segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O livro de Ronald H. Coase, enfim, no vernáculo! Devore-o!





Por Gabriel Nogueira Dias


Se um “clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (Calvino, Ítalo), A Firma, o Mercado e o Direito, de Ronald H. Coase, pertence integralmente a tal seleto grupo de escritos.

Para dizer pouco, não tivesse o próprio autor anglo-saxão sido agraciado com o Nobel Prize em 1991, 9 dentre os 15 últimos economistas laureados em Estocolmo têm suas raízes justamente no campo de pesquisa mais impactado por seus trabalhos — a Microeconomia; no caso de Jean Tirole (2014), Bengt Holmström e Oliver Hart (2016), a coincidência da área científica é ainda mais marcante: a Teoria dos Contratos. Ou seja, Coase disse e ainda resta pronto a dizer e inspirar, muito, academia e sociedade.

A empreita de trazê-lo ao vernáculo merece efusivos aplausos. Contra a corrente da caudalosa e sem precedentes crise que, infelizmente, inunda, rectius: afoga o mercado editorial pátrio, a Coleção Paulo Bonavides — editada pela Forense Universitária (Grupo Editorial Nacional) e dirigida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli e pelo professor Otavio Luiz Rodrigues Junior — caminha fiel e tinhosa no cumprimento de sua missão quase civilizatória, isto é, contribuir ao crescimento cultural da nação.

Com efeito, além do tradicional cuidado editorial e de tradução — a qual, permita-se a menção, contou com a revisão dos professores Alexandre Veronese, Lucia Helena Salgado e Antônio José Maristrello Porto, além de uma revisão total por Francisco Niclós Negrão e uma revisão final do próprio organizador, professor Otavio Luiz Rodrigues Jr. — o compêndio traz belo estudo introdutório do ministro do Superior Tribunal de Justiça Antonio Carlos Ferreira e da mestra em Direito Patrícia Cândido Alves Ferreira. Bem calibrando informações sobre origem, objetivos e contornos da obra de Coase, o essai préliminaire afigura-se como um motivo em si para adquirir e ler o compêndio em sua inteireza.

Nesse contexto, não seria preciso, talvez, mais muito para assanhar os leitores a (re)visitar a A Firma, o Mercado e o Direito de Ronald H. Coase. Aos indecisos e ainda pouco curiosos, três provocações talvez lhes sirvam de incremental estímulo.

É corrente dizer que Ronald H. Coase revolucionou o pensamento econômico do século XX ao introduzir o tema dos “custos de transação” e “direitos da propriedade” como ferramentas fundamentais à análise da estrutura institucional e do funcionamento da economia; que seu trabalho é um divisor de águas no exame de instituições, contratos, distribuição de direitos de propriedade, alocação ótima de recursos, externalidades e a real efetividade da regulação e intervenção do Estado na economia.

Tudo verdade. Porém, pouco, talvez, para espelhar a obra. Valor e virtude dos complete works de Coase parece-nos ligado a algo muito mais profundo e essencial a todo pensamento que se apresenta com status de significância perene ao mundo, qual seja, à ideia de Justiça.

Isto mesmo. Bem apreendido, o Law and Economics de Coase coloca em nossas mãos ferramentas para melhor interrogar e enfrentar o clássico tema da divisão ótima de recursos (escassos) na nossa sociedade. De Adam Smith a — para sacar um nome da moda — Thomas Piketty, passando por Thomas Malthus, David Ricardo e Karl Marx, por exemplo, todos os mais notórios economistas de nossa sociedade trouxeram e trazem consigo, no fundo, uma inquietação com o tema da acumulação de riqueza e as formas ótimas — ou justas, diríamos, filosoficamente — à divisão dos recursos (escassos) em nossa sociedade.

Revisitadas as origens de Ronald H. Coase, um garoto de origem proletária, marcado pela depressão dos anos 30 e com inicial inclinação ao socialismo Fabiano, não nos surpreende que este igualmente seja um fio condutor, se não propriamente oculto, implícito aos seus trabalhos. Ao infirmar exemplos e raciocínios a partir da existência de situações hipotéticas com zero custos de transação, Coase em verdade deseja colocar luzes à sua existência e, sobretudo, ao seu deletério impacto à ótima/justa divisão dos recursos. Estudos e críticas a sistemas regulatórios e contratuais que negligenciam e/ou estimulam a existência de severos custos de transação às partes envolvidas nada mais são do que crítico plaidoyer a uma sociedade mais justa.

Diretamente ligado ao tema, resta a incessante obsessão do autor para calcar a Ciência Econômica com pés e mãos no mundo real, apartando-se das abstrações inúteis. Per analogiam, Coase alinha-se, em comportamento e ideal metodológico, à inquieta personalidade do genial Rudolph von Jhering, que, a partir da segunda metade do século XIX, na esteira de seu irônico Scherz und Ernst in der Jurisprudenz (1884) abandona drasticamente sua marcante Jurisprudência dos Conceitos (Begriffsjurisprudenz) para abraçar, com toda força, a defesa incessante de uma Ciência Jurídica calcada na vida real; um ferrenho defensor das análises empíricas. Assim comporta-se Ronald H. Coase, que em seus pensamentos e exemplos sobre fenômenos e opções econômicas (v. também O farol na Economia, 1974), rechaça abordagens e premissas abstratas, que, em suas palavras, não levam em conta o mundo como ele é.

Em terceiro plano, a leitura de A Firma, o Mercado e o Direito nos coloca diante de uma imperativa reflexão sobre seu lugar e importância para a aplicação do direito pelos Tribunais. Coase, e grande parte dos defensores do Law and Economics, caminham pela picada de que o foco da prestação jurisdicional deveria ser a redução dos custos de transação. Bons juízes deveriam tentar, em suas decisões, distribuir os direitos entre as partes de forma similar ao que ocorreria se estas tivessem chegado a um acordo. Tais decisões, racionais (ou “ótimas” ou, melhor, “justas”), dariam causa a precedentes que orientariam os agentes econômicos em uma direção que os permitiria, no futuro, chegar a um acordo sem qualquer recurso aos tribunais.

Se, à atividade de lege ferenda, o projeto é interessante e próspero, quando da aplicação de lege lata tudo parece se complicar um cadinho a mais. A obsessão para a transformação da norma (dever-ser; Sollen) a partir do inconformismo com o fato (ser; Sein) bem habita o campo da política e sociologia, mas dificilmente parece se coadunar com os objetivos e funções da atividade jurisdicional. Ao juiz singular e/ou aos tribunais, por maior que seja a tentação (por pressão ou ativismo), é defeso abandonar a lei para abraçar, sem mais, o fato. A utilização de ferramentas e perspectivas eminentemente empíricas para melhor calibrar novas normas e estruturas regulatórias parece de virtude inquestionável; o trabalho legislativo deve se aproximar, sim, da Economia, bem como da Sociologia e da Análise Estatística. A “coisificação” ou, pior, a “fulanização” da norma à luz do fato pelos Tribunais, por sua vez, empobrece o Direito e incita a insegurança jurídica, o que por tabela nem de longe fortalece as instituições judicantes. Em síntese: “Coase, sim!; Coisa, não!”

Contudo, se nada disso for motivo suficiente para instigar a leitura do monumental clássico A Firma, o Mercado e o Direito, de Ronald H. Coase, fiemo-nos d’alma aberta na lição de Sócrates, tão citada por muitos como Cioran: “Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’”.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).



Gabriel Nogueira Dias é sócio do Magalhães e Dias Advocacia, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, Alemanha. Membro do Conselho da Fundação Hans Kelsen (República da Áustria).

Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2016, 8h05

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