Por Maurício Cardoso e Marcos de Vasconcellos
O Brasil vive uma dicotomia, na qual quem critica atitudes arbitrárias do Judiciário é tachado como alguém “a favor da corrupção”. A partir do momento em que promotores e procuradores promovem na imprensa uma campanha “contra a corrupção”, passam a justificar tudo o que fazem (mesmo seus erros) como um objetivo nobre. E quem vai contra eles — inclusive advogados no exercício de sua função — é automaticamente visto como inimigo da sociedade.
O cenário é traçado pelo advogado criminalista Alberto Zacharias Toron, que completa 35 anos de carreira este ano. À frente do Toron Advogados, com 28 profissionais do Direito, ele faz questão de dizer, com humor ferino, que é o maior escritório criminal em número de pessoas, mas não em faturamento. Ele é conhecido por sua atuação em casos com grande repercussão nacional, como a Ação Penal 470, o processo do mensalão, a operação satiagraha, a operação “lava jato” e, recentemente, entrou no caso do sítio em Atibaia (SP), que o Ministério Público aponta como sendo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Atualmente ele defende Fernando Bittar, o dono do sítio de Atibaia que o Ministério Publico diz que é de Lula. E foi o advogado de defesa do empresário Ricardo Pessoa, presidente da construtora UTC, citada na "lava jato".
Por ter atuado em grandes casos, Toron consegue traçar paralelos entre outros processos e a operação que levou o juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba às manchetes dos jornais. Para o criminalista, é claro que a mídia vem sendo, cada vez mais utilizada e de forma deliberadamente ordenada. “Eles usam a imprensa com vazamentos seletivos para criar uma legitimação social de práticas que não são lá muito ortodoxas.”
As mudanças no que diz respeito à Justiça criminal não vêm só da primeira instância. O novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que passou a aceitar que penas sejam cumpridas antes do trânsito em julgado das decisões, também é alvo das críticas de Toron. “Achei bacana o STF promulgar, pontualmente, uma nova Constituição. Só fiquei na dúvida se ele tem legitimidade para isso”, alfineta.
Nem toda novidade é malvista, no entanto, para o criminalista. A delação premiada, criticada por muitos de seus colegas, é vista com bons olhos por Toron. Assim como serve como meio de prova, serve também como forma de defesa para quem decide colaborar, afirma.
Toron começou sua carreira de criminalista como estagiário de Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, morto em novembro de 2014. Hoje, já conta nos dedos os escritórios formados por profissionais que foram seus estagiários.
Juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo desde junho de 2014, Toron já foi também conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Atualmente, entre a atuação na área criminal e na corte eleitoral, escreve um livro sobre Habeas Corpus.
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor vê os últimos acontecimentos relativos à condução coercitiva do presidente Lula, autorizada pelo juiz Moro, e o pedido de prisão preventiva feito pelo MP de São Paulo?
Alberto Toron — O pedido de prisão preventiva contra o presidente Lula é técnica e politicamente tão absurdo que teve o único mérito de unir a oposição e a situação no Congresso a criticá-lo. Fiquei emocionado outro dia ao ver o nosso querido professor Miguel Reale Jr., peessedebista militante e ácido crítico do PT em pleno Jornal Nacional não só criticar o pedido de prisão preventiva, mostrando sua inconsistência e ilogicidade, como também defendendo o direito de o presidente Lula externar sua indignação, como cidadão e político que é. Já a justificativa dada para legitimar a condução coercitiva do presidente Lula chega a causar arrepios, menos pela inconsistência técnica e mais pelo cinismo. É duro dizer o óbvio, mas o caldo de cultura da violência estatal, pseudo legitimada pelo combate ao crime organizado e a corrupção, assusta. Sim, foram mais de 100 conduções coercitivas e ninguém falou nada! Ninguém falou nem uma vírgula. Como bem escreveu na Folha de S.Paulo meu querido amigo e grande advogado Luis Francisco Carvalho, (12/3), ninguém reclamou antes porque a condução coercitiva é menos grave que a prisão... Mas a ilegalidade é a mesma: só se conduz coercitivamente quem, devidamente intimado, não comparece para prestar depoimento. Depois, no caso do ex-presidente Lula, houve, com ou sem intenção, uma nítida ação desmoralizadora; uma ação que humilha a pessoa. Isso é inaceitável. Advirta-se, porém, é a cara da "lava jato". As pessoas, salvo o almirante [Othon Luiz Pinheiro da Silva, ex-presidente da Eletronuclear], que cuidaram de proteger bem — ufa, ao menos um —,foram expostas pela mídia em seus deslocamentos; é o escracho como se fazia na Santa Inquisição. É uma reedição moderna dos Autos de Fé. Minha mulher que é arquiteta, tem preferido assistir o Jornal Nacional, porque ele está parecendo mais uma novela do que as novelas. Sou de opinião que, sim, é preciso combater a criminalidade e com rigor, mas respeitado o devido processo legal e, sobretudo, a dignidade humana.
