ficando responsável por informar aos sócios a ocorrência da penhora” (CPC/2015, artigo 876, parágrafo 7º).

Penhor seguro de que tal seria a melhor solução está em que ela se afina, perfeitamente, com a função que o instituto da sociedade visa a preencher no ordenamento jurídico, qual seja a de se interpor entre o conjunto de sócios perante cada qual deles ou em relação àqueles que com quem ela, por todos eles, mantiver relações jurídicas. Ou seja, a sociedade é a totalidade de sócios agindo em bloco e, portanto, cabe-lhe apresentar-se como se fosse eles nos atos que por eles pratica ou se vincula. Se o assunto é grave, cabe à lei, nessa coerência lógica, (i) deixar que a sociedade proceda da maneira que for conveniente para seus sócios, quando houver ato que possa afetar a vida social, ou (ii) determinar que ela os informe a respeito, pelo modo legal (em reunião ou assembleia).

A citação dos sócios em uma limitada ou anônima, por outro lado, pode induzir um juiz, não afeito ao conhecimento de matéria societária, a entender que eles, por figurarem na relação processual, respondem em execução pelo pagamento dos haveres do sócio que se desligou da sociedade, em total desrespeito à própria razão de ser desses tipos societários – que restringem a responsabilidade de seus sócios, respectivamente, ao valor de suas quotas (CC, artigo 1.052) ou ao preço de emissão de suas ações (Lei das S.A., artigo 1º). No tocante à sociedade anônima, avulta o fato de que seus acionistas são aqueles que figuram no livro de registro de suas ações, que fica de posse da própria sociedade, e no qual não se contêm a qualificação dos acionistas nem seus respectivos endereços, cabendo ao autor da ação proceder a uma investigação para descobrir se ainda vivem e para levantar os demais dados de que necessita para colocá-los no processo.

De resto, a dispensa de citação da sociedade pelo fato de terem sido citados todos os sócios desconsidera sua personalidade jurídica, principalmente quando seu administrador é estranho ao quadro social; além do mais, submete a sociedade à execução da sentença, sem que tenha integrado a relação processual – tudo a desaguar num calamitoso paradoxo: os sócios que, em regra (nas companhias e nas sociedades limitadas), não respondem pelas obrigações sociais, devem todos nela estar presentes, ao passo que a sociedade, que sempre irá suportar os efeitos da coisa julgada, fica disso dispensada. Os bons processualistas, quando se aperceberem dessas incongruências, certamente ficarão atônitos com o desrespeito a comezinhos princípios da doutrina que professam.

5. O CPC/2015 mistura o processo de conhecimento (destinado a verificar se, porque e quando ocorreu o fato do qual resultou o desligamento do sócio), com o que é destinado ao seu cumprimento.

Realmente, os artigos 600 a 603 visam à obtenção de sentença declaratória ou, se for o caso, constitutiva do rompimento do vínculo societário em relação ao sócio.

Já o artigo 604 trata da liquidação (apuração dos haveres do sócio afastado) e determina que nela seja fixada a data da resolução “da sociedade”, que se defina o critério de apuração dos haveres e que se nomeie o perito. Ora, os dois primeiros temas deveriam pertencer ao processo de conhecimento, porque é nele que o magistrado colhe elementos para tais definições; só a nomeação de perito compatibiliza-se com a liquidação, que, aliás, é tratada como fase, e não como processo.[4]

O artigo 605 cuida de temas que, com a devida vênia, devem-se inserir no conteúdo da sentença dita dissolutória (datas da resolução do vínculo societário nas diversas alternativas) – o que também se dá com o artigo 606, que versa sobre matéria própria do processo de conhecimento (critério de apuração dos haveres), embora seu parágrafo único cuide da nomeação de perito, inerente à liquidação da sentença. 

6. Na sequência, vem o artigo 607 para permitir que o juiz, a qualquer tempo, mas antes do início da perícia, reveja, a pedido da parte, a data da resolução e o critério de apuração de haveres. Ou seja, não há preclusão de despacho já proferido na abertura da liquidação (artigo 604), ou – o que é pior – respeito à coisa julgada, quando tais questões forem dirimidas na sentença que finaliza o processo de conhecimento.

7. Estatui o artigo 604, parágrafo 1º, do CPC/2015, que, se houver parte incontroversa no curso da apuração dos haveres, “o juiz determinará à sociedade ou aos sócios que nela permanecerem que depositem em juízo a parte incontroversa dos haveres devidos”.

Essa regra cria para os sócios uma responsabilidade antes não prevista, desestruturando totalmente a tipicidade societária no âmbito do direito material. É que os haveres de sócio consistem na parcela do patrimônio social,[5] que cabe àquele que da sociedade se desliga. Os patrimônios pessoais dos sócios não estão incluídos no patrimônio da sociedade, nem se misturam com ele. 

