Tramita há dois anos o Projeto de Lei do Senado (PLS) 236/12, de autoria do senador José Sarney, voltado a instituir um novo Código Penal (CP)[1]. A má qualidade da reforma não impede que ela, à sua passada trôpega, prossiga, especialmente ante o espírito reformista que ronda a atual conjuntura — vide a recente reforma do Código de Processo Civil e o discurso de posse da Presidente da República[2]. Em dezembro do ano passado, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado apresentou o seu relatório final. O texto revisado seguiu para votação naquela casa legislativa no dia 17 de dezembro de 2014, tudo ao apagar das luzes da sessão legislativa e sem alarde. Pela colaboração de contingências, ocorreu pedido de vista, o que nos oferece a chance de questionar a viabilidade dessa reforma.
A afirmação de que o projeto não tem salvação e não merece qualquer esforço de aperfeiçoamento não é nova[3]. No entanto, passados dois anos de trabalho, aquela afirmação talvez contrarie o senso comum: simplesmente engavetar o projeto não seria desperdício do tempo e esforço já despendidos? O próprio senso comum, contudo, acomoda a intuição de que, em certas hipóteses, a tentativa de restaurar ou aproveitar algo visceralmente defeituoso é menos proveitosa do que recomeçar do zero — pense-se na perda total de veículos acidentados. Assim, a pergunta a ser respondida é: quais defeitos ostenta o PLS 236/2012 que, de tão graves, comprometem-lhe inteiramente a viabilidade?
I. Os defeitos da última versão do PLS 236/12
É possível discorrer indefinidamente sobre os defeitos desse projeto. O mais visível é o desleixo com que foi elaborado — defeito perceptível em cada linha do PLS 236/12, apesar das duas revisões que sofreu. O produto final que deve seguir para a votação apresenta graves defeitos de revisão técnica (1.); é composto por uma Parte Geral altamente defeituosa (2.); é fruto de uma transposição acrítica das leis extravagantes (3.) e, por fim, não obedece a qualquer técnica legislativa uniforme (4.).
1. Revisão técnica deficitária
O que se vê no texto final são incoerências internas gravíssimas (o crime de incêndio em matas e florestas, por exemplo, é previsto duas vezes, e com penas diferentes: artigos 196, parágrafo 1º, inciso V, e 415), mas sobretudo cominação de penas desproporcionais, tanto para mais como para menos: a peita do artigo 304 é mais severamente punida do que a falsa perícia do artigo 303, embora o perito preste um compromisso pelo qual contrai um dever especial que não onera quem o suborna; a submissão de doente mental à prostituição (artigo 195) sofre apenas metade da pena do próprio abuso sexual desse mesmo doente mental (artigo 192); a esterilização forçada (artigo 128), prevista erradamente como crime contra a vida, sofre pena menor do que as lesões corporais qualificadas pela perda permanente de função orgânica (artigo 129, parágrafo 3º, inciso I), como se a função reprodutiva fosse menos importante que as demais. A previsão do novo crime de transgenerização forçada, que é comum e não hediondo (artigo 41), inclui a punição de toda pessoa que toma conhecimento do fato e não o denuncia (artigo 191, parágrafo 4º) — punição verdadeiramente extraordinária, que a Constituição havia reservado para os crimes hediondos (artigo 5º, inciso XLIII, de interpretação discutível) e que sequer estes próprios, no projeto, recebem. O favorecimento pessoal no terrorismo (artigo 246) sofre uma antecipação de punibilidade (“dar guarida a pessoa […] que esteja por praticar crime de terrorismo”) que não se previu nem para o próprio terrorismo (artigo 245). Ocorreu, ademais, o nivelamento de condutas fundamentalmente diversas: o crime de omissão de socorro (artigo 137), que é passível de cometimento por qualquer pessoa, recebeu a pena de dois a quatro anos — a mesma do abandono de incapaz (artigo 136), que é delito exclusivo de quem possui um dever prévio de cuidado e é obviamente mais grave; a pena mínima da calúnia (artigo 141) e da difamação (artigo 142) é a mesma, embora na primeira o fato imputado, mais do que desonroso, seja criminoso; a pena mínima das lesões corporais seguidas de morte é idêntica à das lesões graves de 3º grau (artigo 129, parágrafos 4º e 3º, respectivamente), conquanto nestas últimas a vítima sobreviva.