ConJur — O juiz Sergio Moro poderia determinar a interceptação do advogado de Lula, Roberto Teixeira?
Alberto Toron — Houve dupla violência no caso. Não só à garantia do sigilo do advogado, mas também à letra da Lei 9.296, que não permite a divulgação das conversas interceptadas. Elas são sigilosas. Ainda que o juiz queira abrir o sigilo do inquérito, ele jamais poderia tê-lo feito em relação às interceptações. Essa divulgação me parece marcada por flagrante ilegalidade. É mais uma decisão que causa profunda preocupação. Parece-me muito espúrio que um juiz divulgue isso e permita causar comoção popular. É mais uma prova de que o juiz Sergio Moro busca sua legitimação no movimento popular. Sua aceitação não parece vir da lei, mas da mobilização popular, o que é uma característica do fascismo. O que estamos vendo é um juiz militando pra derrubar o governo, isso parece merecer a atenção do Conselho Nacional de Justiça.
ConJur — Quais foram as causas e quais serão as consequências da decisão do STF de admitir o cumprimento de pena antes do trânsito em julgado do processo penal?
Alberto Toron — Achei bacana o STF promulgar, pontualmente, uma nova Constituição. Só fiquei na dúvida se ele tem legitimidade para isso. (risos) Não entro no mérito de saber se o sistema penal estava disfuncional. Talvez estivesse mesmo, não nego. Mas é de um autoritarismo ímpar fazer justiça com as próprias mãos. O sistema republicano não outorga ao Poder Judiciário tanto poder. Interpretar as leis e a Constituição não é pouco; agora, legislar, francamente, por mais bem intencionados que os juízes sejam, não é, definitivamente, seu papel. Como escrevi na ConJur no artigo Conversa de um criminalista com o ministro Barroso, parafraseando o professor Eros Grau: se os argumentos funcionalistas (excesso de processos, leia-se, de trabalho), prevalecerem sobre os normativos, “o perigo de juízos irracionais aumenta”. Hoje, se corrige a Constituição reintroduzindo a sistemática do CPP de 1941, que no artigo 669, I [. Só depois de passar em julgado, será exequível a sentença, salvo quando condenatória, para o efeito de sujeitar o réu a prisão, ainda no caso de crime afiançável, enquanto não for prestada a fiança], de franca inspiração fascista, tanto quanto a prisão preventiva obrigatória. Amanhã, acabam com o HC no STF a pretexto de que a corte é constitucional. Enfim, se o que vale é “dane-se a Constituição” e viva a interpretação de plantão dos juízes de turno, vamos mal, muito mal. Saímos da ditadura militar, mas não para cairmos na do Judiciário. Ave Maria! — e olha que para um judeu como eu falar Ave Maria, é porque a coisa tá preta (risos).
ConJur — Como o senhor chegou ao caso do sítio em Atibaia, apontado como sendo do ex-presidente Lula?
Alberto Toron — Pelos jornais.
ConJur — Que diferenças o senhor vê entre a Ação Penal 470, o processo do mensalão, e a operação “lava jato”?
Alberto Toron — O mensalão foi um processo conduzido por um colegiado, embora tivesse um relator muito voluntarioso, que dissesse coisas assustadoras do ponto de vista da defesa, seguiu padrões mais tradicionais que os da “lava jato”. A segunda grande diferença é que no processo do mensalão, nós não tivemos réus presos preventivamente. E, muito menos, réus presos para forçá-los a fazer delação premiada. O ministro Teori Zavascki disse, no Habeas Corpus que ganhei (127.186), que é inadmissível utilizarem-se de prisões preventivas — que têm um caráter processual e devem objetivar garantir a ordem pública e evitar problemas na instituição criminal — instrumentalmente para forçar pessoas a falar, num desvirtuamento inadmissível. E esse desvirtuamento foi fundamental para a operação “lava jato”. Enquanto as provas do mensalão eram essencialmente documentais, uma ou outra escuta telefônica, as provas da “lava jato” são essencialmente documentais e decorrentes de delações.
