A
Proteção Constitucional dos Direitos Fundamentais do Consumidor
Ricardo Maurício Freire Soares
Ricardo Maurício Freire Soares
Doutorando e Mestre em Direito – UFBA; Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito
da UFBA, da Faculdade Baiana de Direito e da Faculdade de Tecnologia
Empresarial; Professor-Convidado da Università di Roma La Sapienza, Università
Degli Studi di Roma Tre, Università Degli Studi di Roma Tor Vergata (Itália) e
Martin-Luther Universität Halle Wittenberg (Alemanha); Professor do Curso JusPODIVM de Preparação
para Carreira Jurídica e da Rede LFG; Membro do Instituto dos Advogados
Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia.
Artigo
publicado na Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do
Consumidor nº 20 – Abr/Maio de 2008.
RESUMO: O presente trabalho se propõe a repensar a
interpretação de uma das legislações mais avançadas do Direito Econômico nacional
– a Lei nº 8.078/90. Rompendo com os postulados individualistas e liberais do
direito privado moderno, o surgimento das leis consumeristas, como o Código
Brasileiro de Defesa do Consumidor, simboliza a atualização do direito
ocidental, na busca de uma maior isonomia fática entre fornecedores e
consumidores. A efetividade da Lei nº 8.078/90 requer o exercício de práticas
interpretativas progressistas, o que abre margem para a reformulação dos
paradigmas hermenêuticos tradicionalmente oferecidos pela ciência jurídica, o
que implica o uso dos princípios jurídicos, os quais, no âmbito das relações
econômicas do mercado capitalista, adquirem enorme relevância ao concretizar e
maximizar o espírito protetivo dessa codificação.
Palavras-chave: Interpretação; Lei; Código de
Defesa do Consumidor; Relações Econômicas.
SUMÁRIO:
1 A Sociedade de Consumo e o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor; 2 A
Nova Visão do Contrato na Sociedade de Consumo; 3 O Código Brasileiro de Defesa
do Consumidor Como Discurso Principiológico; 4 O Princípio Constitucional de
Defesa do Consumidor no Sistema Jurídico Brasileiro; 5 A Principiologia
Consumerista Como Norte Hermenêutico do Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor; 6 Notas Conclusivas: a Interpretação Principiológica e a Efetividade dos Direitos Fundamentais do
Consumidor; 7 Referências.
1. A Sociedade de Consumo e o Código Brasileiro de
Defesa do Consumidor
Os sistemas jurídicos costumam espelhar as
transformações ocorridas no tecido das relações sociais. Verificou-se que a
crise da modernidade rendeu ensejo para a configuração da sociedade de consumo,
demandando o redimensionamento das instituições jurídicas. O surgimento do
direito do consumidor decorre da manifestação dos desequilíbrios inerentes a
este novo modelo de coexistência social.
Neste sentido, sustenta Ada Grinover (1998, p. 6)
que o homem do século XX vive em função de um modelo novo de associativismo: a
sociedade de consumo (mass consumption society ou konsumgesellschaft),
caracterizada por um número crescente de produtos e serviços, pelo domínio do
crédito e do marketing, assim como pelas dificuldades de acesso à justiça. São
esses aspectos que marcaram o nascimento e desenvolvimento do direito do
consumidor como disciplina autônoma.
O aparecimento da sociedade de consumo engendrou,
assim, uma nova concepção de relações jurídicas, baseada na desigualdade fática
entre os sujeitos de direito. O ordenamento jurídico modulou o paradigma da
ordem pública econômica, disciplinando o intervencionismo do Estado no campo
das relações privadas. Depois de manifestar-se com grande nitidez nas relações
entre empregadores e assalariados, esta busca por uma maior isonomia
jurídico-social passou a concentrar-se nas interações entre consumidores e
fornecedores de produtos ou serviços.
