quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CONSUMIDOR


A Proteção Constitucional dos Direitos Fundamentais do Consumidor

Ricardo Maurício Freire Soares

Ricardo Maurício Freire Soares

Doutorando e Mestre em Direito – UFBA; Professor  dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFBA, da Faculdade Baiana de Direito e da Faculdade de Tecnologia Empresarial; Professor-Convidado da Università di Roma La Sapienza, Università Degli Studi di Roma Tre, Università Degli Studi di Roma Tor Vergata (Itália) e Martin-Luther Universität Halle Wittenberg  (Alemanha); Professor do Curso JusPODIVM de Preparação para Carreira Jurídica e da Rede LFG; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia.

Artigo publicado na Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor nº 20 – Abr/Maio de 2008.

RESUMO: O presente trabalho se propõe a repensar a interpretação de uma das legislações mais avançadas do Direito Econômico nacional – a Lei nº 8.078/90. Rompendo com os postulados individualistas e liberais do direito privado moderno, o surgimento das leis consumeristas, como o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, simboliza a atualização do direito ocidental, na busca de uma maior isonomia fática entre fornecedores e consumidores. A efetividade da Lei nº 8.078/90 requer o exercício de práticas interpretativas progressistas, o que abre margem para a reformulação dos paradigmas hermenêuticos tradicionalmente oferecidos pela ciência jurídica, o que implica o uso dos princípios jurídicos, os quais, no âmbito das relações econômicas do mercado capitalista, adquirem enorme relevância ao concretizar e maximizar o espírito protetivo dessa codificação.

Palavras-chave: Interpretação; Lei; Código de Defesa do Consumidor; Relações Econômicas.

SUMÁRIO: 1 A Sociedade de Consumo e o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor; 2 A Nova Visão do Contrato na Sociedade de Consumo; 3 O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Como Discurso Principiológico; 4 O Princípio Constitucional de Defesa do Consumidor no Sistema Jurídico Brasileiro; 5 A Principiologia Consumerista Como Norte Hermenêutico do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor; 6 Notas Conclusivas: a Interpretação Principiológica e a Efetividade dos Direitos Fundamentais do Consumidor; 7 Referências.

1. A Sociedade de Consumo e o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor

Os sistemas jurídicos costumam espelhar as transformações ocorridas no tecido das relações sociais. Verificou-se que a crise da modernidade rendeu ensejo para a configuração da sociedade de consumo, demandando o redimensionamento das instituições jurídicas. O surgimento do direito do consumidor decorre da manifestação dos desequilíbrios inerentes a este novo modelo de coexistência social.

Neste sentido, sustenta Ada Grinover (1998, p. 6) que o homem do século XX vive em função de um modelo novo de associativismo: a sociedade de consumo (mass consumption society ou konsumgesellschaft), caracterizada por um número crescente de produtos e serviços, pelo domínio do crédito e do marketing, assim como pelas dificuldades de acesso à justiça. São esses aspectos que marcaram o nascimento e desenvolvimento do direito do consumidor como disciplina autônoma.

O aparecimento da sociedade de consumo engendrou, assim, uma nova concepção de relações jurídicas, baseada na desigualdade fática entre os sujeitos de direito. O ordenamento jurídico modulou o paradigma da ordem pública econômica, disciplinando o intervencionismo do Estado no campo das relações privadas. Depois de manifestar-se com grande nitidez nas relações entre empregadores e assalariados, esta busca por uma maior isonomia jurídico-social passou a concentrar-se nas interações entre consumidores e fornecedores de produtos ou serviços.

Tratando do tema, Adriana Vieira (2002, p. 71) destaca que as grandes descobertas que prestaram serviços à Revolução Industrial vieram modificar, de modo fundamental, as relações de consumo. A propriedade passa por uma transformação, pois a atividade começa a evoluir, tornando-se industrial, e se sobrepõe à produção artesanal. Foi nessa época, com o desenvolvimento e expansão do comércio, que começou a se manifestar o desequilíbrio nas relações de consumo, exacerbado no século atual em função do fenômeno da concentração de grandes capitais. Polarizou-se o conflito no setor das relações entre produtor e consumidor, atraindo a atenção do legislador, em nível internacional e nacional, para a edificação do regime próprio e sem prejuízo dos mecanismos normais de defesa dos contratantes.