ConJur — As delações estão levando a provas documentais ou são apenas a palavra do delator?
Alberto Toron — Em muitos casos, estão levando a novas provas, inclusive documentais. O que está errado, no meu modo de ver, é a utilização da prisão preventiva para forçar a obtenção das delações. E pior, isso não é uma coisa do juiz Moro, isso é uma coisa que contou com o aval do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e do Superior Tribunal de Justiça. Foi só no Supremo que se discutiu isso. E fora o HC que a Corte concedeu ao Renato Duque, parece que o STF quis se blindar atrás da Súmula 691, para não conhecer de nenhum Habeas Corpus que questionasse a prisão antes de o julgamento. Mesmo que se diga que muitas delações foram feitas por réus soltos, não é menos verdadeiro que tiveram como inspiração as inúmeras prisões e o tempo que duraram.
ConJur — O Supremo tem se anulado?
Alberto Toron — Isso tem a ver com o Supremo querer se resguardar, não querer botar a mão na cumbuca. Eu achei que o Supremo talvez tenha se acovardado em enfrentar essas questões. O Supremo quis enfrentar os diferentes temas no tempo em que ele entendeu devido. Isso o enfraquece como guardião da Constituição e, particularmente, dos Direitos Fundamentais de caráter processual. Essa é outra diferença marcante entre esse caso e o mensalão.
ConJur — O senhor acha que haveria mesmo eficácia nas delações sem as prisões?
Alberto Toron — Seguramente nós não teríamos tantas delações não fossem as prisões. Mas a delação, tanto quanto o interrogatório, tem uma dupla face. A delação é um meio de prova, mas ela também é um meio de defesa. Veja que o empresário Ricardo Pessoa depois de solto continuou o processo de delação, ele podia ter parado, mas continuou mesmo depois de solto. Ou seja, há circunstâncias que fazem a pessoa optar pelo caminho da delação porque é um meio de defesa para ela, antes de ser uma estratégia da acusação. O acusado quer fazer a delação porque ele não vê outro caminho de ter uma pena mais branda, senão por essa via.
ConJur — A atuação do Ministério Público Federal tem sido diferente?
Alberto Toron — No mensalão havia uma denúncia enorme, que tinha vários capítulos. Por exemplo, o então deputado João Paulo Cunha, por razões óbvias, não tinha nada a ver com o caso de corrupção a deputados para que estes votassem projetos do governo. As acusações contra ele foram muito específicas, mas estavam lá naquele conjunto. Na “lava jato” foi completamente diferente. Havia uma massa enorme de informações que não constavam do processo. Estavam dispersas em vários outros feitos. Em uma das defesas preliminares que oferecemos no caso do Ricardo Pessoa, a primeira coisa destacada foi o cerceamento de defesa, por falta de acesso a documentos imprescindíveis para responder à acusação. Documentos que estavam referidos na denúncia e não estavam nos autos. Havia referência a delações às quais, a pretexto de não estarem homologadas, não tínhamos acesso. Como é que vou fazer a defesa do meu cliente, já tendo sido intimado para isso, sem acesso a documentos referidos pela denúncia, delações sobretudo. Além de tudo isso, as narrativas, embora interligadas, estavam repartidas em diferentes denúncias. Essa fragmentação artificial também cerceou as defesas. Mas nossos reclamos não foram ouvidos. Nem os nossos e nem o dos outros advogados. Só havia ouvidos para a importância da acusação e a beleza da atuação do juiz Moro.
ConJur — A denúncia já falava da delação que não tinha sido homologada?
Alberto Toron — Isso era muito grave. Também tivemos problemas com download de processos, atos processuais e eventos. Não faltaram problemas para subir arquivos no sistema. E os juízes só falavam que não tinham nada a ver com aquilo. Os advogados também não tinham, mas era preciso se resolver o problema para se ter um processo justo. Outra coisa que deu um problema enorme foi o seguinte: a montanha de informações era enorme e o prazo para defesa era de dez dias. Isso também cerceia a defesa, porque a investigação vinha de coisas de 2006 e perdurou até 2014 quando começou a fase ostensiva da operação. O Ministério Público está acompanhando aquilo em tempo real desde o início, mas o advogado não. Houve casos em que o download de arquivos levou oito dias, de tão pesados que eram. Então como é possível fazer a defesa em dez dias? O tempero da razoabilidade indica que o que fez o Supremo no mensalão, dando mais tempo para o procurador-geral da República fazer a sustentação oral, deveria ser feito em relação ao prazo da defesa para apresentar sua peça. Mas, para a defesa o prazo é peremptório.
