Fredie Didier Jr. - Projeto do Novo Código de Processo Civil
por José Marques
Livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) e professor de
Direito Processual Civil na Universidade Federal da Bahia (Ufba),
Fredie Didier Jr. compôs a comissão de juristas que revisou o
anteprojeto do novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados. O
texto inicial, elaborado e aprovado em curto período de tempo no Senado,
passou, segundo ele, por “inúmeras mudanças” ao tramitar na outra Casa
Legislativa do Congresso. A matéria, que ainda será apreciada em
plenário pelos deputados para em seguida voltar aos senadores, é passiva
de supressões, mas não pode ter o texto alterado por emendas
parlamentares. Para Didier, a grande força do possível novo CPC é que
“ele cria um sistema de força normativa dos precedentes judiciais de
modo a garantir um tratamento igualitário entre pessoas que estão em
situações parecidas”. “O código estrutura um sistema para que, uma vez
consolidado um determinado entendimento nos tribunais superiores, esse
entendimento tenha que ser seguido. Ou seja, evita decisões diferentes
para situações iguais”, resumiu, em entrevista ao Bahia Notícias. O
texto também trata de simplificações no sistema de decisões liminares,
mudanças no Direito de Família e a conversão de ações individuais em
coletivas. Apesar das pressões de setores jurídicos, políticos e da
sociedade civil para que as mudanças no código coadunassem com seus
propósitos, Didier assegura que “ouviu todo mundo” e “todos eles tiveram
pelo menos algum dos interesses atendidos”. “Nenhum deles teve todos os
interesses atendidos, mas todos tiveram ao menos um”, avaliou.
Fotos: Marcela Gelinski / Bahia Notícias
Bahia Notícias – Quando a Comissão de Juristas formada pela
Câmara dos Deputados começou a trabalhar no projeto do Novo Código de
Processo Civil?
Fredie Didier Jr. – Em 2009, o Senado montou uma
Comissão de Juristas para fazer o anteprojeto do Novo Código; em 2010, a
comissão apresentou o anteprojeto, que virou projeto e tramitou na Casa
durante cinco meses e foi, em 2011, para a Câmara dos Deputados. Na
Câmara, foi montada outra Comissão de Juristas para revisar o projeto
tal como ele veio do Senado. Eu sou da Comissão Revisora.
BN – Quando o projeto foi apresentado no Senado?
FDJ – Em 8 de junho de 2010 e, acho importante
colocar, já em dezembro foi aprovado pelo Senado. Ninguém conseguiu
entender [como] isso [aconteceu de forma tão rápida]. Em um ano em que
houve eleição para senador, presidente da República e governador.
BN – Como foi o ritmo na Câmara?
FDJ – Foi outro. Começou em março de 2011 e está lá até hoje. Deve ser votado nesta terça (27).
BN – Mas estava na Ordem do Dia da semana passada...
FDJ – Na terça-feira (20) à noite houve a votação dos
vetos de Dilma, então o clima no Congresso era de uma animosidade
política muito grande. Como o Código, hoje, na Câmara, é um consenso –
porque todas as questões políticas já foram analisadas nesses dois anos
–, eles querem que a votação seja feita em um clima ameno. Por isso,
jogaram para terça-feira, porque não vai ter sessão do Congresso, só da
Câmara. Tudo indica que será votado.
BN – Quando o projeto saiu do Senado e chegou à Câmara, quais os principais pontos revisados?
FDJ – Ah, foram inúmeras mudanças.
BN – Mas quais os pontos-chave?
FDJ – O que mudou não é tão interessante para o
público em geral. Isso é muito técnico. Mais interessante é a versão
atual, que tende a ser 95% aprovada. Temos que destacar as grandes
novidades desse Código. Primeiro: ele cria um sistema de força normativa
dos precedentes judiciais de modo a garantir um tratamento igualitário
entre pessoas que estão em situações parecidas. Ou seja, evita decisões
diferentes para situações iguais. Essa dispersão do entendimento é uma
coisa que acontece muito. Ele estrutura um sistema para que, uma vez
consolidado um determinado entendimento nos tribunais superiores, esse
entendimento tenha que ser seguido. Nada obstante seja possível rever o
entendimento, mas, enquanto não for revisto, ele tem que prevalecer.
