Interpretação jurídica no marco do Estado Democrático de Direito:
um estudo a partir do sistema de controle difuso de constitucionalidade no Brasil
http://jus.com.br/revista/texto/3588
Publicado em 01/2003
Sumário: Capítulo 1. Colocação do Problema — a crise de teorias clássicas de interpretação frente às necessidades do controle difuso, 1.1. A Crise da Interpretação, 1.2.A Relação entre Interpretação e o Controle Difuso de Constitucionalidade; Capítulo 2. Da Interpretação Jurídica no Estado Democrático de Direito, 2.1.Interpretação, uma Questão de Paradigmas, 2.1.1. Estado Liberal de Direito, 2.1.2. Estado de Bem-estar Social, 2.1.3. Estado Democrático de Direito; Capítulo 3. Da Interpretação no Estado Democrático de Direito e sua importância para o controle difuso de constitucionalidade no Brasil, 3.1. A Interpretação segundo a Teoria Discursiva de Jürgen Habermas, 3.2. Interpretação Plural da Constituição: a contribuição de Häberle; Capítulo 4. O Sistema de Controle Difuso de Constitucionalidade no Brasil num Novo Marco de Interpretação Jurídica; Bibliografia
Capítulo 1. Colocação do Problema — a crise de teorias clássicas de interpretação frente às necessidades do controle difuso
1.1. A crise da Interpretação
Após tantas "Escolas" que buscaram fundamentar a Hermenêutica Jurídica; após a crise na crença em uma racionalidade que podia conhecer tudo e, com o crescente aumento de complexidade e descentramento da sociedade, muitos vêem a possibilidade da interpretação (ou mais especificamente, de uma interpretação correta, segura) como algo impossível, ou, ao menos, improvável.
Como o desconstrutivismo de Derrida, que possibilitou para Michel Rosenfeld apontar uma crise da Interpretação. Com efeito, Rosenfeld inicia sua obra afirmando que a interpretação nos EUA, enquanto práxis, até mesmo no nível da Suprema Corte, encontra-se em uma grave crise(ROSENFELD, 2000, p. 19).
Esta crise é reflexo do aumento de complexidade na atual sociedade; uma sociedade que, num marco pós-tradicional, já não pode mais contar com fundamentos últimos baseados no sagrado ou em uma "razão absoluta" que a priori forneçam respostas universais à solução de problemas que vão desde os comportamentos desviantes ocorridos em seu interior, até à questão mais básica concernente àquilo que mantém unidos os indivíduos, isto é, daquilo que os torna uma comunidade e não um mero aglomerado de pessoas.
Numa tal realidade a questão sobre a interpretação torna-se imensamente problemática. Afinal, quais seriam os critérios objetivos de validade que "permettant d’atribuer des significations claires et distinctes aux textes juridiques"? (ROSENFELD, 2000, p. 19).
Por isso Rosenfeld começa recorrendo ao desconstrutivismo, para mostrar justamente a dimensão desta crise e a perda de critérios que promovam consenso e determinação em torno do Direito.
Assim, se numa sociedade "moderna", apesar de haver uma "pluralidade de concepções concorrentes do bem", há também o sentimento de promover a unidade desta sociedade dentro da pluralidade; o papel da interpretação limitar-se-ia ao domínio constitucional, onde aquele equilíbrio entre unidade e pluralidade deveria zelar para que a interpretação atuasse de tal forma que nem sub-protegesse nem super-protegesse os Direitos Fundamentais (ROSENFELD, 2000, pp.8-9).
Ao contrário, uma "sociedade pós-moderna" também possui diferentes concepções do bem, mas "n’est pas structurée par une conception largement partagée sur la manière de promouvoir l’unité et la cohesión tandis qu’au même moment elle préserve sa pluralité et traite équitablement les questions issues de sa diversité"(ROSENFELD, 2000, p. 12) [1].
No campo da interpretação, a passagem da sociedade moderna para a pós-moderna seria marcada pela perda na crença de universalidade do Direito Natural (toda interpretação é local) e na crise do Direito Positivo (tido como arbitrário e tendente a favorecer certas preferências particulares que outras.
Desde a perspectiva desconstrutivista, um texto nunca possui apenas um sentido dado, "original", mas cada leitura que se faz dele é sempre uma releitura, isto é, um texto sempre se remete a outros escritos. "Le sens d’un écrit n’est jamais immédiatement donné ni auto-présent car il dépend d’une lecture ultérieure"(ROSENFELD, 2000, p. 24).
Sendo assim cada leitura uma constante reinterpretação do passado e contínua abertura para o futuro, geram-se dois problemas: o significado do texto pode corresponder a qualquer coisa, exceto àquilo que parece hoje e, por outro lado, se é um processo que conduz ao infinito, "ceux qui disposent du pouvoir ou de la ruse, imposeront leur signification (arbitraire) et le droit se dissoudra dans le politique" (ROSENFELD, 2000, p. 25) [2].
Para resolver este problema ele vai trabalhar com um conceito próprio de desconstrução que liga esta à realidade da ontologia (da separação do "eu" e o "outro") e da ética da inclusão— o que põe fim à questão da objetividade ou subjetividade de um texto: nem uma nem outra coisa, o significado de um texto é intersubjeitvo. Assim, o significado de um texto, a despeito de não ser permanente, também não é arbitrário, pois aquelas exigências (da ontologia e da ética) estão circunscritas a um dado momento histórico, limitando a gama de significados legítimos (ROSENFELD, 2000, p. 26-28).
Após traçar este quadro (e após analisar algumas teorias acerca da interpretação), Rosenfeld encontra uma saída através da via que ele chama de "interpretações justas"; de fato, a partir de várias teorias, ele elabora uma teoria "alternativa" que toma o pluralismo(acima referido) não como um problema, mas como princípio diretivo, pluralismo este "amplíssimo", ou, como ele denomina, compreensivo, que abarca não apenas as várias pretensões dos vários grupos em conflito que participam do jogo democrático (isto é, uma concepção de pluralismo que implica tolerância para com diferentes formas de vida), mas também aceita até aqueles grupos "não-tolerantes"; ou seja, "tolerância até para os não tolerantes".
Com o recurso do pluralismo compreensivo, Rosenfeld traça sua solução para a perda de critérios objetivos de interpretação:
Após tantas "Escolas" que buscaram fundamentar a Hermenêutica Jurídica; após a crise na crença em uma racionalidade que podia conhecer tudo e, com o crescente aumento de complexidade e descentramento da sociedade, muitos vêem a possibilidade da interpretação (ou mais especificamente, de uma interpretação correta, segura) como algo impossível, ou, ao menos, improvável.
Como o desconstrutivismo de Derrida, que possibilitou para Michel Rosenfeld apontar uma crise da Interpretação. Com efeito, Rosenfeld inicia sua obra afirmando que a interpretação nos EUA, enquanto práxis, até mesmo no nível da Suprema Corte, encontra-se em uma grave crise(ROSENFELD, 2000, p. 19).
Esta crise é reflexo do aumento de complexidade na atual sociedade; uma sociedade que, num marco pós-tradicional, já não pode mais contar com fundamentos últimos baseados no sagrado ou em uma "razão absoluta" que a priori forneçam respostas universais à solução de problemas que vão desde os comportamentos desviantes ocorridos em seu interior, até à questão mais básica concernente àquilo que mantém unidos os indivíduos, isto é, daquilo que os torna uma comunidade e não um mero aglomerado de pessoas.
Numa tal realidade a questão sobre a interpretação torna-se imensamente problemática. Afinal, quais seriam os critérios objetivos de validade que "permettant d’atribuer des significations claires et distinctes aux textes juridiques"? (ROSENFELD, 2000, p. 19).
Por isso Rosenfeld começa recorrendo ao desconstrutivismo, para mostrar justamente a dimensão desta crise e a perda de critérios que promovam consenso e determinação em torno do Direito.
Assim, se numa sociedade "moderna", apesar de haver uma "pluralidade de concepções concorrentes do bem", há também o sentimento de promover a unidade desta sociedade dentro da pluralidade; o papel da interpretação limitar-se-ia ao domínio constitucional, onde aquele equilíbrio entre unidade e pluralidade deveria zelar para que a interpretação atuasse de tal forma que nem sub-protegesse nem super-protegesse os Direitos Fundamentais (ROSENFELD, 2000, pp.8-9).
Ao contrário, uma "sociedade pós-moderna" também possui diferentes concepções do bem, mas "n’est pas structurée par une conception largement partagée sur la manière de promouvoir l’unité et la cohesión tandis qu’au même moment elle préserve sa pluralité et traite équitablement les questions issues de sa diversité"(ROSENFELD, 2000, p. 12) [1].
No campo da interpretação, a passagem da sociedade moderna para a pós-moderna seria marcada pela perda na crença de universalidade do Direito Natural (toda interpretação é local) e na crise do Direito Positivo (tido como arbitrário e tendente a favorecer certas preferências particulares que outras.
Desde a perspectiva desconstrutivista, um texto nunca possui apenas um sentido dado, "original", mas cada leitura que se faz dele é sempre uma releitura, isto é, um texto sempre se remete a outros escritos. "Le sens d’un écrit n’est jamais immédiatement donné ni auto-présent car il dépend d’une lecture ultérieure"(ROSENFELD, 2000, p. 24).
Sendo assim cada leitura uma constante reinterpretação do passado e contínua abertura para o futuro, geram-se dois problemas: o significado do texto pode corresponder a qualquer coisa, exceto àquilo que parece hoje e, por outro lado, se é um processo que conduz ao infinito, "ceux qui disposent du pouvoir ou de la ruse, imposeront leur signification (arbitraire) et le droit se dissoudra dans le politique" (ROSENFELD, 2000, p. 25) [2].
Para resolver este problema ele vai trabalhar com um conceito próprio de desconstrução que liga esta à realidade da ontologia (da separação do "eu" e o "outro") e da ética da inclusão— o que põe fim à questão da objetividade ou subjetividade de um texto: nem uma nem outra coisa, o significado de um texto é intersubjeitvo. Assim, o significado de um texto, a despeito de não ser permanente, também não é arbitrário, pois aquelas exigências (da ontologia e da ética) estão circunscritas a um dado momento histórico, limitando a gama de significados legítimos (ROSENFELD, 2000, p. 26-28).
Após traçar este quadro (e após analisar algumas teorias acerca da interpretação), Rosenfeld encontra uma saída através da via que ele chama de "interpretações justas"; de fato, a partir de várias teorias, ele elabora uma teoria "alternativa" que toma o pluralismo(acima referido) não como um problema, mas como princípio diretivo, pluralismo este "amplíssimo", ou, como ele denomina, compreensivo, que abarca não apenas as várias pretensões dos vários grupos em conflito que participam do jogo democrático (isto é, uma concepção de pluralismo que implica tolerância para com diferentes formas de vida), mas também aceita até aqueles grupos "não-tolerantes"; ou seja, "tolerância até para os não tolerantes".
Com o recurso do pluralismo compreensivo, Rosenfeld traça sua solução para a perda de critérios objetivos de interpretação:
"La reconstruction contrefactuelle permet au pluralisme compréhensif de relier les sujets partiels, la justice imparfaite et un droit ouvert afin de concevoir des interp’retations justes qui peuvent être partielles et contextuelles, mais qui ne sont pour autant arbitraires ni ne se réduisent à une éthique ou une politique particulières"(ROSENFELD, 2000, pp. 14-15) [3].
1.2. A relação entre interpretação e controle difuso de constitucionalidade
O sistema de controle difuso de constitucionalidade reclama para si — desde um paradigma que propõe democracia e participação — uma teoria da interpretação que leve a sério a unicidade do caso concreto (que todo caso é um hard case), ao mesmo tempo que veja o ordenamento jurídico não como um conjunto de regras em que a aplicação das normas se dá apenas como um processo de subsunção, mas formado também por princípios (que podem se tornar contrários num determinado caso); e, enfim, que conceba a decisão como um processo intersubjetiva e racionalmente formado.
É o que vamos procurar tratar neste breve trabalho: mostrar a atual crise na teoria — clássica — da interpretação, perpassando, dentro do contexto em que surgiram, algumas teorias que têm de alguma forma ligação com o controle de constitucionalidade (que têm tradicionalmente informado a doutrina e jurisprudência dessa àrea) mas que, conforme mostraremos, tornaram-se incapazes de fornecer uma resposta adequada para o momento atual.
Ao mesmo tempo esta reconstrução irá se direcionar ao sistema de controle difuso de constitucionalidade, mostrando sua centralidade no que toca ao sistema de controle de constitucionalidade no Brasil e sua relação com a interpretação, isto é, a importância desta para o funcionamento daquele e deste para a ampliação do espectro de intérpretes.
Assim, não é que neguemos a importância do sistema de controle concentrado ou que este não careça de uma teoria adequada de interpretação, mas somente que, conforme defendemos, se queremos reconhecer uma "sociedade aberta de intérpretes da Constituição" no Brasil, cremos que a possibilidade de que qualquer sujeito questione incidentalmente a constitucionalidade de uma lei, levantando pretensões de validade acerca da interpretação que se dá à Constituição aqui e agora possui um plusem relação à interpretação "desde cima" do controle concentrado[4].
O sistema de controle difuso de constitucionalidade consolida-se no Brasil no princípio do século passado e, à medida que novas formas próprias ao sistema de controle concentrado vão sendo adotadas, incorporam a tradição do primeiro, que permanece como a principal forma de controle de constitucionalidade e certamente a mais ampla oportunidade de discussão constitucional (e, logo, de interpretação da mesma) [5].
O sistema de controle difuso de constitucionalidade reclama para si — desde um paradigma que propõe democracia e participação — uma teoria da interpretação que leve a sério a unicidade do caso concreto (que todo caso é um hard case), ao mesmo tempo que veja o ordenamento jurídico não como um conjunto de regras em que a aplicação das normas se dá apenas como um processo de subsunção, mas formado também por princípios (que podem se tornar contrários num determinado caso); e, enfim, que conceba a decisão como um processo intersubjetiva e racionalmente formado.
É o que vamos procurar tratar neste breve trabalho: mostrar a atual crise na teoria — clássica — da interpretação, perpassando, dentro do contexto em que surgiram, algumas teorias que têm de alguma forma ligação com o controle de constitucionalidade (que têm tradicionalmente informado a doutrina e jurisprudência dessa àrea) mas que, conforme mostraremos, tornaram-se incapazes de fornecer uma resposta adequada para o momento atual.
Ao mesmo tempo esta reconstrução irá se direcionar ao sistema de controle difuso de constitucionalidade, mostrando sua centralidade no que toca ao sistema de controle de constitucionalidade no Brasil e sua relação com a interpretação, isto é, a importância desta para o funcionamento daquele e deste para a ampliação do espectro de intérpretes.