Os deslizes técnicos parecem infinitos: afirma-se que a pena de multa será aplicável a todo e qualquer crime (artigo 65), mas vários crimes têm previsão expressa da aplicação cumulativa ou alternativa de multa (por exemplo os artigos 155 e 203, parágrafo 1º; sobre os crimes de tóxicos ver adiante no texto). Ora se diz que as penas alternativas serão aplicadas no número de uma (artigo 51) ou duas (artigo 59, parágrafo 2º), ora que podem ser mais de duas (artigo 58, parágrafo 2º). O projeto admite a retratação da injúria (artigo 147), embora nesta não haja uma afirmação ou imputação de fato determinado, mas o insulto puro e simples, e a ideia de retratação seja impertinente. O texto projetado, não satisfeito em equiparar a energia elétrica a coisa móvel, como faz o CP vigente (o que tem uma explicação histórica[4]), estende a equiparação à água ou gás canalizados, que óbvia e indiscutivelmente são coisas móveis — algo como equiparar-se um bebê ao conceito de pessoa; contém disposições inconciliáveis sobre aborto, que ora parecem incluir em sua definição a morte do feto (artigo 126, parágrafo 1º), ora parecem dispensá-la (artigo 129, parágrafo 2º, inciso VI, e parágrafo 3º, inciso II); chama o “mandato criminal” de “mandado” (artigo 38); prevê norma sobre a fixação de alimentos em favor da vítima (artigo 76) de natureza puramente processual que sequer deveria constar de um projeto de CP, e mesmo nele se encontra fora de lugar (pois concerne aos efeitos da condenação, e não à determinação da pena); o crime de exploração do trabalho infanto-juvenil tem um efeito da condenação oponível ao Poder Público (artigo 494, parágrafo 1º, inciso I: dever do Estado de indenizar a vítima) de impossível efetivação processual — a menos que se introduza no Código de Processo Penal alguma forma de intervenção de terceiros; trata a proibição da revista íntima do visitante como um “direito do preso” (artigo 53, parágrafo 1º). O crime de rixa, rebatizado de confronto generalizado, tem forma qualificada “se o confronto for entre grupos ou facções organizadas” — uma contradição em termos (artigo 135, parágrafo único). Por fim, há passagens simplesmente incompreensíveis, como o crime de “ingressar a entrada indevida (?) de aparelho telefônico em estabelecimento prisional” do artigo 311.
Não são filigranas: cada palavra errada da lei penal pode significar meses ou anos de encarceramento. Tais erros, quando muito, são aceitáveis num primeiro rascunho, mas não após a revisão final. O reformador, contudo, simplesmente ignora a diferença entre projeto, esboço e rascunho.
2. Equívocos graves no coração do Código Penal, a Parte Geral
Na Parte Geral, os defeitos já foram referidos em outros estudos mais detidos, e a versão da CCJ só fez mantê-los.