Tratando do tema, Adriana Vieira (2002, p. 71) destaca
que as grandes descobertas que prestaram serviços à Revolução Industrial vieram
modificar, de modo fundamental, as relações de consumo. A propriedade passa por
uma transformação, pois a atividade começa a evoluir, tornando-se industrial, e
se sobrepõe à produção artesanal. Foi nessa época, com o desenvolvimento e
expansão do comércio, que começou a se manifestar o desequilíbrio nas relações
de consumo, exacerbado no século atual em função do fenômeno da concentração de
grandes capitais. Polarizou-se o conflito no setor das relações entre produtor
e consumidor, atraindo a atenção do legislador, em nível internacional e
nacional, para a edificação do regime próprio e sem prejuízo dos mecanismos
normais de defesa dos contratantes.
A conseqüência desta mudança social foi sentida
primeiramente nos países desenvolvidos. No ano de 1962, foi dirigida mensagem
presidencial ao Congresso Norte-Americano em que se anunciava um programa de
reformas econômicas consoante os interesses dos consumidores. Também, durante a
década de sessenta, difundiram-se na Europa associações de defesa do consumidor
que ocasionaram a criação de entidades públicas voltadas para a tutela dos
direitos do consumidor.
No sistema jurídico brasileiro, a Carta Magna de
1988 teve a primazia de contemplar os direitos do consumidor. No inciso XXII do
art. 5º, dispôs o legislador constituinte que o Estado promoveria, na forma da
lei, a defesa do consumidor. Não bastasse isso, a Constituição Federal
consagrou, no art. 170, V, a defesa do consumidor como um princípio geral da
ordem econômica. Ainda, o art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias determinou que o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias
da promulgação da Constituição, elaborasse o Código de Defesa do Consumidor. Assim
sendo, foi promulgada a Lei nº 8.078/90, uma das mais avançadas legislações
protetivas de consumo.
Neste diapasão, salienta Antônio Azevedo (1996, p.
17) que a demora na atualização do Código Civil fez com que o Código de Defesa
do Consumidor, de uma certa forma, viesse a preencher a vasta lacuna que, no
campo do direito privado brasileiro, a doutrina e a jurisprudência percebiam há
muito tempo. Na impossibilidade de encontrar, no velho Código Civil, base para
o desenvolvimento teórico do que há de mais apto para transformar o sistema
fechado em sistema aberto – por exemplo, a referência expressa a cláusulas
gerais, como a da boa-fé, e a princípios jurídicos, como o da exigência de
igualdade real nos negócios jurídicos -, é no Código de Defesa do Consumidor
que se pode encontrar um Ersatz do Código Civil que não veio ou, no mínimo, um
ponto de apoio para alavancar a atualização principiológica do sistema jurídico
brasileiro.
2 A Nova Visão do Contrato na Sociedade de Consumo
A interpretação do significado de contrato, no
ordenamento jurídico-consumerista, vem sendo reformulada em conformidade com as
transformações ocorridas na sociedade capitalista ocidental.
Como ensina Enzo Ropo (1988, p. 24), uma vez que o
contrato reflete, pela sua natureza, operações econômicas, é evidente que o seu
papel no quadro do sistema resulta determinado pelo gênero e pela quantidade
das operações econômicas a que é chamado a conferir dignidade legal, para além
do modo como, entre si, se relacionam – numa palavra pelo modelo de organização
econômica a cada momento prevalecente. Analogamente, se é verdade que a sua
disciplina jurídica – que resulta definida pelas leis e pelas regras
jurisprudenciais – corresponde instrumentalmente à realização dos objetivos e
interesses valorados consoante as opções políticas e, por isso mesmo,
contingentes e historicamente mutáveis, daí resulta que o próprio modo de ser e
de se conformar do contrato como instituto jurídico não pode deixar de sofrer a
influência decisiva do tipo de organização político-social a cada momento
afirmada.