Assim, não é que neguemos a importância do sistema de controle concentrado ou que este não careça de uma teoria adequada de interpretação, mas somente que, conforme defendemos, se queremos reconhecer uma "sociedade aberta de intérpretes da Constituição" no Brasil, cremos que a possibilidade de que qualquer sujeito questione incidentalmente a constitucionalidade de uma lei, levantando pretensões de validade acerca da interpretação que se dá à Constituição aqui e agora possui um plusem relação à interpretação "desde cima" do controle concentrado[4].
O sistema de controle difuso de constitucionalidade consolida-se no Brasil no princípio do século passado e, à medida que novas formas próprias ao sistema de controle concentrado vão sendo adotadas, incorporam a tradição do primeiro, que permanece como a principal forma de controle de constitucionalidade e certamente a mais ampla oportunidade de discussão constitucional (e, logo, de interpretação da mesma) [5].
Capítulo 2.: Da Interpretação Jurídica no Estado Democrático de Direito
2.1. Interpretação, uma questão de paradigmas
Para discutirmos a situação da interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito, precisamos mostrar como os Estados Nacionais se desenvolveram desde o Estado Liberal, apontando diferentes concepções acerca da interpretação presentes em cada um deles.
Valemo-nos da noção de paradigma, no sentido dado por Thomas Khun (In: "A Estrutura das Revoluções Científicas"), o qual salienta a historicidade e descontinuidade do conhecimento científico, que se dá por alteração de paradigmas, que são, pois, aquelas pré-compreensões que integram o pano-de-fundo da linguagem (CARVALHO NETTO, 2001, p. 15); e que, por isso, são requisitos contrafactuais que a possibilitam. A comunicação trabalha com pressupostos contrafactuais para que possa se dar: o pressuposto de que há entendimento funda-se justamente no compartilhamento de um mesmo pano-de-fundo entre o que fala e o que ouve.
Um paradigma é, numa determinada comunidade, um universo que se dá por suposto na (que dá sentido à) normatividade social quotidiana[6].
No que toca ao constitucionalismo, podemos falar em três paradigmas: o do Estado Liberal, Estado Social, e Estado Democrático de Direito.
2.1.1. Estado Liberal de Direito
O primeiro paradigma constitucional da modernidade corresponde ao que se convencionou chamar de Estado Liberal, que, dentro do espírito da época (século XVIII), evocava três princípios fundamentais: igualdade, liberdade e propriedade.
Nesse sentido, Alexis de Tocqueville que, identificando igualdade com democracia, dizia que o processo igualizador — isto é, o desenvolvimento das instituições democráticas — era inevitável, logo, dever-se-ia lutar para preservação da liberdade. Assim, se todos forem iguais, logo nenhum poderá exercer um poder despótico sobre o outro e então os homens (ou a "humanidade", para usar um termo da época) serão livres, porque todos iguais (TOCQUEVILLE, 1978, p. 174).
Estamos diante de uma sociedade que se viu, pela primeira vez, deslumbrada com a declaração da igualdade de todos (fim dos privilégios de nascimento) e liberdade de cada um definir os rumos de sua vida de acordo somente com os rumos dados pelos princípios que a sua razão podia alcançar. Claro que estamos falando da burguesia e dos proprietários ao menos do próprio corpo, como diria Marx, o que implica reconhecer que, em uma sociedade que se orgulhava tanto da liberdade e igualdade de oportunidades (e que tanto deslumbrou Tocqueville), como a americana, conviveram homens livres e escravos durante longo tempo.
Sem embargo, é uma sociedade que reconhece um "todos" através de uma "razão" que os torna iguais e autônomos, à medida que esta razão a-histórica e universal compartilha com as demais a capacidade de destilar princípios tão inatos e óbvios(mais uma vez a presença da noção de paradigma) como a igualdade e a liberdade.
Como bem resumiu Tocqueville ao descrever a sociedade americana:
Para discutirmos a situação da interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito, precisamos mostrar como os Estados Nacionais se desenvolveram desde o Estado Liberal, apontando diferentes concepções acerca da interpretação presentes em cada um deles.
Valemo-nos da noção de paradigma, no sentido dado por Thomas Khun (In: "A Estrutura das Revoluções Científicas"), o qual salienta a historicidade e descontinuidade do conhecimento científico, que se dá por alteração de paradigmas, que são, pois, aquelas pré-compreensões que integram o pano-de-fundo da linguagem (CARVALHO NETTO, 2001, p. 15); e que, por isso, são requisitos contrafactuais que a possibilitam. A comunicação trabalha com pressupostos contrafactuais para que possa se dar: o pressuposto de que há entendimento funda-se justamente no compartilhamento de um mesmo pano-de-fundo entre o que fala e o que ouve.
Um paradigma é, numa determinada comunidade, um universo que se dá por suposto na (que dá sentido à) normatividade social quotidiana[6].
No que toca ao constitucionalismo, podemos falar em três paradigmas: o do Estado Liberal, Estado Social, e Estado Democrático de Direito.
2.1.1. Estado Liberal de Direito
O primeiro paradigma constitucional da modernidade corresponde ao que se convencionou chamar de Estado Liberal, que, dentro do espírito da época (século XVIII), evocava três princípios fundamentais: igualdade, liberdade e propriedade.
Nesse sentido, Alexis de Tocqueville que, identificando igualdade com democracia, dizia que o processo igualizador — isto é, o desenvolvimento das instituições democráticas — era inevitável, logo, dever-se-ia lutar para preservação da liberdade. Assim, se todos forem iguais, logo nenhum poderá exercer um poder despótico sobre o outro e então os homens (ou a "humanidade", para usar um termo da época) serão livres, porque todos iguais (TOCQUEVILLE, 1978, p. 174).
Estamos diante de uma sociedade que se viu, pela primeira vez, deslumbrada com a declaração da igualdade de todos (fim dos privilégios de nascimento) e liberdade de cada um definir os rumos de sua vida de acordo somente com os rumos dados pelos princípios que a sua razão podia alcançar. Claro que estamos falando da burguesia e dos proprietários ao menos do próprio corpo, como diria Marx, o que implica reconhecer que, em uma sociedade que se orgulhava tanto da liberdade e igualdade de oportunidades (e que tanto deslumbrou Tocqueville), como a americana, conviveram homens livres e escravos durante longo tempo.
Sem embargo, é uma sociedade que reconhece um "todos" através de uma "razão" que os torna iguais e autônomos, à medida que esta razão a-histórica e universal compartilha com as demais a capacidade de destilar princípios tão inatos e óbvios(mais uma vez a presença da noção de paradigma) como a igualdade e a liberdade.
Como bem resumiu Tocqueville ao descrever a sociedade americana:
"concebo então uma sociedade onde todos, encarando a lei como sua obra, a amariam e a ela se submeteriam sem constrangimento, onde, ao respeitar a autoridade do governo como necessária, e não divina, o amor dedicado ao chefe de Estado não fosse absolutamente uma paixão, mas um sentimento racional e tranqüilo" (TOCQUEVILLE, 1978, p. 164).
É, pois, uma sociedade que rejeita qualquer fundamento religioso que venha querer ditar normas morais ou jurídicas e que possui uma profunda desconfiança para com o Estado e suas instituições (principalmente na Europa recém exorcizada do absolutismo).
Por isso a burguesia que agora controla (direta/indiretamente) o Estado vê nas leis uma insuportável restrição à sua liberdade e à sua propriedade. Por isso, mesmo que agora, num nível pós-tradicional de justificação exija-se que as decisões coativas do Estado tenham a forma do Direito e que este esteja legitimado por sua aceitabilidade racional (HABERMAS, 1998, p. 202), (mesmo assim), a atuação do Estado deve se restringir àquele mínimo necessário a garantir os direitos conquistados por aquela, isto é, garantir sua maior liberdade possível. Laissez-faire, laissez-passer.
Quanto ao Judiciário especificamente, muito mais ainda pesa grande desconfiança (principalmente na Europa), reminiscência de uma época em que este agia como simples longa manus de reis absolutistas.
Por isso, no que toca à interpretação, os liberais desenvolveram um sistema que, mais do que antes, mantinha o juiz absolutamente presoà lei. Por isso, a interpretação se restringia ao esclarecimento de algum ponto onde houvesse obscuridade (in claris cessat interpretatio).
Já que os códigos elaborados à época com o auxílio da razão absoluta positivaram todo o conteúdo do Direito Natural (Racional), sendo, portanto, a ordenação completa da sociedade, não havia possibilidade de o aplicador não encontrar ali a regra adequada à solução do caso (através do processo de subsunção); poderia haver, no máximo, alguma obscuridade que daria campo aos "comentadores" clarificarem.
Por isso a burguesia que agora controla (direta/indiretamente) o Estado vê nas leis uma insuportável restrição à sua liberdade e à sua propriedade. Por isso, mesmo que agora, num nível pós-tradicional de justificação exija-se que as decisões coativas do Estado tenham a forma do Direito e que este esteja legitimado por sua aceitabilidade racional (HABERMAS, 1998, p. 202), (mesmo assim), a atuação do Estado deve se restringir àquele mínimo necessário a garantir os direitos conquistados por aquela, isto é, garantir sua maior liberdade possível. Laissez-faire, laissez-passer.
Quanto ao Judiciário especificamente, muito mais ainda pesa grande desconfiança (principalmente na Europa), reminiscência de uma época em que este agia como simples longa manus de reis absolutistas.
Por isso, no que toca à interpretação, os liberais desenvolveram um sistema que, mais do que antes, mantinha o juiz absolutamente presoà lei. Por isso, a interpretação se restringia ao esclarecimento de algum ponto onde houvesse obscuridade (in claris cessat interpretatio).
Já que os códigos elaborados à época com o auxílio da razão absoluta positivaram todo o conteúdo do Direito Natural (Racional), sendo, portanto, a ordenação completa da sociedade, não havia possibilidade de o aplicador não encontrar ali a regra adequada à solução do caso (através do processo de subsunção); poderia haver, no máximo, alguma obscuridade que daria campo aos "comentadores" clarificarem.
"Sob este primeiro paradigma constitucional (...), a questão da atividade hermenêutica do juiz só poderia ser vista como uma atividade mecânica, resultado de uma leitura direta dos textos que deveriam ser claros e distintos, e a interpretação algo a ser evitado até mesmo pela consulta ao legislador na hipótese de dúvidas do juiz diante de textos obscuros e intrincados. Ao juiz é reservado o papel de mera bouche de la loi" (CARVALHO NETTO, 2000, p. 479).
Surge então, logo após a edição do Código Civil francês (1803), a Escola Exegética. Os exegetas se propunham a estudar o referido Código crendo que seus comentários poderiam fixar o sentido das regras ali constantes.
A Escola Exegética dominou todo o século XIX. Sem embargo, uma crítica a ela já pode ser vista em Savigny: admitir que apenas haja interpretação quando houver uma "imperfeição acidental da lei" é considerar aquela como um remédio a um mal, remédio este que deve perder sua utilidade à medida que as leis se tornem mais perfeitas [7].
Outro produto da época (apesar de se opor ao Direito Natural) e que se desenvolveu no final do século XVIII, foi a Escola Histórica. Os historicistas eram contrários aos exegetas, e valorizavam o costume, o Volksgeist, como o principal elemento do Direito, chamando, assim, a atenção para o aspecto evolutivo do mesmo.
Contudo estavam por demais preocupados em tentar reconstruir o passado, em descobrir o "espírito da lei", sem contudo conseguir chegar ao presente. Eles se posicionaram contra a concepção de uma razão a-histórica, contudo terminaram caindo no mesmo objetivismo iluminista sem qualquer preocupação com a empiria, com o caso concreto [8].
Maior atenção, contudo, deve ser dada a uma outra corrente que veio a se tornar dominante no cenário de todo o Direito: o Positivismo Jurídico.
Animados pelos desenvolvimentos das ciências naturais, acreditou-se que, trazendo para as ciências humanas "o método" desenvolvido para aquelas, poder-se-ia obter iguais resultados, isto é, pela objetividade, pelo rigor metódico e pela absoluta separação entre sujeito, objeto e método.
O Positivismo Jurídico surge no século XIX, mas pode-se ver antecedentes seus bem antes, por exemplo, nos glosadores (que se dedicavam a comentar o Corpus Iuris Civilis), passando pelas críticas ao Jusnaturalismo feitas tanto pelos exegetas (que apenas reconheciam o Code Napoleon), quanto pelos historicistas (que rejeitavam a abstração do Direito Natural e colocavam o Direito em termos mais concretos, ainda que contrário à lei).
Os positivistas negam qualquer fundamento metafísico ao Direito, tanto uma transcendência religiosa quanto aquela própria do Direito Natural Racional. Direito é apenas aquele posto (positivado) pelo Estado, logo, a Ciência do Direito tem por fim apenas a norma.
"La teoría positivista abogaría por que la ciencia jurídica no se aparte ni de principios generales, ni de derechos válidos por encima de las leys promulgadas, ni de supuestos ontológico-jurídicos (la sociabilidad, el estado de naturaleza, las leys divinas), sino del derecho empírico y fáctico, a saber, las normas escritas y vigentes en una sociedad" (OSUNA FERNÁNDEZ-LARGO, 1992, p. 26). [9]
A dogmática jurídica que discorria a partir do Direito positivado, consolidava leis para a interpretação, aplicação e complementação daquele, como: "lei superior derroga inferior", "lei posterior derroga anterior" e "lei geral derroga lei especial".
O Ordenamento Jurídico apenas poderia ser interpretado para a resolução de antinomias e lacunas acaso existentes (lacunas estas sempre aparentes) através de um sistema de auto-integração, isto é, a completude e harmonia do sistema de regras garantir-se-ia desde dentro, sem recorrer a elementos estranhos ao Direito.
O positivismo prega que se o aplicador tem "dúvidas" quanto à justiça da aplicação da regra ao caso concreto, isto é um falso problema, ou, no máximo, um problema de "política do direito". Contudo, como bem mostra Dworkin, "esta é uma resposta ruim. precisamos de uma teoria do Direito, uma resposta às nossas questões que não nos leve à surpreendente conclusão de que o desacordo que parece tão genuíno e tão absorvente seria, na verdade, ilusório" (DWORKIN, 1997, p. 50).
Dworkin entende, a partir de seu fundamento na "coerência", que não basta o Direito garantir "segurança jurídica" a partir de um sistema de regras jurídicas, como querem os positivistas. O Direito deve almejar também a "integridade na regência do governo", de modo a se formar uma comunidade que não seja regida apenas por regras, mas também por princípios. Caso contrário, em um caso como o citado por ele (Riggs vs. Palmer), a decisão com base apenas em regras forçaria o juiz a permitir que o neto herdasse os bens do avô que ele havia matado, pois não existia qualquer disposição legal em contrário (DWORKIN, 1997, p. 61) [10].