A conseqüência desta mudança social foi sentida primeiramente nos países desenvolvidos. No ano de 1962, foi dirigida mensagem presidencial ao Congresso Norte-Americano em que se anunciava um programa de reformas econômicas consoante os interesses dos consumidores. Também, durante a década de sessenta, difundiram-se na Europa associações de defesa do consumidor que ocasionaram a criação de entidades públicas voltadas para a tutela dos direitos do consumidor.

No sistema jurídico brasileiro, a Carta Magna de 1988 teve a primazia de contemplar os direitos do consumidor. No inciso XXII do art. 5º, dispôs o legislador constituinte que o Estado promoveria, na forma da lei, a defesa do consumidor. Não bastasse isso, a Constituição Federal consagrou, no art. 170, V, a defesa do consumidor como um princípio geral da ordem econômica. Ainda, o art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determinou que o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborasse o Código de Defesa do Consumidor. Assim sendo, foi promulgada a Lei nº 8.078/90, uma das mais avançadas legislações protetivas de consumo.

Neste diapasão, salienta Antônio Azevedo (1996, p. 17) que a demora na atualização do Código Civil fez com que o Código de Defesa do Consumidor, de uma certa forma, viesse a preencher a vasta lacuna que, no campo do direito privado brasileiro, a doutrina e a jurisprudência percebiam há muito tempo. Na impossibilidade de encontrar, no velho Código Civil, base para o desenvolvimento teórico do que há de mais apto para transformar o sistema fechado em sistema aberto – por exemplo, a referência expressa a cláusulas gerais, como a da boa-fé, e a princípios jurídicos, como o da exigência de igualdade real nos negócios jurídicos -, é no Código de Defesa do Consumidor que se pode encontrar um Ersatz do Código Civil que não veio ou, no mínimo, um ponto de apoio para alavancar a atualização principiológica do sistema jurídico brasileiro.

2 A Nova Visão do Contrato na Sociedade de Consumo

A interpretação do significado de contrato, no ordenamento jurídico-consumerista, vem sendo reformulada em conformidade com as transformações ocorridas na sociedade capitalista ocidental.

Como ensina Enzo Ropo (1988, p. 24), uma vez que o contrato reflete, pela sua natureza, operações econômicas, é evidente que o seu papel no quadro do sistema resulta determinado pelo gênero e pela quantidade das operações econômicas a que é chamado a conferir dignidade legal, para além do modo como, entre si, se relacionam – numa palavra pelo modelo de organização econômica a cada momento prevalecente. Analogamente, se é verdade que a sua disciplina jurídica – que resulta definida pelas leis e pelas regras jurisprudenciais – corresponde instrumentalmente à realização dos objetivos e interesses valorados consoante as opções políticas e, por isso mesmo, contingentes e historicamente mutáveis, daí resulta que o próprio modo de ser e de se conformar do contrato como instituto jurídico não pode deixar de sofrer a influência decisiva do tipo de organização político-social a cada momento afirmada.

Com efeito, no contexto da modernidade, sob os influxos das revoluções burguesas, o jusnaturalismo lançou as bases para a clássica definição de contrato. A moderna exaltação à liberdade e à igualdade, traduzindo os direitos naturais do ser humano, acrescida do contratualismo como base fundante da organização política, implicou na afirmação do princípio da autonomia da vontade. Estava consolidado o dogma da livre manifestação do consentimento individual, pedra de toque do direito privado tradicional. O liberalismo dominante propugnava pela livre circulação da riqueza, despontando o contrato como o instrumento jurídico capaz de operacionalizar as transações econômicas. Tinha-se como verdadeira a crença de que as avenças contratuais potencializariam o equilíbrio harmônico dos interesses sociais, sem a necessidade do Estado promover ingerências no mercado, concebido como o espaço cativo das relações privadas.

A modernidade jurídica sedimentou também o primado da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda). Ora, se o ser humano, igual aos seus pares, seria livre para exprimir a sua vontade, a força matriz do consentimento teria que preponderar sobre as prescrições estatais. O contrato foi, então, vislumbrado como verdadeira lei entre as partes. As normas legais, assim, teriam mera função supletória ante as manifestações volitivas. Com o agravamento dos problemas sociais do sistema capitalista, emergiu a reação aos postulados jurídicos da modernidade. Rompeu-se com a concepção individualista e liberal do direito das obrigações, introduzindo uma nova leitura hermenêutica do contrato.