Com efeito, no contexto da modernidade, sob os
influxos das revoluções burguesas, o jusnaturalismo lançou as bases para a
clássica definição de contrato. A moderna exaltação à liberdade e à igualdade,
traduzindo os direitos naturais do ser humano, acrescida do contratualismo como
base fundante da organização política, implicou na afirmação do princípio da
autonomia da vontade. Estava consolidado o dogma da livre manifestação do
consentimento individual, pedra de toque do direito privado tradicional. O
liberalismo dominante propugnava pela livre circulação da riqueza, despontando
o contrato como o instrumento jurídico capaz de operacionalizar as transações
econômicas. Tinha-se como verdadeira a crença de que as avenças contratuais
potencializariam o equilíbrio harmônico dos interesses sociais, sem a
necessidade do Estado promover ingerências no mercado, concebido como o espaço
cativo das relações privadas.
A modernidade jurídica sedimentou também o primado
da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda). Ora, se o ser humano,
igual aos seus pares, seria livre para exprimir a sua vontade, a força matriz
do consentimento teria que preponderar sobre as prescrições estatais. O
contrato foi, então, vislumbrado como verdadeira lei entre as partes. As normas
legais, assim, teriam mera função supletória ante as manifestações volitivas.
Com o agravamento dos problemas sociais do sistema capitalista, emergiu a
reação aos postulados jurídicos da modernidade. Rompeu-se com a concepção
individualista e liberal do direito das obrigações, introduzindo uma nova
leitura hermenêutica do contrato.
O significado de igualdade jurídica foi repensado.
Voltada à limitação do absolutismo monárquico, a igualdade atomística dos
homens, consagrada nas modernas constituições e declarações de direitos, pecava
pela total discrepância com a realidade cambiante. A previsão da isonomia, em
termos puramente abstratos e formais, não se coadunava com as desigualdades
produzidas pelo capitalismo liberal, seja nas relações entre os proprietários
dos meios de produção e trabalhadores, seja nas interações entre fornecedores e
consumidores de mercadorias e serviços.
A concentração do capital permitiu uma produção em
massa, que não poderia jamais ser dirigida a pessoas individualizadas. Era
preciso, através de mecanismos de publicidade e marketing, induzir o consumidor
a necessidades artificiais. Para cercear o acesso às informações de produtos e
serviços – qualidade, quantidade, especificidade e preço – foi criado o
contrato de adesão, com evidente prejuízo aos vulneráveis consumidores. Essa
situação de flagrante desequilíbrio entre os agentes econômicos do mercado de
consumo tornou imperiosa a pronta ingerência estatal, mormente pela via
legislativa, de sorte a relativizar os princípios da autonomia da vontade, da
obrigatoriedade do contrato e da igualdade formal.
Sobre esta reformulação principiológica, refere
Georges Ripert (1937, p. 313-314) que o declínio do contrato não provém
unicamente da limitação cada vez mais estreita do seu domínio; tem outra causa:
a negação audaciosa da força contratual. O contrato já não é considerado como o
ato criador da obrigação e o vínculo obrigacional já não dá ao credor poder
sobre o devedor. O reconhecimento da força contratual é, diz-se, uma concepção
do individualismo jurídico, e a idéia dum direito subjetivo conferido ao credor
é arcaica. O contrato cria simplesmente uma situação jurídica, que não poderá
ser mais imutável que a situação legal. Esta situação jurídica gera conseqüências
que o legislador determina soberanamente. O ato da vontade consiste unicamente
em submeter-se à lei do contrato, mas não pertence às partes decidir para
sempre, e em todos os casos, qual seja essa lei.
No vórtice destas transformações, já nos albores do
século XX, o espaço social ocupado pelo Estado se expande. Verifica-se então um
maior equilíbrio entre o Estado, agente de regulamentação social, e o mercado,
espaço de produção e distribuição de riqueza. A consolidação do movimento
operário, o fortalecimento dos sindicatos, o movimento consumerista e a crise
estrutural do sistema financeiro capitalista alteram o perfil estatal. O
Estado-mínimo do liberalismo burguês, mero ente ordenador das relações sociais,
é substituído pelo Estado-providência, que passa a intervir na sociedade.