Com efeito, Dworkin mostra muito bem que a concepção positivista de um Ordenamento Jurídico formado apenas por regras, não consegue responder às questões que ultrapassam as regras e se voltam para os princípios.
As leis tradicionais de interpretação mencionadas acima são insuficientes para suprir as deficiências que um sistema de regras tem para dar resposta às pretensões a direito cada vez mais diversificadas que são constantemente levantadas em uma sociedade complexa como a nossa.
2.1.2. Estado de Bem-estar Social
Já no final do século XIX a profunda desigualdade econômica e social entre as pessoas gerada por uma exploração sem precedentes na história, provocou reações. Pululavam revoltas de operários, os sindicatos lutavam por reconhecimento de condições mínimas de trabalho (não se esqueça que os sindicatos, durante longo tempo, foram até proibidos e tiveram de existir na ilegalidade). No meio rural, camponeses eram expulsos de suas fazendas e eram obrigados a procurar trabalho nas cidades, que cresciam sem infra-estrutura, o que agravava os problemas.
Ao mesmo tempo, as idéias de Karl Marx e Engels se difundiam e logo começariam a se reunir as "Internacionais Socialistas". Mais tarde, o sucesso da Revolução Russa (1917) gerou o temor em outros países de que em seu território ocorressem revoluções como aquela.
Diante de tais pressões, os Estados Liberais foram obrigados a ceder, editando leis que, e.g., diminuíam a jornada de trabalho (ao menos para mulheres e crianças), que permitiam o funcionamento de sindicatos; e também ações positivas, no melhoramento estrutural das cidades e até a ampliação do direito de voto (acabando aos poucos com o voto censitário).
Começava-se a difundir a idéia de que o mero elenco de direitos não era suficiente para garantir igualdade e liberdade reais e o efetivo acesso à propriedade.
Reclamava-se a materialização daqueles direitos consagrados em "Declarações" ou mesmo constitucionalmente; percebe-se que, além de se afirmar a igualdade, seria necessário reconhecer as diferenças e proteger o mais fraco [11].
As conseqüências políticas e econômicas da 1ª Guerra Mundial cuidam de sepultar definitivamente o Estado Liberal e faz surgir uma nova fase no constitucionalismo, a do Estado Social, que implicou numa releitura do que até então se entendia por "liberdade, igualdade e propriedade" (como dissemos, uma releitura que reclama a materialização destes), e faz nascer o que tradicionalmente se denominam "direitos sociais".
Como salienta o Professor Menelick, não é que simplesmente se tenham juntado direitos de "Segunda Geração" aos de "Primeira", mas o que há é uma "mudança de paradigma que redefine o conceito de liberdade e igualdade" (CARVALHO NETTO, 2001, p. 16).
É uma grande mudança, pois o Estado amplia a esfera do "público", vindo este resumir-se naquele. Isso quer dizer que, a partir de agora,
"o Estado assume, além as atividades administrativas habituais, inclusive prestação de serviço que até então eram deixadas à iniciativa privada: seja confiando tarefas públicas a pessoas privadas, seja coordenando atividades econômicas privadas através de planos de metas ou se tornando, ele mesmo, ativo enquanto produtor e distribuidor" (HABERMAS, 1984, p. 176).
A preocupação com a materialização dos direitos reflete-se no surgimento de novas teorias acerca da interpretação que não mais prendam o juiz a uma aplicação mecânica da norma ao fato; ganham terreno técnicas de interpretação teleológicas, históricas, sistêmicas e históricas, que rejeitam o sentido subjetivo da "vontade do legislador" para buscar o sentido objetivo da lei (CARVALHO NETTO, 2000, p. 481).
Hans Kelsen, um dos maiores publicistas do século XX, aponta sua desconfiança na busca pela vontade do legislador, tal qual, em geral, propunham as teorias anteriores. "Do ponto de vista do Direito positivo, é indiferente negligenciar o texto para se fixar na presumida vontade do legislador, ou observar estritamente o texto, sem se preocupar com a vontade —normalmente problemática — do legislador" (KELSEN, 1997, p. 36)[12].
Não é fácil classificar a Kelsen dentro de uma corrente do Direito. À falta de consenso entre os estudiosos (e também porque este não é o objetivo deste trabalho), basta-nos afirmar seus grandes contatos com neopositivistas como Laband e Jellinek.
Kelsen queria construir uma Ciência do Direito que fosse "pura" e completa, na medida em que não necessitasse recorrer senão à norma como seu objeto de estudo (deixando de lado, por exemplo, questões como legitimidade, para a Política do Direito e a justiça para a Filosofia do Direito). Em uma época em que Constituições e leis passaram a tratar dos mais diferentes temas, desde a organização do Estado até o número de horas que uma criança poderia trabalhar, passando por normas sobre condições de higiene de restaurantes — estamos sob um paradigma que reclama a atuação estatal nos mais diversos campos —, Kelsen sente a necessidade de purificar o Direito de quaisquer elementos morais, econômicos e valorativos que não fossem "direito" em sentido estrito.
Ele encontra na estrutura do "dever-ser" da norma a resposta para a construção de sua Teoria Pura do Direito. Sem embargo, é importante salientar — haja vista algumas leituras no mínimo equivocadas acerca do autor — que para Kelsen norma não é lei. Apesar de trabalhar com o Direito Positivo, ele não cai em tal simplificação. Norma é "esquema de interpretação" que transforma um ato humano ou fato da natureza em algo significante para o Direito. "O juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa" (KELSEN, Hans. 1997a, p. 4).
Kelsen pertence ao horizonte de conhecimento que ainda diferencia interpretações "autênticas" (feitas pelo legislador ou pelo juiz) e "não-autênticas" (feitas pela dogmática).
Como mostra, porém, o Prof. Marcelo A. Cattoni de Oliveira, "a expressão ‘interpretação autêntica’ não está presente na primeira edição da Teoria Pura do Direito, de 1934, nem num texto sobre interpretação— ‘Sobre a Teoria da Interpretação’" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 31). A expressão apenas surge a partir da edição francesa (1953).
No mencionado texto (que é incorporado à primeira edição da "Teoria Pura do Direito") Kelsen começa por relacionar a Teoria da Interpretação com sua estrutura escalonada de normas.
A Escola Exegética dominou todo o século XIX. Sem embargo, uma crítica a ela já pode ser vista em Savigny: admitir que apenas haja interpretação quando houver uma "imperfeição acidental da lei" é considerar aquela como um remédio a um mal, remédio este que deve perder sua utilidade à medida que as leis se tornem mais perfeitas [7].
Outro produto da época (apesar de se opor ao Direito Natural) e que se desenvolveu no final do século XVIII, foi a Escola Histórica. Os historicistas eram contrários aos exegetas, e valorizavam o costume, o Volksgeist, como o principal elemento do Direito, chamando, assim, a atenção para o aspecto evolutivo do mesmo.
Contudo estavam por demais preocupados em tentar reconstruir o passado, em descobrir o "espírito da lei", sem contudo conseguir chegar ao presente. Eles se posicionaram contra a concepção de uma razão a-histórica, contudo terminaram caindo no mesmo objetivismo iluminista sem qualquer preocupação com a empiria, com o caso concreto [8].
Maior atenção, contudo, deve ser dada a uma outra corrente que veio a se tornar dominante no cenário de todo o Direito: o Positivismo Jurídico.
Animados pelos desenvolvimentos das ciências naturais, acreditou-se que, trazendo para as ciências humanas "o método" desenvolvido para aquelas, poder-se-ia obter iguais resultados, isto é, pela objetividade, pelo rigor metódico e pela absoluta separação entre sujeito, objeto e método.
O Positivismo Jurídico surge no século XIX, mas pode-se ver antecedentes seus bem antes, por exemplo, nos glosadores (que se dedicavam a comentar o Corpus Iuris Civilis), passando pelas críticas ao Jusnaturalismo feitas tanto pelos exegetas (que apenas reconheciam o Code Napoleon), quanto pelos historicistas (que rejeitavam a abstração do Direito Natural e colocavam o Direito em termos mais concretos, ainda que contrário à lei).
Os positivistas negam qualquer fundamento metafísico ao Direito, tanto uma transcendência religiosa quanto aquela própria do Direito Natural Racional. Direito é apenas aquele posto (positivado) pelo Estado, logo, a Ciência do Direito tem por fim apenas a norma.
"La teoría positivista abogaría por que la ciencia jurídica no se aparte ni de principios generales, ni de derechos válidos por encima de las leys promulgadas, ni de supuestos ontológico-jurídicos (la sociabilidad, el estado de naturaleza, las leys divinas), sino del derecho empírico y fáctico, a saber, las normas escritas y vigentes en una sociedad" (OSUNA FERNÁNDEZ-LARGO, 1992, p. 26). [9]
A dogmática jurídica que discorria a partir do Direito positivado, consolidava leis para a interpretação, aplicação e complementação daquele, como: "lei superior derroga inferior", "lei posterior derroga anterior" e "lei geral derroga lei especial".
O Ordenamento Jurídico apenas poderia ser interpretado para a resolução de antinomias e lacunas acaso existentes (lacunas estas sempre aparentes) através de um sistema de auto-integração, isto é, a completude e harmonia do sistema de regras garantir-se-ia desde dentro, sem recorrer a elementos estranhos ao Direito.
O positivismo prega que se o aplicador tem "dúvidas" quanto à justiça da aplicação da regra ao caso concreto, isto é um falso problema, ou, no máximo, um problema de "política do direito". Contudo, como bem mostra Dworkin, "esta é uma resposta ruim. precisamos de uma teoria do Direito, uma resposta às nossas questões que não nos leve à surpreendente conclusão de que o desacordo que parece tão genuíno e tão absorvente seria, na verdade, ilusório" (DWORKIN, 1997, p. 50).
Dworkin entende, a partir de seu fundamento na "coerência", que não basta o Direito garantir "segurança jurídica" a partir de um sistema de regras jurídicas, como querem os positivistas. O Direito deve almejar também a "integridade na regência do governo", de modo a se formar uma comunidade que não seja regida apenas por regras, mas também por princípios. Caso contrário, em um caso como o citado por ele (Riggs vs. Palmer), a decisão com base apenas em regras forçaria o juiz a permitir que o neto herdasse os bens do avô que ele havia matado, pois não existia qualquer disposição legal em contrário (DWORKIN, 1997, p. 61) [10].
Com efeito, Dworkin mostra muito bem que a concepção positivista de um Ordenamento Jurídico formado apenas por regras, não consegue responder às questões que ultrapassam as regras e se voltam para os princípios.
As leis tradicionais de interpretação mencionadas acima são insuficientes para suprir as deficiências que um sistema de regras tem para dar resposta às pretensões a direito cada vez mais diversificadas que são constantemente levantadas em uma sociedade complexa como a nossa.
2.1.2. Estado de Bem-estar Social
Já no final do século XIX a profunda desigualdade econômica e social entre as pessoas gerada por uma exploração sem precedentes na história, provocou reações. Pululavam revoltas de operários, os sindicatos lutavam por reconhecimento de condições mínimas de trabalho (não se esqueça que os sindicatos, durante longo tempo, foram até proibidos e tiveram de existir na ilegalidade). No meio rural, camponeses eram expulsos de suas fazendas e eram obrigados a procurar trabalho nas cidades, que cresciam sem infra-estrutura, o que agravava os problemas.
Ao mesmo tempo, as idéias de Karl Marx e Engels se difundiam e logo começariam a se reunir as "Internacionais Socialistas". Mais tarde, o sucesso da Revolução Russa (1917) gerou o temor em outros países de que em seu território ocorressem revoluções como aquela.
Diante de tais pressões, os Estados Liberais foram obrigados a ceder, editando leis que, e.g., diminuíam a jornada de trabalho (ao menos para mulheres e crianças), que permitiam o funcionamento de sindicatos; e também ações positivas, no melhoramento estrutural das cidades e até a ampliação do direito de voto (acabando aos poucos com o voto censitário).
Começava-se a difundir a idéia de que o mero elenco de direitos não era suficiente para garantir igualdade e liberdade reais e o efetivo acesso à propriedade.
Reclamava-se a materialização daqueles direitos consagrados em "Declarações" ou mesmo constitucionalmente; percebe-se que, além de se afirmar a igualdade, seria necessário reconhecer as diferenças e proteger o mais fraco [11].
As conseqüências políticas e econômicas da 1ª Guerra Mundial cuidam de sepultar definitivamente o Estado Liberal e faz surgir uma nova fase no constitucionalismo, a do Estado Social, que implicou numa releitura do que até então se entendia por "liberdade, igualdade e propriedade" (como dissemos, uma releitura que reclama a materialização destes), e faz nascer o que tradicionalmente se denominam "direitos sociais".
Como salienta o Professor Menelick, não é que simplesmente se tenham juntado direitos de "Segunda Geração" aos de "Primeira", mas o que há é uma "mudança de paradigma que redefine o conceito de liberdade e igualdade" (CARVALHO NETTO, 2001, p. 16).
É uma grande mudança, pois o Estado amplia a esfera do "público", vindo este resumir-se naquele. Isso quer dizer que, a partir de agora,
"o Estado assume, além as atividades administrativas habituais, inclusive prestação de serviço que até então eram deixadas à iniciativa privada: seja confiando tarefas públicas a pessoas privadas, seja coordenando atividades econômicas privadas através de planos de metas ou se tornando, ele mesmo, ativo enquanto produtor e distribuidor" (HABERMAS, 1984, p. 176).
A preocupação com a materialização dos direitos reflete-se no surgimento de novas teorias acerca da interpretação que não mais prendam o juiz a uma aplicação mecânica da norma ao fato; ganham terreno técnicas de interpretação teleológicas, históricas, sistêmicas e históricas, que rejeitam o sentido subjetivo da "vontade do legislador" para buscar o sentido objetivo da lei (CARVALHO NETTO, 2000, p. 481).
Hans Kelsen, um dos maiores publicistas do século XX, aponta sua desconfiança na busca pela vontade do legislador, tal qual, em geral, propunham as teorias anteriores. "Do ponto de vista do Direito positivo, é indiferente negligenciar o texto para se fixar na presumida vontade do legislador, ou observar estritamente o texto, sem se preocupar com a vontade —normalmente problemática — do legislador" (KELSEN, 1997, p. 36)[12].