O significado de igualdade jurídica foi repensado. Voltada à limitação do absolutismo monárquico, a igualdade atomística dos homens, consagrada nas modernas constituições e declarações de direitos, pecava pela total discrepância com a realidade cambiante. A previsão da isonomia, em termos puramente abstratos e formais, não se coadunava com as desigualdades produzidas pelo capitalismo liberal, seja nas relações entre os proprietários dos meios de produção e trabalhadores, seja nas interações entre fornecedores e consumidores de mercadorias e serviços.

A concentração do capital permitiu uma produção em massa, que não poderia jamais ser dirigida a pessoas individualizadas. Era preciso, através de mecanismos de publicidade e marketing, induzir o consumidor a necessidades artificiais. Para cercear o acesso às informações de produtos e serviços – qualidade, quantidade, especificidade e preço – foi criado o contrato de adesão, com evidente prejuízo aos vulneráveis consumidores. Essa situação de flagrante desequilíbrio entre os agentes econômicos do mercado de consumo tornou imperiosa a pronta ingerência estatal, mormente pela via legislativa, de sorte a relativizar os princípios da autonomia da vontade, da obrigatoriedade do contrato e da igualdade formal.

Sobre esta reformulação principiológica, refere Georges Ripert (1937, p. 313-314) que o declínio do contrato não provém unicamente da limitação cada vez mais estreita do seu domínio; tem outra causa: a negação audaciosa da força contratual. O contrato já não é considerado como o ato criador da obrigação e o vínculo obrigacional já não dá ao credor poder sobre o devedor. O reconhecimento da força contratual é, diz-se, uma concepção do individualismo jurídico, e a idéia dum direito subjetivo conferido ao credor é arcaica. O contrato cria simplesmente uma situação jurídica, que não poderá ser mais imutável que a situação legal. Esta situação jurídica gera conseqüências que o legislador determina soberanamente. O ato da vontade consiste unicamente em submeter-se à lei do contrato, mas não pertence às partes decidir para sempre, e em todos os casos, qual seja essa lei.

No vórtice destas transformações, já nos albores do século XX, o espaço social ocupado pelo Estado se expande. Verifica-se então um maior equilíbrio entre o Estado, agente de regulamentação social, e o mercado, espaço de produção e distribuição de riqueza. A consolidação do movimento operário, o fortalecimento dos sindicatos, o movimento consumerista e a crise estrutural do sistema financeiro capitalista alteram o perfil estatal. O Estado-mínimo do liberalismo burguês, mero ente ordenador das relações sociais, é substituído pelo Estado-providência, que passa a intervir na sociedade. Assume, pois, duas funções básicas: a promoção do progresso econômico e a tutela dos cidadãos mais desfavorecidos. No que se refere a esta última vertente, o Estado intervencionista, mediante prestações positivas, potencializa o exercício dos direitos fundamentais de segunda geração.

Descrevendo o intervencionismo do Estado, assinala Orlando Gomes (1986, p. 15) que, ao longo do processo de consolidação dessas transformações, legitimou-se a intervenção do Estado na vida econômica como a forma por excelência de obtê-las. Orientou-se, desse modo, para a limitação da propriedade privada e da liberdade de contratar. Passou-se a admitir que a propriedade tem função social e que a autonomia privada deve ser comprimida em todos os modos do seu exercício.

As legislações consumeristas surgem, portanto, na transição histórica do Estado liberal para Estado-providência, organizado para desenvolver políticas públicas de concretização da igualdade material. Deste modo, o intervencionismo estatal passa a objetivar a busca de uma isonomia fática, mediante o implemento de prestações positivas. Na sociedade de massas e de economia oligopolizada, a ingerência estatal, para a tutela do equilíbrio consumerista, tornou-se cada vez mais necessária, mormente nos contratos de adesão, ante o estreito campo negocial, a impessoalidade e a discrepância de poderes entre o fornecedor e o consumidor.

Impôs-se, assim, normas de ordem pública, de natureza cogente, para a promoção do chamado dirigismo contratual. O contrato, assim como a propriedade, foi limitado e eficazmente disciplinado, tendo em vista o reconhecimento da função social destes institutos. Esta nova concepção social de contrato não só valoriza o momento da cristalização do consenso, mas também os efeitos contratuais são levados em conta, atentando-se, igualmente, para a condição econômica das partes contratantes. O espaço reservado para que os particulares auto-regulem suas relações – autonomia da vontade – é reduzido por normas imperativas, como as constantes da legislação consumerista. É uma nova concepção de contrato em que a vontade perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu lugar um vetor hemenêutico que transcende os sujeitos de direito – o interesse público.