Assume, pois, duas funções básicas: a promoção do progresso econômico e a
tutela dos cidadãos mais desfavorecidos. No que se refere a esta última
vertente, o Estado intervencionista, mediante prestações positivas, potencializa
o exercício dos direitos fundamentais de segunda geração.
Descrevendo o intervencionismo do Estado, assinala
Orlando Gomes (1986, p. 15) que, ao longo do processo de consolidação dessas
transformações, legitimou-se a intervenção do Estado na vida econômica como a
forma por excelência de obtê-las. Orientou-se, desse modo, para a limitação da
propriedade privada e da liberdade de contratar. Passou-se a admitir que a
propriedade tem função social e que a autonomia privada deve ser comprimida em
todos os modos do seu exercício.
As legislações consumeristas surgem, portanto, na
transição histórica do Estado liberal para Estado-providência, organizado para
desenvolver políticas públicas de concretização da igualdade material. Deste
modo, o intervencionismo estatal passa a objetivar a busca de uma isonomia
fática, mediante o implemento de prestações positivas. Na sociedade de massas e
de economia oligopolizada, a ingerência estatal, para a tutela do equilíbrio
consumerista, tornou-se cada vez mais necessária, mormente nos contratos de
adesão, ante o estreito campo negocial, a impessoalidade e a discrepância de
poderes entre o fornecedor e o consumidor.
Impôs-se, assim, normas de ordem pública, de
natureza cogente, para a promoção do chamado dirigismo contratual. O contrato,
assim como a propriedade, foi limitado e eficazmente disciplinado, tendo em
vista o reconhecimento da função social destes institutos. Esta nova concepção
social de contrato não só valoriza o momento da cristalização do consenso, mas
também os efeitos contratuais são levados em conta, atentando-se, igualmente,
para a condição econômica das partes contratantes. O espaço reservado para que
os particulares auto-regulem suas relações – autonomia da vontade – é reduzido
por normas imperativas, como as constantes da legislação consumerista. É uma
nova concepção de contrato em que a vontade perde a condição de elemento
nuclear, surgindo em seu lugar um vetor hemenêutico que transcende os sujeitos
de direito – o interesse público.
Atenta para este redimensionamento axiológico,
elucida Judith Martins-Costa (1992, p.141) que, contemporaneamente, modificado
tal panorama, a autonomia contratual não é mais vista como um fetiche
impeditivo da função de adequação dos casos concretos aos princípios substanciais
contidos na Constituição e às novas funções que lhe são reconhecidas. Por esta
razão desloca-se o eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade à
tutela objetiva da confiança, diretriz indispensável para a concretização,
entre outros, dos princípios de superioridade do interesse comum sobre o
particular, da igualdade positiva e da boa-fé em sua feição objetiva.
Sendo assim, ao procurar o equilíbrio contratual,
no âmbito da sociedade de consumo, o direito passa a destacar o papel da lei
como limitadora e legitimadora da autonomia da vontade. O contrato de consumo
é, pois, iluminado por novos valores, admitindo-se a supremacia do interesse
público, o respeito à vulnerabilidade, a transparência, a igualdade material, a
boa-fé, a eqüidade e a confiança como diretrizes a serem realizadas no mercado
de consumo.
3 O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Como
Discurso Principiológico
As legislações contemporâneas que tutelam os
direitos fundamentais costumam ser estruturadas através de proposições principiológicas,
as quais sinalizam para os valores e fins maiores a serem tutelados pela ordem
jurídica. O microssistema do direito do consumidor, enquanto manifestação da
cultura jurídica pátria, absorve, naturalmente, uma carga expressiva de
valores. Estas estimativas comunitárias são cristalizadas em pautas de
comportamento, exigindo uma interpretação capaz de atender à realização das
finalidades deste ramo jurídico. A interpretação das normas consumeristas deve,
igualmente, apresentar uma natureza teleológica, operacionalizando a busca de
significados socialmente aceitos.
