Achei que nesta semana poderia, finalmente, mostrar o Cego de Paris II. As contingências, entretanto, me impedem. A prova da OAB e a perseguiçãoininterrupta da ladra Jane, de Cuiabá até a fronteira do Paraguai, obrigam-me a voltar ao tema. Quem estiver farto do assunto, está dispensado. Mas o respeito à angústia e à insônia dos milhares de candidatos — jovens bacharéis — são um motivo mais que ponderável para justificar essa reincidência temática. Teimosamente, volto ao tema, agregando outro assunto, a dispensa de advogado nos juizados cíveis e uma bizarrice contida no Projeto.
Por partes, então. Achei que a polêmica acerca da famosa questão da ladravaz Jane estava encerrada. Pensei que o comentário do Cezar Bitencourt (não só dele), mostrando que a banca estava equivocada, encerraria o debate.
Antes disso, quero manifestar meu apoio ao Movimento (Carta Aberta) Mobilização “OAB Nós Acreditamos” encabeçado pelo professor Alexandre Mazza, (re)clamando pela aplicação da isonomia na correção da prova de Direito Administrativo. Paradoxalmente, o Direito Administrativo não conseguiu aquilo que lhe é mais caro: a aplicação de um princípio. No mínimo, a banca deveria ter dado ao Direito Administrativo o tratamento dado às duas questões anuladas de Direito Civil. Uma pitada de Dworkin poderia ajudar na discussão, mostrando que todas as decisões devem ser proferidas fundadas em princípios e não por conveniência ou políticas. Fairness: eis a palavra certa!
Mostrei aqui na ConJur a caricatura que era a referida questão. Mais do que isso, era bizarra. Mostrei também que a discussão era de lana caprina, porque o furo é(ra) bem mais embaixo. É uma armadilha discutir “a questão da ladravaz Jane”, em vez de discutir o modelo de questões que se pratica em terrae brasilis.
Agora mesmo descobri que haverá uma audiência pública da OAB sobre o ensino jurídico. Está tendo em todo Brasil... Estão preocupados com o EAD e os cursos de curta duração. Qual é o problema? O problema é a cegueira da OAB, que não percebe que o modelo de ensino exigido/estimulado pelo Exame de Ordem é que viabiliza essas soluções “mágicas”.
Meu desafio: alteremos a forma dos concursos e a forma das questões do Exame de Ordem que, em pouquíssimo tempo, mudaremos o ensino jurídico. A OAB não se dá conta de que ela mesma é quem fomenta isso que está ai. Repito: isso é uma reprodução do problema e não uma solução!
Com relação à filósofa contemporânea Jane, que cleptou um automóvel em Cuiabá, a questão que se põe, antes de tudo, é: queremos discutir um exemplo ou um caso concreto? Ora, do modo como,exemplificando, Guilherme Nucci tentou justificar o gabarito da FGV, tem-se a impressão que a malsinada questão continha um caso minudentemente detalhado... Ora, a questão não trata de um caso jurídico. A pergunta dizia respeito a um mero exemplo. E, por isso, por ser só uma caricatura de caso, devemos analisá-lo nos seus limites... de exemplo, ora pois. Ou seja, não se pode inventar detalhes que a pergunta não contém.
Nucci defendeu o gabarito (clique aqui para ler). Não vou alongar a discussão. Apenas agrego ao que já disse antes. Quero “brincar” com a sintaxe da questão: “Imediatamente, a vítima chamou a polícia e esta empreendeu perseguição ininterrupta, tendo prendido Jane em flagrante somente no dia seguinte, exatamente quando esta tentava cruzar a fronteira para negociar a venda do bem, que estava guardado em local não revelado”.
Atenção: perseguição ininterrupta e flagrante no dia seguinte. Bingo. De que modo, então, Jane escondeu o carro, se a perseguição foi ininterrupta? Sai dessa, banca! Vejam: a polícia de Mato Grosso (do Norte) perseguiu Jane sem parar (ininterruptamente). Mas a prendeu só no dia seguinte, quando tentava cruzar a fronteira. Sim. Jane cleptou o carro e, perseguida, escondeu o carro? De repente, atrás de um arbusto, Jane saiu em desabalada carreira de moto ou bike... Isso foi assim dia e noite? De forma ininterrupta. Sabem quantos quilômetros tem de Cuiabá até a fronteira com o Paraguai? Como assim, no dia seguinte e de forma ininterrupta? Qual é a lógica disso? Já sei. Nenhuma. É uma ficção. Pois como ficção que é, assim deveria ser analisada. E não como um pretenso “caso concreto”. Pronto. I rest my case.
