Por Jomar Martins
A imunidade garantida constitucionalmente ao advogado não protege o profissional de excessos cometidos contra a honra das pessoas envolvidas no processo. Por isso, a 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve, na íntegra, sentença que condenou uma advogada a pagar R$ 20 mil de indenização moral à juíza Elisabeth Stefanello Scherer, da 1ª Vara Criminal de Tramandaí.
Nos dois graus de jurisdição, ficou claro aos julgadores que as manifestações ofensivas dirigidas à juíza, por meio de uma petição protocolada em agosto de 2013, tinham o propósito de ofendê-la, em afronta aos direitos de personalidade previstos no artigo 5º da Constituição.
Segundo o petição apresentada pela juíza, a advogada achou que houve demora na liberação de veículo de um cliente, apreendido numa operação de combate às drogas. Na petição, ao reiterar o pedido, a advogada colocou em dúvida a capacidade da juíza de interpretar o processo e acusou-a de descumprir a lei e de manipular a ação penal, para defender seu ponto de vista moral — leia abaixo alguns trechos.
Chamada a se defender na 13ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, a advogada afirmou nada saber sobre a capacidade da juíza de exercer com presteza seu trabalho em relação aos advogados e partes. Sustentou que os atos praticados estão dentro dos limites da legalidade.
Disse que a magistrada incorreu em "manipulação maliciosa dos fatos", pois ela só requereu a devolução do automóvel apreendido. Por fim, ajuizou reconvenção, exigindo reconhecimento de que a juíza colaborou para a situação narrada na petição, já que, com sua suposta negligência, incorreu nos crimes de prevaricação e improbidade administrativa. E tal enseja o pagamento de danos morais.
Sentença procedente
A juíza Fernanda Carravetta Vilande julgou totalmente procedente a ação principal. Ela entendeu que o conteúdo da petição protocolada extrapolou os deveres profissionais, pessoalizando a discussão e ultrapassando todos os limites de civilidade e urbanidade toleráveis.
Ao ir além do que é razoável, a parte ré atingiu os direitos de personalidade da autora, sobretudo no que diz respeito à dignidade. “É evidente que, ao questionar a capacidade da magistrada para atuar no processo, acusando-a de manipular a ação penal para defender seu ponto de vista moral, a procuradora teve a intenção de desabonar a demandante, atingindo a sua reputação profissional”, escreveu na sentença.
Para a titular da 13ª Vara Cível da Capital, a imunidade profissional do advogado — prevista no parágrafo 2º do artigo 7° do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/94) — não é absoluta. Além disso, o próprio Estatuto da Advocacia, em seu artigo 32, não confere imunidade para os atos cometidos com dolo ou culpa.
Ela, no entanto, extinguiu a reconvenção sem análise de mérito por entender que a juíza é parte ilegítima na ação, já que a demanda deveria ser direcionado ao estado do Rio Grande do Sul, a teor do previsto no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal. Também apontou não haver possibilidade legal de o Estado declarar a responsabilidade da juíza.
Intuito de ofensa
Relator da Apelação na corte, o desembargador Túlio de Oliveira Martins, disse que a petição foi redigida no único intuito de afrontar a pessoa da juíza. “Ora, a ré utilizou-se de termos fortes e fez acusações graves, atingindo a honra da magistrada, o que era totalmente desnecessário para sustentar suas teses ou para robustecer a defesa de seus clientes”, complementou em seu voto.
Para Martins, a atitude da advogada não só produziu “menoscabo espiritual interno” na autora como acarretou também reflexos na sua atividade jurisdicional. É que as acusações infundadas atingiram sua honra profissional no meio jurídico, seu reconhecimento entre os membros da profissão, além do grau de estima e confiabilidade indispensáveis à sua carreira.
Clique aqui para ler a sentença modificada.
Clique aqui para ler o acórdão modificado.
Leia abaixo os trechos considerados ofensivos:
“Mas de onde que Vossa Excelência retirou ‘embargos de declaração’ para despachar nesse sentido? Neste autos, processo nº 073/2013.0003797-0, que trata de um apenso de incidente de restituição de veículo, JAMAIS FOI AJUIZADO EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. O que temos aqui é uma petição inicial de incidente que foi ajuizado a inúmeros meses e este juízo está amorcegando [sic!] o processo para não despachar a petição inicial conforme lhe foi apresentada.
A decisão publicada nestes autos de INCIDENTE DE RESTITUIÇÃO DE VEÍCULO é lamentável e demonstra que a prestação jurisdicional dada por este juízo é de tamanha falha jurídica que põe em dúvida a capacidade deste juízo quanto à leitura dos autos, interpretação dos fatos concretos, à aplicação dos princípios constitucionais de liberdade plena e de inocência máxima dos acusados até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e do sistema processual penal vigente no território brasileiro, no sentido de ser o sistema acusatório (onde cabe ao MP fazer prova das acusações) e não o sistema inquisitório da época do império (onde o acusado era que tinha de provar sua inocência).”
(...)
“Assim, muito mal fundamentada está a decisão [n]o que se refere à nota de expediente acima transcrita, porque esse juízo não disse para que veio, para que está servindo nos autos. Vossa Excelência, como servidora pública igual a qualquer outro servidor, não tem a obrigação que cumprir com sua parte como servidora e, na sua função, assegurar um juízo de garantias? Presumo que Vossa Excelência saiba o que é um juízo de garantias!”
(...)
“Quer dizer: Vossa Excelência está mantendo uma versão mentirosa nos autos, contrário [sic!] às provas até então colhidas. Se os fatos são estes, são fatos que estão provados nos autos.”
(...)
“Vossa Excelência está manipulando o processo de tráfico em apenso com este incidente. Isso bem demonstra a desorganização da prestação jurisdicional que Vossa Excelência está prestando em nome do Estado.”
(...)
“A reclamação é pertinente porque, face o acontecido nestes autos e no apenso, cabe, sim, uma ação de improbidade administrativa, porque não se pode admitir que um servidor público, comum, como qualquer outro, venha descumprir a lei e manipular o sistema para defender ponto de vista moral ao invés de dizer o direito previsto no ordenamento jurídico como se o Estado fosse e para isso que serve o Estado.” O acórdão foi lavrado na sessão de 29 de setembro.
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2016, 7h50
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