ConJur — O STF também ampliou o prazo para apresentar a defesa.
Alberto Toron — Sim, apontando que no Processo Civil a previsão normativa de que quando há mais de um litisconsorte passivo — leia-se corréus no Processo Penal — o prazo conta em dobro. O juiz Moro nem esse prazo em dobro deu. Ele não queria dar mais tempo. Eu acho que é porque ele estava fazendo um jogo — inclusive argui a suspeição dele mais de uma vez — de cartas marcadas. A defesa era chamada só para cumprir tabela. Tanto faz como será a defesa, ele já está pronto para receber a denúncia do mesmo jeito. Já estava tudo pronto.
ConJur — Esse jogo combinado já foi apontado em outros momentos?
Alberto Toron — Tem um exemplo concreto importante: o Ministério Público dizia, no início de 2015, que o acusado atuava em organização criminosa, associando-se com administradores das empreiteiras da Odebrecht e OAS, de forma ordenada e permanente com divisão de tarefas com o objetivo de praticar os crimes de cartel e fraude ao caráter competitivo da licitação. Acontece que ninguém da Odebrecht estava denunciado no começo de 2015. Essas outras pessoas referidas não haviam sido denunciadas por falta de prova? Então eu tenho que entender que é uma referência inócua, sem valor, anódina. Ou que, embora existam elementos, por razões particularíssimas o Ministério Público não as denunciou. Então eu quero saber quais são essas razões particularíssimas. Questionamos isso e a resposta que tivemos foi, em resumo: “Não te interessa”. Não deram a mínima. O plural é porque vale para o TRF da 4ª Região, em Porto Alegre.
ConJur — E isso se repete?
Alberto Toron — A denúncia sustenta que a dita organização criminosa era constituída, entre outras, pelas empresas Odebrecht e Andrade Gutierrez. Ocorre que não se vê nenhum controlador ou mesmo executivo dessas empresas no polo passivo dessa ação penal. Temos aí o mesmo problema. E depois, ao tratar da imputação de organização criminosa, diz: “O colaborador Júlio Camargo afirmou que houve pagamento de propina no consórcio TUC, do qual participava a UTC na obra da Comperj, tendo o colaborador intermediado o pagamento da propina para a diretoria de serviço”, leia-se, para o Renato Duque. Só que o Renato Duque não estava denunciado, então o acusado praticou corrupção, corrompeu o Renato Duque, mas o próprio não estava denunciado. E mais, fez isso por meio de um funcionário da Odebrecht e que também não estava denunciado. A operação envolvendo a Odebrecht eclodiu muito tempo depois. Mas até lá, eu tinha referências a essas pessoas na denúncia e elas não estavam denunciadas. Então é um processo penal que estão chamando de eficientista, mas, na verdade, acaba com pressupostos mínimos que garantem a um acusado o exercício da defesa. A fragmentação do todo permitiu ao Ministério Publico criar uma dificuldade quase intransponível para a defesa.
ConJur — Haveria a possibilidade de se fazer como no mensalão, uma ação penal só para todo o caso?
Alberto Toron — Talvez não houvesse a possibilidade de fazer uma só ação penal, mas não poderiam ter feito como fizeram. E o tribunal chancelou isso. Não se pode denunciar corruptor e corrupto em processos diferentes, porque a corrupção é um ato bilateral. Outra coisa que esse fatiamento criou é a possibilidade de uma pessoa ser acusada de associação criminosa e, depois, de cartel. Mas o cartel é uma modalidade de associação criminosa. Então, facilita-se o bis in idem e dificulta-se a discussão da consunção. Jogo bruto, mas não somos tão burros. Embora impotentes, víamos as coisas e as denunciávamos.
ConJur — Atuar como advogado ficou mais malvisto pela opinião pública durante a “lava jato”?
Alberto Toron — Sim. O advogado, obrigatoriamente, tem um papel de se contrapor à acusação. Isso significa que eu vou apontar erros, segurar a marcha do processo para entender melhor, para ir atrás de provas... À medida que condutas típicas da defesa são apontadas como chicanas, somos retratados como profissionais do diabo, péssimos para a sociedade... E na “lava jato” manipulou-se muito as opiniões para apontar tudo aquilo que a defesa fazia como uma coisa ruim, que queria encobrir a corrupção, e tudo aquilo que o juiz fazia era exaltado como uma ação cívica, para reprimir a corrupção que desvia dinheiro de hospitais, escolas etc.