Portanto, a invocação da “intenção da ladra” e as circunstâncias de sua prisão chocam-se e derrubam qualquer aspecto “técnico da questão”. A “senhora ficção” derrota o pretenso “senhor fato”. Isto porque não existe o “senhor fato” nessa estória. É só uma ficçãozinha. Um detalhe a mais para brincarmos com a ficção: que furto importante esse, pois não? Fez com que a polícia de Mato Grosso atravessasse todo o Mato Grosso do Sul, dia e noite, ininterruptamente, para prender uma mulher... já sem o carro. Fico imaginando a cena. A vítima ligando para a polícia e esta, incontinenti, começa a perseguição... rumo ao Paraguai, atravessando o estado de Mato Grosso do Sul. Não pararam nem para lanchar. Nem a acusada. Ou seja, sob qualquer ângulo, a questão é insalvável. Nem o papa salva a questão. Porque ela se esvai em si mesma. Não tem “lógica”. Sou um chato sintático-semântico. Pego ao pé da letra.
Numa palavra final: a questão da prova da OAB é só mais um capítulo da crise de paradigma de dupla face que abala a operacionalidade do Direito há muitos anos. Por isso, não podemos cair na armadilha do “sistema”. Denuncio isso há muito tempo. Só com muita ironia é possível entrar no mérito desse tipo de polêmica e desse tipo de questão, que tanto fez sofrer os jovens bacharéis que se esfalfelam para receber a tão almejada carteira (a eles, minha irrestrita solidariedade e meu apreço; respeito profundamente os advogados; ser advogado é passar por um processo de humilhação cotidiana, mormente para quem não é AFBS — Advogado Famoso e Bem Sucedido). Seria um gesto de grandeza a OAB reconhecer seu erro. E a banca deveria aproveitar para rever seus conceitos. E pedir desculpas aos sofridos candidatos.
Nestes dias em que a OAB faz audiências públicas, uma pitada de Teoria do Direito e epistemologia jurídica poderia ajudar bastante. E ler aqueles autores que há tantos anos critica(ra)m o modo como se ensina direito no Brasil e no modo como (não) se afere os conhecimentos nos concursos públicos e provas da OAB.
Sugestão de questão de concurso ou de prova de ordem. Vale 5 pontos
Já que estamos em tempos de grandes discussões, aproveito para inventar um exemplo que pode servir de “questão de prova”:
Em uma repartição pública, no início de uma bela tarde de sol, um estagiário está atrás da faixa pintada no chão — que estabelecia a distância entre um usuário e outro — esperando para fazer um pagamento em caixa eletrônico. Na sua frente, no caixa, estava o chefe da repartição, que, virando-se, disse ao jovem aprendiz: “Quer se retirar daqui, uma vez que estou fazendo uma transação de caráter pessoal?” Ao que o jovem estagiário respondeu: “Data venia, excelência, eu estou atrás da faixa de espera”. O chefe, então, disse para que o estagiário se dirigisse a outro caixa. Respondeu o estagiário que “em face da especificidade do que iria pagar, isto somente poderia ser feito naquele caixa”. Irritado, o chefe disse: “Pois eu sou o chefe Fulano de Tal e você está demitido; não trabalhará mais aqui nesta nobre repartição”. Na sequência, o chefe puxou o crachá que o jovem aprendiz trazia pendurado no pescoço (segundo o estagiário, a placa identificadora foi arrancada; segundo o chefe, apenas teria puxado o cordão — e com ele, a placa identificativa — com o claro intuito de ver o nome do aprendiz para, posteriormente, dele lembrar-se e proceder a respectiva exoneração, o que, de fato, foi feito, na forma da lei). Consta que o relato foi confirmado por duas testemunhas. O estagiário foi, efetivamente, demitido.
Examinando o exemplo fictício acima, responda: a conduta do chefe possui relevância penal? A conduta do chefe possui relevância no plano disciplinar (Estatuto do Funcionário Público, Código de Ética da respectiva repartição)? Ou é caso de arquivamento? E se for caso de arquivamento, esse critério tem universalidade?
O novo JEC: a institucionalização da burrice e das distâncias sociais
Pois é. Com tantos exames de Ordem e tantas formaturas e tantas faculdades de Direito, leio que o Congresso teve uma ideia genial. Segundo Projeto de Lei do deputado Jorge Tadeu Mudalen (ou seria Mudalei?) (clique aqui para ler o PL 5.123/2013), nas causas de até R$ 27,1 mil não será mais necessária presença de causídico. Antes era até a metade disso (20 salários mínimos). Gostei da nova redação: “Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, não sendo necessária a assistência de advogado; nas de valor superior, a assistência é facultativa”. Quer dizer: até 20 SM, não é necessário o advogado; até 40 SM, também não é. É isso, pois não?
Com chance de ser aprovado, o projeto também estabelece outra pérola: a de que, na hipótese de a petição inicial ser prolixa, a secretaria — sim, a secretaria do juizado — dará prazo ao advogado para emendá-la em 24 horas. Bingo. Vou estocar alimentos. O caos é iminente. A saída será o aeroporto de Cumbica. Rumo à Estação Finlândia. Pela Burkina Faso Airways. Na classe econômica. Qualquer problema, vou ao JEC reclamar...em uma petição bem curtinha (não-prolixa).