Não é fácil classificar a Kelsen dentro de uma corrente do Direito. À falta de consenso entre os estudiosos (e também porque este não é o objetivo deste trabalho), basta-nos afirmar seus grandes contatos com neopositivistas como Laband e Jellinek.
Kelsen queria construir uma Ciência do Direito que fosse "pura" e completa, na medida em que não necessitasse recorrer senão à norma como seu objeto de estudo (deixando de lado, por exemplo, questões como legitimidade, para a Política do Direito e a justiça para a Filosofia do Direito). Em uma época em que Constituições e leis passaram a tratar dos mais diferentes temas, desde a organização do Estado até o número de horas que uma criança poderia trabalhar, passando por normas sobre condições de higiene de restaurantes — estamos sob um paradigma que reclama a atuação estatal nos mais diversos campos —, Kelsen sente a necessidade de purificar o Direito de quaisquer elementos morais, econômicos e valorativos que não fossem "direito" em sentido estrito.
Ele encontra na estrutura do "dever-ser" da norma a resposta para a construção de sua Teoria Pura do Direito. Sem embargo, é importante salientar — haja vista algumas leituras no mínimo equivocadas acerca do autor — que para Kelsen norma não é lei. Apesar de trabalhar com o Direito Positivo, ele não cai em tal simplificação. Norma é "esquema de interpretação" que transforma um ato humano ou fato da natureza em algo significante para o Direito. "O juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa" (KELSEN, Hans. 1997a, p. 4).
Kelsen pertence ao horizonte de conhecimento que ainda diferencia interpretações "autênticas" (feitas pelo legislador ou pelo juiz) e "não-autênticas" (feitas pela dogmática).
Como mostra, porém, o Prof. Marcelo A. Cattoni de Oliveira, "a expressão ‘interpretação autêntica’ não está presente na primeira edição da Teoria Pura do Direito, de 1934, nem num texto sobre interpretação— ‘Sobre a Teoria da Interpretação’" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 31). A expressão apenas surge a partir da edição francesa (1953).
No mencionado texto (que é incorporado à primeira edição da "Teoria Pura do Direito") Kelsen começa por relacionar a Teoria da Interpretação com sua estrutura escalonada de normas.
"Interpretação é uma atividade intelectual que acompanha o processo de criação do Direito, no seu movimento de um nível mais alto da estrutura hierárquica para um nível mais baixo, que por sua vez é regulado por aquele nível mais alto. No caso (...) da interpretação das leis, a questão que se coloca é como se chegar, na aplicação da norma geral (lei) a um caso concreto, a uma norma individual (uma decisão judicial ou um ato administrativo)" (KELSEN, 1997b, pp. 31-32) [13].
Assim, seja em qual for o nível hierárquico, a interpretação sempre se relaciona com a autorização que um nível superior do ordenamento dá ao legislador ou ao juiz (já que para Kelsen o juiz ao decidir um caso também está produzindo uma norma, apenas que neste caso, uma norma individual) de produzir atos normativos inferiores.
Pode ocorrer que o juiz, ou ainda mais, o legislador, possuam um campo "maior" para, diante de normais mais gerias, poder determiná-las. Essa "margem" pode ter sido intencional (e.g. por um ato de delegação) ou não intencional; é aqui que a questão da interpretação ganha corpo.
A "indeterminação não-intencional" da norma a ser aplicada pode advir de alguma ambigüidade nas palavras ou no texto como um todo, de uma diferença entre o que ela diz e o que teria sido a intenção do legislador ou porque há duas normas contrárias regulando a mesma situação. "Em todos esse casos, a norma a ser implementada é simplesmente uma molduradentro da qual existem várias possibilidades de implementação, e todo ato que ficar dentro dessa moldura, preenchendo-a em algum sentido possível, está conforme com a norma" (KELSEN, 1997b, p. 35, grifos nossos).
A Teoria da Interpretação que ele desenvolve pressupõe que haja alguma daquelas "excepcionalidades", quando, então, poder-se-ia escolher dentre várias interpretações possíveis fechadas numa "moldura" ou quadro interpretativo, sendo que não haveria qualquer critério (no Direito Positivo) que dissesse qual dentre elas deveria ser adotada.
O jurista vienês critica a "Jurisprudência Tradicional" que procurava métodos que lhes permitissem, com o uso da razão, "descobrir" a única interpretação que seria conforme à lei. Importa salientar que já se observa aqui um avanço frente aos exegetas, pois Kelsen percebe que, por mais que sua Teoria gire em torno da norma, esta, como "esquema de interpretação" não se resume ao texto (lei), isto é, que o texto não pode por si regular comportamentos, necessita, no caso, da Ciência do Direito para que ela estabeleça a moldura de interpretações possíveis.
A edição francesa (1953) foi, mais do que uma mera tradução, uma reformulação da Teoria Pura. Nesta edição ele esclarece que a fixação daquela "moldura" das interpretações possíveis é papel da Dogmática Jurídica, que, como intérprete não-autêntico, apenas descreveas possibilidades, mas nunca fixa a correta, atividade esta que cabe apenas ao intérprete autêntico, isto é, àquele que cria nova norma aplicando outra superior (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 39).
Kelsen fixa explicitamente a idéia já presente na edição anterior de que a interpretação "não-oficial" poderia apenas influenciar o aplicador; as razões de que este se vale para escolher uma ou outra interpretação possível não diz respeito à Teoria do Direito.
Quando vem a lume a edição de 1960, ocorre, aí sim, uma mudança radical na teoria kelseniana; é o chamado "giro decisionista" de Kelsen, onde ele passa a defender que a autoridade que aplica o Direito possui liberdade não apenas para escolher alguma das interpretações possíveis postas na moldura, mas também possui a faculdade de, por ser autoridade, criar direito novo fora do quadro (interpretação nova).
Pode ocorrer que o juiz, ou ainda mais, o legislador, possuam um campo "maior" para, diante de normais mais gerias, poder determiná-las. Essa "margem" pode ter sido intencional (e.g. por um ato de delegação) ou não intencional; é aqui que a questão da interpretação ganha corpo.
A "indeterminação não-intencional" da norma a ser aplicada pode advir de alguma ambigüidade nas palavras ou no texto como um todo, de uma diferença entre o que ela diz e o que teria sido a intenção do legislador ou porque há duas normas contrárias regulando a mesma situação. "Em todos esse casos, a norma a ser implementada é simplesmente uma molduradentro da qual existem várias possibilidades de implementação, e todo ato que ficar dentro dessa moldura, preenchendo-a em algum sentido possível, está conforme com a norma" (KELSEN, 1997b, p. 35, grifos nossos).
A Teoria da Interpretação que ele desenvolve pressupõe que haja alguma daquelas "excepcionalidades", quando, então, poder-se-ia escolher dentre várias interpretações possíveis fechadas numa "moldura" ou quadro interpretativo, sendo que não haveria qualquer critério (no Direito Positivo) que dissesse qual dentre elas deveria ser adotada.
O jurista vienês critica a "Jurisprudência Tradicional" que procurava métodos que lhes permitissem, com o uso da razão, "descobrir" a única interpretação que seria conforme à lei. Importa salientar que já se observa aqui um avanço frente aos exegetas, pois Kelsen percebe que, por mais que sua Teoria gire em torno da norma, esta, como "esquema de interpretação" não se resume ao texto (lei), isto é, que o texto não pode por si regular comportamentos, necessita, no caso, da Ciência do Direito para que ela estabeleça a moldura de interpretações possíveis.
A edição francesa (1953) foi, mais do que uma mera tradução, uma reformulação da Teoria Pura. Nesta edição ele esclarece que a fixação daquela "moldura" das interpretações possíveis é papel da Dogmática Jurídica, que, como intérprete não-autêntico, apenas descreveas possibilidades, mas nunca fixa a correta, atividade esta que cabe apenas ao intérprete autêntico, isto é, àquele que cria nova norma aplicando outra superior (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 39).
Kelsen fixa explicitamente a idéia já presente na edição anterior de que a interpretação "não-oficial" poderia apenas influenciar o aplicador; as razões de que este se vale para escolher uma ou outra interpretação possível não diz respeito à Teoria do Direito.
Quando vem a lume a edição de 1960, ocorre, aí sim, uma mudança radical na teoria kelseniana; é o chamado "giro decisionista" de Kelsen, onde ele passa a defender que a autoridade que aplica o Direito possui liberdade não apenas para escolher alguma das interpretações possíveis postas na moldura, mas também possui a faculdade de, por ser autoridade, criar direito novo fora do quadro (interpretação nova).
"A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva [i.é., feita pela doutrina e colocada na moldura] da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa" (KELSEN, 1997a, p. 394, grifos nossos).
Aparentemente Kelsen percebe que a Dogmática poderia não ser capaz de inferir todas as interpretações possíveis [14]— aliás, ele nem havia entrado na questão de como seria possível à Dogmática fazê-lo — e então caso aquilo ocorresse, o aplicador poderia completaro trabalho. Cede-se não apenas à impossibilidade de se estabelecer todas as interpretações possíveis, como também à faticidade de que a autoridade não apenas não está vinculada ao que disse a doutrina, mas que, por vezes, age em desconsideração a esta.
Mais uma vez trata-se do problema de teorias que entendem o Direito como um sistema fechado de regras; havendo colisão entre elas, o juiz há que dar uma decisão do tipo "tudo ou nada", isto é, em um tal sistema que não considera princípios, as "colisiones de reglas traen consigo una indeterminación de la situación jurídica, que sólo cabe eliminar ya en términos decisionistas" (HABERMAS, 1998, p. 279).
Outro ponto que vale a pena ser lembrado é que Kelsen não se volta para o caso concreto como evento único e irrepetível e a partir do qual se terá de encontrar a norma aplicável. Todo esse processo reconstrutivo, circunscrito a uma época e lugar específicos, faz parte da interpretação. Assim, mesmo que haja várias interpretações ou normas passíveis de serem aplicáveis ao caso, isso não quer dizer que todas sejam adequadas[15].
2.1.3. Estado Democrático de Direito
O Estado de Bem-estar começa a se desgastar principalmente após os movimentos de contestação dos anos 60. Mas é na década de 70, quando a economia sofre uma desaceleração (somada à crise do petróleo), que ele entra em xeque. De fato, o Estado Interventor necessita de constante crescimento econômico que propicie grande arrecadação de impostos para que possa executar seus programas sociais.
A crise gera reclamações de certos setores por mais autonomia e que culpavam a intervenção econômica do Estado e o protecionismo contra a livre circulação de mercadorias entre as nações como as principais causas da estagnação. Destes postulados nascem os conceitos hoje tão difundidos: "neoliberalismo" e "globalização".
De toda sorte, há pelo menos mais duas questões importantes; primeiro, que, mesmo nos países democráticos, a proposta maior (final) do Estado Assistencialista não se efetivou, qual seja, a de, a partir de condições materiais dadas pelo Estado, formar cidadãos auto-conscientes de seu papel na esfera pública.
Ao contrário, o que se viu foi o Estado tomando para si toda a dimensão do público, deixando os indivíduos na posição (cômoda?) de clientes, numa relação paternalista e dependente [16].
A sociedade, ao mesmo tempo, tornou-se mais complexa, demandando novas pretensões a direitos a partir de diferentes concepções de vida boa, às vezes incompatíveis umas com as outras, e muitas vezes incompatíveis com a concepção dominante cristalizada pelo Estado.
Para dar conta dessa nova demanda — que implica numa redefinição do que se entende por Estado, soberania popular [17], democracia, cidadania; que implica na proteção a novas pretensões a direitos— e como uma alternativa a uma concepção (uma volta) a um Estado Mínimo, é construída a via do Estado Democrático de Direito.
Como dissemos, é um projeto cujo "único conteúdo (...) é a institucionalização aprimorada passo a passo do procedimento de formação racional da vontade coletiva, procedimento que não pode prejudicar os objetivos concretos dos envolvidos" (HABERMAS, 1990, p. 112).
Delineia-se, pois, um novo paradigma, onde o cidadão deverá ter a oportunidade de influir nos centros decisórios e onde o público não se resume ao estatal (conforme infra). O paradigma do Estado Democrático de Direito reclama um "direito participativo, pluralista e aberto" (CARVALHO NETTO, 2000, p. 481).
No que toca à interpretação, reclama-se uma maior atenção à especificidade do caso concreto.
Para, então, traçarmos os novos rumos da interpretação nesse novo paradigma, poderíamos citar uma gama bem variada de autores; preferimos, contudo (tal como temos até agora feito), considerando o objetivo desta monografia, concentrarmo-nos em apenas alguns dos que, para esta, consideramos centrais. Procuraremos, no próximo capítulo, ao mostrar as teorias desses autores, reforçar a importância da Teoria de Interpretação para todo o campo do Direito e, particularmente, no que toca ao controle difuso de constitucionalidade.
Tomamos aqui como central a Teoria do Discurso de Jürgen Habermas [18] e, a partir de Habermas, teceremos breves considerações sobre Gadamer, Dworkin e, finalmente, Häberle.
Mais uma vez trata-se do problema de teorias que entendem o Direito como um sistema fechado de regras; havendo colisão entre elas, o juiz há que dar uma decisão do tipo "tudo ou nada", isto é, em um tal sistema que não considera princípios, as "colisiones de reglas traen consigo una indeterminación de la situación jurídica, que sólo cabe eliminar ya en términos decisionistas" (HABERMAS, 1998, p. 279).
Outro ponto que vale a pena ser lembrado é que Kelsen não se volta para o caso concreto como evento único e irrepetível e a partir do qual se terá de encontrar a norma aplicável. Todo esse processo reconstrutivo, circunscrito a uma época e lugar específicos, faz parte da interpretação. Assim, mesmo que haja várias interpretações ou normas passíveis de serem aplicáveis ao caso, isso não quer dizer que todas sejam adequadas[15].
2.1.3. Estado Democrático de Direito
O Estado de Bem-estar começa a se desgastar principalmente após os movimentos de contestação dos anos 60. Mas é na década de 70, quando a economia sofre uma desaceleração (somada à crise do petróleo), que ele entra em xeque. De fato, o Estado Interventor necessita de constante crescimento econômico que propicie grande arrecadação de impostos para que possa executar seus programas sociais.
A crise gera reclamações de certos setores por mais autonomia e que culpavam a intervenção econômica do Estado e o protecionismo contra a livre circulação de mercadorias entre as nações como as principais causas da estagnação. Destes postulados nascem os conceitos hoje tão difundidos: "neoliberalismo" e "globalização".
De toda sorte, há pelo menos mais duas questões importantes; primeiro, que, mesmo nos países democráticos, a proposta maior (final) do Estado Assistencialista não se efetivou, qual seja, a de, a partir de condições materiais dadas pelo Estado, formar cidadãos auto-conscientes de seu papel na esfera pública.
