quarta-feira, 17 de outubro de 2012

PROCESSOS REPETITIVOS: Vivemos, hoje, sob um sistema de stare (in)decisis

 
Revista Consultor Jurídico, 17 de outubro de 2012
 
Desde sua publicação em 1973, o Código de Processo Civil tem passado por sucessivas alterações, decorrentes de mais de seis dezenas de leis reformadoras que se ocuparam em atualizar a legislação codificada naquilo em que ela não mais atendia aos anseios de uma sociedade complexa e de risco. Pode-se destacar, entre os principais diplomas reformadores, a Lei 8.952/1994 e a Lei 11.332/2005, que instituíram, a primeira, a antecipação dos efeitos da tutela e a tutela específica relativa aos deveres de fazer e de não fazer, e a segunda, nova técnica processual para o cumprimento e execução de sentença.
Essas alterações certamente tornaram o processo mais célere. Porém, as sucessivas modificações acarretaram contradições internas no Código de Processo Civil, provocando, aqui e ali, o surgimento de dúvidas, gerando insegurança a respeito da melhor interpretação de determinados dispositivos. Objetivando corrigir esse inconveniente, a presidência do Senado Federal instituiu, em 2010, comissão de juristas para elaboração de anteprojeto de novo Código de Processo Civil, que se converteu no PLS 166/2010. Discutido e aprovado no Senado Federal, o projeto seguiu para Casa Revisora, onde tramita sob a denominação de PL 8.046/2010.
O relator-geral do PL 8.046/2010, deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA), apresentou, no último dia 19 de setembro, seu relatório-geral de atividades. Para os dias 16 e 17 de outubro, está agendada a discussão do texto na comissão especial respectiva, da Câmara de Deputados.
O projeto de lei possui inúmeras virtudes, mas, como qualquer empresa humana, não alcançou unanimidade, encontrando resistências ideológicas em certos setores da comunidade acadêmica que, entre outras críticas, reputam inadequada a opção do projeto do novo Código de Processo pela adoção mais ostensiva do sistema de obrigatoriedade dos precedentes judiciais.
Pretendemos, neste breve ensaio, apresentar como se deu a separação entre os dois grandes sistemas jurídicos ocidentais e expor as pretensões racionalistas herdadas pelo civil law. Feito isso, apresentamos, em apertada síntese, o que seria um sistema de precedentes judiciais, com o propósito de justificar a adoção desta orientação pelo Direito brasileiro e demonstrar como as críticas que lhe são encetadas não podem prosperar. O tema, evidentemente, merece aprofundamento. Desejamos, aqui, fazer apenas uma introdução, esperando poder tratar de seus desdobramentos adiante, em outros pequenos ensaios.
O Direito brasileiro tem sua origem e tradição baseadas no sistema de civil law, ou de direito legislado, de filiação romano-germânica, que se distingue em alguns aspectos do common law.
O caráter desses distintos sistemas jurídicos foi forjado entre 1350 e 1600, período que compreende o Renascimento e a Reforma. Foi nesses séculos que ocorreu a grande divisão do mundo jurídico ocidental civilizado. O motivo dessa divisão foi, por um lado, a facilidade de incorporação do direito romano pelas jurisdições da Europa continental e, por outro lado, a incapacidade do Direito romano de penetrar permanentemente o universo jurídico inglês, que perpetuou as regras tradicionais nativas, estas aplicadas de modo uniforme em todo o reino por um único corpo de juízes, sendo, por essa razão, denominadas de common law, ou Direito comum.
O Direito brasileiro carrega também a herança do racionalismo jurídico, movimento surgido alguns séculos depois da divisão do direito ocidental em seus dois grandes sistemas jurídicos.
Como se sabe, o racionalismo jurídico tem sua origem no século XVIII, com as primeiras tentativas legislativas para codificar os sistemas jurídicos nacionais em linhas sugeridas pelos ideais próprios do direito natural. A mais famosa codificação da época é o código civil francês, que entrou em vigor na virada para o século XIX. Contudo, antes mesmo do “Código de Napoleão”, notadamente na Prússia e na Áustria, já havia esforços para pôr em ordem o direito civil herdado dos romanos e, por sua vez, para torná-lo compatível com os costumes locais da época. De fato, foi a Allgemeines Landrecht, ou lei geral do país, da Prússia, o primeiro código legal nacional a entrar em vigor no ocidente.