Atenta para este redimensionamento axiológico, elucida Judith Martins-Costa (1992, p.141) que, contemporaneamente, modificado tal panorama, a autonomia contratual não é mais vista como um fetiche impeditivo da função de adequação dos casos concretos aos princípios substanciais contidos na Constituição e às novas funções que lhe são reconhecidas. Por esta razão desloca-se o eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade à tutela objetiva da confiança, diretriz indispensável para a concretização, entre outros, dos princípios de superioridade do interesse comum sobre o particular, da igualdade positiva e da boa-fé em sua feição objetiva.

Sendo assim, ao procurar o equilíbrio contratual, no âmbito da sociedade de consumo, o direito passa a destacar o papel da lei como limitadora e legitimadora da autonomia da vontade. O contrato de consumo é, pois, iluminado por novos valores, admitindo-se a supremacia do interesse público, o respeito à vulnerabilidade, a transparência, a igualdade material, a boa-fé, a eqüidade e a confiança como diretrizes a serem realizadas no mercado de consumo.

3 O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Como Discurso Principiológico

As legislações contemporâneas que tutelam os direitos fundamentais costumam ser estruturadas através de proposições principiológicas, as quais sinalizam para os valores e fins maiores a serem tutelados pela ordem jurídica. O microssistema do direito do consumidor, enquanto manifestação da cultura jurídica pátria, absorve, naturalmente, uma carga expressiva de valores. Estas estimativas comunitárias são cristalizadas em pautas de comportamento, exigindo uma interpretação capaz de atender à realização das finalidades deste ramo jurídico. A interpretação das normas consumeristas deve, igualmente, apresentar uma natureza teleológica, operacionalizando a busca de significados socialmente aceitos.

Sem o trabalho de mediação e de concretização, que se impõe ao intérprete-aplicador do direito, o direito do consumidor não logra realizar os seus valores fundantes, satisfazendo aos anseios da sociedade. O sentido jurídico, sendo externo às normas jurídicas, em certa medida, embora não possa contrariar de todo o seu enunciado, exige a sensibilidade do intérprete para se revelar completamente. Com a positivação histórica dos direitos humanos, nas esferas constitucional e infraconstitucional, a interpretação dos direitos do consumidor se colocou como problema a partir do momento em que os diplomas legais deixaram de ser apenas catálogos de competências do Estado para se converterem em verdadeiras cartas de cidadania. Cuidaram os juristas de oferecer uma teoria hermenêutica que pudesse responder à necessidade de interpretar e aplicar princípios. A interpretação passou a ser entendida como uma hermenêutica de princípios, baseada em pautas axiológicas, para cuja efetividade se deve substituir a idéia retrospectiva de interpretação pela idéia prospectiva de concretização.

Destacaram-se, assim, pela ingente função fundamentadora e hermenêutica, os princípios consumeristas. Decerto, o art. 4º do CDC, ao prescrever o objetivo da Política Nacional de Relações de Consumo, afigura-se como referencial teleológico para a interpretação de todo o arcabouço normativo do Código de Defesa do Consumidor, visto que, mediante a compreensão dos princípios jurídicos catalogados no art. 4º, o hermeneuta logra apreender os fins maiores que imantam a legislação consumerista. Por informar todo o conjunto normativo do CDC, os princípios consumeristas funcionam como reguladores teleológicos da atividade interpretativa, iluminando a aplicação das normas jurídicas estampadas neste diploma legal.

Não é outro o magistério de Luiz Rizzatto Nunes (2002, p. 19), para quem os princípios são, dentre as formulações deônticas de todo o sistema ético-jurídico, os mais importantes a serem considerados, não só pelo aplicador do direito, mas por todos aqueles que, de alguma forma, ao sistema jurídico se dirijam. E essa influência tem uma eficácia efetiva, real e concreta. Não faz parte apenas do plano abstrato do sistema. É de ser levada em conta na determinação do sentido de qualquer norma, como exigência de influência plena e direta. Vale dizer: o princípio, em qualquer caso concreto de aplicação das normas jurídicas, da mais simples à mais complexa, desce das altas esferas do sistema ético-jurídico em que se encontra para imediata e concretamente ser implementado no caso real que se está a analisar.

