Não é novidade para ninguém que a federação brasileira se revela altamente centralizada, chegando às raias do federalismo meramente nominal. De um lado, isso se deve à engenharia constitucional no tocante à distribuição de competências (vide artigos 21 a 24 da Constituição de 1988) e, de outro, à contundente atuação do Superior Tribunal Federal ao exercer o controle de constitucionalidade de lei ou ato federal e estadual, especialmente o controle concentrado[1].
É o que mostram duas pesquisas realizadas em grupos diferentes e sem prévio contato, sendo uma elaborada por professores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e outra por docentes da Universidade de Brasília (UnB).
No estudo de Tomio e Robl Filho[2] são levantadas algumas hipóteses para se verificar se o STF tem ou não poder de veto no processo decisório legislativo.
O propósito é justamente verificar se o STF tem uma tendência maior a declarar inconstitucional uma norma emitida pela União ou pelos Estados. Isso influi diretamente na criação normativa determinada pela organização de competências no Brasil.
No levantamento realizado no período entre 1988 e 2012, Tomio e Robl Filho detectaram uma maior incidência no número de leis estaduais sujeitas ao controle por via de ADI do que leis federais. De um total de 4.751 ações desta natureza em 24 anos, 2.991 foram relativas a alguma lei ou ato normativo produzido pelos Estados, o que corresponde a 63% de todas as ações[3].
Os governadores são os legitimados que mais propõem ADIs contra leis estaduais (664), seguidos de associações (504) e o procurador-geral da República - PGR (398). São números bem diferentes e inferiores em comparação à propositura de tais ações cujo objeto sejam as leis federais, respectivamente 28, 331 e 117.
Além do número de ADIs propostas, verifica-se que 36% das que questionam a constitucionalidade no processo decisório estadual foram julgadas a favor do requerente, sendo que 23% foram totalmente procedentes. É um número mais que três vezes maior que os 11% de decisões favoráveis ao requerente em ADIs cujo objeto era uma lei federal.
Em comparação aos legitimados, os governadores, além de serem os que mais propõem ações, são os que têm a maior percentagem de sucesso (34%) e “utilizam, principalmente, como fundamentação constitucional às ADIs os artigos da CF 88 que tratam da distribuição de competências legislativas: artigo 61, parágrafo 1º, competências privativas do Executivo; artigo 22, competências privativas da União”[4]. Esse percentual é seguido proximamente pelo Procurador-Geral da República (30%), pelas Assembleias Legislativas e pela OAB (22%).
Tais dados podem levar a uma prévia conclusão: os governadores utilizam a ADI como instrumento de derrubar leis aprovadas pelas Assembleias Legislativas de seus Estados – provavelmente pela ausência de apoio político ou da maioria da Casa ser de oposição ao governo – e também para impedir determinadas normas emitidas por outras unidades federativas.
Em razão disso, a propositura dessas ADIs pelos governadores é uma forma de interferir por meios processuais naquilo que deveria ser um debate político, seja entre Casa Legislativa e Governo Estadual, seja entre estados que fazem leis para seu benefício e que algumas vezes podem gerar efeitos negativos em outros (umas das razões que leva à chamada guerra fiscal). Isso pode ser reforçado pelo alto número de procedências de tais ações propostas pelas Assembleias, que podem usar o meio processual também como forma derrubar decisões políticas dos governadores oposicionistas.
Além do STF ter o poder de legislador negativo, pelo que os dados apresentam, há uma significativa interferência no processo legiferante estadual (ainda que em momento posterior), devido à percentagem de ações que são decididas a favor do requerente.
A propositura das ADIs com tal finalidade é mais uma forma institucional de alimentar a judicialização da política, uma vez que transfere para o STF um encargo de dar a última palavra sobre uma decisão de cunho político. É claramente uma forma do uso de um importante instrumento de estabilização constitucional – e diga-se, essencial a qualquer Estado de Direito – com finalidades que não sejam apenas de contestar sua constitucionalidade, mas sim de vencer pela via do direito uma batalha já perdida na política.
Alexandre Araújo Costa e Juliano Zaiden Benvindo, autores de outra pesquisa com objetivo semelhante[5], possuem uma posição bem realista a respeito do interesse de algum legitimado mover uma ADI: “este sistema somente pode ser movido quando há um interesse concreto dos agentes legitimados para invocar essa forma de controle. Mover uma ADI é uma opção política, e não uma necessidade lógico-jurídica.”[6].
Devido à organização federativa peculiar do Brasil, o uso da ADI para tais fins pelos governadores aumenta a dependência que os Estados têm da União, uma vez que, por de ser um órgão do judiciário nacional a dar a última palavra sobre uma lei estadual, o grau de autonomia diminui drasticamente.
Certamente essa situação acaba contribuindo para reforçar a inter-relação de dependência jurídica, política e econômica dos Estados-Membros. Esse problema é, ao mesmo tempo, uma das grandes consequências centralizadoras e uma causa centralizadora: distribuição desigual das competências administrativas/legislativas, além do caráter exclusivo/privativo da União na maioria delas.
Nesse contexto, as pesquisas deixam claro que a ADI foi largamente usada para fins de reafirmar a centralização causada pela distribuição das competências. Ao intervir como ator de veto nos processos legislativos com grande participação diretamente no âmbito estadual, o Supremo Tribunal se torna fiador da concentração dos poderes nas mãos do Governo Central.
[1]Tratei do tema de maneira mais profunda no seguinte artigo, escrito em co-autoria com o doutorando Leonam Baesso Liziero:MARRAFON, Marco Aurélio. LIZIERO, Leonam Baesso da Silva. Competencias constitucionais da Uniãoo e Supremo Tribunal Federal: fiadores da centralização no federalismo brasileiro. In: Octavio Campos Fischer; Scheila Barbosa dos Santos. (Org.). Federalismo fiscal e democracia. 1ed.Curitiba: Instituto Memória, 2014, v. , p. 26-47.
[2]TOMIO, Fabricio Ricardo de Limas; ROBL FILHO, Ilton Norberto. Empirical Legal Research: Teoria e Metodologia para a Abordagem do Processo Decisório de Controle de Constitucionalidade no STF. In: SIQUEIRA, Gustavo Silveira; VESTENA, Carolina Alves. Direito e Experiências Jurídicas.Vol.2: Debates Práticos. Belo Horizonte: Arraes, 2013, pp. 96-117.
[3]Ibidem, p. 109.
[4]TOMIO, Fabricio Ricardo de Limas; ROBL FILHO, Ilton Norberto. Empirical... Op. cit, p. 114.
[5] COSTA, Alexandre Araújo; BENVINDO, Juliano Zaiden,(orgs.). A Quem Interessa o Controle Concentrado de Constitucionalidade? O Descompasso entre Teoria e Prática na Defesa dos Direitos Fundamentais. Disponível neste link (Relatório) e neste link (Gráficos). Acesso em setembro de 2014.
[6]Ibidem, p. 18
Marco Aurélio Marrafon é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Revista Consultor Jurídico, 27 de janeiro de 2015, 21h11
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