Ao contrário do que geralmente é divulgado, embora fosse a pátria do Iluminismo, o papel desempenhado pelo racionalismo na elaboração do Código Civil francês foi modesto, pois, ao final, o código produzido pela comissão nomeada por Napoleão, composta em sua grande maioria por anciãos, acabou sendo constituído em sua maior parte pelo direito antigo, precisamente pela combinação dos antigos costumes germânicos da região norte da França, do Direito romano e Do direito canônico, predominando, cada um deles, em cada uma das principais partes do Código.
Naturalmente, o Direito brasileiro assimilou as principais pretensões daquele movimento. Costuma-se afirmar que a principal ambição do racionalismo era tornar o Direito um conjunto composto exclusiva ou predominantemente de preceitos legislativos. Mas essa não era a única, nem a mais elevada pretensão. O racionalismo jurídico pretendia também conceber uma ordem jurídica completa, desprovida de lacunas, sendo consistente, livre de contradições e precisa, não podendo haver na ordem jurídica estabelecida normas vagas ou ambíguas. Em resumo, para o racionalismo jurídico, o Direito deveria ser sempre um sistema autossuficiente para fornecer uma solução unívoca para todo e qualquer caso.
Enquanto no civil law pretendia-se escravizar os juízes à letra da lei, no sistema jurídico de origem inglesa, o common law, ou de direito consuetudinário, como é às vezes chamado, assumiu-se a concepção antagônica de que os juízes, de fato, também criam o direito.
É bastante equivocada a ideia de que o common law só permite que os juízes criem direitos porque nos países que o adotam não há grande produção legislativa — se comparada à que podemos encontrar nos países que adotaram o civil law. Tomando o exemplo do Direito norteamericano, podemos constatar que naquele país há um grande emaranhado de leis estaduais e federais, em número bastante superior a países cujos sistemas jurídicos se perfilham ao civil law.
Não é a codificação ou a quantidade de leis escritas promulgadas pelo legislativo, portanto, o critério responsável pela distinção entre esses dois sistemas. Nem mesmo a supremacia da lei pode ser um critério, pois também no common law a autoridade da lei é superior à autoridade das decisões judiciais. Ao permitir que o juízes do common law criem direitos, assume-se, com isso, apenas que a legislação não tem a pretensão de regular todos os casos que podem ser levados ao Judiciário.
Neste ponto, e quanto ao que se tem dito em artigos e jornais, não consideramos um bom argumento, contra a adoção do sistema de precedentes obrigatórios no Brasil, aquele que se baseia apenas no fato de o nosso país ser de tradição jurídica romano-germânica e não anglo-saxônica, ou seja, pelo simples fato de, por sermos filiados à vertente romanística e, por isso, termos a lei como principal fonte formal do Direito. Não podemos considerar razoável a crítica de que tal exigência não poderia ser estabelecida pela Lei, ao argumento de que no common law essa exigência teria sido feita diante de prática judicial sedimentada no tempo. Sem perceber, o argumento volta-se contra si próprio. É que, se adotamos um sistema baseado primordialmente na lei, então é natural que alterações no sistema sejam feitas por meio da lei. Além disso, o argumento parece esquecer que o próprio stare decisis não surgiu “naturalmente” como um reflexo do que ocorria na Inglaterra do final do século XIX. Foi, antes, fruto de uma decisão — e judicial, ressalte-se.
Se o common law nos fornece, com seu próprio aprendizado histórico, alguma contribuição, não é sustentável a recomendação para esperarmos a passagem do tempo até que, “naturalmente”, aprendamos sozinhos, com nossos “próprios” erros, nossas “próprias” regras. O Direito não pode ter apenas uma postura descritiva da realidade. Pelo contrário, atuando sobre ela, cabe-lhe transformá-la ou conformá-la. Com efeito, o direito positivo se expressa e evolui por meio do reconhecimento da realidade social e de novos e emergentes interesses de uma determinada comunidade.
O que, de fato, diferencia os dois sistemas é a postura dos seus juízes e tribunais quanto ao respeito pelos precedentes judiciais.