Em se tratando dos princípios jurídicos do CDC, porque a sua estrutura normativo-material é necessariamente aberta e indeterminada, a atuação do intérprete é condição de possibilidade para se concretizar as finalidades indicadas e corporificadas pela legislação consumerista. Decerto, a incapacidade humana de prever o futuro é a base da indeterminação dos princípios jurídicos. Há situações de via deliberada de escape interpretativo, com o emprego de expressões lingüísticas valorativas que podem ser interpretadas de diversos modos num contexto específico. Esta base principiológica torna flexível e dinâmica a interpretação dos direitos do consumidor.

Sendo assim, o significado normativo das legislações consumeristas, longe de ser um dado objetivamente dissociado do hermeneuta, emerge no âmbito da própria atividade interpretativa. Guiado pela principiologia, exerce o intérprete um relevante papel na reconstrução do sentido do microssistema do CDC, mormente no que se refere à necessária abertura aos valores sociais. A substituição da referência hermenêutica da voluntas legislatoris por uma viva e objetiva voluntas legis, institucionalmente valorada, abre espaço para uma interpretação atual, porque orientada pelos princípios jurídicos.

Neste sentido, refere Eduardo de Enterría (1986, p. 20) que “la autonomía de esa supuesta voluntad de la ley respecto de su autor y el hecho de su movilidad en el tiempo no podrían explicarse si la ley misma no fuese vista como expresión de algo substancial y más profundo, lo cual, por serlo, es capaz de someter y relativizar lo que no es más que una simple manifestación o formalización suya; aquí aparecen ya los famosos principios generales del derecho (sobre los que hemos de hablar luego), sin cuya realidad todo ese proceso esencial de la traducción de la ley en vida jurídica efectiva y su incesante movilidad no tendrían explicación posible; sería, en rigor, una arbitrariedad de los intérpretes sin norte posible, la misma cabalmente que el legalismo quiso en su momento desalojar”.

4 O Princípio Constitucional de Defesa do Consumidor no Sistema Jurídico Brasileiro

Com a inserção dos princípios nos textos constitucionais, operou-se uma revolução de juridicidade no constitucionalismo ocidental contemporâneo, visto que os princípios gerais do direito se transformaram em normas positivadas em Cartas Magnas. Sendo assim, as novas Constituições passaram a acentuar a hegemonia axiológica dos princípios constitucionais sobre todas as normas do direito positivo. Hoje, não há mais como pensar numa hermenêutica jurídico-constitucional sem referir-se a princípios como referências valorativas para a interpretação teleológica do direito.

Conforme adverte Glauco Magalhães Filho (2002, p. 11), a nova hermenêutica constitucional volta-se para as normas com estrutura de princípios (Constituição Material). Ela aproxima dialeticamente interpretação da aplicação. Objetiva, acima de tudo, a concretização de valores, e não a imediata submissão de fatos a disposições normativas. Assim, enquanto a interpretação teleológica da hermenêutica clássica busca a fixação do sentido da norma pelo seu fim imediato, a interpretação conforme a Constituição remete a norma aos fins do ordenamento jurídico e do Estado Democrático de Direito, gerando uma sistematização (unidade) axiológica do ordenamento jurídico.

No âmbito do sistema constitucional contemporâneo, a positivação dos princípios ocorreu, em larga medida, na ordem econômica de cada Carta Magna, estabelecendo os marcos do intervencionismo estatal para a satisfação dos direitos fundamentais de segunda geração, tendente a instaurar um regime de democracia substancial ao determinarem a realização de fins sociais, através da atuação de programas de intervenção na ordem econômica, com vistas à realização da justiça social.

A ordem econômica adquiriu dimensão jurídica a partir do momento em que as constituições passaram a discipliná-la sistematicamente, o que teve início com a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição Alemã de Weimar em 1919. No Brasil, com o advento da Carta Magna de 1988, a ordem econômica passou a ser disciplinada nos arts. 170 a 192. A Constituição enunciou que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada, tendo por escopo assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. No art. 170, ocorreu a constitucionalização de inúmeros princípios, dentre eles, o primado da defesa do consumidor.