Sem o trabalho de mediação e de concretização, que
se impõe ao intérprete-aplicador do direito, o direito do consumidor não logra
realizar os seus valores fundantes, satisfazendo aos anseios da sociedade. O
sentido jurídico, sendo externo às normas jurídicas, em certa medida, embora
não possa contrariar de todo o seu enunciado, exige a sensibilidade do
intérprete para se revelar completamente. Com a positivação histórica dos
direitos humanos, nas esferas constitucional e infraconstitucional, a
interpretação dos direitos do consumidor se colocou como problema a partir do
momento em que os diplomas legais deixaram de ser apenas catálogos de
competências do Estado para se converterem em verdadeiras cartas de cidadania.
Cuidaram os juristas de oferecer uma teoria hermenêutica que pudesse responder
à necessidade de interpretar e aplicar princípios. A interpretação passou a ser
entendida como uma hermenêutica de princípios, baseada em pautas axiológicas,
para cuja efetividade se deve substituir a idéia retrospectiva de interpretação
pela idéia prospectiva de concretização.
Destacaram-se, assim, pela ingente função
fundamentadora e hermenêutica, os princípios consumeristas. Decerto, o art. 4º
do CDC, ao prescrever o objetivo da Política Nacional de Relações de Consumo,
afigura-se como referencial teleológico para a interpretação de todo o
arcabouço normativo do Código de Defesa do Consumidor, visto que, mediante a
compreensão dos princípios jurídicos catalogados no art. 4º, o hermeneuta logra
apreender os fins maiores que imantam a legislação consumerista. Por informar
todo o conjunto normativo do CDC, os princípios consumeristas funcionam como
reguladores teleológicos da atividade interpretativa, iluminando a aplicação
das normas jurídicas estampadas neste diploma legal.
Não é outro o magistério de Luiz Rizzatto Nunes
(2002, p. 19), para quem os princípios são, dentre as formulações deônticas de
todo o sistema ético-jurídico, os mais importantes a serem considerados, não só
pelo aplicador do direito, mas por todos aqueles que, de alguma forma, ao
sistema jurídico se dirijam. E essa influência tem uma eficácia efetiva, real e
concreta. Não faz parte apenas do plano abstrato do sistema. É de ser levada em
conta na determinação do sentido de qualquer norma, como exigência de
influência plena e direta. Vale dizer: o princípio, em qualquer caso concreto
de aplicação das normas jurídicas, da mais simples à mais complexa, desce das
altas esferas do sistema ético-jurídico em que se encontra para imediata e
concretamente ser implementado no caso real que se está a analisar.
Em se tratando dos princípios jurídicos do CDC,
porque a sua estrutura normativo-material é necessariamente aberta e
indeterminada, a atuação do intérprete é condição de possibilidade para se
concretizar as finalidades indicadas e corporificadas pela legislação
consumerista. Decerto, a incapacidade humana de prever o futuro é a base da
indeterminação dos princípios jurídicos. Há situações de via deliberada de
escape interpretativo, com o emprego de expressões lingüísticas valorativas que
podem ser interpretadas de diversos modos num contexto específico. Esta base
principiológica torna flexível e dinâmica a interpretação dos direitos do consumidor.
Sendo assim, o significado normativo das
legislações consumeristas, longe de ser um dado objetivamente dissociado do
hermeneuta, emerge no âmbito da própria atividade interpretativa. Guiado pela
principiologia, exerce o intérprete um relevante papel na reconstrução do
sentido do microssistema do CDC, mormente no que se refere à necessária
abertura aos valores sociais. A substituição da referência hermenêutica da
voluntas legislatoris por uma viva e objetiva voluntas legis,
institucionalmente valorada, abre espaço para uma interpretação atual, porque
orientada pelos princípios jurídicos.
Neste sentido, refere Eduardo de Enterría (1986, p.