Isso trata as pessoas de maneira igual, acelera o processo, desestimula
os recursos. É a grande revolução que o projeto traz. A impressão que eu
tenho é que o projeto foi feito para isso. Esse é um sistema de
respeito aos precedentes judiciais, que dá celeridade e
previsibilidade...
BN – Hoje em dia, como são tratados os precedentes?
FDJ – Não há estruturação do nosso Direito para dar
tratamento aos precedentes. Os precedentes vêm ganhando cada vez mais
força, mas não há ainda um regulamento disso, o que dá margem a muita
insegurança e imprecisão. O código disciplina o modo como se edita um
precedente, se interpreta um precedente, se revoga um precedente, quem
se submete a um precedente e quais são os efeitos de um precedente.
BN – No Novo Código, ações individuais podem se tornar ações coletivas. Queria que o senhor explicasse como isso vai ocorrer.
FDJ – Existe um instituto previsto chamado de
conversão da ação individual em ação coletiva. O objetivo dele é regular
as situações em que a ação individual – uma ação proposta por um
indivíduo – seja, embora individual, essencialmente uma ação coletiva.
Porque o eventual acolhimento do pedido que o autor formule
necessariamente beneficia a coletividade. Se o acolhimento do pedido
dele beneficia a coletividade, é conveniente que tramite como uma ação
coletiva e não individual. Vamos pegar um exemplo de Salvador, um
símbolo da minha geração: o Candyall Guetho Square, que parou de
funcionar por conta de reclamação dos vizinhos de eventual barulho e
confusão de trânsito etc. Imagine que um dos vizinhos, são milhares os
que moram na Cidade Jardim, entrasse com uma ação contra o Candyall para
parar o barulho. Qualquer vizinho pode fazer isso, mas o barulho para
em benefício de todos. Embora individual, o acolhimento desse pedido
necessariamente beneficia a todos. Para situações como essas, que a
doutrina chama de ações pseudoindividuais, porque elas parecem
individuais, mas não são, criou-se esse instituto.
BN – Mas qual o crivo para entender uma ação individual como coletiva?
FDJ – O crivo é esse. É o acolhimento do pedido
individual repercutir na esfera coletiva. Tem que se pensar assim:
acolhido o pedido desse indivíduo, a coletividade se beneficia? Porque,
por exemplo, se eu entrar com uma ação de cobrança contra você, por
algum dinheiro que porventura você esteja me devendo, se eu ganhar, isso
atinge a coletividade de alguma maneira? Não. Minha vitória significa
apenas que vou ganhar o “x” que você me deve. Então ela é puramente
individual, essencialmente individual, estritamente individual. Mas
quando o acolhimento do pedido do autor, necessariamente – não é opção
do juiz – beneficia a coletividade, é melhor que essas ações tramitem
como se fossem coletivas.
BN – O que muda em relação aos embargos infringentes?
FDJ – Os embargos infringentes, como recurso civil, desaparecem do Código de Processo Civil.
BN – Mas quando há acórdão não unânime de um tribunal superior o Novo Código não permite esse tipo de recurso?
FDJ – Não. O que existe no Código é que quando uma
apelação – que é um tipo de recurso – for julgada por maioria e essa
decisão tiver reformado a sentença, o processo prossiga com a convocação
de dois julgadores, para que cinco julguem ao invés de três – porque a
apelação é julgada por três. Então, se der dois a um reformando a
sentença apelada, o projeto diz “não termine o julgamento, continue e
ouça mais dois”. Isso não é recurso. A decisão não terminou, não se está
recorrendo dela. Se está dizendo o seguinte: como teve um voto
divergente, prossiga e colha mais dois votos.
BN – Em relação às liminares, o que será modificado?