A este princípio da ordem econômica confere a Constituição Federal, desde logo, concreção nas regras constitucionais estampadas nos seus arts. 5º, XXXII: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”; 24, VIII: “responsabilidade por dano ao consumidor”; 150, § 5º: “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”; e 48 da ADCT: “o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias, elaborará Código de Defesa do Consumidor”. Ademais, o parágrafo único, II, do art. 175 insere entre as matérias sobre as quais deverá dispor a lei que trate da concessão ou permissão de serviço público os direitos dos usuários.

Sobre seu substrato ideológico, sublinha Eros Grau (2003, p. 216-217) que, a par de consubstanciar, a defesa do consumidor, um modismo modernizante do capitalismo – a ideologia do consumo contemporizada (a regra “acumulai, acumulai” impõe o ditame “consumi, consumi”, agora porém sob proteção jurídica de quem consome) -, afeta todo o exercício de atividade econômica, inclusive tomada a expressão em sentido amplo, como se apura da leitura do parágrafo único, II, do art. 175. O caráter constitucional conformador da ordem econômica, deste como dos demais princípios de que tenho cogitado, é inquestionável.

Trata-se de uma proposta de conciliação dialética entre diversos elementos sócio-ideológicos, ora apontando para o capitalismo e a configuração de um Estado liberal, ora indicando uma opção pelo socialismo e pela organização de um Estado intervencionista. Certo é que a previsão de alguns princípios, como o da defesa do consumidor, revelam um compromisso entre as forças políticas liberais e as reivindicações populares de justiça social no mercado de consumo, possibilitando que o capitalismo seja domado e humanizado.

Além desta conotação na Carta Magna, a defesa do consumidor constitui-se em um dos princípios a ser seguido para o desenvolvimento da atividade econômica, sendo um meio para se atingir o desiderato constitucional em que ela se fundamenta, que é a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, para que possa assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Com efeito, a realização do princípio constitucional da defesa do consumidor não elide as demais normas principiológicas do art. 170 da CF/88, ainda que, aparentemente, polarizem um conflito inconciliável.

Neste sentido, ressalta Ricardo Camargo (1992, p. 52) que não se pode perder de vista que o CDC tem seu fundamento de validade na Constituição Econômica, de sorte que sua aplicação não pode conduzir a uma nulificação dos demais princípios que a informam. Se a defesa do consumidor constitui um dos modos pelos quais a propriedade dos bens de produção cumpre a sua função social e o poder econômico se põe em seus justos trilhos, não pode ela chegar ao cúmulo de comprometer a soberania nacional nem de tornar enunciados puramente ornamentais, os concernentes à propriedade privada, à livre iniciativa e à livre concorrência. Afinal, são apenas aparentes as contradições da Constituição Econômica, já que nenhum de seus princípios se aplica sem restrições.

5 A Principiologia Consumerista Como Norte Hermenêutico do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor

A elevação da defesa do consumidor à categoria de princípio constitucional demanda que as normas infraconstitucionais se apresentem como realizando algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas, pois os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de tudo ou nada, impondo, em verdade, a otimização dos valores jurídicos.

O princípio constitucional da defesa do consumidor não se esgota na densificação promovida pelo legislador ao elaborar o CDC. Torna-se imperiosa a concretização da defesa do consumidor na miríade das relações sociais, o que exige o esforço do operador do direito na correta interpretação e aplicação do referido diploma legal, capilarizando o mandamento constitucional. Logo, também no plano infraconstitucional, serão relevantes os princípios jurídicos, mormente aqueles positivados na própria legislação consumerista, no desenvolvimento de suas funções fundamentadora e hermenêutica. Neste sentido, o CDC contempla, além das normas de conduta e de organização, uma terceira categoria normativa, denominada de normas-objetivo, que ostenta uma inegável tessitura principiológica.

Tratando do tema, sustenta Eros Grau (2002, p. 35) que o direito passa a ser operacionalizado, tendo em vista a implementação de políticas públicas, políticas referidas a fins múltiplos e específicos. Pois a definição dos fins dessas políticas é enunciada precisamente em textos normativos que consubstanciam normas-objetivo e que, mercê disto, passam a determinar os processos de interpretação do direito, reduzindo a amplitude da moldura do texto e dos fatos, de modo que nela não cabem soluções que não sejam absolutamente adequadas a tais normas-objetivo.