ConJur — Qual exemplo o senhor citaria disso?
Alberto Toron — Tem um interessante: Ricardo Pessoa e os executivos da Camargo Correa já estavam presos há uns cinco meses. A [revista] Veja publicou, então, uma história dizendo que os advogados foram até o José Eduardo Cardozo, [então] ministro da Justiça e meu colega de turma, para que ele intercedesse junto aos ministros do Supremo para revogarem a prisão preventiva. Primeiro: isso é uma bobagem, é ilusório pensar que o ministro da Justiça vai fazer isso; ainda mais acreditar que advogados tenham ido até o ministro para pedir isso. Mas foi com base nessa notícia, sem nenhuma comprovação, que o juiz Moro decretou uma segunda prisão preventiva daqueles que já estavam presos há mais de cinco meses. Aliás, é uma característica desse juiz, ele sempre decreta uma nova prisão preventiva quando o Supremo está prestes a julgar a anterior, que é uma forma de manter o acusado preso. Mas, voltando ao caso da Veja, não tinha provas de que aquilo ocorreu. Em segundo lugar, se tivesse ocorrido qualquer infração ou crime, teria sido do advogado, não do cliente dele. Então não poderiam punir quem estava preso. Na semana seguinte, a Veja refaz a história, dizendo que o ministro é que foi até os advogados, para pedir que eles evitem delações de seus clientes. Passaram-se 20 dias até o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que nunca dá nada para os réus da “lava jato”, conceder a ordem e revogar a prisão preventiva, que era uma excrescência. Mas, dessa vez, todo mundo que deu a notícia da prisão, como o Jornal Nacional, a Folha de S.Paulo, o Estado de S. Paulo, ficou calado. Não publicaram uma linha sobre a revogação.
Só é publicado na imprensa o que exalta a figura desse herói nacional que é o juiz Sergio Moro.
ConJur — O mensalão começou com uma denúncia do Roberto Jefferson na Folha de S.Paulo. Mas parece que a “lava jato” aparece mais na imprensa do que o mensalão. A imprensa tem sido mais usada?
Alberto Toron — A mídia tem sido muito mais utilizada e de uma forma seletiva e ordenada. Eles usam a imprensa com vazamentos seletivos para criar uma legitimação social de práticas que não são lá muito ortodoxas. Eu vejo aqui um desprezo solene por garantias processuais, como é o caso que a Dora Cavalcanti [advogada da Odebrecht] mostrou, de que informações da Suíça foram obtidas sem que se cumprisse o figurino legal, o procedimento adequado — que era uma cooperação judicial. Esse caso da Suíça é um exemplo de desobediência ao figurino, mas que, para o grande público, passa como uma questiúncula. Bem, ou respeitamos as formulas do processo ou nem precisamos do processo! E voltamos para a barbárie. Na decisão sobre isso, o juiz Moro diz que o Ministério Público brasileiro “não pode ser responsabilizado por medidas falhas de órgãos públicos suíços”. Ele esqueceu que quem pediu isso foi o Ministério Público Federal daqui. Quem trouxe a prova foi o MP brasileiro. Isso mostra como ele, juiz, prejulga certas coisas. Ele já tem o processo todo formatado na cabeça.
ConJur — Mas, para a opinião pública, ele passa uma imagem de eficiência.
Alberto Toron — Na imprensa, colocam como se houvesse uma contraposição entre eficientismo e garantismo. E que, a pretexto de sermos eficientes, rompam-se com todas as garantias. Isso é muito ruim para o Brasil, um país que já tem uma tradição de truculência. Procuradores da República fazendo diligência como se fossem investigadores de polícia, ouvindo pessoas, intimidando, é algo muito ruim. E a partir do momento em que os procuradores fazem uma campanha contra a corrupção, quem falar contra o procurador está a favor da corrupção. Nesse “pacote anticorrupção”, eles propõem o estreitamento do Habeas Corpus e, na grande mídia, quem falar contra a proposta é porque é a favor da corrupção. É aquela ideia absurda de dicotomia, “ame-o ou deixe-o”.
ConJur — Na “lava jato”, o Alberto Youssef, que é apontado como operador, parece que vai ficar com uma pena menor que os outros acusados, enquanto o Marcos Valério que era apontado como o operador do mensalão, ficou com a pena maior do que todos os acusados (40 anos). Por que essa diferença?