FDJ – O que é uma liminar? Liminar é uma decisão
provisória – porque ela precisa ser confirmada depois – que o juiz dá
sem ouvir o réu. O Código reestrutura o sistema das liminares do Brasil.
De que maneira? Hoje, o sistema de liminares do Brasil é muito caótico.
Existem várias regras tratando do mesmo assunto, às vezes com palavras
diferentes, o que gera muita discussão na prática. O que se fez: se
unificou o regime. Criou-se um regime único de decisões provisórias, com
capítulo único, inclusive. Tecnicamente muito sofisticado. Do ponto de
vista técnico é um dos grandes avanços do projeto.
BN – Praticamente, como funciona hoje e como funcionaria?
FDJ – Uma decisão liminar pode ter uma de duas
naturezas. Pode ser uma liminar que satisfaz ou uma que assegura o
direito. Assegurar é apenas tomar providências para que o direito possa
ser efetivado depois. Satisfazer já é satisfazer logo. Me permita uma
metáfora: imagine que duas pessoas disputem um pedaço de carne. Uma vai
para o juiz e diz “seu juiz, preciso comer essa carne, não posso esperar
o processo terminar para só então comer, senão eu morro”. O que essa
pessoa precisa? Uma decisão provisória que permita a ela satisfazer o
direito dela. Comer a carne, na pendência do processo, é satisfazer,
ainda que provisoriamente, o direito dela. Mas e se ela pedisse para o
juiz: “juiz, enquanto nós estivermos brigando, coloque essa carne na
geladeira para quando terminar a briga eu possa comer a carne, ela não
apodrecer fora da geladeira”? Perceba que essa medida é de asseguração
do direito e não de satisfação. Ele está garantindo que, no terminar do
processo, a pessoa possa comer. As pessoas chamam essa liminar de
cautelar. Hoje, como funciona nosso sistema: temos uma regra para a
liminar satisfativa e uma regra para a liminar cautelar. O que dá muita
confusão na prática, porque essa diferença entre cautelar e satisfativa é
muito sutil, muito técnica. Há situações-limite em que você tem dúvida
se está satisfazendo ou apenas cautelando. Então, como são regras
diferentes, há muita discussão na prática por um motivo que não deveria
levar discussão. Então o que o projeto faz? Unifica. Qualquer liminar,
seja satisfativa ou cautelar, vai se submeter ao mesmo regime jurídico,
então acabam as discussões. Ao simplificar você elimina muitas
discussõezinhas técnicas.
BN – Como foi a discussão da Comissão de Revisão com a sociedade civil? Houve também participação política?
FDJ – Houve. Foi um amplo processo de discussão
democrática. Aquilo que a gente vê nos livros – como se deve discutir
democraticamente e ouvir todo mundo – , eu vi acontecer. Eu vi a CNI
[Confederação Nacional da Indústria] sendo ouvida e o MST [Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra] sendo ouvido no mesmo dia. Vi os
advogados o Ministério Público sendo ouvidos. Professores de Norte ao
Sul do Brasil, defensores públicos, os bancos, os cartórios, todos eles
veicularam seus interesses. Todos eles tiveram pelo menos algum dos
interesses atendidos. Nenhum deles teve todos os interesses atendidos,
mas todos tiveram ao menos um.
BN – Quantos juristas compuseram a comissão?
FDJ – Os juristas que ficaram com o trabalho mais
pesado, de reunir as informações, as contribuições e consolidar o texto
foram quatro.
BN – Não haverá emendas parlamentares para alterar o texto?
FDJ – Não se pode colocar mais nada. Mas pode ser que
saiam coisas, que coisas sejam suprimidas. Essa conversão da ação
individual em coletiva pode ser que saia no Senado.
BN – Você chegou a conversar com os líderes das bancadas?