Ao contrário, o que se viu foi o Estado tomando para si toda a dimensão do público, deixando os indivíduos na posição (cômoda?) de clientes, numa relação paternalista e dependente [16].
A sociedade, ao mesmo tempo, tornou-se mais complexa, demandando novas pretensões a direitos a partir de diferentes concepções de vida boa, às vezes incompatíveis umas com as outras, e muitas vezes incompatíveis com a concepção dominante cristalizada pelo Estado.
Para dar conta dessa nova demanda — que implica numa redefinição do que se entende por Estado, soberania popular [17], democracia, cidadania; que implica na proteção a novas pretensões a direitos— e como uma alternativa a uma concepção (uma volta) a um Estado Mínimo, é construída a via do Estado Democrático de Direito.
Como dissemos, é um projeto cujo "único conteúdo (...) é a institucionalização aprimorada passo a passo do procedimento de formação racional da vontade coletiva, procedimento que não pode prejudicar os objetivos concretos dos envolvidos" (HABERMAS, 1990, p. 112).
Delineia-se, pois, um novo paradigma, onde o cidadão deverá ter a oportunidade de influir nos centros decisórios e onde o público não se resume ao estatal (conforme infra). O paradigma do Estado Democrático de Direito reclama um "direito participativo, pluralista e aberto" (CARVALHO NETTO, 2000, p. 481).
No que toca à interpretação, reclama-se uma maior atenção à especificidade do caso concreto.
Para, então, traçarmos os novos rumos da interpretação nesse novo paradigma, poderíamos citar uma gama bem variada de autores; preferimos, contudo (tal como temos até agora feito), considerando o objetivo desta monografia, concentrarmo-nos em apenas alguns dos que, para esta, consideramos centrais. Procuraremos, no próximo capítulo, ao mostrar as teorias desses autores, reforçar a importância da Teoria de Interpretação para todo o campo do Direito e, particularmente, no que toca ao controle difuso de constitucionalidade.
Tomamos aqui como central a Teoria do Discurso de Jürgen Habermas [18] e, a partir de Habermas, teceremos breves considerações sobre Gadamer, Dworkin e, finalmente, Häberle.
Capítulo 3: Da Interpretação no Estado Democrático de Direito e sua importância para o controle difuso de constitucionalidade no Brasil
3.1. A Interpretação segundo a Teoria Discursiva de Jürgen Habermas
Para entendermos a Teoria do Discurso de Habermas, começaremos explicando alguns de seus conceitos. Em primeiro lugar, o "giro lingüístico" feito pela Filosofia da Linguagem, que ele toma para desenvolver sua Teoria da Ação Comunicativa. O Capítulo 1 do seu "Faticidade e Validade" retoma (e retrabalha) esses conceitos.
Habermas mostra como a "razão prática" —expressão mais elaborada da filosofia iluminista (ao lado da "razão pura", ambos conceitos kantianos), uma filosofia centrada na razão que podia conhecer tudo, logo, sua denominação "filosofia da consciência" — recebe a contribuição da Filosofia da História (Hegel), mas acaba superada pela complexidade das sociedades modernas, onde o "indivíduo" não é mais um ponto de partida, mas o começo do problema. O ponto de partida agora é lingüístico, logo coletivo.
Sem querer cair numa negação total da razão (como fazem os desconstrutivistas como Derrida) e por ainda acreditar num projeto "inacabado" da modernidade [19], retoma a razão para sua teoria, apenas que não como uma racionalidade individualista (onde os indivíduos são tratados como mônadas que podem, isoladamente conhecer tudo através da razão). A razão prática kantiana não pode produzir normatividade por si, não pode explicar como as pessoas são livres e iguais.
Como Habermas quer trabalhar com a linguagem, com as interações intersubjetivas, não pode aceitar uma racionalidade que se concentra no sujeito, por isso substitui a razão prática pela razão comunicativa, que pode ser definida como sendo "el medio lingüistico, mediante el que se concatenan las interacciones y se estructuran las formas de vida" (HABERMAS, 1998, p. 65) [20].
São dois, basicamente, os pressupostos à comunicação: que os agentes tenham uma atitude performativa e que se perceba que eles perseguem sem reservas seus fins ilocucionários, isto é, que os participantes num processo de entendimento ligam seu acordo "al reconocimiento intersubjetivo de pretensiones de validez susceptibles de crítica y se muestran dispuestos a asumir las obligaciones relevantes para la secuencia de interación que se siguen de un consenso" (HABERMAS, 1998, p. 66) [21].
Estes pressupostos, assumidos pelos sujeitos que se envolvem numa interação orientada ao entendimento são contrafáticos, idealizantes. Rompe-se, pois, com uma separação rígida entre "real" e "ideal". Como mostra Habermas, a "realidade" está permeada por idealidades. Importa, pois, para ele, que a comunicação efetivamente ocorra, dentro das condições ideais do discurso.
Com a perda do monopólio da interpretação pela religião (ou de quaisquer outros referenciais unitários), a integração social apenas pode se dar em instâncias que gerem consensos, ou ao menos, compromissos racionais entre os falantes. Assim, os participantes devem ter iguais oportunidades de oferecer suas pretensões e se mostrar dispostos a terem as mesmas suscetíveis à crítica, para que se chegue o mais próximo possível a um consenso.
A tensão entre Faticidade e Validade se mostra aqui no modo de integração dos indivíduos. A linguagem desempenha papel fundamental, contudo, os processos de entendimento apenas poderão ocorrer se os participantes se comportarem não como observadores externos, nem como atores que visam seu próprio êxito, mas tendo uma atitude performativa de alguém que busca se entender com outro sobre algo.
Contudo, o risco de dissenso gerado por aquela tensão, isto é, pelo posicionamento de afirmações e negações frente a pretensões de validade, pode ser contornado com o conceito de "mundo da vida". É que se todas as pretensões de validade estivessem ao mesmo tempo em discussão, o provável dissenso daí advindo resultaria mais em perda que em ganho discursivo (tornaria improvável a integração social). Dessa forma, a ação comunicativa parte de um "horizonte de convicciones comunes aproblemáticas" (HABERMAS, 1998, p. 83).
Este assentamento das questões básicas da comunidade jurídica, sem embargo, começa a se agitar quando aumenta a complexidade desta mesma sociedade, trazendo novas expectativas de comportamento, a partir de novas biografias. A partir do momento em que convicções de fundo começam a se chocar, a Ação Comunicativa toma seu papel na manutenção (ou na reformulação) da integridade social, pois, como diz José E. Farias, "o dissenso é o ponto de partida para a conquista do consenso" (FARIAS, 1978, p. 106).
Estas sociedade complexas de que fala Habermas, onde o risco de dissenso é crescente, são as sociedades modernas nas quais vivemos (chamadas, como já vimos, de "pós-modernas" por alguns).
José Eduardo Farias acentua, por sua vez, que a crescente impossibilidade de consenso é potencializada por uma sociedade de consumo que cobra contínua especialização de interesses e necessidades (gerando complexidade) e, ao mesmo tempo, impõe padrões médios às pessoas (estes, por sua vez, redutores de complexidade) (FARIAS, 1978, p. 32) [22].
Este é um problema central na obra de autores contemporâneos.
A questão da integração social e do risco do dissenso, estão na base, por exemplo, da tensão entre a Faticidade da coerção estatal (externa) e a Validade da força de convicções internas de que fala Habermas.
A saída proposta por ele passa pelo reconhecimento da centralidade do Direito Positivo no contexto da integração social. Vale a pena repisar que num contexto sacralizado de integração social, a questão da legitimidade não toma grandes foros; ao contrário, é justamente com a perda daquela centralidade e a necessária imposição do Direito referido não mais a Deus ou à autoridade hereditariamente constituída, que a questão da legitimidade aflora.
Para entendermos a Teoria do Discurso de Habermas, começaremos explicando alguns de seus conceitos. Em primeiro lugar, o "giro lingüístico" feito pela Filosofia da Linguagem, que ele toma para desenvolver sua Teoria da Ação Comunicativa. O Capítulo 1 do seu "Faticidade e Validade" retoma (e retrabalha) esses conceitos.
Habermas mostra como a "razão prática" —expressão mais elaborada da filosofia iluminista (ao lado da "razão pura", ambos conceitos kantianos), uma filosofia centrada na razão que podia conhecer tudo, logo, sua denominação "filosofia da consciência" — recebe a contribuição da Filosofia da História (Hegel), mas acaba superada pela complexidade das sociedades modernas, onde o "indivíduo" não é mais um ponto de partida, mas o começo do problema. O ponto de partida agora é lingüístico, logo coletivo.
Sem querer cair numa negação total da razão (como fazem os desconstrutivistas como Derrida) e por ainda acreditar num projeto "inacabado" da modernidade [19], retoma a razão para sua teoria, apenas que não como uma racionalidade individualista (onde os indivíduos são tratados como mônadas que podem, isoladamente conhecer tudo através da razão). A razão prática kantiana não pode produzir normatividade por si, não pode explicar como as pessoas são livres e iguais.
Como Habermas quer trabalhar com a linguagem, com as interações intersubjetivas, não pode aceitar uma racionalidade que se concentra no sujeito, por isso substitui a razão prática pela razão comunicativa, que pode ser definida como sendo "el medio lingüistico, mediante el que se concatenan las interacciones y se estructuran las formas de vida" (HABERMAS, 1998, p. 65) [20].
São dois, basicamente, os pressupostos à comunicação: que os agentes tenham uma atitude performativa e que se perceba que eles perseguem sem reservas seus fins ilocucionários, isto é, que os participantes num processo de entendimento ligam seu acordo "al reconocimiento intersubjetivo de pretensiones de validez susceptibles de crítica y se muestran dispuestos a asumir las obligaciones relevantes para la secuencia de interación que se siguen de un consenso" (HABERMAS, 1998, p. 66) [21].
Estes pressupostos, assumidos pelos sujeitos que se envolvem numa interação orientada ao entendimento são contrafáticos, idealizantes. Rompe-se, pois, com uma separação rígida entre "real" e "ideal". Como mostra Habermas, a "realidade" está permeada por idealidades. Importa, pois, para ele, que a comunicação efetivamente ocorra, dentro das condições ideais do discurso.
Com a perda do monopólio da interpretação pela religião (ou de quaisquer outros referenciais unitários), a integração social apenas pode se dar em instâncias que gerem consensos, ou ao menos, compromissos racionais entre os falantes. Assim, os participantes devem ter iguais oportunidades de oferecer suas pretensões e se mostrar dispostos a terem as mesmas suscetíveis à crítica, para que se chegue o mais próximo possível a um consenso.
A tensão entre Faticidade e Validade se mostra aqui no modo de integração dos indivíduos. A linguagem desempenha papel fundamental, contudo, os processos de entendimento apenas poderão ocorrer se os participantes se comportarem não como observadores externos, nem como atores que visam seu próprio êxito, mas tendo uma atitude performativa de alguém que busca se entender com outro sobre algo.
Contudo, o risco de dissenso gerado por aquela tensão, isto é, pelo posicionamento de afirmações e negações frente a pretensões de validade, pode ser contornado com o conceito de "mundo da vida". É que se todas as pretensões de validade estivessem ao mesmo tempo em discussão, o provável dissenso daí advindo resultaria mais em perda que em ganho discursivo (tornaria improvável a integração social). Dessa forma, a ação comunicativa parte de um "horizonte de convicciones comunes aproblemáticas" (HABERMAS, 1998, p. 83).
Este assentamento das questões básicas da comunidade jurídica, sem embargo, começa a se agitar quando aumenta a complexidade desta mesma sociedade, trazendo novas expectativas de comportamento, a partir de novas biografias. A partir do momento em que convicções de fundo começam a se chocar, a Ação Comunicativa toma seu papel na manutenção (ou na reformulação) da integridade social, pois, como diz José E. Farias, "o dissenso é o ponto de partida para a conquista do consenso" (FARIAS, 1978, p. 106).
Estas sociedade complexas de que fala Habermas, onde o risco de dissenso é crescente, são as sociedades modernas nas quais vivemos (chamadas, como já vimos, de "pós-modernas" por alguns).
José Eduardo Farias acentua, por sua vez, que a crescente impossibilidade de consenso é potencializada por uma sociedade de consumo que cobra contínua especialização de interesses e necessidades (gerando complexidade) e, ao mesmo tempo, impõe padrões médios às pessoas (estes, por sua vez, redutores de complexidade) (FARIAS, 1978, p. 32) [22].
Este é um problema central na obra de autores contemporâneos.
A questão da integração social e do risco do dissenso, estão na base, por exemplo, da tensão entre a Faticidade da coerção estatal (externa) e a Validade da força de convicções internas de que fala Habermas.
A saída proposta por ele passa pelo reconhecimento da centralidade do Direito Positivo no contexto da integração social. Vale a pena repisar que num contexto sacralizado de integração social, a questão da legitimidade não toma grandes foros; ao contrário, é justamente com a perda daquela centralidade e a necessária imposição do Direito referido não mais a Deus ou à autoridade hereditariamente constituída, que a questão da legitimidade aflora.
Nesse contexto, apenas com a crença de que o destinatário da norma é também um seu feitor é que a imposição do Direito, inclusive através de sanções se pode justificar (HABERMAS, 1998, p. 94) [23].
A solução desse paradoxo do Direito (que produz a si mesmo e impõe sanções) é explicado pela relação interna entre aquele e a Política: o Direito se faz impor pela força do aparelho estatal (que atribui força coletivamente vinculante às suas decisões). A Política, através do Direito, obtém forma jurídica. Isso explica a faticidade do Direito. Sua legitimidade, contudo, surge doutra face daquela relação, isto é, o Direito cobra legitimidade a partir do processo de produção das normas [24].
Com isso, colocando o Direito no centro da questão relativa ao problema da integração social e mostrando sua relação com a Política, Habermas a resolve nos seguintes termos: "el proceso de produción de normas constituye por tanto, en el sistema jurídico el auténtico lugar de la integração social" (HABERMAS, 1998, p. 94) [25].
Através do Processo Legislativo o Direito estabiliza as expectativas de comportamento dos cidadãos, expectativas estas apresentadas e discutidas discursivamente. Para que isso ocorra, deve-se levar em conta o Princípio do Discurso, segundo o qual "válidas son aquellas normas (y sólo aquellas normas) a las que todos los que puedan verse afectados por ellas pudiesen prestar su asentimiento como participantes en discursos racionales" (HABERMAS, 1998, p. 172) [26].
Questões éticas, políticas e pragmáticas postas serão, pois, respondidas atendendo-se, em cada um dos correspondentes tipos de discurso, às regras que operacionalizam o Princípio do Discurso.