Alberto Toron — Aí são opções de defesa. O Marcos Valério não fez delação, o outro fez. É parte do jogo. E isso não pode ser apontado como incentivo ao crime. Teve delator que, no acordo, teve que pagar multa de R$ 55 milhões. Isso não incentiva ninguém. A delação é um meio de prova na investigação, mas é também uma estratégia da defesa. A pessoa sofre consequências também. Ela mostra que a Justiça pode ser mais eficiente.
ConJur — Os advogados da “lava jato” estão sentindo falta de uma centralização para articular as defesas, como era feito pelo Márcio Thomaz Bastos no mensalão?
Alberto Toron — Márcio Thomaz Bastos não fazia isso no Mensalão. É um mito que se criou de que ele era um articulador. Ele tinha uma liderança natural, mas a única reunião geral que tivemos foi para decidir se faríamos a defesa oral no Plenário ou não. Nós até perguntávamos coisas para ele aqui e ali, mas não havia uma defesa central e organizada. Quem assistiu o julgamento pela TV e ouviu as diferentes defesas pode perceber o que digo com clareza.
ConJur — E hoje também não há qualquer centralização?
Alberto Toron — Não vou dizer que aqui ou ali os advogados não conversam sobre o processo, mas acho que estão muito mais focados nos seus próprios processos e clientes. Na minha opinião, até faltou na “lava jato” uma união maior — apesar de não saber se se isso teria qualquer eficácia. Juliano Breda, então presidente da OAB-PR teve um grande papel na assistência aos advogados de fora.
ConJur — A carta dos advogados apontando os problemas da “lava jato” teve o efeito esperado?
Alberto Toron — Não. Obviamente faço uma ressalva, pois é fácil falar depois que aconteceram as coisas, mas acho que a carta não teve o efeito desejado porque ela deveria ter sido escrita por um publicitário para atingir o grande público, não por um advogado.
ConJur — O senhor falou que o discurso da defesa está perdendo a guerra na opinião pública. Qual é a lição de casa a ser feita pelos advogados?
Alberto Toron — Em primeiro lugar, a OAB tem que ser mais atuante. Reconheço, sim, que a OAB também encontra dificuldades. Eu fui diretor da Ordem e sei que quando a entidade fala que o índio é massacrado e que os direitos humanos são desrespeitados, sua voz ecoa. Mas quando ela fala de um problema específico da advocacia, isso não interessa aos jornais. A OAB precisa fazer um programa de conscientização da importância do direito de defesa, até mesmo nas escolas. Do mesmo jeito que é importante ter segurança contra a criminalidade, é importante ter segurança contra o arbítrio dos agentes estatais, contra a prepotência dos agentes estatais. O papel do advogado é exatamente esse, conter o arbítrio.
ConJur — O drible do MPF para trazer as provas da Suíça, o contato direto da Polícia Federal com a BlackBerry no Canadá e as omissões nas transcrições de delações podem acabar anulando a “lava jato”?
Alberto Toron — São coisas vergonhosas, mas não anularão a operação. Anularão, quiçá, aqueles documentos, aquelas delações, e tudo que depender deles.
ConJur — O Judiciário brasileiro é paternalista com o Ministério Público?
Alberto Toron — Olha, o Ministério Público tem uma posição muito privilegiada em relação ao Judiciário. Primeiro, o cara senta ao lado do juiz, o que é um absurdo. Rompe-se no plano simbólico a ideia de igualdade. No Júri isso é fatal. Depois, os dois são funcionários públicos, seguem carreiras paralelas, eventualmente passam pelas mesmas comarcas. Há uma crença de que o Ministério Público é mais imparcial, não faz trapaça, e a “lava jato” está mostrando que, quando quer, faz sim. Exemplo disso foi a supressão do trecho da fala de uma testemunha em favor de Marcelo Odebrecht. O Ministério Público é encarado como defensor da sociedade. No processo penal, isso é uma falácia. No processo penal, o Ministério Público é parte, ele não fala em favor da sociedade, mas em favor da tese acusatória que ele defende. A se pensar ao contrário, toda vez que um juiz absolvesse um acusado, estaria julgando contra a sociedade — o que é uma bobagem. Essa ideia de que o MP é sempre o representante da sociedade precisa ser urgentemente revista. Ele está mais para representante do Estado, sem dúvida nenhuma, o que é uma coisa diferente, sem demérito.
ConJur — A “lava jato”, assim como o mensalão, está criando uma nova jurisprudência?
Alberto Toron — Estão criando um novo padrão de atuação. Eu vejo hoje juízes muito propensos a decretar prisões, a repetir o modelo da “lava jato”. Como me disse uma vez o atual ministro Barroso: Hard cases make bad Law [casos difíceis fazem leis ruins, em tradução livre], no sentido de jurisprudência ruim. Nunca esqueci isso.