20) que “la autonomía de esa supuesta voluntad de la ley respecto de su autor y
el hecho de su movilidad en el tiempo no podrían explicarse si la ley misma no
fuese vista como expresión de algo substancial y más profundo, lo cual, por
serlo, es capaz de someter y relativizar lo que no es más que una simple
manifestación o formalización suya; aquí aparecen ya los famosos principios
generales del derecho (sobre los que hemos de hablar luego), sin cuya realidad
todo ese proceso esencial de la traducción de la ley en vida jurídica efectiva
y su incesante movilidad no tendrían explicación posible; sería, en rigor, una
arbitrariedad de los intérpretes sin norte posible, la misma cabalmente que el
legalismo quiso en su momento desalojar”.
4 O Princípio Constitucional de Defesa do
Consumidor no Sistema Jurídico Brasileiro
Com a inserção dos princípios nos textos
constitucionais, operou-se uma revolução de juridicidade no constitucionalismo
ocidental contemporâneo, visto que os princípios gerais do direito se
transformaram em normas positivadas em Cartas Magnas. Sendo assim, as novas
Constituições passaram a acentuar a hegemonia axiológica dos princípios
constitucionais sobre todas as normas do direito positivo. Hoje, não há mais
como pensar numa hermenêutica jurídico-constitucional sem referir-se a
princípios como referências valorativas para a interpretação teleológica do
direito.
Conforme adverte Glauco Magalhães Filho (2002, p.
11), a nova hermenêutica constitucional volta-se para as normas com estrutura
de princípios (Constituição Material). Ela aproxima dialeticamente
interpretação da aplicação. Objetiva, acima de tudo, a concretização de
valores, e não a imediata submissão de fatos a disposições normativas. Assim,
enquanto a interpretação teleológica da hermenêutica clássica busca a fixação
do sentido da norma pelo seu fim imediato, a interpretação conforme a
Constituição remete a norma aos fins do ordenamento jurídico e do Estado
Democrático de Direito, gerando uma sistematização (unidade) axiológica do
ordenamento jurídico.
No âmbito do sistema constitucional contemporâneo,
a positivação dos princípios ocorreu, em larga medida, na ordem econômica de
cada Carta Magna, estabelecendo os marcos do intervencionismo estatal para a
satisfação dos direitos fundamentais de segunda geração, tendente a instaurar
um regime de democracia substancial ao determinarem a realização de fins
sociais, através da atuação de programas de intervenção na ordem econômica, com
vistas à realização da justiça social.
A ordem econômica adquiriu dimensão jurídica a
partir do momento em que as constituições passaram a discipliná-la
sistematicamente, o que teve início com a Constituição Mexicana de 1917 e a
Constituição Alemã de Weimar em 1919. No Brasil, com o advento da Carta Magna
de 1988, a ordem econômica passou a ser disciplinada nos arts. 170 a 192. A
Constituição enunciou que a ordem econômica é fundada na valorização do
trabalho humano e na iniciativa privada, tendo por escopo assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social. No art. 170, ocorreu a
constitucionalização de inúmeros princípios, dentre eles, o primado da defesa
do consumidor.
A este princípio da ordem econômica confere a
Constituição Federal, desde logo, concreção nas regras constitucionais
estampadas nos seus arts. 5º, XXXII: “o Estado promoverá, na forma da lei, a
defesa do consumidor”; 24, VIII: “responsabilidade por dano ao consumidor”;
150, § 5º: “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam
esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”; e
48 da ADCT: “o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias, elaborará
Código de Defesa do Consumidor”. Ademais, o parágrafo único, II, do art. 175
insere entre as matérias sobre as quais deverá dispor a lei que trate da
concessão ou permissão de serviço público os direitos dos usuários.
Sobre seu substrato ideológico, sublinha Eros Grau
(2003, p. 216-217) que, a par de consubstanciar, a defesa do consumidor, um
modismo modernizante do capitalismo – a ideologia do consumo contemporizada (a
regra “acumulai, acumulai” impõe o ditame “consumi, consumi”, agora porém sob
proteção jurídica de quem consome) -, afeta todo o exercício de atividade
econômica, inclusive tomada a expressão em sentido amplo, como se apura da
leitura do parágrafo único, II, do art. 175. O caráter constitucional
conformador da ordem econômica, deste como dos demais princípios de que tenho
cogitado, é inquestionável.