Nota-se que este princípio, (diferente da Moral), não procura dar conteúdo às questões quando propostas, mas apenas diz como podem a formação da opinião e da vontade serem institucionalizadas por um sistema de direitos que assegure participação no processo legislativo em condições de igualdade. Igual proteção de todos que significa que o processo democrático há de assumir o risco de ter de aceitar que quaisquer temas e contribuições, informações e razões alcancem a arena do debate público (HABERMAS, 1998, p. 646) [27].
A tensão entre Faticidade e Validade se manifesta aqui no interior da Administração da Justiça, que precisa se equilibrar entre o princípio da segurança jurídica e a pretensão de decisões corretas. Por um lado o Direito estabiliza expectativas de comportamento e as impõe coercitivamente. Assim, as decisões judiciais devem restar consistentes com (i.é., tomar como pano-de-fundo) "el marco del orden jurídico vigente (...), [que é] el producto de todo un inabarcable tejido de decisiones pasadas del legislador e de los jueces, o de tradiciones articuladas en términos de derecho consuetudinario" (HABERMAS, 1998, p. 267).
Por outro lado, a decisão tem de estar de acordo não apenas com o passado e com o direito vigente, mas também deve ser racionalmente aceitável. O problema da racionalidade das decisões foi abordado por várias teorias. Habermas seleciona algumas e passa a discorrer sobre elas.
Em primeiro lugar a Hermenêutica Jurídica resolveu aquela questão inserindo a razão no contexto histórico da tradição.
Gadamer possui (entre outros) o mérito de explicitar a idéia de que nenhuma regra pode regular sua própria aplicação e foi ele quem primeiro uniu este momento (da aplicação) com dois outros até então separados: a compreensão e a interpretação. Para Gadamer, estes três momentos formam um processo unitário (GADAMER, 1988, p. 379) [28].
Isso representa um ganho imenso para a prática jurídica, pois agora denota-se que não é possível, e.g., aplicar uma norma sem, ao mesmo tempo, compreendê-la e interpretá-la. Não é que o juiz escolhainterpretar (e compreender) a norma, mas que é impossível que ele tente aplicá-la sem, ao mesmo tempo, fazer incidir um juízo sobre a mesma. Afinal, "la generalidad de la norma se determina e interpreta en la concreción del caso (...), [logo] es ajeno ao conocimiento jurídico el pretender una ciencia pura de lo verdadero en sí, independentimiente de su lectura histórica y continuada hasta el presente" (GADAMER, 1988, p. 648).
Gadamer salienta a historicidade de todo conhecimento. O passado é compreensível a partir de seu contraste com o presente. Aquele elemento da tradição em aparece na linguagem (seguindo Heidegger), que, ao mesmo tempo que nos dá o horizonte do presente, "traz a marca do passado, é a vida do passado no presente e, portanto, constitui o movimento da tradição" (MOUFFE, 1996, p. 31) [29].
Já aqui se vê uma sofisticação com relação à exegese, aos positivistas e aos historicistas. Em relação àqueles dois primeiros, pela crença que possuíam no texto, por acreditarem que o texto da regra pode regular a vida por si (e não só, mas também que o ordenamento pode regular todasas situações de aplicação). Aos historicistas, por não compreenderem a diversidade dos horizontes (passado e presente), tratando os eventos históricos objetivamente (como se tal fosse possível); assim, ao contrário desses, Gadamer já consegue perceber a impossibilidade de se querer interpretar o passado desde a perspectiva dos que o viveram, pois entre o passado e o agora há um ganho, um aprendizado que, quer queira quer não, condiciona o olhardo intérprete.
É uma crítica também a Kelsen, entre outras coisas, porque este apenas via sentido em se proceder a uma exercício de interpretação quando houvesse problemas de clareza do texto ou antinomias. Também por sua tentativa de construir uma Teoria Pura, fruto ainda de uma visão que cria na objetividade do conhecimento humano sem se aperceber que este é construído intersubjetivamente.
Voltando a Gadamer, este explica que a pré-compreensão do juiz está determinada pelos topoi da tradição, ou seja, de uma eticidade; é isso o que guia o estabelecimento de relação entre normas e estados de coisas. Com isso ele quer romper com a separação rígida entre sujeito e objeto, já que o primeiro, antes ponto de partida, agora é problemático; ao mesmo tempo, quer mostrar que o que o intérprete faz não é buscar o "sentido original" do texto, mas proceder à renovação da efetividade histórica do texto, referindo-se à nova situação na qual procede a interpretação (OSUNA FERNÁNDEZ-LARGO, 1992, p. 87) [30].
A crítica de Habermas concentra-se justamente no recurso de Gadamer a uma tradição, pois, em sociedades plurais como a nossa, que portanto, possuem tradições diversas e igualmente válidas, nenhum juiz tem condições de recorrer a um ethos reinante.
Outra resposta à racionalidade das decisões a dá Ronald Dworkin, com sua teoria deontológica das pretensões de validade jurídicas. Dworkin, além de romper com o círculo hermenêutico, não permite que o Direito caia na contingência (como os positivistas) ou esteja à disposição de objetivos políticos (como os realistas) (HABERMAS, 1998, pp. 278-279).
Ao contrário, Dworkin consegue mostrar como obter racionalidade nas decisões jurídicas recorrendo aos princípios. Os princípios, que não são dados por topoi historicamente comprovados, estão fundamentados no seu conceito de "interpretação construtiva", que busca formular sues conceitos das práticas sociais, rejeitando, pois, esquemas vindos das ciências da natureza (DWORKIN, 1997, p. 57), tal qual fizeram a maioria das teorias até então expostas, inclusive Kelsen, pois que Dworkin ao invés de negar que cada intérprete possui propósitos (escondendo-os sob o manto da objetividade), aceita-os, explicitando, ademais, que cada intérprete vai possuir finalidades distintas que vão orientar as interpretações.
Com isso, colocando o Direito no centro da questão relativa ao problema da integração social e mostrando sua relação com a Política, Habermas a resolve nos seguintes termos: "el proceso de produción de normas constituye por tanto, en el sistema jurídico el auténtico lugar de la integração social" (HABERMAS, 1998, p. 94) [25].
Através do Processo Legislativo o Direito estabiliza as expectativas de comportamento dos cidadãos, expectativas estas apresentadas e discutidas discursivamente. Para que isso ocorra, deve-se levar em conta o Princípio do Discurso, segundo o qual "válidas son aquellas normas (y sólo aquellas normas) a las que todos los que puedan verse afectados por ellas pudiesen prestar su asentimiento como participantes en discursos racionales" (HABERMAS, 1998, p. 172) [26].
Questões éticas, políticas e pragmáticas postas serão, pois, respondidas atendendo-se, em cada um dos correspondentes tipos de discurso, às regras que operacionalizam o Princípio do Discurso.
Nota-se que este princípio, (diferente da Moral), não procura dar conteúdo às questões quando propostas, mas apenas diz como podem a formação da opinião e da vontade serem institucionalizadas por um sistema de direitos que assegure participação no processo legislativo em condições de igualdade. Igual proteção de todos que significa que o processo democrático há de assumir o risco de ter de aceitar que quaisquer temas e contribuições, informações e razões alcancem a arena do debate público (HABERMAS, 1998, p. 646) [27].
A tensão entre Faticidade e Validade se manifesta aqui no interior da Administração da Justiça, que precisa se equilibrar entre o princípio da segurança jurídica e a pretensão de decisões corretas. Por um lado o Direito estabiliza expectativas de comportamento e as impõe coercitivamente. Assim, as decisões judiciais devem restar consistentes com (i.é., tomar como pano-de-fundo) "el marco del orden jurídico vigente (...), [que é] el producto de todo un inabarcable tejido de decisiones pasadas del legislador e de los jueces, o de tradiciones articuladas en términos de derecho consuetudinario" (HABERMAS, 1998, p. 267).
Por outro lado, a decisão tem de estar de acordo não apenas com o passado e com o direito vigente, mas também deve ser racionalmente aceitável. O problema da racionalidade das decisões foi abordado por várias teorias. Habermas seleciona algumas e passa a discorrer sobre elas.
Em primeiro lugar a Hermenêutica Jurídica resolveu aquela questão inserindo a razão no contexto histórico da tradição.
Gadamer possui (entre outros) o mérito de explicitar a idéia de que nenhuma regra pode regular sua própria aplicação e foi ele quem primeiro uniu este momento (da aplicação) com dois outros até então separados: a compreensão e a interpretação. Para Gadamer, estes três momentos formam um processo unitário (GADAMER, 1988, p. 379) [28].
Isso representa um ganho imenso para a prática jurídica, pois agora denota-se que não é possível, e.g., aplicar uma norma sem, ao mesmo tempo, compreendê-la e interpretá-la. Não é que o juiz escolhainterpretar (e compreender) a norma, mas que é impossível que ele tente aplicá-la sem, ao mesmo tempo, fazer incidir um juízo sobre a mesma. Afinal, "la generalidad de la norma se determina e interpreta en la concreción del caso (...), [logo] es ajeno ao conocimiento jurídico el pretender una ciencia pura de lo verdadero en sí, independentimiente de su lectura histórica y continuada hasta el presente" (GADAMER, 1988, p. 648).
Gadamer salienta a historicidade de todo conhecimento. O passado é compreensível a partir de seu contraste com o presente. Aquele elemento da tradição em aparece na linguagem (seguindo Heidegger), que, ao mesmo tempo que nos dá o horizonte do presente, "traz a marca do passado, é a vida do passado no presente e, portanto, constitui o movimento da tradição" (MOUFFE, 1996, p. 31) [29].
Já aqui se vê uma sofisticação com relação à exegese, aos positivistas e aos historicistas. Em relação àqueles dois primeiros, pela crença que possuíam no texto, por acreditarem que o texto da regra pode regular a vida por si (e não só, mas também que o ordenamento pode regular todasas situações de aplicação). Aos historicistas, por não compreenderem a diversidade dos horizontes (passado e presente), tratando os eventos históricos objetivamente (como se tal fosse possível); assim, ao contrário desses, Gadamer já consegue perceber a impossibilidade de se querer interpretar o passado desde a perspectiva dos que o viveram, pois entre o passado e o agora há um ganho, um aprendizado que, quer queira quer não, condiciona o olhardo intérprete.
É uma crítica também a Kelsen, entre outras coisas, porque este apenas via sentido em se proceder a uma exercício de interpretação quando houvesse problemas de clareza do texto ou antinomias. Também por sua tentativa de construir uma Teoria Pura, fruto ainda de uma visão que cria na objetividade do conhecimento humano sem se aperceber que este é construído intersubjetivamente.
Voltando a Gadamer, este explica que a pré-compreensão do juiz está determinada pelos topoi da tradição, ou seja, de uma eticidade; é isso o que guia o estabelecimento de relação entre normas e estados de coisas. Com isso ele quer romper com a separação rígida entre sujeito e objeto, já que o primeiro, antes ponto de partida, agora é problemático; ao mesmo tempo, quer mostrar que o que o intérprete faz não é buscar o "sentido original" do texto, mas proceder à renovação da efetividade histórica do texto, referindo-se à nova situação na qual procede a interpretação (OSUNA FERNÁNDEZ-LARGO, 1992, p. 87) [30].
A crítica de Habermas concentra-se justamente no recurso de Gadamer a uma tradição, pois, em sociedades plurais como a nossa, que portanto, possuem tradições diversas e igualmente válidas, nenhum juiz tem condições de recorrer a um ethos reinante.
Outra resposta à racionalidade das decisões a dá Ronald Dworkin, com sua teoria deontológica das pretensões de validade jurídicas. Dworkin, além de romper com o círculo hermenêutico, não permite que o Direito caia na contingência (como os positivistas) ou esteja à disposição de objetivos políticos (como os realistas) (HABERMAS, 1998, pp. 278-279).
Ao contrário, Dworkin consegue mostrar como obter racionalidade nas decisões jurídicas recorrendo aos princípios. Os princípios, que não são dados por topoi historicamente comprovados, estão fundamentados no seu conceito de "interpretação construtiva", que busca formular sues conceitos das práticas sociais, rejeitando, pois, esquemas vindos das ciências da natureza (DWORKIN, 1997, p. 57), tal qual fizeram a maioria das teorias até então expostas, inclusive Kelsen, pois que Dworkin ao invés de negar que cada intérprete possui propósitos (escondendo-os sob o manto da objetividade), aceita-os, explicitando, ademais, que cada intérprete vai possuir finalidades distintas que vão orientar as interpretações.
Cada juiz deve chegar a uma decisão válida na medida em que ele compensa a indeterminação do direito apoiando sua decisão na reconstrução que faz da ordem jurídica, de modo que o direito vigente possa ser justificado a partir de uma série ordenada de princípios. Esta tarefa, que cabe a todo juiz (de qualquer instância), implica que ele deve decidir um caso concreto tendo em mira "o Direito em conjunto" (através dos princípios), o que nada mais é do que sua obrigação prévia frente à Constituição (HABERMAS, 1998, p. 286).
A integridade é a medida que garantirá tanto a segurança jurídica quanto aceitabilidade racional à sentença. "Segundo o Direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam dos princípios de justiça, eqüidade [fairness] e devido processo legal" (DWORKIN, 1999, p. 272). Ele procura então princípios válidos, a partir dos quais seja possível justificar uma ordem jurídica concreta, de modo que nela se encaixem todas as decisões como se fossem componentes coerentes (retiradas, é claro, aquelas que possuem erros).
Reconhecendo a dificuldade de uma tal tarefa, Dworkin cria a figura do juiz Hércules: um magistrado que, ao mesmo tempo, conhece todos os princípios e vê os elementos do direito vigente ligados por "fios argumentativos". Desde essa perspectiva, os juízes são, ao mesmo tempo, autores (porque acrescentam algo ao Direito) e críticos (porque o interpretam). Por isso a analogia que faz entre a atividade interpretativa do juiz e um romance escrito em cadeia, onde cada autor escreve um capítulo da história (e para isso tem de ler os antecedentes) (DWORKIN, 1999, p. 276 e segs e 1997, p. 51 e segs).
A Teoria de Dworkin pretendia que o juiz fosse capaz de dar a melhor interpretação a partir de vários elementos (como a reconstrução história institucional de uma comunidade específica); contudo, vários têm sido os autores que o questionam.
Rosenfeld, por exemplo, alega que o conceito de integridade proposto por aquele "is too amorphous to furnish sufficient structure to the counterfactual imagination (...). [Exceto se tomado o termo em] a contextually ground reconstruction adapted to the actual tensions and contradictions found within prevailing social and political relations" (ROSENFELD, 1995, pp. 1067-1068 e 2000, p. 23).