Tendo em vista a aceitação de que os juízes do common law criam direitos, foi necessária a criação de regras e princípios para regularem o uso e o respeito aos precedentes judiciais e à autoridade deles para casos presentes e futuros. Decidiu-se, portanto, e em determinado momento, que passaria ser obrigatório o respeito a precedentes judiciais por parte juízes e tribunais de hierarquia inferior e aos próprios tribunais e juízes que os criaram.
O stare decisis, portanto, não se confunde com o common law. Este surgiu muito antes daquele. São, pois, independentes. Essa é mais uma razão para aceitarmos o fato de que nada obsta a adoção, no civil law, do stare decisis. Além disso, a adoção de um regime de respeito aos precedentes judiciais justifica-se por diversas razões. Ele traz segurança jurídica, previsibilidade, estabilidade, desestímulo à litigância excessiva, confiança, igualdade perante a jurisdição, coerência, respeito à hierarquia, imparcialidade, favorecimento de acordos, economia processual (de processos e de despesas) e maior eficiência.
Embora muitos possam afirmar que o estabelecimento de direito e deveres por meio de leis escritas traz maior segurança aos cidadãos (já que o exercício da jurisdição estaria legal e previamente balizado), é inegável que, hoje, o juiz brasileiro tem muito mais poder de criação que o juiz do commom law, tendo em vista que, ao contrário deste último, aquele, em princípio, não deveria (pelo menos, à luz da letra de nossa legislação) nenhum respeito aos precedentes judiciais dos tribunais ou órgão que lhe sejam superiores. Isso se dá, dentre outras razões, por se sustentar, no Brasil, inexistir hierarquia entre juízes. Esse raciocínio é aplicável, inclusive, nos próprios tribunais superiores, onde tem sido natural a inobservância a seus próprios precedentes. O que se percebe é a confusão entre hierarquia e independência judicial, confundindo-se a aquela com insubordinação e com desnecessidade de respeito às decisões anteriores.
Esse modo de pensar, segundo pensamos, é equivocado. No entanto, trata-se de algo arraigado em nossa cultura e, particularmente, na cultura dos juízes: os juízes de instancias inferiores não se veem obrigados a observar os precedentes formados pelos tribunais; estes, por sua vez, não se veem orientados em repercutir, em seus julgados, orientações firmadas em decisões que tenham proferido anteriormente.
Tal estado de coisas contraria, evidentemente, a ideia de Estado de Direito estabelecida em nossa Constituição. Ora, se estabilidade e previsibilidade decorrem, naturalmente, da ideia de que vivemos em um estado de direito, não há como se fugir desta consequência: os precedentes judiciais devem, sim, ser respeitados, pelos próprios órgãos judiciais que o conceberam e pelos que a eles encontram-se vinculados.
É inegável que um sistema jurídico é passível de albergar no seu interior decisões judiciais contraditórias. E a divergência entre pronunciamentos judiciais em si mesma não é um mal, desde que temporária, durando apenas o tempo necessário para a maturação a respeito de qual seja a melhor orientação a ser adotada, em determinado caso. Essas duas situações são, porém, indesejáveis e precisam ser evitadas. Aliás, mesmo nos países que tradicionalmente adotam o stare decisis isso ocorrem. O sistema de precedentes judiciais jamais eliminará por completo a possibilidade de haver contradição e a divergência no interior da ordem jurídica. Ele apenas reduz sua ocorrência, conduzindo à integridade sistêmica. Nem mesmo significa a perda do “livre convencimento” do juiz — desde que por livre convencimento se entenda a possibilidade de os juízes demonstrarem que, em determinado caso, os fatos e a situação são distintos o bastante daqueles em que se firmou o precedente judicial prima facie obrigatório, de tal modo que seguir o precedente iria contra as próprias razões de existir do stare decisis. Como o Justice Frankfurter escreveu em seu voto dissidente em Monroe v. Pape, “a regra do stare decisis, embora sirva para dar consistência e uniformidade às decisões, não é inflexível”.
O problema da tomada de decisões díspares em casos semelhantes no Brasil é especialmente acentuado nos tribunais, onde, às vezes em um mesmo dia, uma câmara ou turma, ou mesmo um relator, pode tomar decisões distintas para casos similares.
Vivemos, hoje, sob um sistema de stare (in)decisis.