Assim, se o atual CP contém uma definição inútil de crime consumado (atual artigo 14, inciso I), no projeto ela vem acompanhada de uma definição muito ruim de tentativa (artigo 21). No concurso de pessoas, o projeto, sem abandonar o texto dos dispositivos vigentes (artigo 29 e seguintes), insere uma avalanche de palavras inúteis que atingem exatamente os mesmos resultados práticos da lei atual (artigos 36 e seguintes). O tratamento da responsabilidade penal das pessoas jurídicas no PLS é confuso: no rol de penas para pessoas naturais (artigos 42 e 58), a expressão “pena de restrição de direitos” engloba tudo que não seja prisão ou multa, inclusive prestação de serviços à comunidade; já na relação das penas próprias das pessoas jurídicas, a expressão “pena de restrição de direitos” tem outro significado, pois é posta ao lado da prestação de serviços à comunidade (artigo 71), a qual, por sua vez, inclui para as pessoas jurídicas penas de conteúdo econômico que nada têm de “prestação de serviços”, como “custeio” e “contribuições” (artigo 73, incisos I e IV). Utilizando mal o CP vigente como gabarito, o projeto segue mencionando a ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça (artigo 97, parágrafo 1º), embora a Parte Especial do PLS 236/12 não preveja um só crime cuja persecução esteja sujeita a tal condição. Há ainda erros que, se é verdade que existem no direito vigente, foram mantidos ou radicalizados no PLS 236/12, como a previsão de espécie de “prisão por dívida” (artigo 44, parágrafos 5º e 47, parágrafo único, que universalizam a discutível regra do artigo 33, parágrafo 4º, do CP vigente) que, além de ilegítima, atinge mais o desvalido, menos o opulento, e a pluralidade de penas de conteúdo econômico (multa, prestação pecuniária, perda de bens e valores) criada pelas reformas do CP de 1984 e 1998, sem razão suficiente que a justifique.
Tais defeitos não se situam em áreas marginais, mas no coração do Direito Penal, algo comparável ao engenheiro incapaz de realizar um cálculo integral.
3. Transposição acrítica das leis extravagantes para o interior do Código
Poder-se-ia mencionar a vantagem de que, ao menos, todas as incriminações constam de um só documento. O que houve, contudo, foi uma transposição acrítica daquelas leis extravagantes, que vagavam errantes pelo mundo das leis especiais e que agora são alçadas ao plano nobre do Código.
Os exemplos pululam: tal foi o caso dos crimes relativos a loteamentos (atual Lei 6.766/79) e contra as relações de consumo (artigo 7º e seguintes da Lei 8.137/90) . O fato de que seria preciso revisar tais incriminações para integrá-las, evitando repetições e superposições, não foi sequer cogitado pelo reformista, o qual, no relatório da CCJ, confessou haver promovido poucas alterações nos dois grupos de crimes supracitados justamente porque se tratava de simples “compilação” (p. 86, relatório da CCJ). No caso das leis antitóxicos (11.343/06), de tortura (9.455/97) e de racismo (7.716/89), a incorporação pura e simples de seus textos ao projeto, sem a necessária revisão técnica (item 1 acima) produziu resultados aberrantes. Como se sabe, o CP vigente prevê os limites mínimos e máximos da pena de multa na Parte Geral; já a lei antitóxicos, conjugando o sistema dos dias-multa com o critério original do CP (antes da reforma de 1984) de prever multas diferentes para cada crime, comina uma multa específica a cada infração nela prevista. O projeto, por sua vez, simplesmente imita cada uma das referidas leis, mantendo para a generalidade dos crimes as regras da fixação da multa da Parte Geral, mas adotando para os crimes de tóxicos penas de multa específicas (artigos 220 e 221). Não houve, igualmente, qualquer reflexão acerca do posicionamento das diversas matérias: o delito de guardar lixo hospitalar (artigo 134), por exemplo, figura entre os crimes contra a pessoa, embora seja claramente um crime de perigo comum, pois não atinge uma vítima determinada.
Desprovido da “habilidade de um mosaísta” de Vicente Piragibe[5], o reformador atual produziu um desastroso pasticho.
4. Má técnica legislativa
Outra consequência natural do propósito uniformizador da reforma é a adoção de uma técnica legislativa minimamente uniforme, que faça do Código mais do que um amontoado de dispositivos. As incriminações do CP, como se sabe, principiam com o verbo típico: matar alguém, subtrair coisa alheia móvel. Na legislação extravagante tal critério nem sempre é adotado: as atuais leis de tortura e de racismo, por exemplo, introduzem incriminações com o estribilho “constitui crime”. O projetista não teve o menor pudor em simplesmente reproduzir aquelas vigentes definições, cujo estilo é manifestamente incompatível com o esforço consolidador.