FDJ – Sim. Foram dois anos de trabalho intenso. Eu ia
para Brasília toda semana. Ia participar de audiências públicas fora de
Brasília, inclusive em Salvador. Tudo o que está ali foi fruto de
consenso. Algumas pessoas criticam: “ah, por que não tem isso, por que
não tem aquilo?”, mas é preciso deixar claro que esse não é um código da
academia, mas da democracia, que é brasileira com suas qualidades e
suas imperfeições. No fim das contas o saldo é muito positivo. Me sinto
muito à vontade de dizer que embora eu tenha participação direta no
resultado, tem muita coisa com a qual não concordo.
BN – O senhor pode externar?
FDJ – Por enquanto não. Acho que eticamente não posso
fazer isso, porque, como participei da formação desse consenso, não
quero que ele sofra nenhum tipo de arranhão. Estou guardando as minhas
impressões para, quando o código sair, eu, nos meus escritos, diga o que
concordo ou não. Mas agora não. Estou muito vinculado ao processo e sou
um dos agentes que ajudou a construir esse consenso e não quero que
nada do que eu diga possa comprometer o consenso.
BN – Vai haver mudanças no Direito de Família também, não?
FDJ – Muita, mas eu diria duas grandes mudanças.
Primeiro, se cria um procedimento especial próprio para as ações de
família. As ações de família tramitarão todas elas por um procedimento
diferenciado do procedimento comum. A segunda mudança é no procedimento
de interdição, que sofre profundas mudanças. Há toda uma atualização da
interdição. Do jeito que está no código atual é a mesma forma que se
interditavam pessoas na década de 10 do século passado.
BN – E como fica agora?
FDJ – Deixa-se clara a possibilidade de um curador
provisório, regula-se qual a consequência da interdição para os atos
praticados pelo interditado até então. Por exemplo: o sujeito está com
demência e querem interditá-lo. Mas, daqui que interdite, demora. E os
atos em que ele praticou nesse período? É um problema que o código atual
não resolve, mas o projeto do novo código regula. Permite-se que os
abrigos onde pessoas com problemas são abandonadas possam propor a ação
de interdição. Porque normalmente a ação de interdição estava restrita à
família, mas às vezes a própria família abandona o interditando.
BN – Em relação à separação judicial, houve uma discussão a
respeito da necessidade de ela prevalecer no projeto do Novo Código...
FDJ – Houve. E acabou prevalecendo a ideia de que a separação ainda sobrevive no nosso sistema ao lado do divórcio.
BN – Há necessidade, para o senhor?
FDJ – Eu tenho muitas dúvidas. Há bons argumentos de
ambos os lados. Em uma linha, capitaneada por juristas como Sérgio
Barradas Carneiro (PT-BA), primeiro relator do projeto de novo CPC na
Câmara, a Emenda Constitucional 66 teria acabado com a separação; de
outro, há os que entendam que o Código Civil ainda a prevê e as pessoas
têm o direito de poder optar em desfazer ou não o vínculo matrimonial –
na separação, o vínculo matrimonial permanece.
BN – O senhor gostaria de fazer algumas considerações finais?
FDJ – Sim, obrigado. Gostaria de destacar o papel que a
Bahia teve na tramitação do novo CPC. Em primeiro lugar, com o deputado
Sérgio Barradas Carneiro, primeiro relator na Câmara, que ficou quase
um ano peregrinando pelo Brasil, ouvindo as sugestões e apostando em um
trabalho de aprimoramento técnico do projeto. Do mesmo modo, a minha
participação na Comissão Revisora, um professor baiano e que dá aulas na
Bahia, desde o início dos trabalhos e até agora, já sob nova relatoria.
A audiência pública realizada na Bahia, em setembro de 2011, foi muito
proveitosa, com várias sugestões acolhidas; professores baianos deram
ainda excelente contribuição à redação do projeto: Salomão Viana, Paula
Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira foram responsáveis diretos
por belos aprimoramentos no texto. Finalmente, talvez em reconhecimento a
esse trabalho, Salvador foi escolhida como a cidade onde, em novembro
próximo, processualistas brasileiros se reunirão para discutir o projeto
– será o primeiro encontro, estritamente científico, deste porte, para
tratar do novo Código. Tudo indica que até dezembro o novo Código seja
publicado.
Fonte: BN justiça
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