ConJur — O comportamento do júri mudou?
Alberto Toron — Mudou muito. Outro dia, conversando com o ex-presidente do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, Adib Casseb, ouvi que o júri tem absolvido muito mais PMs acusados de assassinatos, do que a Justiça Militar. Isso se explica porque o júri vê aquele como “o cara que mata bandido”. É um jogo a favor da segurança, mesmo que condenando um inocente (quando ele é “pobre e preto”, para usar um antigo jargão) ou absolvendo um culpado (quando ele é de um grupo de extermínio). Ou seja, é o punitivismo servindo para absolver alguém, mas aquele alguém que fez “justiça” da forma mais terrível possível.
ConJur — O senhor concorda que o Brasil vive a criminalização da riqueza?
Alberto Toron — Isso precisa ser melhor entendido. Eu chamo atenção desde os anos 1990 para o fato de que o modelo do sistema penal mudou. Classicamente, a visão marxista do Direito Penal é que ele é um instrumento de dominação da burguesia sobre o proletariado. Depois, se percebeu que o Direito Penal pode ser um instrumento eficaz, não apenas para perseguir “pretos, pobres e putas”, os três Ps, mas para perseguir outros segmentos sociais. Então, na redemocratização do Brasil, sobretudo a partir de 1988, o que nós temos é a utilização do Direito Penal para alcançar novas situações, como o crime do colarinho branco, crime fiscal, crime ambiental, concorrência desleal e outras tantas práticas. Mas não basta apenas a previsão normativa. É necessária a vontade política de perseguir esses crimes. Com a redemocratização assistimos isso. Também nos EUA e na Europa houve uma ascensão do Direito Penal para perseguir crimes de uma camada social que antes era infensa a persecução penal e que hoje se senta não apenas no banco dos réus, como vai para a cadeia também.
Eu vejo no Brasil, nessa operação “lava jato”, o cruzamento de uma estrutura político-econômica podre, que é o que propicia o tipo de corrupção noticiada, com a estrutura judicial e do Ministério Público absolutamente moderna e independente. Esse cruzamento de vetores das estruturas deu na repressão a que assistimos. Mas é preciso muito cuidado ao fazer previsões sobre o resultado disso. Quando se teve o processo do mensalão, alardearam que seria um marco contra a corrupção. E, aparentemente, quando o processo do Mensalão ocorria, as práticas noticiadas hoje, se elas realmente existiram, estavam acontecendo. Isso se dá porque a base real que permitia essas práticas não foi tocada. Então, se não se tocar nessa estrutura que é política e econômica, a repressão por si só não mudará o cenário brasileiro — talvez sofisticará a prática.
ConJur — A legislação penal é instrumento para mudar essa estrutura?
Alberto Toron — É, também. Mas é ilusório, é místico, é ingênuo até, pensar que a lei penal sozinha vai mudar isso. Não vai. Precisa ter uma vontade política de mudar a estrutura do Estado.
ConJur — Como tem sido a experiência de ser juiz no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo?
Alberto Toron — O exercício de ser juiz é uma coisa muito árdua para mim, pois meu treino como advogado é de examinar as coisas pelo ângulo da parte. A advocacia, sobretudo a criminal, é uma profissão que exercita a visão unilateral. O advogado “escaneia” o processo procurando onde quer chegar, o que é defender. Já como juiz, o exercício é olhar todos os lados e ver o desfecho mais justo. Foi muito bom para mim, mas foi penoso. Ampliou minha visão. Uma das coisas que eu mais aprendi é: diga muito falando pouco. Escreva pouco. Quanto menos você escrever, será mais contundente. Saber expor os fatos é a coisa mais importante que tem para o juiz. Se você citar uma doutrina, um julgado, ok. Mas, o mais importante é expor bem os fatos. Eu aprendi também que a sustentação oral é uma coisa muito importante. A sustentação oral bem feita pode virar o caso. Eu já desconfiava disso como advogado e, como juiz, confirmei.
ConJur — O senhor concorda com a ideia do vice-presidente Michel Temer de importar o modelo português de semipresidencialismo?
Alberto Toron — Eu sou a favor do parlamentarismo. Acho que ele aliviaria muitas crises. Mas esse modelo “nem lá nem cá”, “café com leite”, tenho minhas dúvida. Parece uma solução meio golpista, como fizeram com o João Goulart para ceifar-lhe os poderes. Como quer que seja, o Brasil não pode ficar como está. É necessário um rearranjo político para que o governo volte a assumir as rédeas do país.