A norma que se depreende do art. 4º do CDC se enquadra nesta última tipologia, pois estabelece a responsabilidade dos poderes públicos e agentes econômicos na realização dos princípios consumeristas, configurando a verdadeira ratio essendi do diploma legal. Com efeito, o art. 4º condiciona a incidência e a aplicação das normas da lei a estes princípios/objetivos, que passam a ser finalidades jurídicas prioritárias. Por isso que é uma norma-objetivo. Dado ao caráter imperativo das regras do CDC, o art. 4º vincula o intérprete aos resultados pretendidos, o qual fica na contingência de aplicar o CDC teleologicamente, não por sua opção hermenêutica, mas pela própria determinação legal.

Neste sentido, assinala Newton de Lucca (1995, p. 42) que o art. 4º define uma série de princípios, e, como tais, orientam a interpretação dos demais dispositivos do Código no sentido de que eles sejam efetivamente preservados, não podendo uma simples regra jurídica sobrepor-se à idéia contida no princípio. O universo jurídico é composto por normas. Estas podem ser simples regras ou verdadeiros princípios. Estes últimos afastarão a aplicação das primeiras se tal procedimento contrariar o seu princípio fundamental.

Por essa razão, o legislador estabeleceu, no art. 4º do CDC, uma política nacional de consumo, adotando princípios específicos a serem seguidos pelo hermeneuta, que definem os direitos fundamentais do consumidor, tais como a transparência, a vulnerabilidade, a igualdade, a boa-fé objetiva, a repressão eficiente a abusos, a harmonia do mercado, a eqüidade e a confiança nas relações de consumo. A obediência a tais princípios é imperativa, pelo que as relações de consumo devem se desenvolver e ser interpretadas sem qualquer afastamento dos propósitos que os revestem e os caracterizam.

As dicções do art. 4º da Lei nº 8.078/90 não são programáticas, como alguns autores sustentam, a indicar os valores básicos que o Estado, entendendo relevantes, concretiza como metas a alcançar no tocante a relações de consumo. Não há outorga ao Estado de atividade discricionária pelo referido dispositivo, produzindo, ao revés, uma força cogente obrigatória não só para os órgãos estatais, mas também para os agentes econômicos que integram uma dada relação de consumo.

6 Notas Conclusivas: a Interpretação Principiológica e a Efetividade dos Direitos Fundamentais do Consumidor

A eficácia social do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor se vincula diretamente às práticas interpretativas. A interpretação, como atividade mediadora entre o legislador e o mercado de consumo, exterioriza as mensagens normativas do CDC. Ao delimitar o significado de seus modelos normativos, o hermeneuta concretiza os valores e objetivos da legislação consumerista. Para que seja potencializada a índole protetiva do CDC, a compreensão interpretativa de seu arcabouço normativo requer o uso dos princípios jurídicos constitucionais e infraconstitucionais. A principiologia oferece ao intérprete os vetores axiológicos de orientação hermenêutica, embasando a interpretação teleológica da lei consumerista. Os princípios jurídicos, imbuídos que são de uma reserva ética, maximizam a tutela do consumidor, minimizando as desigualdades inerentes ao mercado capitalista.

A efetividade dos direitos do consumidor pode ser garantida pela própria textura aberta dos princípios jurídicos, característica não encontrada nas regras de direito. Com efeito, os princípios jurídicos ostentam uma estrutura dialógica, capaz de apreender as mudanças da realidade circundante, e uma permeabilidade aos conteúdos valorativos, o que melhor permite a realização da justiça. Esta abertura, também encontrada nos princípios consumeristas, faz com que o CDC cumpra o seu papel na disciplina da realidade social, sem amarrar os atores sociais aos modelos inflexíveis e definitivos das regras jurídicas.

Decerto, os princípios norteadores das relações de consumo, tais como a transparência, a vulnerabilidade, a igualdade, a boa-fé objetiva, a repressão eficiente a abusos, a harmonia do mercado de consumo, a eqüidade e a confiança, oferecem importante norte hermenêutico para a compreensão do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.

Logo, a interpretação principiológica do Código de Defesa do Consumidor enseja a construção de novos paradigmas de convivência socioeconômica entre fornecedores e consumidores, descortinando um horizonte mais promissor para a realização da justiça no âmbito do mercado capitalista brasileiro.

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