Reconhecendo a dificuldade de uma tal tarefa, Dworkin cria a figura do juiz Hércules: um magistrado que, ao mesmo tempo, conhece todos os princípios e vê os elementos do direito vigente ligados por "fios argumentativos". Desde essa perspectiva, os juízes são, ao mesmo tempo, autores (porque acrescentam algo ao Direito) e críticos (porque o interpretam). Por isso a analogia que faz entre a atividade interpretativa do juiz e um romance escrito em cadeia, onde cada autor escreve um capítulo da história (e para isso tem de ler os antecedentes) (DWORKIN, 1999, p. 276 e segs e 1997, p. 51 e segs).
A Teoria de Dworkin pretendia que o juiz fosse capaz de dar a melhor interpretação a partir de vários elementos (como a reconstrução história institucional de uma comunidade específica); contudo, vários têm sido os autores que o questionam.
Rosenfeld, por exemplo, alega que o conceito de integridade proposto por aquele "is too amorphous to furnish sufficient structure to the counterfactual imagination (...). [Exceto se tomado o termo em] a contextually ground reconstruction adapted to the actual tensions and contradictions found within prevailing social and political relations" (ROSENFELD, 1995, pp. 1067-1068 e 2000, p. 23).
Habermas, por seu turno, questiona o papel solitário do juiz "Hércules", que pressupõe alguém que tenha a pretensão de um privilégio cognitivo que garanta, sozinho, a integridade da comunidade jurídica. Ora, se o Direito é a principal forma de integração social e deve respeitar o princípio da integridade, logo, o juiz não deveria ficar sozinho na realização de sua tarefa (HABERMAS, 1998, pp. 293-294) [31].
Para contornar isso, é preciso, a partir dos postulados do agir comunicativo, isto é, da prática da argumentação, que exige de cada participante a assunção das perspectivas de todos os outros (prevalência do melhor argumento), para que se relacionem aquelas exigências ideais à Teoria do Direito apontadas por Dworkin não à pessoa do juiz, mas ao contraditório desenvolvido pelas partes (e até às interpretações não-oficiaisproduzidas a todo momento por cada agente social).
Assim, desde uma racionalidade comunicativa (e não mais individual), a interpretação não se dá isolada, mas intersubjetivamente.
Habermas propõe, então, uma Teoria da Argumentação que, levando a sério elementos como "argumentos", "correção", "discurso" (etc.), retirem do juiz aquele fardo. Desta forma, aquele que queira levar a cabo a interpretação, deve fazê-lo levando em consideração "también la perspectiva de cada uno de los demás potenciales participantes" (HABERMAS, 1998, p. 302).
Assim, desde uma racionalidade comunicativa (e não mais individual), a interpretação não se dá isolada, mas intersubjetivamente.
Habermas propõe, então, uma Teoria da Argumentação que, levando a sério elementos como "argumentos", "correção", "discurso" (etc.), retirem do juiz aquele fardo. Desta forma, aquele que queira levar a cabo a interpretação, deve fazê-lo levando em consideração "también la perspectiva de cada uno de los demás potenciales participantes" (HABERMAS, 1998, p. 302).
Este é o ponto central, já fizemos menção à importância de, numa interação discursiva, considerar-se a exposição e prevalência do melhor argumento (supra), pois, apenas assim, a decisão cumprirá os dois requisitos, quais sejam, certeza jurídica e também aceitabilidade racional. Esclareça-se, contudo, que o que as normas de Direito Processual devem fazer não é garantir a argumentação como tal, mas criar o ambiente que a possibilite ocorrer de forma livre (HABERMAS, 1998, p. 307).
O processo deve garantir não apenas a possibilidadedo contraditório, mas que, efetivamente, as partes participem da formação do provimento jurisdicional; de forma que, caso isso não ocorra em um processo específico de forma satisfatória, o mesmo seja tido como nulo. Nesse sentido o Professor Aroldo Plínio, "há processo sempre onde houver o procedimento realizado em contraditório entre os interessados, e a essência deste está na‘simétrica paridade’ da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos" (GONÇALVES, 1992, p. 115) [32].
Apresentadas em linhas gerais uma Teoria da Interpretação que, conforme temos mostrado (e retomaremos ao final desta), mostra-se mais adequada ao modelo difuso de controle de constitucionalidade, passaremos a fazer uma breve observação à Teoria da Sociedade Aberta de Intérpretes da Constituição, de Peter Häberle, mostrando que apenas tomando a sério as várias interpretações feitas na periferia, a Constituição poderá desenvolver-se legitimamente.
3.2. Interpretação Plural da Constituição: a contribuição de Häberle
O primeiro pressuposto de Häberle em seu livro é o de que não há norma jurídica de per se, senão a norma interpretada, e, por outro lado, "todo aquele que vive a Constituição é um seu legítimo intérprete" [33]. Qualquer medida que restrinja algum daqueles postulados fecha a comunidade de intérpretes.
O destinatário da norma a interpreta pelo simples fato de ser afetado (positiva ou negativamente) pela mesma. Afinal, Häberle ultrapassou a perspectiva que apenas consegue enxergar a possibilidade de interpretação quanto há obscuridade ou antinomias (cf. supra). Ao contrário, inseres-se num paradigma que pressupõe a condição hermenêutica do ser humano.
Importante ressaltar que a "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição" não é uma reivindicação de Häberle (algo como uma proposição de lege ferenda ), ao contrário, segundo ele, isto já é uma realidade (HÄBERLE, 1992, p. 30). Isso é particularmente significativo num contexto como o da tradição do nosso constitucionalismo, pois se para nós pode parecer natural uma concepção mais ampla dos intérpretes da Constituição (resultado de um sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis), na Alemanha isso parece ser um grande desafio, dada a conjuntura historicamente marcada pela centralização da interpretação constitucional nas mãos de uma Corte Constitucional.
Talvez por isso ele tenha de insistir em dizer que "a interpretação constitucional jurídica traduz (apenas) a pluralidade da esfera pública e da realidade (...), as necessidades e as possibilidades da comunidade, que constam do texto, que antecedem os textos constitucionais ou subjazem a eles" (HÄBERLE, 1992, p. 43).
Percebe-se presente em sua teoria aquele Princípio do Discurso a que fizemos referência supra quando Häberle postula que o Direito Constitucional é formado por "consensos", isto é, pelos conflitos e compromissos entre participantes em um processo de aplicação do Direito.
Häberle reivindica que os juízes da Corte Constitucional alemã aprimorem seus "instrumentos de informação", principalmente quanto à possibilidade de participação (plural) no processo constitucional. Noutro ponto da obra ele já propusera que, numa sociedade aberta, a democracia se desenvolveria — também — por "formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana" (HÄBERLE, 1992, p. 48 e 36).
Mais uma vez mostra-se o desafio que, num contexto institucional como o alemão, é fazer com que as "interpretações não-oficiais" cheguem até o órgão encarregado de interpretar a Lei Fundamental. No Brasil, como temos pontuado, ao contrário, tal preocupação não deve existir (ou fica extremamente minimizada) devido à prática do controle difuso de constitucionalidade entre nós. Por isso, não podemos concordar com o "otimismo" mostrado por alguns juristas, entre eles Inocêncio Mártires Coelho, que viu na proposta de regulamentação da Ação Direta de Inconstitucionalidade "várias aberturas hermenêuticas (...) a conferir um caráter pluralista ao processo objetivo de controle abstrato de constitucionalidade" (COELHO, 1998, p. 130) [34], isto é, que o dispositivo do referido projeto (agora arts. 6º, 7º, §2º e 9º, §§ 2º e 3º da Lei nº 9.868/99, que prevêem que o Relator poderárequisitar informações dos órgãos dos quais adveio a lei e também receber informações de outros órgãos ou entidades, caso considere conveniente em vista da "relevância da matéria e a representatividade dos postulantes" além de "informações adicionais", perícia, testemunho de entidades especializadas e informações dos Tribunais Superiores, Federais e Estaduais sobre como têm eles aplicado a norma impugnada) teria, entre outras coisas, o "grande mérito" de trazer até nós a ampliação do círculo de intérpretes da Constituição de que falara Häberle.
Ao contrário do que disse o eminente doutrinador, pensamos que a posição "conservadora" assumida pela citada lei pende muito mais para um centralismo do que para uma abertura, haja vista a maneira como tem sido conformado o sistema de controle concentrado de constitucionalidade no Brasil.
E mais, reafirmamos, se na Alemanha um tal discurso faz sentido, entre nós isto significa, no mínimo, um retrocesso, principalmente dentro de uma tendência centralizadora do sistema de controle de constitucionalidade (e, logo, da interpretação da Constituição) no Brasil[35].
Apresentadas em linhas gerais uma Teoria da Interpretação que, conforme temos mostrado (e retomaremos ao final desta), mostra-se mais adequada ao modelo difuso de controle de constitucionalidade, passaremos a fazer uma breve observação à Teoria da Sociedade Aberta de Intérpretes da Constituição, de Peter Häberle, mostrando que apenas tomando a sério as várias interpretações feitas na periferia, a Constituição poderá desenvolver-se legitimamente.
3.2. Interpretação Plural da Constituição: a contribuição de Häberle
O primeiro pressuposto de Häberle em seu livro é o de que não há norma jurídica de per se, senão a norma interpretada, e, por outro lado, "todo aquele que vive a Constituição é um seu legítimo intérprete" [33]. Qualquer medida que restrinja algum daqueles postulados fecha a comunidade de intérpretes.
O destinatário da norma a interpreta pelo simples fato de ser afetado (positiva ou negativamente) pela mesma. Afinal, Häberle ultrapassou a perspectiva que apenas consegue enxergar a possibilidade de interpretação quanto há obscuridade ou antinomias (cf. supra). Ao contrário, inseres-se num paradigma que pressupõe a condição hermenêutica do ser humano.
Importante ressaltar que a "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição" não é uma reivindicação de Häberle (algo como uma proposição de lege ferenda ), ao contrário, segundo ele, isto já é uma realidade (HÄBERLE, 1992, p. 30). Isso é particularmente significativo num contexto como o da tradição do nosso constitucionalismo, pois se para nós pode parecer natural uma concepção mais ampla dos intérpretes da Constituição (resultado de um sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis), na Alemanha isso parece ser um grande desafio, dada a conjuntura historicamente marcada pela centralização da interpretação constitucional nas mãos de uma Corte Constitucional.
Talvez por isso ele tenha de insistir em dizer que "a interpretação constitucional jurídica traduz (apenas) a pluralidade da esfera pública e da realidade (...), as necessidades e as possibilidades da comunidade, que constam do texto, que antecedem os textos constitucionais ou subjazem a eles" (HÄBERLE, 1992, p. 43).
Percebe-se presente em sua teoria aquele Princípio do Discurso a que fizemos referência supra quando Häberle postula que o Direito Constitucional é formado por "consensos", isto é, pelos conflitos e compromissos entre participantes em um processo de aplicação do Direito.
Häberle reivindica que os juízes da Corte Constitucional alemã aprimorem seus "instrumentos de informação", principalmente quanto à possibilidade de participação (plural) no processo constitucional. Noutro ponto da obra ele já propusera que, numa sociedade aberta, a democracia se desenvolveria — também — por "formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana" (HÄBERLE, 1992, p. 48 e 36).
Mais uma vez mostra-se o desafio que, num contexto institucional como o alemão, é fazer com que as "interpretações não-oficiais" cheguem até o órgão encarregado de interpretar a Lei Fundamental. No Brasil, como temos pontuado, ao contrário, tal preocupação não deve existir (ou fica extremamente minimizada) devido à prática do controle difuso de constitucionalidade entre nós. Por isso, não podemos concordar com o "otimismo" mostrado por alguns juristas, entre eles Inocêncio Mártires Coelho, que viu na proposta de regulamentação da Ação Direta de Inconstitucionalidade "várias aberturas hermenêuticas (...) a conferir um caráter pluralista ao processo objetivo de controle abstrato de constitucionalidade" (COELHO, 1998, p. 130) [34], isto é, que o dispositivo do referido projeto (agora arts. 6º, 7º, §2º e 9º, §§ 2º e 3º da Lei nº 9.868/99, que prevêem que o Relator poderárequisitar informações dos órgãos dos quais adveio a lei e também receber informações de outros órgãos ou entidades, caso considere conveniente em vista da "relevância da matéria e a representatividade dos postulantes" além de "informações adicionais", perícia, testemunho de entidades especializadas e informações dos Tribunais Superiores, Federais e Estaduais sobre como têm eles aplicado a norma impugnada) teria, entre outras coisas, o "grande mérito" de trazer até nós a ampliação do círculo de intérpretes da Constituição de que falara Häberle.
Ao contrário do que disse o eminente doutrinador, pensamos que a posição "conservadora" assumida pela citada lei pende muito mais para um centralismo do que para uma abertura, haja vista a maneira como tem sido conformado o sistema de controle concentrado de constitucionalidade no Brasil.
E mais, reafirmamos, se na Alemanha um tal discurso faz sentido, entre nós isto significa, no mínimo, um retrocesso, principalmente dentro de uma tendência centralizadora do sistema de controle de constitucionalidade (e, logo, da interpretação da Constituição) no Brasil[35].
Capítulo 4.: O Sistema de Controle Difuso de Constitucionalidade no Brasil num Novo Marco de Interpretação Jurídica
No Capítulo 3 estudamos a proposta habermasiana de interpretação jurídica, necessária, como vimos, para que a decisão jurisdicional cumpra o requisito de aceitabilidade racional requerido pelo Direito Moderno.Como mostramos, a Hermenêutica teve o mérito de inserir o texto em contextos de presente, passado e futuro (além do conceito de pré-compreensões em que o intérprete está inserido), mostrando que a interpretação presente apenas pode ser coerente se, em primeiro lugar, unir os horizontes (passado e presente) de interpretação [36]; contudo, resta problemática a partir do momento em que se percebe não haver umaconcepção de bem (ou uma tradição), mas que, ao contrário, em sociedades hiper-complexas como as atuais há concepções diferentes e até antagônicas e qualquer recurso "à tradição" seria no mínimo algo arbitrário e excludente das demais.
Dworkin, a seu turno, também recorrendo a uma história institucional, o faz de maneira mais sofisticada, pois o que ele busca no passado é a composição coerente de princípios de uma dada comunidade. Com isso poder-se-á encontrar a "única decisão correta" para cada caso. Sem embargo, este trabalho hercúleo sofre críticas por sobrecarregar sobremaneira a figura de um juiz solitário.