Trata-se de uma proposta de conciliação dialética
entre diversos elementos sócio-ideológicos, ora apontando para o capitalismo e
a configuração de um Estado liberal, ora indicando uma opção pelo socialismo e
pela organização de um Estado intervencionista. Certo é que a previsão de
alguns princípios, como o da defesa do consumidor, revelam um compromisso entre
as forças políticas liberais e as reivindicações populares de justiça social no
mercado de consumo, possibilitando que o capitalismo seja domado e humanizado.
Além desta conotação na Carta Magna, a defesa do
consumidor constitui-se em um dos princípios a ser seguido para o
desenvolvimento da atividade econômica, sendo um meio para se atingir o
desiderato constitucional em que ela se fundamenta, que é a valorização do
trabalho humano e a livre iniciativa, para que possa assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social. Com efeito, a
realização do princípio constitucional da defesa do consumidor não elide as
demais normas principiológicas do art. 170 da CF/88, ainda que, aparentemente,
polarizem um conflito inconciliável.
Neste sentido, ressalta Ricardo Camargo (1992, p.
52) que não se pode perder de vista que o CDC tem seu fundamento de validade na
Constituição Econômica, de sorte que sua aplicação não pode conduzir a uma
nulificação dos demais princípios que a informam. Se a defesa do consumidor
constitui um dos modos pelos quais a propriedade dos bens de produção cumpre a
sua função social e o poder econômico se põe em seus justos trilhos, não pode
ela chegar ao cúmulo de comprometer a soberania nacional nem de tornar
enunciados puramente ornamentais, os concernentes à propriedade privada, à
livre iniciativa e à livre concorrência. Afinal, são apenas aparentes as
contradições da Constituição Econômica, já que nenhum de seus princípios se
aplica sem restrições.
5 A Principiologia Consumerista Como Norte
Hermenêutico do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor
A elevação da defesa do consumidor à categoria de
princípio constitucional demanda que as normas infraconstitucionais se
apresentem como realizando algo, da melhor forma possível, de acordo com as
possibilidades fáticas e jurídicas, pois os princípios não proíbem, permitem ou
exigem algo em termos de tudo ou nada, impondo, em verdade, a otimização dos
valores jurídicos.
O princípio constitucional da defesa do consumidor
não se esgota na densificação promovida pelo legislador ao elaborar o CDC.
Torna-se imperiosa a concretização da defesa do consumidor na miríade das
relações sociais, o que exige o esforço do operador do direito na correta
interpretação e aplicação do referido diploma legal, capilarizando o mandamento
constitucional. Logo, também no plano infraconstitucional, serão relevantes os
princípios jurídicos, mormente aqueles positivados na própria legislação
consumerista, no desenvolvimento de suas funções fundamentadora e hermenêutica.
Neste sentido, o CDC contempla, além das normas de conduta e de organização,
uma terceira categoria normativa, denominada de normas-objetivo, que ostenta
uma inegável tessitura principiológica.
Tratando do tema, sustenta Eros Grau (2002, p. 35)
que o direito passa a ser operacionalizado, tendo em vista a implementação de
políticas públicas, políticas referidas a fins múltiplos e específicos. Pois a
definição dos fins dessas políticas é enunciada precisamente em textos
normativos que consubstanciam normas-objetivo e que, mercê disto, passam a
determinar os processos de interpretação do direito, reduzindo a amplitude da
moldura do texto e dos fatos, de modo que nela não cabem soluções que não sejam
absolutamente adequadas a tais normas-objetivo.
A norma que se depreende do art. 4º do CDC se
enquadra nesta última tipologia, pois estabelece a responsabilidade dos poderes
públicos e agentes econômicos na realização dos princípios consumeristas,
configurando a verdadeira ratio essendi do diploma legal. Com efeito, o art. 4º
condiciona a incidência e a aplicação das normas da lei a estes
princípios/objetivos, que passam a ser finalidades jurídicas prioritárias. Por
isso que é uma norma-objetivo. Dado ao caráter imperativo das regras do CDC, o
art. 4º vincula o intérprete aos resultados pretendidos, o qual fica na
contingência de aplicar o CDC teleologicamente, não por sua opção hermenêutica,
mas pela própria determinação legal.
