quarta-feira, 16 de março de 2016

Prevista no novo CPC, audiência de saneamento é quase sempre proveitosa




Por José Rogério Cruz e Tucci




Inspirando-se na moderna doutrina que já adotara entre os princípios éticos que informam à ciência processual o denominado “dever de cooperação recíproca em prol da efetividade”, o artigo 6º do novo CPC objetiva desarmar todos os participantes do processo, infundindo em cada qual um comportamento pautado pela boa-fé, para se atingir uma profícua comunidade de trabalho. E isso desde aspectos mais corriqueiros, como a simples consulta pelo juiz aos advogados da conveniência da designação de audiência numa determinada data, até questões mais complexas, como a expressa previsão de cooperação dos demandantes ao ensejo do saneamento do processo (artigo 357, parágrafo 3º, CPC). Trata-se aí de cooperação em sentido formal.

O novo estatuto processual, neste particular, estabeleceu verdadeira transformação das relações entre o juiz e os litigantes, determinante do abandono definitivo de velhos hábitos forenses de desprezo pela recíproca atuação dos juízes e dos patronos das partes, para abrir espaço a uma estreita colaboração, cujo resultado, qualquer que seja ele, sempre será mais profícuo.

Uma das mais emblemáticas inovações no novo CPC concerne à reconfiguração da função atribuída ao juiz, que determina uma direção ativa do processo, possibilitando-lhe traçar uma rota segura que mais se adapte às exigências da causa.

Em obra que marcou época, discorrendo sobre a independência e o sentido de responsabilidade do juiz, Calamandrei asseverava que os advogados sempre devem enaltecer os magistrados “que ousam romper a regra monástica do seu silêncio para transformarem a audiência, de inútil solilóquio de um retórico diante de uma assembleia de assistentes sonolentos, num diálogo entre interlocutores vivos que procuram, por meio da discussão, compreender-se e convencer-se”. Na verdade — conclui Calamandrei —, “para que as instituições judiciárias atendam às exigências de uma sociedade de homens livres, que seja banido o seu tradicional traço secreto, permitindo que também no processo permeie entre juízes e advogados este sentido de confiança, de solidariedade e de humanidade, que é em todos os campos o espírito vivificador da democracia” (Processo e Democrazia, Padova, Cedam, 1954, p. 90).

Verifica-se, destarte, que o CPC ampliou o sentido do artigo 339 do velho diploma, agora repetido no artigo 378: “Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”. Afirma-se que, nessa hipótese, a lei prevê a cooperação em sentido material, uma vez que faz recair sobre as partes e terceiros o dever de prestarem a sua recíproca colaboração para a descoberta da verdade.

É de ter-se presente que, além de situações de natureza técnica, que impõem a cooperação, valores de deontologia forense, sobrelevados pelos operadores do Direito — juízes, promotores e advogados —, também se inserem na esperada conduta participativa.

Pela perspectiva cooperativa por parte do tribunal despontam os deveres de prevenção, de esclarecimento, de consulta e de auxílio às partes, que podem ser resumidos da seguinte forma: a) dever de prevenção: cabe ao juiz apontar as inconsistências das postulações das partes, para que possam ser aperfeiçoadas a tempo (por exemplo, emenda da petição inicial para especificar um pedido indeterminado; individualizar as parcelas de um montante que só é globalmente indicado); b) dever de esclarecimento: cabe ao juiz determinar às partes que prestem esclarecimentos quanto a alegações obscuras ou circunstâncias que demandem complementações; c) dever de consulta: cabe ao juiz colher previamente a manifestação das partes sobre questões de fato ou de direito que influenciarão o julgamento; e d) dever de auxílio: cabe ao juiz facilitar às partes a superação de eventuais dificuldades ou obstáculos que impeçam o exercício de direitos ou faculdades (por exemplo, o juiz deve proceder à remoção de empecilho à obtenção de um documento ou informação que seja indispensável para a prática de um determinado ato processual).

Já o dever de cooperação dos litigantes repousa no dever de se pautarem por probidade e boa-fé, de apresentarem os esclarecimentos determinados pelo juiz e de cumprirem as intimações para comparecimento em juízo. Esse dever não é apenas retórico. O artigo 334 do CPC, que disciplina a audiência de conciliação e de mediação, preceitua, no parágrafo 8º, que “o não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da Justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado”, dependendo, é claro, se o aludido ato processual foi designado em processo que se desenvolve, respectivamente, perante a Justiça Federal ou a Justiça estadual.

O mais importante é que a colaboração, ditada pelo novel diploma processual, esteja a serviço da celeridade processual na direção do julgamento de mérito. Nesse sentido, por exemplo, dispondo sobre as cartas de comunicação processual, o artigo 261, parágrafo 3º, do CPC reza que: “A parte a quem interessar o cumprimento da diligência cooperará para que o prazo a que se refere o caput seja cumprido”. Procura-se, assim, evitar situações que proporcionem deliberada procrastinação do procedimento ou mesmo nulidade do processo.

Aos poucos a jurisprudência passa a reconhecer o dever de cooperação, como se extrai do seguinte julgado: “Nos termos do artigo 535 do CPC, os embargos de declaração constituem modalidade recursal destinada a suprir eventual omissão, obscuridade e/ou contradição que se faça presente na decisão contra a qual se insurge, de maneira que seu cabimento revela finalidade estritamente voltada para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, que se quer seja cumprida com a efetiva cooperação das partes” (STJ, 1ª T., EDcl no AgRg no Agravo 1.300.872-CE, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, v. u., DJe de 3.2.2015).

Os profissionais do Direito sabem que há demandas bem mais intrincadas do que outras, que se diferenciam pelo grau de complexidade. Ninguém ousará discordar de que uma causa, na qual se pretende indenização por danos material e moral, provocados pelo extravio de bagagem, é mais simples do que uma ação declaratória de nulidade de um contrato, cumulada com pedidos de cancelamento de registro imobiliário e de ressarcimento por perdas e danos e lucros cessantes.

Daí, porque, nas questões mais singelas, o magistrado, em regra, prescinde de maior participação ativa das partes para proferir a decisão de saneamento e de organização do processo.

Todavia, verificando o juiz que, diante das circunstâncias de uma situação concreta mais complexa, sobretudo quando pairarem dúvidas e dificuldades de compreensão atinentes, precipuamente, à matéria de fato, mas, também, às questões de direito, que podem ser mais bem definidas com a cooperação das partes, deverá o juiz designar “audiência de saneamento”, para que as providências acima referidas sejam compartilhadas pelos protagonistas do processo (artigo 357, parágrafo 3º, CPC).

Tal determinação, como se percebe, encontra-se em absoluta sintonia com a previsão do aludido artigo 6º do CPC.

A experiência forense revela que a contribuição dos advogados na fixação dos pontos litigiosos, preparando o processo para a atividade instrutória, é quase sempre oportuna e profícua.

Convidar as partes a integrar ou esclarecer as suas respectivas alegações, como se extrai da redação do parágrafo 3º do artigo 357, implica inclusive a possibilidade de aditamento ou mesmo de alteração do pedido e/ou da causa de pedir, segundo dispõe o artigo 329, inciso II, do CPC, desde que consinta o réu, assegurando-se-lhe o contraditório.


José Rogério Cruz e Tucci é advogado, diretor e professor titular da Faculdade de Direito da USP e ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.

Revista Consultor Jurídico, 15 de março de 2016, 8h00

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