ConJur — O ministro Dias Toffoli defende a redução no número de partidos para ter representação no Congresso, com a imposição de uma cláusula de desempenho. O senhor concorda?
Alberto Toron — Concordo. Tem que ter um mínimo de representatividade para se constituir um partido. A gente saiu do oito para oitenta e hoje alcançamos uma coisa absolutamente irreal.
ConJur — Quando o Supremo estava julgando o fim das doações eleitorais por empresas, o ministro Gilmar Mendes disse que isso transformaria o Brasil em um laranjal, porque as empresas parariam de doar e poriam CPFs para doarem em nome delas. Estamos correndo esse risco?
Alberto Toron — Sim. Eu sou a favor da doação das empresas, com a imposição de limites. Acho errado não poder doar. Também entendo que a Lei da Ficha Limpa representa uma espécie de tutela indevida do Estado sobre o cidadão eleitor. Na minha opinião, cabe ao eleitor dizer: “esse cara está condenado, é ficha suja, não serve”. E não caberia ao Estado, a priori, impedir a candidatura desse ou daquele candidato por conta da ficha. O povo é que tem que ter discernimento para escolher quem irá representa-lo no Parlamento.
ConJur — O senhor é favorável à legalização das drogas?
Alberto Toron — Eu acho que tem que ser descriminalizado o consumo e, no futuro, que ainda está distante, a própria produção e comercialização também devem se subordinar a um modelo que não é o penal. Acho interessante a solução que o Uruguai deu. E estou firmemente convencido de que, ao contrário do que muitos apontam, a legalização não vai aumentar o número de usuários. Eu dou um exemplo simples: você bebe?
ConJur — Sim.
Alberto Toron — Eu também bebo. Você bebeu antes de vir para cá conversar comigo?
ConJur — Não.
Alberto Toron — Você não bebe normalmente durante seu trabalho? Eu também não. Mas nós poderíamos ter bebido. Ter tomado quatro uísques e vindo para esta entrevista completamente bêbados. Por que a gente não veio bêbado? Porque você tem um compromisso com o seu trabalho e com o seu nome e eu também.
ConJur — E não seríamos presos se estivéssemos bêbados...
Alberto Toron — O contraestímulo ao uso da droga lícita não é o encarceramento ou a ação penal. Contraestímulos são os vínculos que eu tenho com certos valores. O valor profissional e familiar e meus compromissos me obrigam a ter certos comportamentos que eu, naturalmente, desempenho. Isso muda o nosso foco.
O adultério foi descriminalizado e quantas vezes alguém falou: “Eu não vou ter um caso com aquela mulher, porque a pena é de um a seis meses de detenção?”
ConJur — Acho que nunca.
Alberto Toron — E podemos inverter esse pensamento. Ninguém diz “vou ter um caso com aquela mulher porque agora não dá mais cadeia”. O que impede (ou permite) a pessoa de ter um caso fora do casamento são os vínculos pessoais e compromissos sociais. Voltando ao caso das drogas, eu poderia ter comprado um baseado antes de vir para cá. É facílimo de conseguir maconha. Eu podia ter dado um tapa, dois, três... Não dei pelas mesmas razões que não vim bêbado.
Com a legalização, em um primeiro momento, haveria uma maior visibilidade, as pessoas iam “sair do armário”, mas não iria necessariamente aumentar o número de usuários. As pessoas continuariam trabalhando, continuariam fazendo suas coisas. Quem vai dirigir não pode usar droga, do mesmo jeito que é crime beber e dirigir. Mas para quem está na praia relaxando, qual é a diferença de tomar uma caipirinha ou fumar um baseado? Precisamos aprender a lidar com as diferenças e superar preconceitos. Do contrário, insistiremos em fórmulas inadequadas para enfrentar o grave problema que as drogas podem representar nos casos de dependência. O crack está e não nos deixa mentir. Mas uma coisa é a dependência, que tem que ser encarada como doença, e outra é a utilização recreativa. Em ambos os casos o Direito Penal, mais dificulta do que ajuda a encaminhar as situações. Digo isso, desde os anos 70, quando estava na faculdade e fico feliz quando vejo alguém como o presidente Fernando Henrique Cardoso defender a descriminalização do uso das drogas. “Estamos juntos” (risos).
Maurício Cardoso é diretor de redação da revista Consultor Jurídico
Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 20 de março de 2016, 6h55
Nenhum comentário:
Postar um comentário