O Projeto de Lei 2126/2011, proposto pelo Executivo para estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para uso da rede mundial de computadores no país, encontra-se em discussão atualmente no Congresso.
Um dos temas polêmicos do Marco Civil da Internet refere-se à responsabilidade dos provedores por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Em relatório final apresentado pela Comissão Especial formada para discutir o projeto, estabeleceu-se, no artigo 14, a “inimputabilidade da rede”. Isto é, o provedor de conexão não será responsabilizado por danos gerados por conteúdo gerado por terceiros, visto que sua função é apenas disponibilizar a infraestrutura necessária para o trânsito de informações na rede.
Art. 14. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
O artigo 15, por sua vez, dispõe acerca da responsabilidade dos provedores de aplicação de Internet. Os sites que publicam informações produzidas por terceiros, como o Facebook, Twitter e YouTube, incluem-se nesse rol. Esse dispositivo estabelece a regra geral de isenção de responsabilidade civil dos provedores em virtude de danos gerados por conteúdo gerado por terceiros. Como exceção, essa responsabilidade pode ser atribuída se, após ordem judicial específica, o provedor não tomar as providências cabíveis para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, retirar o conteúdo ofensivo.
Art. 15. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e evitar a censura, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviços e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Parágrafo único. A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material
Ou seja, de acordo com o projeto de lei, um provedor de aplicações na Internet pode ser responsabilizado civilmente por conteúdo gerado por terceiros apenas se descumprir ordem judicial determinando a retirada desse conteúdo. Antes da expedição dessa ordem, portanto, não haveria qualquer obrigação do provedor em analisar e retirar conteúdos, por mais ofensivos que estes sejam. O objetivo do projeto é afastar eventuais interpretações que atribuam a esses provedores responsabilidade objetiva, ou seja, independentemente de culpa, por danos gerados por conteúdo ofensivo criado por terceiros. De acordo com essa visão, a fiscalização de todo o material produzido tornaria inviável a atividade econômica dessas empresas e seria uma ameaça à liberdade de expressão dos internautas.
Contudo, verifica-se exagero no projeto, pois o mesmo não se limita a atribuir responsabilidade subjetiva aos provedores, mas praticamente os isenta de responsabilidade. Isto é, mesmo que exista claramente um conteúdo ofensivo a uma pessoa, e esta notifique o provedor para retirá-lo do ar, não há qualquer incentivo para que a empresa o faça. Muito pelo contrário, visto que se o projeto, de um lado, expressamente exclui a obrigação (enquanto não houver decisão judicial) de retirar o conteúdo ilegal do ar, de outro lado silencia quanto à eventual responsabilização civil caso o provedor retire conteúdo não-ofensivo, por violação à liberdade de expressão. Ou seja, na dúvida, os provedores nunca retirarão os conteúdos ofensivos do ar enquanto não houver decisão judicial.
Esse cenário se mostra propício para a ocorrência de danos graves a direitos da personalidade, principalmente privacidade, intimidade e honra, contrariando uma jurisprudência que já vinha se consolidando no Superior Tribunal de Justiça. Nos últimos anos, o tribunal proferiu uma série de decisões, por exemplo nos Recursos Especiais nº 1.306.066 e nº 1.193.764, com o entendimento de que os provedores de aplicações não teriam a obrigação de fiscalizar previamente todos os conteúdos gerados por seus usuários. Todavia, a partir do momento em que tomassem ciência, mesmo extrajudicialmente, acerca de algum dano causado, teriam a obrigação de analisar os fatos e, se houvesse ilegalidade, retirar o conteúdo ofensivo do ar, sob pena de responsabilidade civil.
O projeto de lei retira, portanto, boa parte dos ônus que deveriam recair sobre essas empresas. Tendo em vista que estas auferem lucros com a atividade, permitindo a comunicação entre as pessoas sem qualquer limitação prévia, também deveriam ser atribuídos às mesmas empresas os riscos inerentes a essa atividade. O que o projeto faz, na prática, é transferir esse ônus ao Judiciário, a quem caberia analisar a existência de ilegalidade, facilitando a perpetuação e difusão de conteúdos ofensivos.
O Marco Civil deveria ter consolidado o entendimento do STJ. Dessa forma, num primeiro momento a provedora não seria responsável por fiscalizar os conteúdos gerados pelos usuários, garantindo-se a liberdade de expressão. Porém, a partir do momento em que tomasse ciência, por qualquer forma, acerca de algum conteúdo lesivo a direitos da personalidade de outrem, deveria tomar as providências cabíveis para identificar o autor do dano e retirar os dados ofensivos, sob pena de ser responsabilizada civilmente. Caberia à empresa, nessa situação, realizar um sopesamento dos direitos em conflito, podendo ser responsabilizada pelo sofredor do dano, caso mantenha indevidamente conteúdo ofensivo no ar, ou pelo autor do conteúdo, caso retire conteúdo do ar sem justificativa plausível.
Portanto, o projeto de Marco Civil da Internet, na parte que trata da responsabilidade dos provedores de aplicações por conteúdo gerado por terceiros, contraria entendimento que vinha se consolidando no STJ. O projeto retira o ônus de controlar o conteúdo criado pelos usuários dos provedores, atribuindo-o ao Poder Judiciário. Assim, além de aumentarem os riscos de que o conteúdo se difunda na rede, por tornar mais demorada sua retirada, privilegia-se de forma indevida essas empresas que atuam na Internet, isentando-as de ônus inerente a suas atividades econômicas.
Marcelo Frullani Lopes é advogado graduado na Universidade de São Paulo (USP), sócio de Frullani, Galkowicz & Mantoan Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 13 de agosto de 2013
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