Tome-se, para ilustrar, os seguintes exemplos retirados da jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça.
Em 2008, o Congresso Nacional aprovou o projeto de lei apresentado pelo Poder Executivo que, culminando com a promulgação da Lei 11.672/2008, criou o artigo 543-C no Código de Processo Civil, autorizando o Superior Tribunal de Justiça a analisar recursos especiais repetitivos através de técnica de julgamento “por amostragem”.
Este dispositivo, em princípio, poderia ter o efeito de alterar o sistema processual brasileiro, imprimindo mais racionalidade e efetividade ao serviço de prestação jurisdicional, consubstanciando, assim, mais uma técnica do regime processual de causas repetitivas que está se formando para aperfeiçoar o sistema judicial brasileiro. De acordo com tal regra, verificando a multiplicidade de recursos especiais fundados na mesma matéria, o presidente do tribunal de origem poderá selecionar um ou mais processos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Superior Tribunal de Justiça, suspendendo os demais recursos idênticos até o pronunciamento definitivo dessa Corte. Podem ser feitas, evidentemente, críticas ao modus operandi observado pelo STJ, na observância da regra do artigo 543-C (basta lembrar, p.ex.: a falta de critérios claros em relação à escolha dos recursos a serem examinados; à vedação, praticamente absoluta, a que aqueles que tiveram seus recursos sobrestados acompanhem, mesmo que como “terceiros”, o julgamento dos recursos selecionados; etc.). Esse é um tema, porém, que merece ser analisado em outro texto.
Diante dessa nova sistemática, indaga-se: É possível o pedido de desistência do recurso escolhido como representativo da controvérsia? Sabe-se que a desistência é um direito do recorrente, assim como constitui um requisito negativo de admissibilidade recursal. Inexiste dúvida quanto ao exercício desse direito nos recursos especiais não submetidos ao regramento do art. 543-C do CPC (REsp 1.243.226-RS – j. 18.08.2011). Porém, o STJ enfrentou esse tema em duas oportunidades, dando para os casos soluções distintas: no primeiro deles, optou, em questão de ordem, por maioria, em inadmitir a desistência (REsp. 1.063.343/RS – j. 17.12.2008); no segundo julgamento, o Superior Tribunal de Justiça admitiu, a unanimidade, a possibilidade de desistência, sem prejuízo do julgamento da tese objeto do recurso repetitivo (REsp 1.067.237-SP – j.24.06.2009).
Entendemos que esse último julgado se coaduna com a sistemática processual vigente, pois admite o exercício do direito de desistência, bem como possibilita o julgamento da tese jurídica. Mas não podemos nos furtar da crítica a viradas repentinas de jurisprudência justamente daquele Tribunal, pois lhe cabe o papel de órgão máximo de uniformização da interpretação do direito federal infraconstitucional.
Portanto, decisões como essas devem passar por um processo de amadurecimento que motive e fundamente inversões de posicionamentos da Corte.
Neste ponto, parece-nos acertada a previsão do artigo 882 do projeto do Novo Código de Processo Civil (PLS 166/2010), ao prescrever que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, haja vista a necessidade de concretização dos princípios da legalidade, da segurança jurídica, da proteção legítima da confiança e da isonomia.
Porém, isso não significa que o projeto do novo Código de Processo Civil desconheça a capacidade de aprendizagem da realidade que não apenas o texto constitucional possui, mas também os diplomas infralegais, prescrevendo, no mesmo artigo, para as hipóteses em que a mudança de entendimento seja imperiosa, a necessidade de fundamentação adequada e específica, levando-se em conta os princípios da segurança jurídica, da confiança e isonomia.
Pretendemos dar realce a essas técnicas, destinadas a aperfeiçoar ou corrigir a jurisprudência, em textos vindouros.
José Miguel Garcia Medina é advogado, presidente da Comissão Nacional de Acesso à Justiça do Conselho Federal da OAB, professor associado da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e professor titular da Universidade Paranaense. Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP
Alexandre Freire é pesquisador do Núcleo de Direito Processual da PUC-SP. Mestre em Direito do Estado pela UFPR, doutorando em Direito Processual Civil pela PUC-SP.
Alonso Freire é professor da UNICEUMA e UFMA. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG.
 
 

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