Assim, ao invés de ficarmos confiando nas qualidades pessoais e capacidade intelectual do juiz, devemos entender que a tarefa da interpretação não lhe cabe isoladamente, mas é um processo que começa com as interpretações "não-oficiais" da sociedade aberta de intérpretes da Constituição e continua através das pretensões a direitos defendidas por cada parte no efetivo exercício do contraditório
Concluindo, podemos então e mostrar a relação do sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos que procedimentalmente possibilita, por um lado, que a interpretação se dê de forma que aqueles pressupostos contrafáticos da comunicação (de que falamos no Cap. 3) sejam tomados a sério, num procedimento realizado em contraditório e por outro lado, que a argüição incidental de inconstitucionalidade é ummecanismo adequado ao reconhecimento da tantas vezes mencionada "sociedade aberta de intérpretes da Constituição" (muito mais do que o sistema de controle concentrado pode ser).
Em primeiro lugar, o controle difuso de constitucionalidade, por ocorrer num contexto em que há um litígio subjacente, faz com que a disputa em torno da constitucionalidade da lei (ou ato normativo) gire em torno da aplicação desta a um caso concreto e, por outro lado, reflete a interpretação que se tem dado à Constituição numa época e lugar específicos. A partir do momento em que as partes aduzem seus argumentos (e provas) — isto é, a partir do momento em que cada uma reconstrói não apenas o fato, mas todo o ordenamento jurídico, mostrando a contradição presente ou não frente à Constituição —, o juiz terá condições de avaliar a prevalência de uns sobre outros para aquele caso, isto é, o juiz não estará definindo qual interpretação se deve dar (ou não dar) à Constituição e à lei questionada em geral, mas apenas solucionando um caso, tendo em vista as razões aduzidas.
Por outro lado, o controle difuso, ao permitir que vários sujeitos questionem uma lei não porque (necessariamente) ela está em abstrato contrariando um dispositivo constitucional, mas porque, num caso concreto, ela esteja contrariando algumas das interpretações — das expectativas de comportamento — que têm sucedido num dado momento e lugar; isso confere a esta forma de controle um grande potencial: de que as interpretações realizadas por cada sujeito de direito sejam levadas em conta na proteção jurisdicional dos princípios maiores daquela comunidade consagrados constitucionalmente. Por outro lado permite que a interpretação que se dá à Constituição não se imobilize, mas seja a todo tempo revitalizada, acompanhando as mudanças que se processam — cada vez mais rápido — na sociedade.
O sistema de controle concentrado não possui aquele potencial. Jamais o Supremo Tribunal Federal terá condições de avaliar as várias situações criadas ou afetadas por uma dada lei que teve sua inconstitucionalidade requerida; e mais, tampouco poderá avaliar como se tem processado, numa sociedade descentrada e complexa como a nossa, a tensão entre a Faticidade e a Validade da Constituição a que fizemos referência anteriormente. Ao controle concentrado cabe, sim, a importante função de "garantia do devido processo legislativo democrático" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 259).
A situação do controle concentrado de constitucionalidade no Brasil torna-se ainda mais problemática à realização de uma pretensão mais ampla e discursiva de interpretação constitucional diante da atual tendência centralizadora que lhe tem informado (cf. supra, Cap. 3.2.), pois, ainda que o processo nesse caso também se dê em contraditório, este é necessariamente limitado às questio iuris (por suas próprias limitações) e não possui condições para que as várias interpretações difusamente espalhadas pelo país sejam levadas em consideração.
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Notas
1. Sobre a perda crescente do consenso no seio das atuais sociedades, ver FARIAS, 1978, p. 32. Note-se que não compartilhamos com Rosenfeld da crença em uma sociedade "pós"-moderna. Ao contrário, cfe. trabalharemos no Capítulo 3, compartilhamos com Habermas acerca do "projeto incacabado da modernidade".2. Essa possibilidade do uso sem controle do Direito e das instituições pelo poder político, foi trabalhada por vários autores. Apenas para citar um: "O desenvolvimento das instituições sociais modernas e sua difusão em escala mundial criaram oportunidades bem maiores para os seres humanos gozarem de uma existência segura e gratificante (...). Mas a modernidade tem também um lado sombrio, que se tornou muito aparente no século atual (...) [um dos quais foi] o uso consolidado do poder político, particularmente nos episódios de totalitarismo". GIDDENS, 1991, p. 16.
3. Rosenfeld desenvolve sua teoria alternativa a partir da p. 188. Sobre o "pluralismo compreensivo", ver p. 153 e segs. Para uma crítica a este, ver, e. g., ARATO, 2000, p. 1937 e segs.
4. De resto, como todo trabalho científico hoje, não se pretende aqui a um tratado final (ou "universal") sobre a matéria, mas um recorte da realidade, que leva em conta o risco da subjetividade (ao invés de pretender à inalcançável objetividade cartesiana), e que por isso pode trabalhar com ela de forma a dar um conteúdo racionalmente aceitável ao presente e que, por fim, tem em mente sua finitude espaço-temporal, haja vista o caráter sempre finito de qualquer trabalho que se pretenda científico.
5. Permanece como a principal forma de controle de constitucionalidade mesmo após a Constituição de 1988, a despeito de vozes em contrário, e.g., MENDES, 1998a, p. 304.
6. Como mostra Juarez Tavares, a ciência jurídica centraliza seu objeto na estabilização social, cujo alcance está subordinado a paradigmas, situados no comportamento (como expressão causal para produção de efeitos sociais) e na configuração dos elementos relacionados ao sujeito responsável (TAVARES, 2002, p. 4).
7. Esta crítica de Savigny foi retirada de comentários feitos por Eduardo ESPÍNOLA e Eduardo ESPÍNOLA FILHO, in: Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, vol. 28, p. 109.
8. Savigny ensinava que interpretar é reproduzir a idéia original da lei e reconsiderar os fatos históricos e o sistema em que a lei está inserida. SAVIGNY, Sistema del Derecho Romano Actual, t. 1., p. 188, apud OSUNA FERNÁNDEZ-LARGO, 1992, pp. 21-25.
9. Como bem afirma Habermas, a legitimidade da ordem jurídica advinha da legalidade, isto é, da correta observância das normas que tratavam da produção de outras normas. (HABERMAS, 1998, pp. 271-272).
10. Segundo Habermas, o princípio da integridadepossibilita aos indivíduos de uma comunidade se reconhecerem reciprocamente como livres e iguais (tratamento em igual consideração e igual respeito); ademais, é um princípio que deve ser observado não apenas pelos cidadãos, mas também pelos "órganos de produccíon de normas y de administración de justicia". (HABERMAS, 1998, p. 285).
11. Michel Rosenfeld acompanha essa mudança de perspectiva no tratamento que o constitucionalismo dá à "igualdade". Num primeiro estágio, há uma ênfase na correlação entre desigualdade e as diferenças (feudalismo); depois, declara-se a igualdade e a identidade (liberalismo e as grandes declarações de direitos) e somente num terceiro estágioavança-se para incorporar os dois anteriores para redefinir uma igualdade que reconhece as diferenças, sem contudo explorá-las por padrões de dominação ou subordinação. (ROSENFELD, 1995, pp. 1092-1093).
12. Vamos nesse tópico tratar apenas de Kelsen, dado o objetivo deste trabalho. Reconhecemos que é uma redução (por isso vamos, e.g., tratar de Gadamer mais à frente quando falarmos da Teoria do Discurso de Habermas), mas precisamos nos concentrar naqueles autores que, pensamos, vão nos ajudar a melhor observar a realidade da interpretação no controle difuso de constitucionalidade, nem que sua contribuição seja apenas para que critiquemos seu uso desconsiderando mudanças paradigmáticas.
13. E KELSEN, An Introduction to the Problems of Legal Theory, p. 27, apud, CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 33.
14. Como argumenta o Prof. Marcelo, certamente nunca seria possível listar toas as interpretações possíveis, seria necessária uma razão sobre-humana para tanto. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 57).
15. Sobre o "senso de adequabilidade", ver GÜNTHER, 1993 e CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 59. É preciso lembrar, para não sermos injustos com Kelsen ou com os que o precederam, que as críticas que fazemos baseiam-se na compreensão que temos sob um novo paradigma. Logo, ainda que possamos fazer este exercício de crítica (até para apontar o anacronismo de pessoas que hoje querem aplicar aquelas teorias, sem ao menos terem o trabalho de reconstruí-las), não podemos deixar de reconhecer o avanço que cada uma delas representou para sua época, ainda que não supram hoje nossas expectativas.
16. Como bem expressa Habermas: "... a outra face de um Estado Social mais ou menos bem sucedido, é aquela democracia de massas que toma traços de um processo de legitimação orientadoadministrativamente. A isso corresponde, no plano programático, a resignação— tanto o conformar-se com o escândalo de um destino naturalmente infligido pelo mercado de trabalho quanto a renúncia à democratização da sociedade". (HABERMAS, 1990, p. 106).
17. Por exemplo, por uma reformulação apenas do conceito de "soberania popular", ver HABERMAS, 1990; NEUENSCHWANDER, 1999; CATTONI DE OLIVEIRA, 2000, p. 79 e segs.; e ainda PRATES, 2000, p. 22. e segs.
18. Tomamos Habermas como centro de nosso estudo pela atualidade com que tem tratado das novas demandas da atual sociedade complexa. De fato, Habermas supera a filosofia tradicional e trabalha com a linguagem comomedium de interação social, possibilitando procedimentos que visam à superação da atual crise de legitimidade de nossas instituições. No próximo capítulo, retomaremos alguns de seus conceitos, o que, esperamos, deixará mais claro a razão da escolha daquele autor.
19. Sobre a modernidade como um projeto inacabado, ver HABERMAS, 1999.
20. Com relação à razão prática, a razão comunicativa começa por ter a vantagem de não ficar "atribuida al actor particular [como em Kant] o a un macrosujeto estatal-social [como em Hegel]". Idem, ibidem. Como mostra Giddens, "a racionalidade [em Habermas] presupone la comunicación, porque algo es racional sólo si reúne las condiciones necesarias para forjar una compresión al menos con otra persona". (GIDDENS, 1994, p. 159). E ainda, José L. Aidar Prado, "o social origina-se em Habermas não a partir da soma de consciências monádicas, mas da capacidade lingüística de produzir atos de fala". (PRADO, 1996, p. 21). Nesse sentido, a ênfase passa da semântica para a pragmática.
21. Sobre performactive act e os fins ilocucionários da linguagem, ver, por exemplo, MAGALHÃES, 1997, onde a autora mostra como Austin e Searle trabalham este tema. Austin promove o chamado "giro pragmático", postulando pela primeira vez que "falar é agir", isto é, que pelo ato da linguagem produzimos algo, assumimos compromissos (veja-se p. 105 e segs.). E também ROUANET, 1989, p. 24 e segs.
22. Segundo ele, "apesar de voltado à estabilização da sociedade, o direito positivo tem em sua própria estrutura uma instabilidade intrínseca" (p. 20).
23. Ou, ainda tomando José E. Farias, "é a partir do estabelecimento do princípio da legalidade que surge o moderno problema da legitimidade das normas constitucionais, em função da pergunta clássica: por que obedecer?" (FARIAS, 1978, p. 34).
24. Sobre a relação interna entre Direito e Política, ver HABERMAS, 1998, Capítulos III e IV e CATTONI DE OLIVEIRA, 2000.
25. Observe-se, contudo, que Habermas não cai na mesma tentaçãoiluminista de propor validade universal às normas jurídicas, mas apenas "um procedimento para a validação dessas normas" (ROUANET, 1989, p. 68).
26. Dito de outra forma, "todas as normas válidas precisam atender à condição de que as conseqüências e efeitos colaterais que presumivelmente resultarão da observância geral destas normas para a satisfação dos interesses de cada indivíduo possam ser aceitas não coercitivamente por todos os envolvidos" (ROUANET, 1989, p. 27).
27. Assim, segundo a Teoria do Discurso, a formação da vontade depende dos "pressupostos comunicativos que permitem aos melhores argumentos entrarem em ação em várias formas de deliberação, bem como dos procedimentos que asseguram processos justos de negociação" (HABERMAS, 1995, p. 112).
28. Antes ele já havia dito: "la comprensión no es nunca um comportamiento sólo reproductivo, sino que es, a su vez, siempre productivo" (p. 366).
29. E "la pertencia a la tradición en la hermenéutica jurídica no ha de presentarse como se fuera una restricción de su horizonte, sino como una condición de la possibilidad misma de acceder à la compresión" (OSUNA FERNÁNDEZ-LARGO, 1992, p. 92).
30. E ainda, como este autor expressa: "la historia de una norma jurídica y su jurisprudencia son vías ineludibles en la compresión de la misma. Ningún intérprete puede pretender estar frente ao texto normativo libre de precompresiones, pues ello equivaldría a estar fuera de la historia y a hacer enmudecer a la norma" (p. 88).
31. E, "el juez individual ha de entender básicamente su interpretación constructiva como una empresa común, que viene sostenida por la comunicación pública de los ciudadanos" (p. 295).
32. Ver também, CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 153 e segs.
33. Apresentação feita por Gilmar F. Mendes ao livro de HÄBERLE, 1997, p. 9. Quanto à condição da norma referida antes, Häbele vai defender mais à frente que a norma não é uma "decisão prévia e acabada", há que se levar em conta os que participam da lei na "arena pública" (pp. 30-31).
34. No mesmo sentido, MENDES, 1998b, especialmente p. 458 e segs.
35. Esta tendência pode ser vista nos já citados textos (nota anterior) e também na clara intenção mostrada por Gimar F. Mendes em querer conceber o Supremo Tribunal Federal como uma Corte Constitucional (semelhante inclusive ao Tribunal Constitucional alemão), como se observa de algumas de suas "teses" colocadas ao final do livro, e.g. : "a gradual evolução [?] de um sistema de controle incidente para um modelo no qual a função principal do controle está concentrado no Supremo Tribunal Federal, reforça o caráter do Tribunal, como autêntica Corte Constitucional, uma vez que ele não apenas detém o monopólio da censura no processo de controle abstrato de atos normativos estaduais e federais em face da Constituição Federal, como tem a última palavra na decisão das questões constitucionais submetidas ao controle incidental" (MENDES, 1998a, p. 304, grifos nossos).
36. Além da fusão de horizontes, é importante salientar a importância de dois outros conceitos em Gadamer: a "efectualidade histórica" (a consciência histórica se dirige ao efeito dos fatos históricos, acima de olhar os fenômenos em si documentados) e a "distância no tempo" (a idéia inicial do texto não perdura platonicamente, mas, ao contrário, será definida pela situação do intérprete atual) (OSUNA FERNÁNDEZ-LARGO, 1992, pp. 55-59).
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