sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Complexo de Maradona e quando o juiz se nega a reconhecer a nulidade







Diego Armando Maradona é uma figura controversa e, quem sabe, possa nos ajudar a entender a complexidade do reconhecimento de nulidades no processo penal, especialmente quando o juiz não viu ou não quer ver a jogada faltosa. Assim é que o exemplo clássico, no futebol, é o gol de mão de Maradona na Copa do Mundo de 1986, já que embora violando as regras do futebol (não vale gol de mão) foi validado. Vale a pena assistir aqui.

No Brasil, a doutrina diferencia a mera irregularidade (sem violação do conteúdo do ato), da inexistência (por ausência de requisito de sua validade — alegações finais por não advogado ou sentença por não juiz), nulidade relativa e nulidade absoluta. Em relação a essa distinção, também com Aury Lopes Jr. (Direito Processual Penal), pode-se afirmar a insuficiência das categorias e, a partir do processo como procedimento em contraditório, bem assim da reserva de jurisdição, só há nulidade por decisão judicial. Entretanto, o regime de nulidades do CPP (artigos 563-573), além de ultrapassado, é confuso[1]. Adota a compreensão mitológica da verdade substancial (CPP, artigo 566, bem criticada por Salah Khaled Jr.), possui dispositivos revogados noutros locais do próprio CPP (artigo 564, III, “a”, “b”, “c”, III), bem como indica compreensão civilista, incompatível com o devido processo legal substancial, da ausência de prejuízo — pas nullité sans grief (CPP, artigo 563). A ausência de prejuízo é um estelionato processual. Sempre. Assim é que, superada a distinção arbitrária e sem sentido, todas as hipóteses de violação ao devido processo legal substancial serão declaradas nulas[2], manejando-se a noção de doping, conforme sublinhei no livro A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal.

Confunde-se a má formação do ato com a sanção. A nulidade não é uma sanção, nos diz Robles[3], justamente porque o efeito convencional da regra procedimental do fair play exclui do âmbito dos efeitos válidos o ato realizado em desconformidade com a regra do jogo. Entretanto, o crucial para que isso ocorra é a declaração de nulidade. Sem ela o que se produziu em desconformidade com as regras do jogo, por omissão do juiz condutor do feito, passa a gerar efeitos. Assim é que ganha relevo a existência de juízes cientes do seu papel de garantidores das regras do jogo. Sem o ato declarativo da exclusão, os efeitos das jogadas ilícitas permanecem no ambiente processual e geram efeitos. Como a nulidade somente pode acontecer ex post ao ato, o critério da decisão deve ser um só: na sua constituição o ato atendeu as regras do jogo processual? Com a resposta negativa o ato deve ser declarado nulo. Mas existe magistrado que frauda o ato processual pelos fins, desconsiderando os meios (ilícitos).

O cumprimento da regra de ação pode se dar dentro ou fora dos limites da regra do jogo processual. O descumprimento da regra processual implica na ausência de requisito de validade e, por via de consequência, da não produção do efeito a que se destinava. Não se trata da análise posterior da sua valoração de conteúdo. Na formação da jogada houve descumprimento de regra constitutiva. Se as regras procedimentais da formação válida da ação dos jogadores ou do julgador não são obedecidas, a ação é um nada jurídico e, portanto, descabe discutir a ausência de prejuízo. A noção de prejuízo somente se sustenta para validação de ações processuais ilegais, como se pudesse convalidar os efeitos das ações realizadas com jogo sujo. Os efeitos das jogadas ilegais não encontram respaldo democrático justamente porque seu processo de formação está viciado pelo descumprimento das formas e, com isso, pode ser algo no mundo da vida processual, mas de nenhuma qualificação jurídica válida.

A teoria da ausência de prejuízo (CPP, artigo 593) prende-se a uma noção civilista de aproveitamento de atos incompatível com o processo como garantia do acusado em face do Poder Estatal. Em última instância significa que o Estado estabelece por lei as regras do procedimento, há descumprimento, mas em nome do resultado, especialmente no caso de provas ilícitas, o juiz se demite do seu papel de garante das próprias regras, validando os efeitos do ato viciado. Portanto, não pode ser vista como uma sanção ao jogador e sim como falta que retira os efeitos das consequências do ato em desconformidade com as regras do procedimento. Se as regras do jogo podem ser desconsideradas em nome do resultado, qual o sentido delas? Nenhum. Se o jogador, mesmo ciente da ilicitude, vai adiante no ato irregular por saber que os efeitos podem seduzir o julgador, não se pode mais falar, nem mesmo, de processo penal, mas sim de jogo cínico. Contorna-se o descumprimento das regras procedimentais porque no jogo não há mais juiz, mas sim coadjuvante dos jogadores, diretamente: um juiz interessado no resultado. Em uma afirmação: o juiz só apita para um lado e, portanto, inexiste jogada fora da lei.

Do ponto de vista das táticas, muitas vezes, mesmo com jogo sujo, doping, se o juiz não reconhecer, os efeitos da ação permanecem. Daí muitos arriscarem blefes, trunfos e jogadas dúbias que contam com leniência do julgador. O mais interessante é que o jogo sujo continua a ser jogo até que o juiz declare a nulidade. Então correr os riscos de não ser reconhecido, pelo juiz, o jogo sujo pode ser uma das táticas dos jogadores. Até porque pela ausência de prejuízo, criou-se a lei da vantagem no processo penal, não fosse ela incompatível com o devido processo legal substancial.

O gol de Maradona com a mão foi validado pelo juiz. No Processo Penal muitas jogadas nulas são validadas. Na Copa do Mundo inexiste órgão recursal. No Processo Penal sim. Resta saber se os julgadores terão coragem de anular decisões, principalmente as que contam com amplo apoio popular. O tempo dirá quem pode ser chamado, de fato, de magistrado. Do contrário, la garantia soy yo.

[1] PAULA, Leonardo Costa. As nulidades no processo penal. Curitiba: Juruá, 2013; BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais: elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Trad. Angela Nogueira Pessoa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; LOUREIRO, Antonio Tovo. Nulidades & Limitação do Poder de Punir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2012; PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal: São Paulo: Atlas, 2013; FIORATTO, Débora Carvalho. Teoria das Nulidades Processuais: Interpretação conforme a Constituição. Belo Horizonte: DePlácido, 2013.
[2] SOUZA, Alexander Araujo de. O Abuso do Direito no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007; ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. São Paulo: RT, 2007; DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocoo, 1997; BARBOSA, Livia. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
[3] ROBLES, Gregorio. As regras do direito e as regras dos jogos: ensaio sobre a teoria analítica do direito. Trad. Pollyana Mayer. São Paulo: Noeses, 2011, p. 182.


Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.



Revista Consultor Jurídico, 30 de janeiro de 2015, 8h01

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