5. O diagnóstico
O relatório da CCJ é diagnóstico definitivo sobre o despreparo geral do reformador, que ostenta o seu desleixo como se portasse medalha. Sequer a pergunta elementar, sobre quais seriam os defeitos técnicos do CP atual, foi formulada, com o que qualquer alteração se transforma em diletante exercício estilístico, capaz de exultar apenas alguns ávidos manualistas, venais mais do que sérios. Do ponto de vista técnico, o CP atual é infinitamente superior ao projeto ora apresentado.
Atestar o desleixo do reformador não significa apenas discordar pontualmente das opções escolhidas, mas diagnosticar a incapacidade para sequer apresentar um documento que mereça o nome de projeto de CP. Poder-se-ia generosamente relembrar nosso escriba soberano: “Quem tem outros merecimentos, pode claudicar uma vez ou duas”[6] — mas simplesmente não há merecimentos dignos de nota. Eventuais e pontuais acertos existentes, como a supressão do autoritário crime de desacato, permanecem infinitesimais diante do mar de equívocos.
II. Há salvação para o PLS 236/2012?
A resposta depende do que se entende por salvação. Se o leitor considera que: a) reunir a legislação que o projeto se propõe a substituir; b) cotejá-la com o texto apresentado; c) identificar inúmeras inconsistências e resolvê-las; d) ordenar as infrações segundo suas penas e ajustar estas últimas de modo a garantir que aos crimes mais graves correspondem punições mais severas; e) localizar na literatura escrita a propósito do Código atual ao longo de setenta anos as principais críticas e verificar se elas foram resolvidas no projeto, dando solução adequada às que foram ignoradas; f) retificar a redação dos incontáveis dispositivos mal enunciados; g) posicionar melhor as matérias —, enfim, se o leitor, já de posse do fôlego, considera que tudo isso é salvar o projeto, então talvez este tenha salvação. De nossa parte, cremos que isso é escrever um novo projeto, e que é mais seguro e produtivo fazê-lo a partir do zero. Basta o dado de que todos os erros técnicos mencionados não foram sequer percebidos em dois anos de trabalhos revisionais. Um projeto de lei obscuro e confuso não se embarga; arquiva-se. Não há salvação para o PLS 236/12.
O pianista Artur Schnabel escreveu que as sonatas de Beethoven são melhores do que é possível executá-las[7]. O PLS 236/12, por sua vez, é pior do que é possível descrevê-lo. Estamos diante do pior projeto de Código Penal de nossa história republicana. A vingar, virá ao mundo clamando por reforma: a marca registrada de um fracasso legislativo.
[1] Informações acessíveis emhttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106404 .
[2] Ver a matéria do Conjur: http://www.conjur.com.br/2015-jan-01/discurso-posse-dilma-mudancas-codigo-penal
[3] Ver o livro publicado pela editora Atlas: Leite (org.), Reforma Penal. A crítica científica à Parte Geral do Projeto de Código Penal (PLS 236/12), 2015, no qual tomam parte Adriano Teixeira, Juarez Cirino dos Santos, Juarez Tavares, Luís Greco, Miguel Reale Jr, Paulo Busato, René Dotti e os dois subscritores deste artigo.
[4] Hungria, Comentários ao Código Penal, v. I, t. I, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 21.
[5] A frase é de Nélson Hungria, op. cit., p. 59, nota 12 (iniciada na p. 39), em referencia à Consolidação das Leis Penais de 1932.
[6] Machado de Assis, Crônicas escolhidas, Organização: John Gledson, Companhia das Letras, São Paulo, 2013, p. 286.
[7] Em verdade, não foi isso que ele escreveu literalmente, mas é possível interpretá-lo dessa forma. Veja-se, p. ex., http://www.wgbh.org/articles/A-Month-of-Beethoven-7469 .
Alaor Leite é mestre e doutorando em Direito pela Universidade Ludwig Maximilian, de Munique.
Gustavo Quandt é defensor público federal e mestrando em Direito na UFPR.
Revista Consultor Jurídico, 28 de janeiro de 2015, 6h37
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