Em casos de extravio de bagagem em voos internacionais, deve ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor em detrimento da Convenção de Varsóvia. A decisão é da 3ª Vara Cível de São Paulo, que condenou a American Airlines a pagar indenização de R$ 15 mil a um maratonista que teve sua bagagem extraviada em um voo de São Paulo a Nova York. O juiz Álvaro Luiz Valery Mirra seguiu a linha dos tribunais superiores no sentido de que, nestes casos, deve prevalecer os dispositivos do CDC e da Constituição que garantem ao consumidor pedir indenização no valor que achar compatível com o dano sofrido. Cabe recurso.
Tanto o CDC quanto a Constituição proíbem as cláusulas que atenuam a responsabilidade do fornecedor de serviços de transporte aéreo. De acordo com o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, a empresa tem responsabilidade pelo defeito na prestação do serviço de transporte aéreo de pessoas e coisas, não podendo ser atribuída nenhuma parcela de culpa ao autor.
Já a Convenção de Varsóvia, que unificou as regras relativas à aviação civil internacional, estabelece, entre outros deveres, a responsabilidade da empresa transportadora em caso de danos ao passageiro, bagagem e carga ocorridos durante a execução do transporte entre dois ou mais países. O tratado, diferente do CDC, estabelece um limite de multa para extravio da bagagem de até 1.000 Direitos Especiais de Saque (DES). Em janeiro deste ano, o DES foi cotado em $ 2,5742.
Proteção ao consumidor
Consta dos autos que Oswaldo Silveira pegou um voo da American Airlines rumo aos Estados Unidos no dia 28 de outubro de 2009 para participar da Maratona de Nova York. Segundo ele, ao chegar à cidade, percebeu que sua mala tinha sido extraviada. O maratonista procurou a empresa para obter informações e assistência, porém, como a empresa não o ajudou, não lhe restou alternativa se não comprar roupas e objetos necessários para sua estadia e participação na competição. Apenas no dia 2 de novembro ele recebeu a informação de que sua bagagem estava no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.
Ao recorrer à Justiça, Silveira informou que gastou R$ 428,33 na compra e que se sentiu humilhado e frustrado, principalmente porque, devido à falta de seus materiais de corrida, não obteve o resultado esperado na competição, após seis meses de treinamento. Silveira foi representado pelo advogadoPablo Dotto, do escritório Monteiro, Dotto e Monteiro Advogados Associados.
Em sua defesa, a American Airlines alegou que, em se tratando de extravio de bagagem em voo internacional, deve ser aplicada a Convenção de Varsóvia. Citou determinação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), segundo a qual apenas extravios superiores a 30 dias são passiveis de indenização e afirmou ainda que, tratando-se de extravio temporário da mala, o ressarcimento dos bens adquiridos durante a viagem configura enriquecimento sem causa.
Em sua decisão, o juiz Álvaro Luiz Valery Mirra considerou que a aplicação do CDC revoga a Convenção de Varsóvia, no que concerne à tarifação da indenização, por ser norma que trata da relação de consumo fundada na Constituição, em seu artigo 5º, XXXII. Ele citou decisão da 22ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido de que o sistema de limitação da responsabilidade previsto no artigo 22 da Convenção de Varsóvia não está em harmonia com a Constituição, nem com o sistema de proteção ao consumidor promovido pelo Estado, "devendo ser afastado nos casos em que se caracterize a relação de consumo".
Em julgado da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, também citado por Mirra, o colegiado afirma que "não mais prevalece a tarifação prevista na Convenção de Varsóvia". Isso porque deve ser utilizada a lei que melhor beneficie o cidadão, uma vez que as hipóteses de reparação de dano por atraso de voo internacional estão garantidas nas três normas legais.
Culpa ou dolo
Em sua decisão, o juiz destacou que, mesmo que não fosse considerados os dispositivos da Constituição ou do CDC, a Convenção de Varsóvia, em seu artigo 25, e a Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, no artigo 22, dizem que a tarifação da indenização deixa de incidir na hipótese de culpa ou dolo da empresa. Como no caso a empresa não deu qualquer explicação ou assistência ao maratonista sobre o extravio de sua mala, houve culpa grave, segundo o juiz.
"Assim, como se pode perceber, seja pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor, seja pela aplicação da própria Convenção de Varsóvia e demais textos internacionais sobre a responsabilidade civil do transportador aéreo, a conclusão é sempre a mesma, vale dizer, a de que a ré deve indenizar os prejuízos experimentados pelo autor, em sua integralidade, sem qualquer limitação."
O juiz observou ainda que os prejuízos materiais alegados pelo maratonista, relacionados à aquisição de vestuário, de objetos de uso pessoal e para a prática de corrida não compreendem "valor exorbitante", pois correspondem ao necessário para a participação na Maratona de Nova York. Sobre os danos morais, Mirra destacou que os transtornos causados pelo extravio da bagagem e pela demora na solução do problema são inegáveis, não se resumindo a meros aborrecimentos.
"Saliente-se que parte da preparação de um atleta para uma competição é de ordem psicológica, de sorte que ocorrências desse tipo têm o condão de prejudicar sua concentração e performance. Tal peculiaridade da situação vivenciada pelo autor, à evidência, é o quanto basta para a configuração do dano moral reparável pecuniariamente." Com isso, o juiz condenou a American Airlines a pagar para o maratonista R$ 428,33 por danos materiais e R$ 15 mil por danos morais.
Entendimento do STJ
Os ministros do STJ têm aplicado o CDC e a Constituição, além da Convenção de Varsóvia, nos casos que tratam de extravio de bagagens ou atrasos de voos internacionais. No julgamento de um Recurso Especial em 2000, a 4ª Turma entendeu que o limite estipulado nas convenções internacionais sobre transporte aéreo está em desacordo com o CDC, que tem regra expressa para proteger o passageiro do mau serviço prestado pelas empresas de aviação. Desse modo, a turma estabeleceu indenização de 50 salários mínimos a um passageiro da empresa Tower Air Incorporation, baseando a decisão no CDC brasileiro.
Em outra decisão, de 2002, a 3ª Turma condenou a American Airlines e a Circle Fretes Internacionais do Brasil a ressarcir a Bradesco Seguros também com base no CDC. Os ministros entenderam que a Convenção de Varsóvia só deve ser utilizada em casos decorrentes do chamado risco do ar, como queda da aeronave, por exemplo. Para as situações de extravio de carga e bagagem, o CDC é mais adequado.
Clique aqui para ler a decisão da 3ª Vara Cível de São Paulo.
Processo 583.00.2009.229569-5
Ludmila Santos é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 15 de janeiro de 2011
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