Neste sentido, assinala Newton de Lucca (1995, p.
42) que o art. 4º define uma série de princípios, e, como tais, orientam a
interpretação dos demais dispositivos do Código no sentido de que eles sejam
efetivamente preservados, não podendo uma simples regra jurídica sobrepor-se à
idéia contida no princípio. O universo jurídico é composto por normas. Estas
podem ser simples regras ou verdadeiros princípios. Estes últimos afastarão a
aplicação das primeiras se tal procedimento contrariar o seu princípio
fundamental.
Por essa razão, o legislador estabeleceu, no art.
4º do CDC, uma política nacional de consumo, adotando princípios específicos a
serem seguidos pelo hermeneuta, que definem os direitos fundamentais do
consumidor, tais como a transparência, a vulnerabilidade, a igualdade, a boa-fé
objetiva, a repressão eficiente a abusos, a harmonia do mercado, a eqüidade e a
confiança nas relações de consumo. A obediência a tais princípios é imperativa,
pelo que as relações de consumo devem se desenvolver e ser interpretadas sem
qualquer afastamento dos propósitos que os revestem e os caracterizam.
As dicções do art. 4º da Lei nº 8.078/90 não são
programáticas, como alguns autores sustentam, a indicar os valores básicos que
o Estado, entendendo relevantes, concretiza como metas a alcançar no tocante a
relações de consumo. Não há outorga ao Estado de atividade discricionária pelo
referido dispositivo, produzindo, ao revés, uma força cogente obrigatória não
só para os órgãos estatais, mas também para os agentes econômicos que integram
uma dada relação de consumo.
6 Notas Conclusivas: a Interpretação
Principiológica e a Efetividade dos Direitos Fundamentais do Consumidor
A eficácia social do Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor se vincula diretamente às práticas interpretativas. A interpretação,
como atividade mediadora entre o legislador e o mercado de consumo, exterioriza
as mensagens normativas do CDC. Ao delimitar o significado de seus modelos normativos,
o hermeneuta concretiza os valores e objetivos da legislação consumerista. Para
que seja potencializada a índole protetiva do CDC, a compreensão interpretativa
de seu arcabouço normativo requer o uso dos princípios jurídicos
constitucionais e infraconstitucionais. A principiologia oferece ao intérprete
os vetores axiológicos de orientação hermenêutica, embasando a interpretação
teleológica da lei consumerista. Os princípios jurídicos, imbuídos que são de
uma reserva ética, maximizam a tutela do consumidor, minimizando as
desigualdades inerentes ao mercado capitalista.
A efetividade dos direitos do consumidor pode ser
garantida pela própria textura aberta dos princípios jurídicos, característica
não encontrada nas regras de direito. Com efeito, os princípios jurídicos
ostentam uma estrutura dialógica, capaz de apreender as mudanças da realidade
circundante, e uma permeabilidade aos conteúdos valorativos, o que melhor
permite a realização da justiça. Esta abertura, também encontrada nos
princípios consumeristas, faz com que o CDC cumpra o seu papel na disciplina da
realidade social, sem amarrar os atores sociais aos modelos inflexíveis e
definitivos das regras jurídicas.
Decerto, os princípios norteadores das relações de
consumo, tais como a transparência, a vulnerabilidade, a igualdade, a boa-fé
objetiva, a repressão eficiente a abusos, a harmonia do mercado de consumo, a
eqüidade e a confiança, oferecem importante norte hermenêutico para a
compreensão do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.
Logo, a interpretação principiológica do Código de
Defesa do Consumidor enseja a construção de novos paradigmas de convivência
socioeconômica entre fornecedores e consumidores, descortinando um horizonte
mais promissor para a realização da justiça no âmbito do mercado capitalista
brasileiro.
7 Referências
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