Falando sério: não pode ser sério esse projeto. Primeiro, quer-se que causas de até 40 salários mínimos dispensem o patrocínio de advogado. Maravilha. Em um país com alto grau de analfabetismo (funcional ou não), é bom isso. É uma boa forma de fazer com que as “causas” andem mais rápidas. E mais rapidamente sejam perdidas. E a qualidade do julgamento? Isso interessa? Parece que não! O direito não se leva a sério, certo?
Cidadania no Brasil é de primeira, segunda, terceira e quarta classe. O projeto apenas institucionaliza isso. Sua “causa” não tem importância. Afinal, ela é menor do que 40 salários mínimos (mais de três anos de trabalho de um patuléu). Logo, pode entrar no JEC sem advogado.[1] Pergunto: poderíamos fazer outra lei dispensando a presença do Promotor em pequenos delitos... Juiz só seria necessário em causas “complexas”... Policiais só atenderiam ocorrências de furtos acima de determinada quantia... A população faria uma espécie de self service da Justiça! Pouparíamos o dinheiro da Viúva.
Outra sugestão: estender a ideia para a Medicina. Doenças “pequenas” podem ser curadas por atendentes de pharmácia. Ou automedicamentadas. Vamos desafogar o SUS. Criemos uma JEC-SUS.
E na engenharia? Casas até 30 m² não precisam de planta. Nem de “Habite-se”. Faça você mesmo. E nem tente complicar a planta. E se você tiver um engenheiro e ele fizer uma planta complexa, o secretário da repartição mandará alterá-la em 24 horas... Isso também poderia ser aplicado no ensino jurídico: para ensinar a cadeira que trata do JEC, convidaríamos o atendente do fórum ou os funcionários da secretaria do JEC... Afinal, não são eles que, pelo projeto, fiscalizarão se uma petição é não prolixa?
Paradoxos de Pindorama, pois não? Temos mais de 500 mil estudantes de direitos, 1 milhão de formados... E criamos mais vagas nas faculdades. Tem até EAD. Ao mesmo tempo, queremos fazer uma lei que dispensa o trabalho desse profissional. Como estão sobrando advogados, poderíamos emprestá-los para outros ramos que dispensam o acompanhamento do profissional... O problema é que quem dispensa o profissional é tão somente... o Direito. Viva. A Constituição diz que o advogado é (in)dispensável! Estou sem paciência, confesso.
E o que dizer da ultrabizarrice de a secretaria do JEC “mandar” alterar a petição? Onde chegamos? Isso é improbidade legislativa. O projeto deveria ser mandado ao Ministério Público para processar o autor. Quer dizer que, se a causa for patrocinada por advogado, que estudou cinco anos, passou pela corrida de obstáculo que é o Exame de Ordem, ela tem de ter a petição inicial bem simplezinha... Claro. O direito de quem tem uma causa de até 40 salários mínimos não merece qualquer complicação ou sofisticação... Deve ser feita em quadrinhos. Para qualquer imbecil entender. Atenção: a dogmática jurídica tem um novo desafio: conceituar o que é “prolixo”. Surgirão várias “teses”. Até x palavras é “adequado”. Tantos toques a mais, já é prolixo. E tudo pode ir “pro-lixo”! Poupem-me.
Enfim, era o que estava nos faltando. Como conseguimos sobreviver sem isso até hoje?
Como conseguimos sobreviver sem a ladra Jane até estes gloriosos dias? Como sobrevivemos sem saber que Paraguai não faz divisa com o Mato Grosso?
Criaremos uma disciplina nos cursos de Direito chamada “petissões [assim, com dois “esses”] para o JEC? Aquele que escrever sentença com “ç” e “s” (çentensa), ganhará nota 10. E quem escrever qualquer palavra que o secretario do JEC não entender, chumbará.
Enfim, nunca levaremos o Direito a sério?
Larguei. I rest my case! Repetindo o velho Barão do Itataré: “diga-me com quem andas e eu te direi... se posso sair contigo!”
Lançamento em São Paulo
Antigamente isto se chamava de “reclame publicitário”. Pois quero convidar a todos meus leitores (e não leitores) para comparecerem ao lançamento dos meus livros Compreender Direito e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, no dia 8 de agosto, na Livraria RT (Rua Conde do Pinhal, 80, centro de São Paulo), a partir das 18 horas. (clique aqui para mais informações) Estarei lá para “bater papo” (prolixamente).
[1] Atenção: examinando tabula rasa, não há problema em estabelecer que alguém possa se autodefender ou dispensar a assistência de advogado. O problema está no aspecto simbólico. Esta lei é feita em um país que não conseguiu, minimamente, fazer com que se respeite a legalidade “burguesa”... “Conceder” o direito de entrar em juízo desse modo é ignorar as especificidades do Brasil, com ilusões de laissez-faire, laissez passer. Gosto desses surtos de “liberalismo” como o do deputado Mudalei. Seria bom que isso se estendesse ao BNDES e a outras formas de (“maldita”) intervenção estatal... fornecendo subsídios aos “liberais” de Pindorama. Somos “liberais” quando interessa; quando não interessa, penduramo-nos nas tetas do Estado.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 1º de agosto de 2013
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