Não se pode pensar na aplicação dessa regra em nenhum dos tipos societários: nas sociedades anônimas e limitadas, os sócios não respondem minimamente por dívida alguma contraída pela sociedade (Lei 6.404/1976, artigo 1º; CC, artigos 1.052 e 1.055, parágrafo 1º); e nas sociedades de responsabilidade ilimitada, os sócios respondem, em caráter subsidiário (CC, artigos 1.023 e 1.024), pelas obrigações assumidas pela sociedade – não, porém, pela parcela do patrimônio que ela deva restituir a um sócio. Como se vê, a norma processual revela total descompasso com as de direito material, definidoras da responsabilidade dos sócios, visto que, além de lhes atribuir uma responsabilidade que em sede societária não possuem, ignora completamente, se tal responsabilidade tivessem, a regra da subsidiariedade. Como esperar segurança jurídica num emaranhado confuso como esse?

8. A legislar, ainda, sobre tema de direito material, o artigo 605 do CPC/2015 faz uma distinção entre retirada e recesso, que não encontra correspondência na legislação que visa a aplicar. Para o novel codificador, pelo que se nota, o termo “retirada” deve ser reservado para a saída desmotivada do sócio, ao passo que o recesso estaria vinculado à ocorrência de uma causa legal específica.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).



[1] O termo “resolução”, utilizado pelo Código Civil, não é adequado para abranger o desligamento de sócio por morte ou em razão do exercício do direito de retirada, uma vez que supõe inadimplemento. Por isso, é preferível falar em “rompimento” dos vínculos societários em relação ao sócio.


[2] Sobre esse assunto, ver, do autor, Direito de Empresa – Comentários aos arts. 966 a 1.195 do Código Civil. 5ª. ed. São Paulo: 2013, n. 235, p. 297: O Código Civil de 2002, “embora não mais admitindo a dissolução pelo simples querer, por falecimento, incapacidade ou falência de sócio (como o permitiam os arts. 335 e 336 do CCom), não rechaça a possibilidade de dissolução parcial nas causas de dissolução que elencou. Inspirado no Código Civil italiano, o nosso muda o regime: sem contemplar a dissolução parcial que a doutrina e a jurisprudência nacionais haviam consagrado, trata algumas de suas antigas causas como de resolução (ruptura) do ajuste societário relativamente a um sócio (arts. 1.028 e ss. e 1.085). Não elimina, entretanto, a possibilidade de ocorrência de dissolução parcial nas demais hipóteses que regula como de dissolução, seja de pleno direito, seja contenciosa. Tem-se, portanto, que todas as causas de dissolução total, que não envolvam normas de ordem pública, propiciam a aplicação da teoria da dissolução parcial para assegurar o exercício, pelos sócios remanescentes, do seu indeclinável direito de manter os vínculos que entre si ajustaram (dos quais não participa, nem participava, o sócio em relação ao qual a sociedade deve ser dissolvida), para assegurar a permanência da pessoa jurídica e a continuidade da empresa.”


[3] A apuração de haveres conduz, quase sempre (a não ser que os respectivos valores sejam exíguos ou negativos), à necessidade de a sociedade desfazer-se de parte de seus recursos disponíveis para o giro dos negócios ou de parte de seus bens, daí resultando inexoravelmente sua descapitalização, com perda da competitividade no mercado a ensejar, em casos mais graves, sua ruína financeira. Além disso, o pagamento dos haveres irá provocar a redução da quota de participação do sócio (CPC 2015, art. 600, parágrafo único, última parte), cuja manutenção pode ser indispensável para preservar seus direitos políticos na sociedade. Efetivamente, reduzido o percentual de participação do sócio controlador em razão do pagamento dos haveres do seu ex-cônjuge, ex-companheiro ou ex-convivente, é provável que ele perca seu poder de controle; também os sócios minoritários podem sofrer a perda de direitos que dependem de percentual mínimo para ser exercidos, como o de impedir uma alteração do contrato social, o de permanecer no bloco de controle, o de designar administrador por ato separado, o de eleger representante no conselho fiscal etc. Uma tal redução pode, inclusive, comprometer, quando houver, um acordo de sócios ou de acionistas. 


[4] Mesmo que se entenda que a liquidação é uma fase - posição da qual discordo -, não pode ser considerada como fase do processo de conhecimento, pois ela supõe uma sentença a ser liquidada (CCPC/1973, art. 475, letras A-H; CPC/2015, arts. 509-512).


[5] A parcela do patrimônio social que toca aos sócios é extraída do patrimônio líquido da sociedade, isto é, do que resultar do valor do conjunto dos elementos do ativo social depurado de todas as obrigações quem componentes do passivo.


Alfredo de Assis Gonçalves Neto é advogado e professor titular aposentado de Direito Comercial da Universidade Federal do Paraná.



Revista Consultor Jurídico, 18 de janeiro de 2016, 8h00

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...